[RAFIC FARAH] Monografia

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INTRODUÇÃO Quando aderi ao grupo fundador da Escola da Cidade, original da Brás Cubas, tínhamos muitas coisas em comum, porém fui movido pela sensação constante de mal estar ao observar a degradação das cidades brasileiras e crer ser viável salvá-las através de alguma ação de esclarecimento público. Uma mobilização nacional através de toda a mídia, daquilo que seria possível corrigir. Mas, algo estava dando errado com o ensino para as coisas estarem em processo ininterrupto de deterioração. É fácil constatar a total ignorância da sociedade à essa área do conhecimento tão importante, uma expressão civilizatória observada ao longo de toda a história. Enquanto estudante de arquitetura, imaginava uma universidade ativa, vertendo o produto de seus pensamentos à toda sociedade, em experiências práticas. A universidade como escola da sociedade e a sociedade como escola da universidade, como uma das fontes dos saberes. Acreditava que seria esse o princípio fundamental à fundação de uma universidade. Um lugar de reflexão, crítica; assim pensada desde lá em tempos de domínio árabe sobre a Europa. Ao visitar Alambra, uma espécie de templo da água, tão preciosa à culturas que vêm de zonas áridas, onde a concepção de Eden são jardins, oásis e veredas a brotar das profundezas da terra, compreendi como a cultura induz o desenho. Me perguntei que arquitetura meu país legaria, representativa de sua cultura; tão novo e extenso, de crescimento tão rápido, natural que não tivéssemos a noções desenvolvidas de urbanidade. Seria preciso uma ação rápida se quisesse, no espaço de minha curta existência, presenciar alguma mudança. Num documentário, assisti a Villa Lobos a persuadir Getúlio Vargas para estabelecer o ensino de música em nossas escolas públicas. A ideia vingou e uma geração inteira de bons ouvidos e bons músicos foi formada. Porque não, também ensinar fundamentos básicos da arquitetura aos garotos ? *1 Seriam portanto três ações. A universidade saindo a campo, às periferias da cidade numa ação de conhecimento da sociedade por si mesma; e levando seus saberes (saneamento, energia, estrutura, espaço, apoderamento de espaços públicos, paisagismo, arte, etc.) a todos os lugares Uma mobilização nacional, através de todas as mídias, de esclarecimento e educação sobre arquitetura. E, a ação permanente: rudimentos de arquitetura desde o ensino básico. Tal a importância creio ter a arquitetura como processo de aperfeiçoamento civilizatório. A arquitetura não é uma indústria, mas seria onde se engendra essa enorme indústria. Seria imensa a quantidade de estudantes, arquitetos, engenheiros, geólogos, antropólogos, sociólogos, pedreiros, operários, economistas, empregados através dessas ações. Mas como fazer isso? Seriam os arquitetos vestidos com uniformes, passeando pelas favelas como o fazem funcionários da saúde ao combater os mosquitos da malária? Me ocorreu criar ações de propaganda e comunicação onde se divulgaria e se incentivaria a população a procurar os Postos de Arquitetura em seu bairro. (Não à toa fui diretor de comunicação por tantos anos da Escola). Nesses locais, ateliês de arte e técnicas construtivas, desenvolveriam esboços

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e estudos preliminares rápidos. Uma espécie de serviço público. Empregar-se-ia milhares de estudantes e professores de arquitetura e, seriam esses ateliês, a própria universidade, espraiada. Mas era muito jovem ainda e essa era uma concepção peculiar a um jovem hippie, iludido à crença de que o brasileiro é um povo solidário. Todavia carreguei esses pensamentos por dezenas de anos até à minha adesão ao grupo da Escola. Cedo ou tarde, sonhava eu, começaríamos a agir dessa forma. Após reuniões estruturais, quando ainda não tínhamos sequer uma sede, especulava qual a maneira mais eficaz de dar inicio a esses planos. Pensei em ir ao topo da pirâmide como melhor estratégia. Seriam necessárias aulas ministradas nas câmaras de vereadores e aos prefeitos para que estes destinassem leis e verbas. Ironicamente, hoje nossa faculdade ministra saberes exclusivamente ao topo da pirâmide. Uma universidade com o sistema de ensino que expus acima, por decorrência, ganharia nova forma. A arquitetura/urbanismo se refundaria em novos paradigmas decorrentes de uma atividade engendrada pela prática coletiva pensador/sociedade se retroalimentando. Quem sabe isso não poderia ser aplicado à outras áreas, como engenharia, medicina, sociologia, geografia, etc. Num ininterrupto processo de retroalimentação. Assim sendo, essas áreas do conhecimento, com o tempo, seriam propriedade intelectual da sociedade num apoderamento real do conhecimento. Nosso nome induz a esse anseio. Muitos nos imaginam algo assim. E graças a esse discurso conseguimos trazer apoiadores financeiros. Eles acreditaram, em suas primeiras doações, que nossa faculdade, além de levar conhecimento, faria projetos para essas populações. Isto porém nunca se deu por iniciativa da Escola e, hoje constato, seria tarefa quase impossível ao nosso pequeno grupo inicial, a menos que se focasse inteiramente nisso, mas tínhamos antes de fundar a faculdade, o curso eletivo, que deu trabalheira. Uma ação exemplar recente nesse sentido, foi o filme das irmãs Café. Mas a mais importante foi a obra coordenada por nossos fundadores Paulo Brazil e Pola, a pedido do professor Aziz Ab’Saber a Anália. Uma pequena praça dominada por traficantes em Campo Limpo. Deu ensejo para fundarmos o Núcleo de Aplicação e este antecede o Núcleo Escola! Mais tarde o Parque Linear da Adutora da Sabesp. Esse projeto executado com 7 km de extensão deveria estar em exposição permanente, pois é representativo de nosso mito de fundação. Contou com ampla consulta às comunidades ao redor, tem grande significado para centenas de milhares de moradores de Sapopemba. Nenhum de nossos novos professores conhece esse passado muito recente, ou seja, desconhecem nossa própria história. Chamo a atenção dos quase 50 alunos participantes desse Núcleo; não passaram pelo celebre mito do divisor de águas• comum no terceiro ano. Os jovens, em plena potência física e intelectual de descortinamento do conhecimento e da informação, têm profunda necessidade de transformar o mundo ao seu redor. No jovem, transformar é atavismo, faz parte de sua estrutura psíquica. Todas estruturas mitológicas da Terra indicam isso. Mas, diante de tantas e complexas dificuldades que o sistema impõe no afã de absorvê-los no objetivo único à multiplicação do capital, consciente ou inconscientemente, se veem numa encruzilhada quase intransponível e num mercado de trabalho exíguo. Natural portanto se deprimirem. É muito rasa e mesmo simplória a conclusão de que isto seja natural na existência de um jovem deprimir-se. Deprimem-se diante do que está aí colocado a eles. Pensar em encaminhá-lo às mãos de uma terapeuta é um equivoco

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tosco. Quem os castra é o sistema. Esboçarei uma tentativa de organização de meus discursos ao longo dos últimos dezessete anos de Escola da Cidade, adaptando-me ao que a Escola tem como possibilidade de oferecer hoje, sobretudo depois que instituímos os seis anos, um entrave justamente àqueles que imaginamos atender. Os seis anos elitizaram ainda mais nossa Escola. Mas tem jeito. *1 Essa proposta encaminhei ao então secretario da cultura do Município de São Paulo na gestão Kassab, Carlos Kalil, que nos ofereceu uma escola modelo da prefeitura para tal e, uma verba, à época, de R$ 8.000,00 para elaborar o plano. Neste preambulo do ensaio, ouso afirmar, teremos de mudar drasticamente o processo de aprendizado nos espaços das escolas. O desinteresse, a evasão, se dá por conta do arcaísmo, aquilo que é ministrado, e como é ministrado, não condiz mais com a realidade das ruas e, essa realidade, está sendo ditada pela indústria cultural, desinteressada por qualquer processo de transformação social. Teríamos de repensar a Universidade, não como a enxergamos atualmente, como sendo fase de um processo linear, uma escada no processo de aquisição de conhecimento para posterior ingresso nos sistemas produtivos. Não. Conquistar perenemente a consciência da arquitetura como atividade fundamental de consolidação de aprimoramentos sociais nos exigirá pensar e conhecer de que forma atuam as forças politico/econômicas e a história toda que as trouxe até este lugar. O conhecimento do homem brasileiro, de sua cultura nos dirá aquilo que almejaram e almejam ao longo de nossos tempos de Nação. A qualidade existencial de cada indivíduo depende fundamentalmente de sua percepção do mundo em todas suas esferas: ciência, política, sociológica, artísticas, etc; sem ordem, sem sequência. E seria a conexão coletiva onde esse indivíduo se insere que dará sentido à sua existência TRANSFORMADORA. Como proporcionar isso ? Não vejo então soluções, ou, soluções há, mas não vislumbro possibilidades de melhorias significativas na qualidade de nossas cidades, mesmo que a economia um dia venha permitir ações drásticas de alto investimento, sem antes haver um claro entendimento por parte do arquiteto e do estudante, da ação das forças econômicas e políticas. Somente isto irá permitir uma ação incisiva e política, sem a qual, tudo é apenas especulação formal. O livro Reforma Urbana, de Ermínia Maricato, faz tanto o apanhado geral do embate capital-sociedade, como dispõe com clareza a legislação a enfrentar nesse embate em que o capital sempre leva vantagem. Os movimentos coletivos porém, ultimamente têm conquistado vitórias. Como dizia Milton Santos, por mais que a universidade debata e possa contribuir, a soluções virão da periferia. Eles são a maioria. A meu ver, sociedades em vias de formação, ávidas de conhecimento, por mérito próprio, começam a entender a necessidade de luta política por seus direitos e embate à lógica do sistema. Neste sentido então que entendo nossa modesta contribuição na transmissão de conhecimentos técnicos e, artísticos.

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NORTES DA ESCOLA PÚBLICA REPUBLICANA Escutem o Guarany, de Carlos Gomes (música avó do Tropicalismo)

Pretendo convergir em direção de hipóteses e questões como: o ensino público foi reflexo e decorrência de um período de construção da nacionalidade e da identidade nacional que se estendeu durante todo um período romântico, fortemente influenciado pelo iluminismo. Não me atenho a este, mas principalmente ao fim do romântico período que culmina com a construção de Brasília; coincidindo com a consagração do Brasil no futebol, nas artes - notadamente na música e arquitetura - Cito estas artes enquanto nestas e através destas, era possível estabelecerse uma visão ideológica socialmente mais uníssona, com suas raízes láaa na Primeira República. As artes enquanto eram expressões máximas e de grande poder transformador ou, ao menos, expressões do desejo transformador de boa parte de nossas elites esclarecidas. Essa mesma que Glauber Rocha expressa com precisão aguda em Terra em Transe. Uma burguesia nacional que capitula às forças do capital internacional, mas em períodos menos conturbados politicamente, atuou como mecenato.( Movimento Modernista e o total apoio do Estado que mandava nossos artistas para a Europa). Outros tempos. Muito embora houvessem ações reacionárias e retardatárias, disseminou-se no País ideais progressistas e desenvolvimentistas vigorosos. Havia a sensação de que dávamos passos em determinada direção. Era intensa nossa literatura ficcional e critica, estruturante imagética da Nação. E, mais importante, havia um apoio de parte significativa da população. O Brasil ganhar ou quase ganhar a copa do mundo, foi um evento carregado de significados. Coloco o Tropicalismo como o documento mais amplo e profundo dessa desilusão romântica pós construção de Brasília. Este expressa claramente o fim do País romântico e o embate com uma nova realidade. À convivência de vários brasis retrógrados e progressistas, obscuros e brilhantes, como o próprio Tropicalismo em si, foi expressão desse brilho. Insisto nesse movimento artístico por encontrar nele um panorama espiritual completo, um espelho que reflete ao menos cem anos de cenas. Enfatizo, o Tropicalismo foi a mais perspicaz manobra midiática de nossa história. Sinalizou o fim de um estado de alma que culminou-se em Brasília e derroca no golpe militar de 64. Com o fim do grande sonho romântico, muda o Estado engendrado sob o iluminismo, a partir do último reinado. Aquilo que pensávamos e idealizávamos de nós mesmos cambia. A grosso modo, coloco então como fator paralisante, um Estado enfraquecido, descarregado da ideologia que o engendrou. Além de vergar-se ao peso das potências imperialistas no século XX, contemporaneamente a internacionalização e operações do capital se tornaram tecnicamente muito mais eficazes do que a maioria dos estados do planeta. Aquilo que em países desenvolvidos ainda conseguem funcionalidade, são heranças das forças socialistas, mas gradativamente estão se esvanecendo. A crise de 2008 acentuou a degradação dessas conquistas. A educação e os serviços públicos têm piorado sob a disseminada e constante ideia de que o estado não aguenta, não tem como manter, não tem grana. Ou seja, a sociedade desacredita o Estado. Ora, se preconiza a privatização de todos os serviços, seria justamente esse o reconhecimento de que o cidadão teria como pagá-los e ainda proporcionariam lucros. Assim sendo, os impostos, mais acessíveis, são a coletivização, a união do esforço comum. 4


Atualmente há um esvaziamento, um processo desilusório. Não estou a afirmar que tenhamos tido um Estado totalmente eficiente e representativo, uma vez que o herdamos do colonialismo, oligarquias, clientelismo, corrupção. A Monarquia brasileira teve como principais adversários oligarcas da cana e do café. Estes, junto a verdadeiros idealistas, conseguiram um intento republicano, mas foi proclamada por militares e, os idealistas de então, pouco participaram dos primeiros governos. Não percamos a memória de Canudos. Esse massacre é um dos fundadores de nossa recente república. Á chegada de Getúlio Vargas ao poder, o Estado ganha novas feições. Que novos valores, que novas imagens, de que maneira continuaremos à construção de nossa sociedade? Como serão - ou já deveriam ser - as escolas? Teremos de repensar o ensino sob novas motivações, e, como o arquiteto se pretende humanista, o ensino da arquitetura necessariamente deve ser revisto e redirecionado. A meu ver, e colocarei amiúde aqui, não bastam metodologias pedagógicas eficazes e referências maravilhosas. Estas não faltam e nunca faltaram; é mais do que isso. ENSAIO SEM HINOS Cá não deixo um projeto, mas um ensaio, uma hipótese sobre aquilo que talvez as sociedades brasileiras já estejam ansiando, ainda esperançosas, talvez simplesmente por estarem vivendo no Novo Mundo. Considero que a fundação do Brasil se deu à chegada da Família Real portuguesa por estas plagas. Portanto, temos apenas 208 anos, jovens ainda, com muita esperança de realizar um país cujas as referências se espargiam inicialmente aos modelos europeus: Inglaterra e França, como almejavam nossos fundadores da corte portuguesa que de há muito haviam deixado à distância seu glorioso passado técnico, comercial e heroico de grandes navegadores. Somente quando chega aqui, se dão conta de que tem de garantir o império e fundar um país. No período da segunda guerra, não eram poucos os brasileiros devotos admiradores a Alemanha. Hoje, nossas referências ainda externas. Enaltecemos peculiaridades de civilização: a eficiência e honestidade dos japoneses, a democracia francesa, a cultura italiana, a capacidade alemã, a extrema admiração e absorção do melhor e do pior dos norte americanos. Enfim, desejamos ter e ser o melhor de cada um. Talvez seja essa macaquice, esse complexo de vira-latas, esse complexo do colonizado, exatamente a peculiaridade que nos fará encarnar o utópico desejo humano de perfeição. Uma peculiaridade do Novo Mundo. O que queremos ser, exatamente, não sabemos, mas o desejo há e abrange desde o mais conservador elitista até às classes mais baixas que já supriram a fome. O desânimo há também como parte desse caráter de colonizado. Mazelas mais do que qualidades afloram nos momentos de crise como a que hora se instala. “O Brasil não tem jeito” sempre preconizado pela mídia é nefasto fator psicológico a contaminar as massas, tomando o lugar e papel da escola. Se o Brasil não tem jeito, a humanidade não tem. Portanto, enquanto existirmos, melhor é que façamos o melhor. Insisto, somos muito novos e é no mínimo idiota qualquer comparação com os gigantes do norte do hemisfério. Há que desenvolver análise e crítica; sobre elas: esperanças. Aqui não desenvolvo a escola que imagino; ainda estou tentando, muito embora alguns

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esboços vêm à mente. Tenho a Arquitetura não como simples ferramenta dela mesma, mas como ferramenta de leitura e entendimento da complexidade social, do desenvolvimento humano. O Arquiteto, a meu ver, não é aquele que somente deseja, desenha e constrói, mas, antes, aquele que consegue ver através do filtro da arquitetura, através do teto, através das ruas e, a tem a Arquitetura como arma de transformação. Por isso o entendimento da complexidade do sistema se faz imprescindível ao mesmo tempo em que se desenvolve a técnica e, para que esta possa ser empregada. Entendimento e desenvolvimento técnico é processo de libertação. Observem, há infinitas soluções criadas nas pranchetas dos estudantes: vão para a lata de lixo. E com elas, qualquer esperança de atuação. Obrigado, Rafic .

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CAPITULO I ARQUEOLOGIA DO FUTURO Não sou e nunca pretendi ser acadêmico devido à preguiça atávica que se evidenciou desde os primeiros anos de escola. Ou quem sabe, tinha eu um desejo ansioso de chegar logo aos finalmentes. Farejava e ia atrás somente daquilo que me trazia ou satisfazia a curiosidade dos objetos que me intrigavam e encantavam. Assim ainda penso e, não por isto, venho aqui preconizar essa maneira particular de aprendizado, mas é uma. Todavia não são poucos os pensadores que admiro por perceber neles musculatura e bases muito bem estruturadas, suficientes para erguer e estabelecer miradas de onde é possível amplas e profundas visões da humanidade e seus destinos, suas extensões históricas, em todos os aspectos catalogados ou não. Pensadores que despontaram muito além das “igrejas”, hora demolindo-as; hora erguendo novas; novos adoradores e novos iconoclastas. Desses mirantes onde se postam, estabeleceram-se os paradigmas que nos têm norteado ou simplesmente alimentado nossas crenças de progresso. E há sempre um espaço de tempo para que as sociedades absorvam esses saberes e redesenhem os novos mapas do conhecimento. Chamarei a esse desejo do olhar, a esse vislumbre de: curiosidade. Me parece, a curiosidade faz parte e tem raízes oriundas de nossa primitiva necessidade de sobrevivência. Transcendendo a essa necessidade de sobrevivência; os leões descansam à sombra. Conforto. Mais sofisticado ainda, o desejo do conforto compartilhado. Freire (Paulo) considera a curiosidade enquanto uma necessidade ontológica do ser humano, característica fundamental de saberes que lhe possibilitem a criação e recriação de sua própria existência; “uma espécie de abertura à compreensão do que se acha na órbita do ser desafiado”. Ana Lúcia de Souza Freitas. Faço, para ilustrar esse desejo de compartilhamento, alusão aqui ao visionário Marx, que estabelece três paradigmas dogmáticos. Considerando a automação proporcionada pela evolução da técnica, distribuição de bens proporcionada por essa automação e, lazer coletivo proporcionado pelo tempo disponível. “De manhã trabalho, à tarde pesco e à noite critico”. Traduziria para uma caricatura baiana de mim mesmo: trabalho quando dá, pesco sempre, e quando estou relaxado na rede, fico pensando. E penso realmente que deveríamos refletir mais sobre a necessidade de tanto trabalho, tantas horas e tantos anos de nossa existência dedicado a ele. Qual o sentido existencial disso ? Aqui, neste momento, talvez pretenda tratar do compartilhamento entendendo-o como única possibilidade de futuro menos sombrio como aquele em Metropolis (1920). Qual a direção nos leva ou, para onde estão voltadas nossas faces, nosso olhar. Nesse filme, vivendo num mundo subterrâneo, todos se voltam numa mesma direção determinada por algum ser inteligente a habitar numa superfície elevada e privilegiada do mundo.

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A M B I E N T E M E TA F Í S I C O A questão ambiental indica e profetiza um único destino dramático à todas sociedades do planeta. Isto faz com que alguns pensadores lancem e considerem novos pontos de vista sobre a história em suas áreas diversas. Há transformações profundas no estudo do conhecimento. Mesmo sob o ultrapassado manto etnocêntrico, mas sob as luzes de uma astronomia e entendimento da energia e da matéria ainda no inicio do século XX, o homem e o planeta passam a ser entendidos como minúscula inserção num cosmos descomunalmente desconhecido. Isto é, nos vemos minúsculos. O estudo do conhecimento anteriormente estabelecido está sob contexto de análise e reflexão. Isto tem um grande peso na psique do indivíduo: o metafísico. Mas atenho-me à história como a conhecemos neste momento, linear e catalogável, mas mais reflexiva a respeito de si mesma. Como analisarmos o atual período da humanidade de descomunal quantidade de produção de arquivos virtuais e estoques de documentos, e em processos de transformações rapidíssimas. Concebida linearmente como numa ficção, a história fascinou-nos até aqui. Na literatura observamos esse reflexo em publicações ficionais em que o tempo não é mais colocado linearmente e nem serve mais como medida como gradação evolutiva das personagens, uma vez que, cada vez mais, as personagens tentem a desaparecer. Começo a investigar as palestras de Eduardo Viveiro de Castro sobre o Antropoceno. Acredito, irá remexer novamente conceitos que hoje temos das teorias do conhecimento, estruturando visadas à distâncias maiores, de regiões mais amplas, menos ficcional, sem personagens, encarando o homem como elemento da natureza. Por conhecer sem profundidade seus pensadores e assim estar incorrendo em interpretação errônea, ouso todavia dizer que teremos de nos enxergar como meros acidentes naturais e, somente neste momento, esse “acidente” parece tomar consciência de ser isso. NEM

D E U S E S N E M A S T R O N A U TA S E R A M O S D E U S E S

A S T R O N A U TA S A história da arquitetura é uma área do conhecimento que nos deixa, - a todos - fortemente impressionados devido à sua monumentalidade a atravessar milênios, a nos trazer mais do que testemunhos, indagações. Há uma leiga e mágica admiração pelas técnicas empregadas no passado. Pergunta-se como seres “menos sábios”, menos desenvolvidos do que nós, conseguiram erguer e equilibrar pedras à alturas descomunais em edificações igualmente descomunais. Há uma crença quase religiosa na ciência e, a técnica é seu rito; como tal, pergunta-se recorrentemente qual a técnica. A arquitetura possui uma das mais completas e vastas iconografias desde antes ainda do surgimento da máquina impressora, como podemos observar na pintura dos séculos XII, XIII e XIV, onde observemos profusão de paisagens onde se inserem ruínas romanas. As mais emblemáticas e impressionantes materializações do conhecimento humano são as edificações. (Estão perdendo sua magnificência diante da espetacularidade dos feitos tecnológicos contemporâneos, de Chalinger a iphone). Por serem de pedra talvez, e assim terem atravessado os milênios. Nos impressiona muito mais os gigantescos edifícios de enormes pedras do que os surpreendentes instrumentos de obturação e trepanação egípcios. Ou maquinas engenhosas pré ou pós revolução industrial. Estas, raramente conservadas em raros museus tal sua profusão

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e descarte. E continuamos a produzir uma infinita quantidade de lixo. Poucos alunos de nossa escola, por exemplo, sabem o que é um VHS. Nossos netos não saberão o que é um teclado. Vejam como é difícil achar-se um mestre de história da técnica. Existem as disciplinas de tecnologia, mas de maneira geral, o que vemos são as técnicas funcionais do momento, apenas as disponíveis no mercado e elencadas pela mídia. Fernand Braudel quando atem-se à tecnologia pré-revolução industrial dá-nos uma amostra da imensa diversidade e quantidade da produção e de experimentos técnicos num longo caminho desde a idade média até à revolução industrial. Se desintegraram . E a revolução industrial mudou profundamente o sistema de vida e toda a estrutura social. Foi de fato uma revolução. Brodel, quando vivo, talvez não tenha presenciado ou sequer notado que o longo uso da roda na mecânica, venha a ocupar um pequeno espaço documental, uma vez que esta está fadada a quase desaparecer e, mesmo a atual mecânica será irreconhecível dentro de algumas dezenas de anos. Mas, o destino das obras milenares da arquitetura, ao menos sob nosso imaginário, está fortemente calcado. Os precisos equipamentos de previsão das cheias, safras e impostos, usados pelos sacerdotes ao longo do Nilo, talvez me tenham causado mais impressão ou, dado mais subsídios para entender tal estágio dessa civilização do que as próprias pirâmides, todavia são elas as campeãs de mídia. Nos deixa a arquitetura, grande legado de conhecimento, mas, principalmente, paradigmática crença numa evolução que a inteligência humana é capaz de dar sequência incessante. Uma base literalmente pétrea. Parte da impressão que sentimos ao depararmo-nos com uma imensa ruína, talvez seja por uma simples razão de nos parecer fácil equilibrar pedras. ou porque nelas se denota momentos históricos dramáticos, organizações sociais complexas e a admiração pelo poder dos grandes impérios perpetuados no tempo. Nosso olhar vai à busca de sinais de inteligência semelhantes à nossa. Essa sensação de perpetuação, quase de imortalidade, locupleta os devoradores de literatura de almanaque, deslumbra o senso comum. E não seria o senso comum o objeto importante que devemos aprimorar ? Quais serão os vestígios arquitetônicos que deixaremos à arqueologia do futuro? Conseguiríamos hoje, imaginar como nos interpretarão daqui a duzentos anos? Quais arquiteturas sobreviverão tão emblemáticas quanto as que hoje reverenciamos e ministramos?

O E N S A I O - C A P I T U L O I I ( Não sei se haverão outros) Peço à minha banca examinadora que, ao ler este texto, imagine ou eleja alguns heróis acadêmicos que neste momento - apenas neste exato momento - me vêm à mente; e lhes venha à lembrança em qualquer trecho. Claude Levi Straus, Fernand Braudel, Eduardo Viveiro de Castro, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Fritjof Capra, Eric From, Caetano Veloso, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Edgar Morin, Humberto Eco, Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Adorno, Eric From, Carl Gustav Jung, Vilém Flusser. Agostinho Silva e sua mulher que dizia: mais importante que o fato é o mito. Os historiadores têm de analisar o mito. O mito detona , desencadeia os fatos. Os fatos revelam os mitos que os desencadeiam. Alguns não marxistas, por exemplo, me ajudaram a compreender o fenômeno, não da luta entre classes, mas como todas mantém a alma essencial do capitalismo contemporâneo nas cidades onde houve translado do campo à cidade, embora nunca tenham tocado nesse assunto.

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Não mais a luta de classes, exaustivamente citada e abordada, mas um tipo de alienação da qual decorre a desagregação social e o medo. Nas classes médias, como sempre, o medo de decair nas periferias profundas. Um sistema de afogamento; de paralisia pelo medo. E desmobilização por medo de que as coisas fiquem ainda pior; o conformismo sob a crença de que não há outro jeito de existir no mundo se não se seguir produzindo a garantir o curso do dia a dia, o custo do dia a dia; ter de deixar um legado para os filhos e, diante da quimera do enriquecimento, esse legado só poderá ser seu preparo para o mercado, a bagagem armazenada em sua cabeça super treinada para dar respostas rápidas: a educação, hoje compreendida como “formação de capital humano”, ou seja, valorada como produto e lucro, não como processo civilizatório espiritual e evolutivo. Há bem pouco tempo, diplomados tinham direito à cela especial; isto quer dizer, quem não fez escola é paria, duplamente castigado: por não ter tido a oportunidade de educação e preso em cela comum. Contam com o Estado como polícia que garanta o status quo, o sentimento de propriedade e herança. O individualismo ganha força em detrimento de qualquer pensamento de compartilhamento. Há uma crise de ordem psíquica no indivíduo e no psiquismo coletivo, bombardeado incessantemente pelas mídias subservientes ao capital liberal.

D A S C ATA C U M B A S À S H E R A N Ç A S Em todas as classes sociais há a necessidade de emblemar símbolos que dão a ilusão de pertencer a uma casta onde imaginam ter alcançado um lugar mais seguro à própria vida e fazerem parte de um grupo seleto e seletivo. E, garantidos até depois da morte: herança. Através da produção e consumo da indústria cultural é fácil observar a alienação como epidemia que se abate sobre todos os extratos sociais. Essa alienação não é exclusiva à nossas sociedades pobres. Estas foram literalmente catequizadas em seu translado forçado às nossas periferias. Destruídos são seus mitos seculares e, com estes diluídos, perdem o sentido de pertinência coletiva. Mantémse alienadas mesmo depois de sua ascensão. Não mais o pão, mas o status; aquilo que garanta através de seus símbolos, ao indivíduo fazer-se notar e sentir-se identificado a um grupo. Pertinência aqui coloco como necessidade primeira do ser humano, gregário. Da necessidade de sentir-se seguro porque pertencente a alguma tribo, a algum grupo, a algumas instituições, ao bairro, à escola, etc, e assim, não ameaçado em sua sobrevivência. Sobreviver é manter distância da morte. O absoluto temor da morte. A pertinência é garantia por estar acompanhado de seus iguais; acolchoado por seus semelhantes na eventualidade de qualquer ameaça. Numa palestra de Orlando Villas Boas na FAUUSP em 1976, contou-nos um evento que assistiu com os índios. Um membro da tribo acometido por uma dor de dente, foi rodeado por outros que se colocam a gemer, num compartilhamento da dor. Ou seja, o coletivo absorvendo parte da dor para diminuir a do indivíduo. O ser solitário é um ser em perigo. Talvez a solidão poderia ser entendida como um estado em que o indivíduo se sente, em última estância, ameaçado em sua sobrevivência, amedrontado. Portanto, o sentimento de pertinência garante estabilidade emocional e faz parte da conformação de nossa subjetividade. O ser solidário é aquele que divide um senso comum. Para o bem ou para o mal.

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MITOLOGIA - CAPITULO III Encaro a mitologia como compreensão do sentido da existência e do sentimento de pertinência através do conhecimento de subjetividades comuns do grupo. Compartilhar de subjetividades iguais ou parecidas. A conectividade social e suas interdependências físicas e metafísicas; compartilhamento cosmológico, integrado ao grupo, forte e defendido. O mito agrega, de maneira complexa, inúmeros conhecimentos sobre o meio físico, sobre o clima, os ritmos e fenômenos naturais; o corpo, os sentimentos, a química, o funcionamento fisiológico, a história das origens. Jung, em o Homem e Seus Símbolos, identifica a não meras semelhanças, mas absoluta igualdade estrutural e de funcionamento de todas as estruturas místicas sobre as quais se debruçou, da América ao extremo asiático, passando pela África, em povos que nunca se encontraram nem em remoto passado. E, indo além, explana, deslinda na arte popular contemporânea, no mainstream, essas mesmas estruturas arquetípicas, comuns. “Assim como o corpo humano representa todo um museu de órgãos com uma longa história evolutiva, devemos esperar que o espírito também esteja assim organizado, em vez de ser um produto sem história. Por “história” não entendo aqui o fato de nosso espírito se construir por meio de tradições inconscientes (por meio da linguagem etc.), mas entendo antes sua evolução biológica, pré-histórica e inconsciente no homem arcaico, cuja psique ainda era semelhante à dos animais. Esta psique primitiva constitui o fundamento de nosso espírito, assim como nossa estrutura corporal se baseia na anatomia geral dos animais mamíferos.” (JUNG, 2000a, p. 229-230) E S TA D O I S L A M I C O . N A C I O N A L I S M O S e E S P E R A N Ç A Arquitetura da Destruição e a Destruição da Arquitetura. Nos inícios do séculos XIX e XX, houve grande delineamento nas cartografias, decorrentes não só da queda do velho colonialismo substituído por uma nova forma de dominação, mas dos desejos e ideais de nação. Passamos pelas desastrosas consequências nacionalistas como fascismo, nazismo. (Deixo de lado aqui, pois não caberia, as questões e desdobramentos econômicos; domínio de nações sobre nações, colonialismo, dissolução de monarquias, etc). Me atenho, a grosso modo, às motivações e movimentações coletivas: expectativas de progresso, de esperança, segurança, de aconchego, de crença num futuro idealizado como perfeito às sociedades humanas idealizadas como evoluídas. Utopia. Em alguns desses países, como Itália e Alemanha, por necessidade ou não, criaram--se raízes artificiais numa história romantizada que remontava a gregos e romanos. Os símbolos criados pelas máquinas de propaganda encontraram grande receptividade em povos, é preciso lembrar, depauperados, miseráveis e desestruturados por uma guerra (primeira) sem precedentes que dizimou trinta milhões de indivíduos e redesenhou o mapa de um continente inteiro e norte da África. Algo jamais visto ou imaginado. Os próprios estados foram destruídos; estrutura social destruída. Todas as avaliações que podemos fazer sobre o dilaceramento psíquico de populações inteiras, são rasas. Devastados, era necessário reconstruir, reedificar crenças; isto diante de uma realidade contrária, de cenário que a muito já superara o desespero. Reconstrói-se então num grandioso

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forte e heroico passado, uma vez que o presente estava destruído. Obviamente a arquitetura dessas nações expressam esse momento. Talvez possamos aqui, estabelecer um paralelo com o atual Estado Islâmico. Isto pode parecer estranho a um trabalho de pós de uma faculdade de arquitetura, no entanto, nossa vida é povoada diariamente pelo noticiário escabroso dessa ameaça. Os milhares de jovens europeus que diariamente aderem, são habitantes periféricos em seus países, desiludidos com qualquer possibilidade de transformação do mundo; muito diferente da esperança que tínhamos enquanto socialistas e comunistas em passado bem recente, de estarmos em luta como se esta fosse apenas uma fase do processo revolucionário por dias melhores, uma sociedade mais justa prestes a acontecer. Quer dizer, havia uma crença comum de futuro. Indivíduos que tiveram seus sistemas de vida, suas estruturas existenciais violentamente dilacerados, famílias mortas, crenças, organização social, religião, economia, vão buscar novo território onde a existência faça e tenha algum sentido, mesmo que lhes custe a vida. Ser herói, vivo, ou morto, uma vez que sua morte garanta a continuidade do grupo e, mais importante do que isso: a morte passa a ser o sentido da existência. A monumental arquitetura arqueológica nesses territórios ocupados pelo ISIS, vem sendo gradualmente demolida. Não há significado ou, melhor, significam impérios ocidentais dominadores, emblemas importantes para o imaginário do Ocidente. Roma. Assim procederam também os reis de Espanha com a rica arquitetura islâmica em seu território. Ou invasores cruzados em Jerusalém. Não há templo no Egito que não tenha sido dilapidado, não por simples vândalos, mas com clara intenção de desmoralização da civilização que os construiu. Parte do patrimônio arqueológico do Iraque vandalizado pelo exército norte americano. A sociedade deseja sentir-se forte, redimir-se através de seus heróis e, finalmente, imitar seus heróis. Construir um caminho seguro ao futuro, que deve parecer palpável. Há um discurso de Hitler em que enaltece o gênio da engenharia alemã na construção das mais perfeitas estradas do mundo. Estradas reais e palpáveis. Não é necessário falar em semelhança à crença religiosa; à fé. Mas a fé necessita seus milagres, de provas palpáveis. (Cabe ainda lembrar que em todas as mitologias, o herói é aquele que redime o coletivo. Redime as vergonhas, a fraqueza, as falhas de sua comunidade. Heróis do passado redimem as misérias e têm papel estruturador, novos heróis, de carne e osso tomam seus lugares).

O PA P E L D A A R T E Hitler fecha a Bauhaus e, ele mesmo, determina quais obras deveriam ser expostas no Grande Salão de Berlin. Antes dele, Mussolini, faz isso na Itália; podemos dizer, recém unificada por Garibaldi. Há outros exemplos nacionais que não caberiam aqui, mas cabe citar, não como exemplo, mas como informação para este meu trabalho nossos primeiros republicanos quando tentam edificar mitos de fundação. Neste ponto, distingo mito de mistificação. Os mitos, como já disse, são estruturas arquetípicas que têm sua origem no interior do ser humano. De todos seres humanos. Como o revelou pela primeira vez Jung, em qualquer parte do planeta, constata-se as mesmas estruturas arquetípicas. Variam porém os símbolos de que lançam mão em suas cerimonias rituais de

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acordo com o meio e contingências históricas. E a arte tem um papel básico em todos os ritos como ferramenta de linguagem. O rito é a dramatização do mito, à maneira e forma pela qual o mito, em estado inconsciente, se revela à luz do consciente. Assim sendo, as músicas, as danças, fantasias, pinturas corporais, são expressões absolutamente necessárias e imprescindíveis. Expressões essas que devem ser apreciadas de maneira diferente de como entendemos a arte ordinariamente. Deve ser entendida com absoluto despojamento dos conceitos a que estamos habituados ao apreciar a arte. As intenções são outras, diferentes daquilo que move o gesto e a produção artística como a entendemos em nossa sociedade. Da ação artística, seja ela musical, gestual, escultural, dança, e, do conjunto destas, depende a sobrevivência, a manutenção da coesão social, da interatividade com o mundo, compartilhamento cosmológico. Os símbolos, as esculturas deixadas pelos povos antigos, trazem consigo um conjunto de códigos e linguagem que têm como finalidade despertar diferentes estados de consciência. Sem a arte os neguinhos ficariam literalmente loucos. Não estou aqui falando que “quem não gosta de samba é ruim da cabeça ou doente do pé”. Mas também. Destruir mitos é destruir uma sociedade, um povo. Para depois catequizá-lo. Por último destroi-se a língua: a pátria (Camões). Mistificação então é outra coisa.

O PA P E L D O E N S I N O E D A P R O PA G A N D A Outro exemplo clássico é a criação de épicos em terras continentais brasileiras em seu momento romântico no século XIX. Entre outros, a opera O Guarany e, na literatura, Iracema. Sem gregos nem romanos, foram nossos índios escolhidos para protagonizar um passado grandioso. Esses emblemas, a construção desses ambientes que se estendem do passado ao futuro, desses sentimentos de pertinência a algo coletivo e grandioso, conta sempre com a arte - inclui-se aí, muitas vezes, a arquitetura - Getúlio e sua encomenda moderna - como emblema concreto da intenção do Estado. Havia sim o genuíno desejo de fazer-se e ser moderno. Vivíamos sob um profundo anseio de suplantarmos o passado imperial, a pecha de ex-colônia, superar as evidencias de um escravagismo ainda recente. O mito do herói faz parte; como já disse, é constitutivo em qualquer sociedade. Tivemos nosso alferes, iconizado à imagem de Cristo, deu a própria vida para salvar a todos. Salvar vidas e permitir que o processo de construção prossiga. Hollywood, principalmente em ininterruptos períodos das guerras invasoras norte americanas, produz centenas de heróis vingadores. Heróis de guerra são sempre bons candidatos à Casa Branca. Nós temos nossos épicos: Tiradentes, Getúlio, Carmen Miranda, JK, Tancredo, Airton Sena. E há aqueles inventados, como Iracema. O mito do herói, recoloco, está vinculado ao desenvolvimento de nossa psique, preponderantemente durante a infância. Essa diretriz ideológica norteou por século inteiro o ensino no Brasil. Necessitávamos personagens e linha do tempo. Ao ler Iracema tive a sensação de que toda nossa elite republicana o tenha lido. Um drama que causou comoção. Me pareceu um romance fundador da nação brasileira. Nossa arte foi

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portanto, por vontade dessas elites, a expressão nítida do desejo de uma construção, de uma agregação de nosso longínquo território de si mesmo. Na comunicação visual, adaptamos brasões e iluminuras. Inicialmente os reproduzidos à maneira europeia, depois, inserimos à imagens nativas nesses brasões. Mais tarde, obras do movimento modernista esmiúçam as raízes nativas de nossas almas lusitanas nascidas em solo Tupi. Na musica, Chiquinha Gonzaga vai conviver com os pardos das periferias próximas de então. Passamos a ser o tema de nós mesmos em toda a literatura do século XIX até década de setenta do XX, tanto como análise crítica - Euclides, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Jorge Amado, Celso Furtado, Aroldo de Azevedo, Darcy, Aziz Ab’Saber; e muitos outros - quanto para o elogio. Nosso desconhecido território, seus povos longínquos, as histórias de sua formação são os únicos e recorrentes objetos de nossas artes e de nossa sociologia. Chiquinha, Villa Lobos, são clássicos exemplos dessa obcecada busca de uma identidade distinta das matrizes europeias. Um esforço por exibir-nos ao mundo com uma identidade própria e, ao mesmo tempo, semelhante. Assim o fizemos. Fomos nos olhar no espelho dos salões europeus, identificar a nós mesmos, uma vez identificados por eles. Mito e mistificação em síntese: um é inerente do ser, é universal, outra, inventada por Estados que desejam se constituir sobre bases de unanimidade social. Ou servem a grupos, a poderes, como Opus Dei, TFP, Skinheads, etc. ___________________________________________ Quando oiei a terra ardendo Qual a fogueira de São João Eu preguntei a Deus do céu, ai Por que tamanha judiação Eu preguntei a Deus do céu, ai Por que tamanha judiação Que braseiro, que fornaia Nem um pé de prantação Por farta d’água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão Por farta d’água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão Inté mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Entonce eu disse, adeu Rosinha Guarda contigo meu coração Entonce eu disse, adeu Rosinha Guarda contigo meu coração Hoje longe, muitas légua

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Numa triste solidão Espero a chuva caí de novo Pra mim vortar pro meu sertão Espero a chuva caí de novo Pra mim vortar pro meu sertão Quando o verde dos teus oio Se espaiar na prantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu vortarei, viu Meu coração Eu te asseguro não chore não, viu Que eu vortarei, viu Meu coração Luis Gonzaga NOR-DESTINOS - I Os nordestinos, antes de chegarem às metrópoles, já haviam passado por dinâmica sincrética e secular. Originalmente cristãos portugueses medievais miscigenados aos mouros, chegaram a este imenso impenetrável sertão desconhecido, do início do descobrimento até o século XVII. Ao desembarcarem, surgem diante desses pobres incautos, onças pintadas, bichos das mais variadas formas, árvores de dimensões inimagináveis, uma selva escura e misteriosa; “selvagens” nús ! Nuas ! Sem malícia nem pecado ! “Peitos de pitomba”. Num incomensurável tempo de distância de suas aldeinhas seculares, cá pasmam esses filhos de Deus. Deus nos livre de tal translado. Encaram ambiente espiritual adverso, de complexidade acima de sua razão. Absorvem o conhecimento daqueles que aqui já estavam antes; e haviam de há muito tempo, estabelecido uma leitura e um sentido existencial: os nativos índios. Jogam as casacas de banana no chão, as vísceras dos bichos as comem os urubus ou as carregam os rios até onde não sei. A Natureza se retroalimenta, se recompõe. Chega a cana e inicia-se um ciclo de destruição ambiental. E para a cana importa-se uma nova energia: o negro. (Darcy) Assim se fazem assim esses brasileiros de então. Em rincões distantes deste território continental, em seus poucos séculos de fixação, sua miscigenada cultura, isolados em mundos cujo limite era os arredores da pequena povoação. Estiveram preservados pela lonjura sem estradas, em que o tempo se contava pelo passo do burro, sem sequer a comunicação do telégrafo ou do rádio que, apenas no início do século XX, se instaura e contribui significativamente para o estabelecimento de uma noção de nação. L I M I TA Ç Ã O E R I Q U E Z A Esse isolamento é notório pela diversidade nas brilhantes abordagens e catalogações de Câmara Cascudo. Mesmo regiões próximas, nas mesmas expressões, nas mesmas festas, cada qual

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foi desenvolvendo suas peculiaridades em linguagem, significados e aspecto visual. Não havia padronização. Iracema sim, foi lida por toda a elite das capitais. O romance fixa registro, ideologia única, padrões. Guardadas às devidas proporções, similar ao que hoje a televisão o faz. (Não que houvesse total homogeneidade entre essas elites urbanas). Em contrapartida, nos rincões distantes floresceram culturas bastante diferenciadas. O samba da Bahia, do Rio; o xaxado, o xote, o maxixe, a congada, o coco, baião, emboladas, aboio, toré. Somente a música caipira tem mais de vinte e dois ritmos catalogados, proveniente principalmente de vertentes tupis oriundas de Mato Grosso e Paraguay. E não tem fim. Só afloraram essas diferenças, essa pluralidade, a partir da chegada do rádio e, este, fertiliza e retroalimenta ainda mais esses solos criativos. A peregrinação de Mario de Andrade em sua Missão de Pesquisas Folclóricas, ainda na década de 30, quase não consegue dar conta dessas expressões regionais, por mais meticulosa e extensa que tenha sido essa sua obra. Entenda-se, a complexidade construída nessas manifestações envolvem e abrangem a visão indígena, africana e portuguesa de raízes mouras. Estes seriam os fatores comuns. Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Oh, que saudade do luar da minha tema Lá na serra branquejando, folhas secas pelo chão Esse luar cá da cidade tão escuro Não tem aquela saudade do luar lá do sertão Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Se a lua nasce por detrás da verde mata Mais parece um sol de prata prateando a solidão A gente pega na viola que ponteia E a canção é a lua cheia a nos nascer do coração Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Se Deus me ouvisse com amor e caridade Me faria essa vontade, o ideal do coração: Era que a morte a descontar me surpreendesse E eu morresse numa noite de luar do meu sertão

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Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Não há, ó gente, oh não Luar como este do sertão... Catulo da Paixão Cearense Este intervalo musical não consigo evitar. Como outros. A música brasileira, como aponta Risério, é o mais amplo tratado de antropologia deste País. O Tropicalismo em sua vasta extensão, sintetiza-nos nas extensões de nossas almas através de seu olhar completo. E S TA D O E C L I P S A D O Não faço aqui uma simples alusão à crueldade capitalista, mas a um sistema de valores, a uma crença. Uma organização do mundo que mantém as relações de trabalho sem que estas sejam questionadas por estabelecer ou estarem estabelecidas sob uma crença, uma ideologia que impossibilita a critica. E, a um Estado eclipsado por essa crença quase seita. Fraco, o Estado mesmo eleito, não consegue arbitrar ou, arbitra sob a égide dos mais fortes. É aparelhado e estruturado sem que seja possível distinguir público do privado. Os serviços públicos como saúde, transporte, energia, água, quando não privatizados são terceirizados, um eufemismo à privatização. OS SEVERINOS Os Severinos, Sebastianas, Welingtons, são instalados nos arredores das metrópoles. Os mitos desse povo que habitava lá os nortes, suas visões da realidade, são substituídos por novos símbolos implantados pela indústria cultural capitalista. Mas as relações de trabalho permanecem. Esses caboclos, entenda-se, cá chegam desenraizados pela opressão em seus territórios e, aqui, têm claro sentimento de sua marginalidade à um sistema de complexidades incompreensíveis. Nós mesmos não entendemos como funciona. (A Grande Aposta – The Big Short, filme de Adam Mac Kay) “As pessoas na sala de jantar” os colocaram no devido lugar, rapidinho. À absorção de novos valores, a alienação se dá por força da opressão, substituem sua tradicional cultura à necessidade de integrarem-se. Regozijam quando transvestem-se dos mesmos símbolos e aculturam-se caricaturalmente às novas vestes. Há uma aceitação do destino, tamanha é a complexidade do universo que agora os cerca. Cá se deparam com a cultura já globalizada aos moldes da matriz; à essa nova religião do bem viver através do consumo de certos bens, de uma maneira de ser. Bens estes elencados conforme escassez, excesso ou renovação do mesmo, de uma indústria pertencente a investidores, não mais dos industriais, patrões de cartola, identificáveis. Sem amparo do Estado republicano, lento e incapaz de controlar e atender a demandas para as quais, conforme seu discurso, foi criado. Quando injeta insumos, como urubus, investidores aparecem para suga-los ou criarem demandas se o Estado tem dinheiro em seus cofres ( Erminia Maricato). Na saúde, são hospitais privados que atendem. Bancos e empreiteiras dobram o custo das moradias; os subsídios na educação são absorvidos pelas privadas, desobrigadas de qualquer desenvolvimento de pesquisa. Em suma, a insaciável fome do capital

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a sugar recursos públicos sem que esse “público” faça a menor ideia. A educação, em todos os níveis, não trata da questão econômica, não a esclarece, embora seja tema praticamente diário em todas mídias. Isto é alienação, impossibilita qualquer postura critica a respeito do maior poder do País, muito mais forte do que o próprio Estado Republicano. Assim sendo, não há critica e, não havendo crítica, não há transformação. Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu fui embora Mamãe, mamãe, não chore Eu nunca mais vou voltar por aí Mamãe, mamãe, não chore A vida é assim mesmo Eu quero mesmo é isto aqui Mamãe, mamãe, não chore Pegue uns panos pra lavar Leia um romance Veja as contas do mercado Pague as prestações Ser mãe É desdobrar fibra por fibra Os corações dos filhos Seja feliz Seja feliz Mamãe, mamãe, não chore Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz Mamãe, seja feliz Mamãe, mamãe, não chore Não chore nunca mais, não adianta Eu tenho um beijo preso na garganta Eu tenho um jeito de quem não se espanta (Braço de ouro vale 10 milhões) Eu tenho corações fora peito Mamãe, não chore Não tem jeito Pegue uns panos pra lavar Leia um romance Leia “Alzira morta virgem” “O grande industrial”

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Eu por aqui vou indo muito bem De vez em quando brinco Carnaval E vou vivendo assim: felicidade Na cidade que eu plantei pra mim E que não tem mais fim Não tem mais fim Não tem mais fim. (Mamãe Coragem - Caetano Veloso) Quero aqui retornar a um dos pontos centrais daquilo que penso: a ruptura com as culturas sedimentadas se dá pela catequese da indústria cultural e incluo a mídia como tal. Há a implantação de uma ideologia hegemônica. Não é mais possível identificar um patrão. Ninguém sabe de onde vem as ordens. A palavra mercado é um verdadeiro mistério. O mercado está “inseguro, desconfiado, retraído, enfurecido”, etc, uma entidade, um bicho genioso com o qual poucos sabem lidar e, aqueles que julgam saber, arvoram-se como sacerdotes de uma nova ordem. Há revoltas, porém ateiam fogo em alvos distantes dos centros de decisão. Ao fim do dia todos voltam para a televisão. (Estudantes de economia de Seatle conseguiram identificar e deram inicio ao Occupy Wall Street. Identificou-se um local físico. O cassino da jogatina). O ADORNO DO ADORNO – O DESEJO DE TODOS. Embarcamos todos nessa ilusão de dar acesso, prover de bens a todos. Não podemos omitir porém, esse era o desejo de todas as classes. Como negá-lo ? Uma vez empoderada, a esquerda o atendeu. É preservada a ideologia do desejo pelo do status em detrimento do cooperação coletiva. Além da necessidade da geladeira e da diversão, adquiri-se símbolos de ascensão, pois só eles trazem a ilusão de segurança. Adquirem bens de consumo e estes exigem cuidados e renovação incessante sob o medo de saírem de moda, de vencer sua vigência. Uma sociedade que, quando protesta, não sabe onde atirar as pedras. Estilhaçam os escudos. A M E TA F Í S I C A , O C Ú , A S C A L Ç A S ; E A E D U C A Ç Ã O Até aqui, discorri sobre a mitologia, as diversas rupturas, algumas abruptas, das heterogêneas culturas brasileiras, e o ingresso desses povos no sistema de consumo globalizado, a total ignorância sobre os sistemas de poder regidos pelos capital e pelo Estado submisso ao assédio do capital em virtude dessa alienação alimentada pela indústria cultural e, pela educação. Da arquitetura falarei mais adiante.

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GRANDE COLISOR DE HÁDRONS *4 Metafísica, palavra de inúmeros conceitos. Do início, até pouco mais de meados do século XX, houveram mobilizações capazes de efetivar transformações, movidas por uma utopia à qual se direcionavam os movimentos socialistas; esforços da conscientização e das revoltas a abrir caminho para um bem estar coletivo mínimo, como ocorreu na Inglaterra ao longo dos anos 50. No documentário Spirit of ‘45, de Ken Loach, assistimos à maior potência imperial do século XX a manter a maior parte de sua população subnutrida, sem transportes, morando ainda em casas sem banheiros, morrendo de frio. Duas gerações sobreviventes de duas grandes guerras se mobilizam com obstinação e força. Derrubam o mitológico e conservador Churchill de maneira surpreendente, elegendo em seu lugar um governo socialista. Nacionalizam então todos os serviços básicos até que o famigerado governo neoliberal de Marguaret Teatcher os privatizasse novamente. Hoje há uma alienação decorrente tanto da propaganda quanto da complexidade de compreensão do sistema. Esta incompreensão permite a submissão do Estado. O SENTIDO DA EXISTÊNCIA Aponto aquilo que parece ser exótico a alguns marxistas, que é a questão do sentido da existência humana desta forma aqui colocada. Essa questão metafísica, tão simplesmente colocada por Raul Seixas, pelos Mutantes, foi o foco do movimento hippie e, lembrar, precedido pelo movimento existencialista ateu. Essas linhas de pensamento trazem à tona de seus debates a questão existencial dentro da sociedade de consumo. Não que as reivindicações sociais como saúde, educação, transporte, não sejam questões existenciais também, mas são apenas o mínimo para manter o próprio sistema a funcionar bem. Para reforçar a importância da questão do sentido existencial da qual falo aqui, dou o seguinte exemplo, “o experimento que reuniu o maior esforço humano desde os primórdios da civilização, congrega 6.500 cientistas de 80 nações” e tem o resultados de suas pesquisas abertos para o mundo, o Large Colisor Hádrons, faz perguntas como: “de onde e como teria se originado o Universo ? Nosso espaço-tempo, teria dimensões extras ?”… (Maria Cristina Batoni Abdalla é a cientista brasileira que participa do experimento. Seu texto sobre essa experiência é surpreendente – (Especial Caros Amigos: Pós -Humano) São questões metafísicas ! Ateus ou incrédulos que sejamos, os vagos conceitos encerrados na palavra metafísica, todos eles, são tema de fundo de nossos pensamentos. Você precisa saber da Piscina, Da Margarina, da Carolina, da Gasolina, Você precisa saber de mim Baby, baby, eu sei que é assim Você precisa tomar um sorvete, Na lanchonete, andar com a gente,

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Me ver de perto Ouvir aquela canção do Roberto Baby, baby, a quanto tempo, Baby, baby, a quanto tempo. Você precisa aprender inglês, Precisa aprender o que eu sei, E o que eu não sei mais, E o que eu não sei mais. Eu sei comigo vai tudo azul, Contigo vai tudo em paz, Vivemos na Melhor cidade Da América do Sul, Da América do Sul. Você precisa, você precisa... Eu sei leia na minha camisa, Baby, baby, I love You, Baby, baby, I love You... (Baby – Caetano Veloso) Link: http://www.vagalume.com.br/os-mutantes/baby.html#ixzz3qG7LwCY9

Parêntese Os símbolos de status para aqueles que espiam mais de perto as janelas dos palacetes, finalmente chegam ao alcance de seus sacrifícios. Espiam através dos filmes, das propagandas ou, mesmo, como meros estafetas. Com o passar do tempo porém, aquilo que eram símbolos das grandes salas vip, se degradam. Decaem às camadas sociais mais baixas em mera imitação caricatural daquilo que as ditas elites ostentaram como emblemas de diferenciação. Essas elites então, têm de renovar seus símbolos de poder, distingue cada indivíduo das classes abaixo dela: a ralé . Lançam modas. Todos são vítimas desse ciclo mítico de renovação do mesmo. E a classe média satisfeita e locupleta, temerosa desde de sempre, quer mais e passa a pedir a cabeça de seus redentores, como hoje acontece aqui. Meu temor, e não seria nada estranho se acontecesse, seria se os habitantes das moradias populares também reivindicassem seus muros eletrificados por uma simples questão de status. Imitação. DESENHO FICCIONAL - FINAL O capitalismo hoje se instala como uma onda homogenizta. Não no sentido do nivelamento da distribuição de recursos e oportunidades de conhecimento, mas no sentido da aceitação de uma visão única a permear todas as classes. Traz consigo sua ciência para poucos.

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Quantos de nós, mesmo os que têm acesso às universidades, entende a caixa preta de um celular? As elites econômicas nem pensam em nação. São analfabetos funcionais deslumbrados com Miami. Não estou aqui saudosista. Estamos constatando uma época em que as coisas assim se desenham. Há uma rápida transitoriedade. Não só devido à escassez e esgotamento de recursos devido à intensidade do consumo; forçosamente estamos em um estado de rápida transitoriedade devido à velocidade em que o capital localiza, mobiliza-se e desloca-se através da técnica e capacidade de se organizar para sugar Estados, depauperar nações. Esse modelo parece ter atingido seu ápice com a quebra simultânea de dois continentes do dito primeiro mundo. Qual seria o próximo modelo ? Quanto à questão ambiental, a menos que a ciência e a tecnologia do capital invente reposições atmosféricas, ambientais, em larga escala e à mesma aceleração da degradação, garantindo ainda geração de lucros como alguns ambientalistas professam, serão os bens naturais privilégio dos poucos abastados. Se intrínseca ao capitalismo é a concentração de renda e de bens, em caso de escassez real de matérias primas essenciais à sobrevivência, obviamente estas estarão nas mãos dos poderosos, (como é o caso de boa parte da água brasileira, pertencente a empresas mistas como Sabesp, e, mananciais de água potável pertencentes à Coca Cola, Nestlé, etc). Em ambas hipóteses, o panorama é semelhante à ficção cientifica, aos recentes filmes de 007. Um deles aborda exatamente a questão da privatização da água na América do Sul. Aos poucos esse imaginário fatal pode alastrar-se à toda sociedade. E isso pode ganhar aspectos de terror desagregante, como todo o terror o é. Friso que se faz necessária uma revisão da educação no sentido de compreender as relações entre Estado/Democracia e capital. O IMPÉRIO DO MEDO Nesta atual crise do capital, de proporções mundiais, as massas dos grandes centros urbanos, trabalhando predominantemente na indústria de serviços, assemelham-se aos operários pós revolução industrial. Têm sua escola, sua tv, seu carro e lazer programado, mas às custas de grandes sacrifícios; mobilização de tempo de vida, medos de queda, de perda de renda para manter família, formar filhos aptos à competitividade do oscilante mercado de trabalho. O ensino das escolas é direcionado ao mercado, como se este fosse o grande guia espiritual e portador da única verdade sobre o destino da sociedades. Jornada de trabalho de oito até quatorze horas diárias. Absoluta insegurança diante de economias vulneráveis ao capital especulativo, desencadeador de inúmeros, sucessivos e assustadores vendavais, sob a des-governança de Estados cada vez mais frágeis. Difícil entender tanta riqueza gerada e Estados incapazes de prover. (Por isso, lá pra trás digo que devemos refletir mais sobre o sentido existencial de tanto trabalho). O Estado não mais entendido como administradores justamente remunerados pelo conjunto da sociedade; para ouvi-la, ponderar e atendê-la. Mas monstros burocráticos, burros, onde as inovações são trancafiadas em gavetas; qualquer organização coletiva é temida, muitas vezes pelo próprio coletivo. Diante de tal quadro amedrontador de sucessivas crises que a mídia alardeia, profetiza e potencializa, as classes médias conformam-se à aceitação de sacrifícios para atingir metas que lhes

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devolva a segurança; ou, mais precisamente, a sensação desta. A indústria cultural - mais uma vez o capital - lhes oferece produtos alienantes; uma arte alienante; e incluo mídia nessa indústria, uma vez que foi “ficcionada”. -. Não há processo de reflexão: o “ à noite eu critico” é substituído por à noite assisto ao Big Brother Brasil. (O filme Fahrenheit 451 , de Truffaut, - 1966, é perfeita expressão desta quase ficção, dessa alienação que a mídia passa a ser condutora) O Estado atende aos ditames de uma única corrente do pensamento econômico. Ditames de conceitos disseminados nas mídias que soa como verdade única: cortar despesas do Estado, privatização, sacrifícios. Cree-se piamente na economia como ciência (ciências econômicas!) As massas se submetem aos seus amargos e drásticos remédios, às ditas “lições de casa”, por total desconhecimento ou impotência diante daqueles que incutiram em suas mentes a ideia de que a economia é profunda ciência. Talvez estejamos diante de algo que se assemelhe à imagem do feudalismo, à ignorância dos mecanismos de poder, dos saberes de uma ciência cada vez mais comprometida e fortificada em torres inacessíveis, de tecnologias fora do alcance de nosso entendimento.. R O M A N T I S M O E S E U F I M - A Querela do Brasil No atual impasse da democracia brasileira, o desejo de nos inserirmos na história do Planeta como uma civilização moderna e justa, aquilo que nos parecia tão belo e alvissareiro, se está esvaindo. A apologética Aquarela do Brasil, se hoje a ouvirmos, nos parecerá a trilha ficcional. Ari Barroso não a comporia. Essa esperança foi construída, engendrada, inventada, inspirada, num período que poderíamos contar a partir do Primeiro Império (Não me alongarei aqui). E nos sonhos do segundo imperador, da Princesa Redentora, nos sonhos de alguns republicanos, dos getulistas e, do conturbado período de JK. Perdura em Jango. Mesmo os golpistas de 1964, tinham no exército uma ala nacionalista nos moldes do “Brasil Grande”. Eram contra a privatização e acreditavam em um Estado forte. Não faço aqui nenhuma apologia, apenas menção às utópicas tentativas de projeto de nação. Haviam projetos, com ou sem bases e apoios populares. O Tropicalismo, em plena ditadura militar, é a grande síntese desse final, desse conjunto que o tempo e a história permitiram. Revela não somente o fim. Apresenta os diversos caráteres das diversas sociedades brasileiras existindo concomitantemente em diversos tempos; a um só tempo. “Quando Pero Vaz Caminha Descobriu que as terras brasileiras Eram férteis e verdejantes, Escreveu uma carta ao rei: Tudo que nela se planta, Tudo cresce e floresce. E o Gauss da época gravou”. Sobre a cabeça os aviões

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Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões Meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o carnaval Eu inauguro o monumento No planalto central do país Viva a Bossa, sa, sa Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça Viva a Bossa, sa, sa Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça O monumento É de papel crepom e prata Os olhos verdes da mulata A cabeleira esconde Atrás da verde mata O luar do sertão O monumento não tem porta A entrada é uma rua antiga Estreita e torta E no joelho uma criança Sorridente, feia e morta Estende a mão Viva a mata, ta, ta Viva a mulata, ta, ta, ta, ta Viva a mata, ta, ta Viva a mulata, ta, ta, ta, ta No pátio interno há uma piscina Com água azul de Amaralina Coqueiro, brisa e fala nordestina E faróis Na mão direita tem uma roseira Autenticando eterna primavera E no jardim os urubus passeiam A tarde inteira entre os girassóis No pulso esquerdo o bang-bang

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Em suas veias corre Muito pouco sangue Mas seu coração Balança um samba de tamborim Emite acordes dissonantes Pelos cinco mil alto-falantes Senhoras e senhores Ele põe os olhos grandes Sobre mim Viva Iracema, ma, ma Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma Viva Iracema, ma, ma Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma... * sob meus pés os caminhões” são os caminhões de paus de araras BRASÍLIA Quão bela culminância foi Brasília! Talvez, romântica demais. Mas que cultura robusta e fértil em todos os campos da arte. Campos de terra a dentro. Arte que se fez da matéria prima nordestina, dos sertões e periferias aos centros urbanos. Éramos o país singular. Nossas cidades, as capitais eram cantadas aos quatro ventos. Quantos belos hinos teve a Cidade Maravilhosa ? Onde andará esse avião do Samba do Avião? E as tantas Bahias, única, de Dorival ? Óbvio que tudo muda, mas aquela nação de Villa, predestinada esfumou-se em quimera ? Quão feias e desmazeladas são hoje nossas cidades, reflexo de nossas sociedades ascendentes, eletricamente guarnecidas ao topo de seus muros altos em sua imortalidade. Alphaville ergueu o maior muro privado do mundo: cinquenta e sete quilómetros de alvenaria reforçada pela supremacia ideológica e esta, transportada às nossas mais belas praias. Esses horrores fortificados espalham-se em todos rincões da pátria. Esse é o Brasil que desejávamos? Os mulatos inzoneiros são serviçais dos gorduchos branquelos apavorados pela violência sorteada e instabilidade dos mercados. Apesar das injustas mazelas, das desigualdades, das escravidões que demoraram e demoram a durar, havia a romântica esperança de que as injustiças fossem transitórias, de que estávamos no rumo de sua superação. Nossas singularidades transcendiam em brilhos consistentes não só de esperança; conseguimos materializar um bocado enquanto nossas peculiaridades estavam resguardadas por nossas imensas lonjuras onde o sol se punha na escuridão mística da ausência da eletricidade. E valorizadas até por uma elite esclarecida que foi buscar ventilação nos morros. Nos rincões áridos descobríamos férteis frutos do conhecimento humano que, mesmo hoje, não são plenamente identificados por aqueles que acreditam que o melhor da filosofia está só na Grécia ou na Alemanha. Voltam-se a tudo aquilo que é popular, se não como folclore, como algo “criativo”. Eles não são simplesmente criativos. Dizer deles criativos, é reducionismo simplório.

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Eles são mais do que isso. Constroem pontes que os alçam além da razão ordinária, a caminhos que transcendem do visível ao invisível. Lhes é imprescindível à própria existência. Por isso inventam aquilo que entendemos superficialmente como arte. É mais do que arte. Em momentos de otimismo creio, a Aquarela do Brasil esteja perdida em algum canto por aí. Possível seria reverter toda essa feiura. A elite esclarecida que antes ditava à indústria cultural aquilo que devia ir ao ar, sumiu. INDIOS DE DIVERSAS NAÇÕES , IDIOMAS, LINGUAGENS, MITOLOGIA Noventa milhões em ação Pra frente, Brasil Do meu coração Todos juntos vamos Pra frente, Brasil Salve a Seleção! De repente é aquela corrente pra frente Parece que todo o Brasil deu a mão Todos ligados na mesma emoção Tudo é um só coração! - Composta na Copa de 1970, em plena ditadura militar D E P O I S D O “ T E R R A À V I S TA ” ,

“Caminha a humanidade.

Então, aportam em nossas praias esses ex-pagãos, convertidos, a misturar seu sangue aos nativos. Essa caboclada vai assentando suas raízes no meio geográfico, refundando símbolos e significados em novas entidades. E por séculos funda e desenvolve nestes chãos sua cultura cangaceira. O caboclo é a sobrevivência do mouro, do negro e do índio em nosso sangue, em novo território americano. [Tenho um trabalho fotográfico (1983) com retratos dessa gente. Poderiam passar por árabes. Veja, por exemplo o caso Jean Charles que, confundido com terrorista árabe, é assassinado no metro de Londres.]

Finalmente, antes isolados nas lonjuras sertanejas, essa caboclada chega às pencas nos pau de araras, nas rodoviárias... Não à toa, amiúde, recorro ao Tropicalismo. Ele não somente tem clara percepção de um momento da indústria cultural, como lida habilmente com essa mesma indústria. Tropicalistas interpretam um século de história, traduzem o presente onde ela chegou e é rapidamente transformada por essa indústria.

CHOQUE CULTURAL Por força da opressão, à necessidade de integrarem-se, e, pelo fascínio, esses até então sertanejos, se veem em nova paisagem e substituem seus símbolos por aqueles mais domesticados das sociedades urbanas, de universos imagéticos já globalizados aos moldes das matrizes europeias e norte americanas; à essa nova religião do bem viver através do consumo de certos

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bens. Bens esses, elencados conforme necessidades da indústria; de sua renovação do mesmo, decorrente do excesso ou escassez de matérias primas. Da desenfreada gana de aumento da produção, do lucro. Em suma, a insaciável fome do capital. Aculturam-se caricaturalmente às novas vestes e, por que não dizer, a um novo psiquismo. Por ser de lá, Do sertão, lá do cerrado Lá do interior do mato Da caatinga, do roçado Eu quase não saio Eu quase não tenho amigo Eu quase que não consigo Viver na cidade Sem ficar contrariado. (Dominguinhos) Dizendo de maneira mais simples, há um choque cultural inextricável para uma primeira geração que aqui chega. A casca de banana tem de ir para a lata de lixo, ela não se degrada sozinha como no mato; ou no chão ressequido do agreste. A cidade exige novos comportamentos. As favelas são quilombos dependentes e subservientes. Sobrevivem do trabalho mal remunerado. São dependentes da cidade limpa, branca. Os mitos e ritos tradicionais onde se estabeleciam conexões entre inconsciente individual e o mundo de fora, essa composição de símbolos já de longa data estabelecidos que cumpriam seu papel conectivo com o indivíduo, perdem significado e são substituídos. Enxergo a essa sabedoria tradicional, que simploriamente alcunhou-se como misticismo, folclore ou religião, como estruturadora de sociedades em sua organização política, econômica e inter-social; leitura biofísica dos fenômenos naturais e das subjetividades do indivíduo. Uma cosmologia rica de conexões e significados. O capitalismo lhes chega como uma onda homogenizta. Não no sentido de um nivelamento da distribuição de recursos e oportunidades de conhecimento que possibilite transformações, mas no sentido da aceitação de uma visão única. Sua ciência é para poucos. Em suma, há o choque de dois brasis ou, uma nítida divisão entre eles. Desgraçadamente se perpetua. Não estamos aqui saudosistas ou enaltecendo um momento em que nordestinos eram bonzinhos. Estamos constatando uma época em que as coisas se desenharam assim e esse desenho muda no momento em que aquele caboclo ao seu meio adaptado, é expulso e atraído à metrópole. O M E N I N O B AT I Z A D O C O M O N O M E D E P I B Observamos então, não somente uma incapacidade do capitalismo de atender suas franjas; há agora também um esgotamento de recursos naturais, impossibilitando a distribuição de bugigangas a todos. A menos que a ciência e tecnologia do capital inventem reposições atmosféricas, ambientais, em larga escala e à mesma aceleração do consumo, do qual depende o dogma neoliberal que determina destinos de milhões de indivíduos ao redor do planeta: o PIB.

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Se equivocadamente, embarcamos nessa ilusão do dar acesso e prover de bens a todos, preservamos porém os objetos com seu valor simbólico do luxo. Os sacrifícios finalmente possibilitam o acesso aos símbolos de status ou, melhor entendido, símbolos de pertinência a algum grupo de privilegiados, ou apenas não segregados. Mera imitação caricatural comportamental das ditas elites. Todas as classes são vítimas desse ciclo mítico de renovação do mesmo. Sob este aspecto, todos são vítimas passivas dessa alienação; de um entendimento redutor e simplório do que é inserção social, através da aquisição, na maioria das vezes, de objetos rapidamente perecíveis. Sentem-se finalmente seguros; até que algum vendaval de volatilidade desloque o capital especulativo à outras paragens distantes. Os bens perecem, saem de moda, perdem significado. Assim, toda a riqueza cosmológica, toda a relação do ser com as peculiaridades ancestrais de seu meio natural através de uma linguagem original que os conectava com o mundo, é substituída por uma única fé: posse de objetos que os inserirá no universo onde todos estão indo. Aguardarão nas filas dos últimos lançamentos. Mesmo as salas vip se degradam até camadas mais baixas. “Os aeroportos estão um horror”. Esta atual crise do capitalismo assemelha-se a algo ficcional, como que um feudalismo contemporâneo, não só pelo aprofundamento da desigualdade na distribuição de recursos, mas de conhecimentos que parecem estar na estratosfera, concentrados nas mão de pouquíssimos senhores e seus pajens. Os sistemas de ensino, além de estarem sendo dominados pelos fundos de investimento como negócios de grandes lucros, vêm sendo dirigidos de maneira a transformar crianças e jovens em capital humano. Determinam como devem ser formados esses jovens na perspectiva do capital, como fator da produção, em cursos profissionalizantes, de onde sairão para atender as demandas unicamente da produção, não da transformação social. Sem vislumbrar “outra maneira de vida que não aquela em que serão mercadoria”. (Roberto Leher) A D O C E A L I E N A Ç Ã O L U I S V I TÃ O Digo que há uma substituição das tradições que distinguiam cada grupo na Terra; em suas formas de conhecimento de longa trajetória ao longo do tempo e, por isso mesmo, conhecimento bem sedimentado de si em conectividade com o mundo que o cerca. Não separando porém o indivíduo do mundo. Mundo, coletividade e indivíduo são uma única coisa. (Ritos assemelham-se a metodologias do conhecimento). Hoje conectados somente ao sistema de produção e multiplicação do capital, e, desconectados do sentido da existência, esses novos seres, deverão encaixar-se, com muito esforço (tempo de vida) e precisão, ao sistema. O sistema cobrará deles os ditos serviços: saúde, educação, segurança, lazer, moradia... Pagam caro por esses serviços que deve mantê-los vivos, saudáveis e produtivos por um período mais extenso de vida, por mais tempo útil para a produção e acúmulo de capital. Esse é o novo ser urbano resultante da nova ordem do capital. Em sua insatisfação cotidiana a propaganda os alimenta de esperanças. Antes a propaganda era só difusora, animadora do consumo; hoje ela é admirada, paga e consumida. Passa a ser uma ideologia. Confunde-se ou é tomada cada vez mais como arte, torna-se parte quase predominante da indústria cultural. Reforça a fé de que na posse dos bens a existência encontra único sentido. Ironicamente, o vislumbre da velhice e da morte, sempre surge ao fim de cada regozijo consumista. Quanto

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tempo dura o cheiro de novo de um estofamento de carro, a estranheza deslumbrante da enorme tela negra de 40 polegadas ? Lembremos que um dos mais fortes impulsionadores da produção, o consumo, é resultante do individualismo e este do medo. Um decorrente do outro. (Erich Fromm) Somos, mais agudamente depois da revolução industrial, aculturados num processo acelerado. Hoje, mais vertiginosamente ainda devido às novas tecnologias, não mais elétricas e mecânicas, mas de velocidade eletrônica. À alienação à qual se referia Marx, acrescenta-se uma mais assustadora, porque mais aprofundada no inconsciente do indivíduo e no inconsciente coletivo. Essa nova alienação explora a estrutura de nossos arquétipos. É somente requentar E usar, É somente requentar E usar, Porque é made, made, made, made in Brazil. Porque é made, made, made, made in Brazil. Retocai o céu de anil Bandeirolas no cordão Grande festa em toda a nação. Despertai com orações O avanço industrial Vem trazer nossa redenção. Tem garota-propaganda Aeromoça e ternura no cartaz, Basta olhar na parede, Minha alegria Num instante se refaz Pois temos o sorriso engarrafadão Já vem pronto e tabelado É somente requentar E usar, É somente requentar E usar, Porque é made, made, made, made in Brazil. Porque é made, made, made, made in Brazil. Retocai o céu de anil, ... ... ... etc. A revista moralista Traz uma lista dos pecados da vedete

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E tem jornal popular que Nunca se espreme Porque pode derramar. É um banco de sangue encadernado Já vem pronto e tabelado, É somente folhear e usar, É somente folhear e usar. - Tom Zé - Link: https://www.youtube.com/watch?v=S-Zh08pHU6Q _______________________________________________________________ Recém formado, quando criava marcas para diversas empresas, pude observar um interessante fenômeno e este permitiu-me entender o que estava por vir. Ao criar duas marcas, um raiozinho para uma rede lojas de roupas chamada Zoomp e, outra, para a rede chamada Side Walk, que tem um canguru, vi acontecer, em poucas semanas, a proliferação dessas marcas adesivadas nos vidros traseiros dos automóveis. A Zoomp fotografou um estacionamento onde um dos carros tinha o raiozinho e, os demais não. A chamada do anúncio era: Uns Zoomp, outros não. E da outra marca via-se o cangurus espalhados nos carros de luxo pelos bairros nobres. Essa classe social passou a identificar a si mesma como pertencente à tribo de consumidores “exclusivos”. Mais tarde surgiu a moda da marca Nike, que também foi uma febre que teve seu começo na classe alta. Hoje observamos as camisetas dos times de futebol com as marcas de grandes monopólios, tidos como aliados dos times. Até os bancos são aliados! Os inimigos são quem ? Não são mais os patrões, donos das indústrias, pois já não mais existem. São fundos de investimentos multinacionais, dificilmente identificáveis. De nada adiantaria matar Rothschild, Rockefeller, Morgans... Não temos Estado suficientemente forte e respeitado, capaz de regulamentar e efetivar regras como o fez Roosevelt no pós crise de 1929, amplamente apoiado pela população falida e faminta.

_______________________________________________________________ C O N S T R U Ç Ã O D E U M A R E A L I D A D E D E I L U S Õ E S - M AT R I X Um futuro de luz no fim do túnel sem fim. A rede que se estende através de todas as fronteiras, virtualmente, nas nuvens, criou uma realidade de ilusões. Realidade de ilusão; um paradoxo. O filme de ficção científica Matrix, demonstra-nos muito bem esse mergulho na ilusão de sensação de bem estar e estar colocado no lugar certo para a dinâmica de um sistema perene. Algumas obras primorosas de ficção científica, não tratam do futuro, como pode parecer, mas do presente travestido pelo uso do truque de imagens que parecem ser de um futuro remoto. Lançam mão do encantamento das profecias. Podemos citar aqui: Metropolis, de 1927, Blade Runner (1982) que, só a título de curiosidade, tem sua cenografia baseada em Metrópolis, gótica, obscura e sinistra. E algumas edificações baseadas em obras de Franklin Lloyd Wirght. Fahrenheit 451, de 1966, por sua vez, de arquitetura moderna contemporânea, e, finalmente o Matrix, filmado na Chicago de hoje. Em estudo comparativo de suas imagens que tive oportunidade de fazer para um possível número da revista América em 2008, está elencado tudo que essas ficções têm em comum: profecias do avanço técnico, as cidades degradadas, sombrias, num gótico mesclado à tecnologia de ponta. E, colapsos ambientais. Outro eixo comum a todos eles, é a personagem do herói; o mito do herói, pertencente à classe dominante, seja como filho desta ou,

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parte dos órgãos repressores; neste caso como o mito de São Paulo, soldado romano que se insurge contra o poder de Roma. O insurgente surge sempre vagarosamente como transformador do sistema estabelecido, consolidado e inabalável. E na maior parte dos casos, é despertado por um ancião; aquele que trás consigo a memória, a história; um profeta, um visionário (xamã), que em algumas vezes pode ser uma mulher, como em Farnheit 451; Julie Cristie é como que uma profetisa. Em Blade Runner, não é possível identificação de quem é robô ou humano. No robô foi construída uma memória demasiadamente humana, a ponto de, o caçador humano de andróides, duvidar de si mesmo, semelhante ao herói de Matrix, há a construção da subjetividade do indivíduo. E, fundamentalmente, um Estado policial, à alturas inatingíveis de complexidade tecnológica e obscurantismo. Estado este ao qual todos parecem estar conformados como realidade imutável.

Em síntese, a estrutura de um mito, com toda sua linguagem peculiar que deve ser lida e entendida através dos ritos, desenvolvida coletivamente ao longo de muito tempo, é uma compreensão da alma humana como uma única coisa com o mundo, incluindo aí o coletivo. A coletividade quem desenvolve os ritos de aproximação dos mitos; estes resultantes das visões de seus xamãs, leitores das realidades e suprarealidades ao longo do tempo. A arte, em suas esferas de reflexão mais refinadas, e, as artes primitivas, reproduzem as mesmas estruturas arquetípicas, variando porém seus símbolos conforme o meio onde são produzidas ou celebradas na forma de rituais. A degradação ambiental dos yanomamis, por exemplo, tem mudado sua concepção cosmológica. Por isso se torna importantíssimo a manutenção do isolamento de algumas nações amazônicas ainda não contatadas. Desejam saber os antropólogos, se, em sua mitologia, talvez intocada, estejam presentes indícios de mudanças globais de degradação ambiental, por exemplo. Caso presentes esses indícios, comprova-se a sofisticada conectividade desses seres, dessas coletividades, com o mundo de uma maneira que somente hoje a ciência aborda. Sua percepção (Perspectivismo) de existir como única coisa com o mundo. Essa compreensão da linguagem, ainda não disseminada, lança o conhecimento humano ou, a antropologia, em novas diretrizes. E, se pensarmos o capitalismo como pequena passagem no processo evolutivo na história humana (e há aqueles que dizem estar em seus estertores), os sinais dessa transformação, creio, são os movimentos coletivos. E, colocaria ainda, a nova designação de Período Antropoceno, como natural percepção da ciência no seu processo de evolução. Talvez queira expressar aqui que há um sentimento geral de estarmos chegando a limites de capacidade de tolerância da natureza sem sequer que as hecatombes comecem a afetar nossa existência; limites de funcionamento dos sistemas criados pela humanidade à sua sobrevivência civilizada. Sistemas de direitos mínimos para uma existência minimamente confortável. Esse sentimento de limites, de que não há e não haverá riqueza e meios de existência para todo mundo, talvez seja um motivador, um mobilizador social muito forte.

SPIRIT ‘45 Se, como já contei, os socialistas ingleses do pós-guerra derrubaram o herói conservador Churchil, tomando para suas mãos as transformações estruturais da economia, no presente no entanto, o que aqui ocorre é uma crença consumista abrangente, atingindo todas as classes. Caracteriza-se como crença se observarmos quão mágica é a posse de um objeto, de uma marca.

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Tudo aquilo que engendramos no campo das ditas ciências humanas, da ciência, da técnica e da arte, deveria calcar-se à luz desse entendimento, em novas bases. Onde entendamos definitivamente que o capital não dá conta ou, deve ser repensado, pois me parece longe o fim do capitalismo. E mesmo que não, ensaiemos então nossas ações coletivas, capazes de aprimorar a existência. Para tal, se faz necessário o entendimento dos mecanismos de funcionamento do capital. A arquitetura como arte e técnica, já deveria alçar-se visionaria. Trazer consigo esboços à novas estruturas e organizações sociais, políticas e econômicas. Insisto aqui em colocar o arquiteto como humanista, pensador, visionário. Assim sendo, não bastaria uma simples revisão de nossas atividades no mundo como ele se conforma hoje, mas cabe-nos, como humanistas, nos lançarmos um novo entendimento. Sem bases sólidas calcadas na antropologia, sociologia, e, numa filosofia que sofre profundas transformações decorrentes do entendimento desta nova era qual mais do que vira do avesso as habituais formas de abordagem da realidade, as coisas continuarão feias como a ocupação de nossas degradadas praias. Sucumbiremos afásicos. CONCLUSÃO Habituados que somos à revolução lançada pelo modernismo, poderíamos iludirmo-nos, levados a pensar que os processos seriam semelhantes. Longe disso. Hoje, o capital, além de se incrustar nas entranhas do Estado, como abordei, está na mente, no espírito nas diversas camadas da sociedade. É então, a partir desta realidade, que se deve pensar um escopo filosófico para o ensino. Parte daquilo que considero fundamental, já vem sendo exercitado por iniciativas das quais não partiram das universidades, muito menos as faculdades de arquitetura ou arquitetos. Nas mobilizações que têm acontecido nas cidades brasileiras, os arquitetos sequer chegam a reboque. A contribuição que pude dar à Escola da Cidade foi mínima no que tange ao método pedagógico, que sempre imaginei mais dinâmico e penetrante. Insisti, desde nosso inicio, que estávamos a lidar com jovens diferentes daqueles que fomos. Eles não compreendem a complexidade do sistema político ou econômico e não se sentem capazes de promover qualquer transformação. Como professores, como instituição, competimos com uma indústria cultural massacrante. Nossa evolução é mais rápida do que as demais escolas, sejam elas públicas ou privadas, mas lentas devido ao tempo de absorção necessário ao próprio aprendizado, mas sobretudo somos lentos devido à nossa resistência a mudanças. O Exercício de nosso poder. Confesso que todo o bla acima, seja talvez quixotesca tentativa de fazer entender que, nossa cultura, antes de nos colocarmos a projetar, deve ser sentida. Passamos cinco anos a montar maquetes que acabarão recolhidas pelas faxineiras que habitam os bairros onde debruçaram-se nossos desenhos. Sequer sabemos seus dramas, seus nomes, suas origens, seus desejos. E o que é pior, não conhecemos os nossos. Damos e recebemos notas, avaliações, ganhamos concursos jamais ou raramente executados. Não sou capaz eu cá, de projetar um curso de arquitetura. Aqui proponho apenas um curso de história/antropologia/cultura, transdisciplinar a qualquer primeiro ano de qualquer rincão do Brasil. A música, o cinema, a literatura como temas de debates e exercícios

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O tempo da proposta abaixo somente ao primeiro ano. Minha utopia de ensino está na abertura deste trabalho. Proposta transdisciplinar para um primeiro ano de sentimentos de nossa história mais recente. Lembro, uma adaptação à escola como está a nossa, não a utópica que engendrei no inicio deste trabalho.

U M S É C U L O A O R E D O R D E L Ú C I O C O S TA ( 1 9 0 2 a 1 9 9 8 ) PA N O R A M A D E S E N T I M E N T O S Vejam quão rico é este período; agitado, abrangente, por todas esferas de nosso existir político, social e psicológico. Nenhum lugar estava quieto, tudo se movimentava em transformações definitivas. Todas essas camadas sociais e institucionais e, as facetas dos diversos campos do conhecimento - sociologia, política, arte, antropologia, etc, são passíveis de análises onde seria perceptível suas conexões e consequências. O que proponho aqui é um panorama. Mas para que esse curso realmente funcione é preciso que estabeleçamos conexões de desencadeamentos em todas as esferas e fenômenos desta aqui denominada Era de Lúcio. Há, em nossas manifestações culturais, diversas raízes que esclareceriam sobre o espírito do homem brasileiro. Seria interessante antes, um preâmbulo, ainda que em traços ligeiros, desde a vinda da família real (1811) até primeira república (1888). Isto é, antecedendo um pouco ao desaguamento no século XX. Sabemos por exemplo, que os carros alegóricos das escolas de samba têm um pouco, parte de sua origem nas decorações de rua à época da família imperial e, dos tronos de reis africanos da costa Ocidental. Há um filme do Wim Wenders com essas imagens – atuais – e outras tantas imagens nos arquivos da Biblioteca Nacional. E a formação do povo brasileiro poderia dar ensejo a uma monografia sobre o documentário sobre Darcy Ribeiro. Essa poderia ser uma base, um arranque para se entender quem somos, antes de tudo. Enfatizo aqui o autoconhecimento; consciência do ao redor. Lúcio era um dos humanistas mais lúcidos a esse respeito, por isso a importância de toda sua obra. Não foi simplesmente um arquiteto. Escreveu brilhantemente, fundou IPHAN, etc. Como eram esses brasis ainda não Brasil nação. E como era o Brasil imaginado por Villa, Ary Barroso, Jobin; e o Brasil da Rede Globo e suas novelas e jornalismo. O Brasil de José de Alencar ?! E agora o Brasil da globalização, da padronização. Nesse imenso território há diferenças de sentimentos coletivos míticos; que definem a alma de um povo e, consequentemente, todas as manifestações de sua cultura; portanto, para conhecermos o país de hoje, é fundamental conhecer essaS “almaS” para entendermos sua arte, sua política, as aspirações dessas épocas. E essas épocas “antigas”, podem ser verificadas em suas evidências presentes, principalmente nas manifestações artísticas mais atuais. Há ainda o espectro da violência, da indefinição entre o público e o privado... problemáticas que têm sua origem na formação histórica e podem ser ilustradas com imagens atuais e antigas. Valeria ressaltar que o sustentáculo econômico da família real, do exército, da marinha, do

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comércio, boa parte da produção manufatureira, dependeu do forte poder econômico dos grandes traficantes de escravos. Isso ajudaria explicar, talvez, as raízes de nossa violência, ou a promiscuidade entre poder econômico e instituições. Atentem, falo ainda de um preâmbulo que antecede o século de Lúcio, sempre focado em raízes de questões presentes. O período interessantíssimo, de definições fundamentais em que Lúcio nasce, 13 anos depois da proclamação da famigerada primeira república (1889), é o mais rico e documentado. Os olhos de Lúcio presenciaram muita coisa e, ele mesmo, é fruto do período tumultuado que o antecede. Seus desenhos meticulosos, ainda na Escola Nacional de Belas Artes, (até 1924), são expressão de uma mentalidade vigente à época. Nesse momento, mesmo em inicio de século XX, ainda se aspirava uma idealização renascentista/iluminista do mundo, pelo menos ainda preponderante por estas bandas de cá, então preservadas à distância das metrópoles que já haviam atravessado uma primeira guerra total. O choque ao se deparar o campo arrasado pela primeira grande guerra parece ter sido um dos fatores que abre espaço para vingar o moderno. O inexorável avanço tecnológico, que caberia esclarecer não é um fato isolado da revolução industrial (Fernand Brodel “Les jeux de l’échange”). Há uma profunda mudança na concepção existencial do homem a partir do momento em que as máquinas substituem sua artesania. O Brasil distante no entanto, permanece em estruturas semifeudais. REFLEXOS DA PRIMEIRA GUERRA Sobre os frangalhos das românticas idealizações das coisas do mundo, a ponderabilidade da destruição supera a crença de que o homem poderia governar e ordenar sua própria natureza e, talvez isso, tenha dado lugar à necessidade de mobilização das massas. Refletiu-se isso, aqui, em Getúlio, em JK e Jango. Sabemos que havia inquietude política constante sob à atuação de estadistas da Primeira República, ainda oriundos do Império, com pensamentos liberalizantes carregados de desejo de constituir uma nação inserida no mundo (José Bonifácio, Barão de Mauá...) e, esse século XIX, se estende até meados do XX, cheio de idealizações. Engendra-se nas mentes uma América ápice do mundo moderno; uma Brasília. Como ocorreu a Lúcio o moderno, em meio a esse ambiente de um Brasil romanticamente distante daquilo que almejava ser ? O que poderíamos detectar de seus contemporâneos ? Desenhos animados de Zé Carioca, de Walt Disney, à vinda de Roosevelt e sua política de boa vizinhança é exemplo de estratégica propaganda geopolítica; quando Getúlio como bom estadista, negocia Volta Redonda, dando a grande base de nossa indústria, é parte da aspiração de inserção numa nova era. A indústria é tudo. As imagens básicas da arquitetura vernacular portuguesa. Como libertar-se das vigências clássicas de uma época, dos pensamentos conservadores ? Vamos verificar as técnicas dessa arquitetura de raízes moura/lusitanas, absolutamente despojadas devido a pobreza dos campos da pobre Portugal, lhe servem de base, de identificação, de raiz. Análises através de desenhos, fotos quem sabe; e de sua biblioteca; que obras ele leu ? A qualidade de seus textos é suficientemente forte para ser abordada por literatos e, mais que isso, seu pensamento Lúcido. Dessa forma estaremos demonstrando para a “estudantina” que a formação, o entendimento da alma, é importante para o exercício da profissão, da arte,

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da libertação. (E há outros textos poéticos, como a de um Sisa por exemplo, quando fala de Barragan. Sim, por que há espaço para falarmos dos contemporâneos. Até de Renzo Piano, quando fala da necessidade da antropologia. São arquitetos com pleno domínio dessa arte de escrever em decorrência do conhecimento da realidade que o cerca). Qual o quadro da técnica nesse início de século ? Qual o panorama antropológico e político nesse momento ? O predominante conceito de que técnica é tudo para a autoafirmação de um povo. Nossos melhores antropólogos são nossos compositores. Risério e nós, poderíamos elencar. Basta ouvir o repertório de João Gilberto, ele diz isso o tempo todo. Já que tocamos em literatura, Iracema, a virgem dos lábios de mel, é uma obra republicana por excelência e, não há um republicano que não a tenha lido. (e o tão óbvio tema de O Guarany). O clima dessa obra está ainda presente e oculta em nossas almas e é salutar que notem essa presença invisível, da qual a arte sempre soube tratar, enxergar e trazer. A música, a literatura, a poesia, a filosofia e a arquitetura, transcorrem carregadas de adornos e firulas até Vicente Celestino, Francisco Alves... São despojadas disso, prematuramente, em Machado. Drasticamente em Guimarães, o maior filosofo da língua. E em Pessoa, de outro lado. Numa abordagem curiosa, seria imprescindível dar aulas ouvindo música. ( Por isso o título). O panorama das canções do início de século apresentava duas áreas temáticas contrastantes: a de um imenso Brasil rural, ainda recheados de língua geral; e, o do contexto urbano conectado à Europa. Poderíamos abranger aqui a passagem do século XIX\XX, até aos anos 60! O Brasil que surge do mundo das idealizações romântico/renascentistas e o brasil de rincões distantes, medievais, que se fizeram desenvolver em peculiaridades durante séculos de isolamento de nossos sertões e mesmo de nossas cidades. Tivemos assim em nosso interior, um medieval muito peculiar. Desses dois mundos que a meu ver, não eram somente contrastantes, mas iam se afinando, cada vez mais atraídos um pelo outro. Assim se peculiarisaria a singularidade de nosso moderno. É uma visão minha, particular e intuitiva, mas que à TROPICÁLIA, entre outras coisas, expressa. Com a advento do rádio, por exemplo, fenômeno esse sempre subestimado por historiadores convencionais, intensifica-se com vigor e rapidez, uma integração; passamos a ouvir vozes de interiores sertanejos, obscuros e inconscientes para nós que vivemos próximos ao Atlântico. E vice e versa; do litoral para dentro, escutam eles nossas modernidades importadas de além mar Jakson do Pandeiro !). Assim como a mídia impressa no ambiente urbano tem lá sua importância aos letrados. Antes disso, o que mais impressionantemente nos chegou, foi Os Sertões de Euclides, a miserável marca republicana. Por aqui erguem-se os arranha-céus e aspira-se a fumaça inebriante do progresso. E nos faz sonhar que, ao imitarmos tão perfeitamente bem as metrópoles estrangeiras, nos reconheceriam como um deles. Por outro lado, os sertões nos chegam em paus-de-arara. ( ...sob meus pés os caminhões...) Teria Oswald lido Euclides da Cunha ? óbvio que sim; e, assim como Guimarães, sem exceção, todos tiveram que remexer à linguagem para exprimir o inexprimível desses povos nascentes. Lembro sempre da linguagem. Porém, a síntese dessas primeiras décadas do século XX, carregadas pelo imaginário do século XIX, paradoxalmente nos descola do mundo e, ao mesmo tempo, nos atrela mais ainda ao negado solo caboclo. Isso nos é explanado

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panoramicamente pelos Andrades e pelo TROPICALISMO. Talvez por isso eu tanto goste dessa ideia do “panorama”. O Tropicalismo é panorâmico. Observem que aqui, dou um proposital salto imagético e ainda sito muito mais os mitos, dando menor ênfase aos fatos em sua linearidade. Como ser linear em tão diversos brasis ? O disco Tropicália, por exemplo, analisado em cada uma de suas faixas, descreve quase literalmente, um momento político e social crucial onde todo esse meio de século desemboca: de migração, da morte de Carmen Miranda, de um suicídio inédito de um presidente, de JK, de Brasília; e a face arcaica de uma sociedade que decreta uma ditadura, presenciada por uma outra face atônita da mesma sociedade. Golpe esse desferido pelas mesmas oligarquias que derrubaram Getúlio, tentam derrubar JK por dez vezes e, finalmente a Jango. Hoje ainda estão por aqui, expressando-se virulentas através das mesmas quatro famílias que dominam a mídia há século. E a explosão de um moderno já sendo absorvido pela globalização e consumo. Essas duas faces de um Brasil contemporâneo seria um tema final de abordagem, mas que seria anunciado logo de começo do curso. Entendo que a linguagem é de suma importância para mobilizar a atenção e expressar uma realidade. Isso nos suscita também uma abordagem, ao menos rápida, sobre a questão da linguagem; questão essa diretamente ligada ao nosso entendimento do mundo e desse nosso ofício. (Mario de Andrade tem brilhante ensaio em o Baile das Quatro Artes, onde fala do equivocada divisão conceitual entre “ forma e conteúdo”) Em nenhuma arte poderia haver tal tipo de divisão e, amiúde, nossos professores equivocadamente a colocam. Há duas guerras sob esse salto que dei. Há, no ambiente de ascensão do nazismo - e outros ismos (fascismo, comunismo...), uma contaminação romântica, ainda fortemente incrustrado nas almas sociais, principalmente nos mais desenvolvidos países, ou, mais presente lá do que aqui. Aqui somos de interiores longínquos, inóspitos, ainda povoados de sacis. Mais medievais ou tão sem memória, onde há hiatos que, numa povoada Europa não poderiam mais haver. Mario de Andrade, em 1930, adentra a esses e outros sertões e, nos trás gravado esses nossos seres dos matos, dos caboclos miscigenados ao sangue mourisco; que outro povo tem isso?! Corbu nos chega de Buenos Aires, uma importante capital cultural do planeta e não se tem hoje noção de sua importância. Mas porque no Rio teria ele encontrado receptividade ? Que território fértil era este, que estendia tais pontes entre o arcaico e o absolutamente moderno? A importância de Lúcio na formação de Oscar, essa incrível identificação, e a miscigenação com o francês mediterrâneo. Seria simplesmente um fenômeno do acaso, Oscar e Lúcio terem projetado o prédio da ONU. (Quantos brasileiros sabem disso ?). Porque raios Oscar é barroco ? como enxergou o barroco e em que curvas fez ele estar presente o “antigo” ? Haveria muito tema para exercícios de desenho. Essa eventual aterrisagem de Corbu no Rio, a importância de um Gustavo Capanema e um ministério culto e interessado: Getúlio, Villa...continuístas modernos e ideologicamente românticos em seus sonhos de idealizar uma nação republicana, com sua mentes ainda povoadas daquela Iracema. O sambódromo de Darcy. Semana de Vinte e Dois com seus anseios de firmar uma nacionalidade, ao mesmo tempo universal, que carrega dicotomias nostálgicas sertanejas. Um país de imensidões tardias e, o internacional pontuado a nos chegar através de uma urbanidade já desenvolvida. Vejam que em

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vários momentos trago a questão das metrópoles porque há, nesses momentos, Brasília, (Tom Jobim, Bossa Nova...)um tanto para giramos ao redor de Brasília... Acusa-se Brasília de ser fruto da cultura rodoviarista, ou do que for, em rudes reduções simplórias daqueles que ignoram o seu profundo significado. Brasília seria o ápice de um rápido movimento, de uma rápida ação que, todavia, já se esboçava no ser brasileiro. Acho que ainda não se entendeu Brasília em toda sua magnitude em nossas mentes. Para se entender Brasília, não somente como cidade, mas como expressão, muito há que ser exposto. Uma das maiores expressões de nossa alma, que naquele instante histórico, já começa a comungar conscientemente. Há motivação mais forte para os novatos do que Lúcio, Brasília ? Lembrando ainda que temos dentro desses seus cem anos, Artigas, Paulo Mendes, Lina... Sinceramente, não vejo outra forma de começar os ensinamentos a arquitetos se não for por nossa arquitetura, por nossa cultura, por nossa sociologia, antropologia e política. Sem deixar de ser referenciada ao tudo que nos vem de fora. Vejam que é um vasto tema, integrando disciplinas em aulas até conjuntas, palestras, documentários e exercícios. Posto isso, poderíamos elaborar um pôster com desdobramentos desses temas todos sob esse título; do sentimento. O Panorama acima proposto, considera então que, na Era Lúcio, os diversos campos da arte eram conexos às movimentações sociais, às ideologias, como se nossa arte não só expressasse, mas também desencadeasse processos transformadores. Há porém uma lacuna na Escola da Cidade, da qual nos ressentimos no exercício de desenho, sobre o conhecimento da arte moderna. Não somente sob o aspecto de sua contextualização, como propus até agora, mas à analise de estudos das composições, estruturas, cores... mas também em exercícios práticos, onde o aluno penetraria no pensamento desses artistas, e, esperamos, aprimorem sua capacidade de exprimir-se. Nosso trabalho agora seria repensar um ensino de arquitetura de forma interdisciplinar esboçado neste Panorama. Não seria difícil criar horas/aula de exercícios e debates integrados entre desenho, história e arquitetura. Por um ano inteiro, básico, teríamos Brasil como tema. E então propiciar uma visão crítica da realidade para os diversos territórios brasileiros, para as suas peculiaridades culturais, geográficas e econômicas. Só a partir disso, os alunos começariam a desenvolver suas autorias nas aulas de projeto, ao contrário do que se dá hoje, mesmo que, hoje, tenhamos resultados plásticos e arquitetônicos. O que proponho é formação de massa crítica à realidade e não somente àquilo que não é boa arquitetura ao julgamento de nossos arquitetos.

_____________________________________________________________________ D E P O I S D E S S E PA N O R A M A , U M A FA C U L D A D E D E 3 A N O S 1 - Aprofundar-se nas especificidades técnicas de acordo com as demandas das necessidades de projeto, quando buscada por necessidade, o conhecimento se fixa melhor. Absorção é muito mais rápida e profunda. 2 - Questionar os processos, técnicas e tecnologias disponíveis nas “prateleiras”. O Brasil já foi

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líder mundial em engenharia do concreto, hoje não possui tecnologia própria em formas de metal, etc. São produzidas por multinacionais, assim como componentes químicos adicionados ao concreto são patentes internacionais. A cada cm2 que construído, pagamos royalties. 3 - O entendimento de toda nossa geomorfologia e como o homem a tem alterado; e alterado a paisagem em decorrência da exploração econômica. Recursos hídricos, energéticos, alimentícios. Florestas, Cerrados, etc; e a peculiaridade de cada cultura nestes rincões desenvolvida. E a internacionalização por multinacionais. (Milton Santos) 4 - As praticas construtivas por sua vez, foram determinadas pelas grandes construtoras. Não estou afirmando que estejam erradas, mas não são estudadas em nenhuma faculdade. 5 - A antropologia não está contemplada em nenhum curso de arquitetura que conhecemos, isso é estranho. 6 -VISITAS AOS CANTEIROS Ouvir um mestre de obra comentar um desenho fará professores e alunos repensarem suas apresentações gráficas. A obra dá ao aluno a verdadeira complexidade e dimensão de seu metier. Vê com seus próprios olhos a complexidade de uma forma, das escoras, do desescoramento, das instalações, dos custos, das misturas e peso do concreto, madeira, etc. Corporal e mecanicamente, sentirá que esforços são esses, numa indústria descomunal e completamente diferente de qualquer uma outra. Como podemos produzir para essa indústria e não conhecê-la ? A atitude do estudante diante do desenho, depois que conhece uma obra muda sensivelmente. Obviamente, depois de alguns anos de escritório ele adquire essa noção, mas, essa absorção, esse conhecimento se daria de forma mais rápida e mudaria substancialmente sua maneira de conceber o projeto, além de acelerar e aprofundar seu conhecimento das técnicas. Hoje são levantados tantos empecilhos às visitas a canteiro porque nossos arquitetos, em sua maioria, não visitam o canteiro. Se visitam, o fazem esporadicamente por serem praticamente banidos pelas empreiteiras. Em decorrência das visitas a canteiro, ele conhecerá QUEM é o operário a ler seus desenhos. Que povo é esse. Neste sentido, a antropologia acrescerá a esse entendimento. Conhecimentos básicos de economia: entender como funcionam as incorporadoras, o poder público, o custo das coisas. Processo de fabricação do cimento, barro, aço... Arquitetura se dá a partir da necessidade de indivíduos, instituições, publicas ou privadas, poder público. Se, todos esses agentes desconhecem a importância e dimensão do trabalho do arquiteto, como podem sequer em pensar numa demanda ? 7 - Portanto, uma faculdade deve ter um departamento de contato, de comunicação com a sociedade através da mídia. Esse departamento é tão importante quanto qualquer outro dentro da faculdade. ___________________________________________________________________________ {Idiomas, linguagens, mitologias.}

Remontando mais atrás, o catolicismo europeu por sua vez é bom exemplo de sincretismo religioso. A Roma pagã, já era tolerante às inúmeras culturas de seu vasto império. E absorviam também. Ao degringolar do império romano, o Vaticano promove ainda mais a mistura com

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as entidades regionais, daí as Santas Marias mais variadas; São Jorge, Rafael, Gabriel, Barbara ( atualmente no Brasil, a Rainha dos Raios), Franciscos… Observemos que das três monoteístas, é a única que cultua imagens; entidades intermediárias, representantes dos diversos aspectos do Divino. Aportam em nossas praias esses pagãos convertidos e, tão logo partem as caravelas, com esperma e sangue dão origem aos novos nativos. Essa caboclada vai assentando suas raízes no meio geográfico, refundando símbolos e significados em novas entidades. E por séculos desenvolvem nestes chãos sua cultura peculiar. O caboclo é a sobrevivência do romano, do mouro, do negro; do índio em nosso sangue, em nossa face, em nosso espírito, em novo território americano. Nas subjetividade desse indivíduo nordestino. Nossa antropologia ainda não deu conta (a psicologia e a filosofia jamais darão). Essa povaiada, esse zé ninguém é quem vai para o canteiro de nossas obras cair dos andaimes, queimar as mãos no cimento, perder dedos e depois jogado na rua. Serve enquanto durar a força de seus músculos. Em nossas pranchetas e escritórios modernos, desenhemos aquilo que eles colocarão de pé. Muitas vezes saem da obra antes de seu final e sequer sabem a parede do que estão levantando. Se sair errado é culpa da mão de obra ___________________________________________________________ PORTUGUESES E DESDEM É noção ordinária deque os portugueses aqui chegados eram escória, assassinos e ladrões, justifica, numa comparação simplória, a diferença entre o Brasil e Estados Unidos da América do Norte, países aparentemente de mesma idade. Compara-se a colonização inglesa com a portuguesa de degredados, como se ingleses fossem raça superior. Grande parte dos tais degradados que cá vieram dar, eram os perseguidos pelos tribunais da inquisição, retrógrada e obscurantista. Quanto ao tempo de existência dos dois países, o nosso só foi realmente fundado às primeiras décadas do século XVII, à chegada da Família Imperial portuguesa em 1808. Só aí funda-se o Brasil. À essa época, o português era língua falada em apenas alguns centros urbanos e latifúndios. Falava-se preponderantemente as línguas gerais; o nheengatu, uma mistura de tupi- guarani e português. Isto ainda até inicio do século XX. As distancias eram, além de imensas, intransponíveis. Não havia ainda a noção de nação. Portanto, nossa pátria, conta com pouco mais de duzentos anos. Ainda assim depois de sufocadas inúmeras guerras separatistas pelo Primeiro e Segundo Império. Durante a Primeira República sobreviviam ainda regiões absolutamente desconectadas e desconhecidas pelo poder central. A idealização de uma capital central no século XIX, se deu decorrente da necessidade de integração. O rádio, me parece, acelera a noção de pertinência lá em lugares ermos só era rápido chegar através das “ondas sonoras”, somente no inicio do século XX. _______________________________________________________________ O cinema de ficção cientifica tem se arvorado à algumas profetizações curiosas em que as arquiteturas, gótica, clássica, artdeco, moderna, têm servido como cenário, símbolo emblemático de futuras eras sombrias. Num momento recente da história da ficção, seja na literatura ou no cinema, algumas dessas obras artísticas nos impressionaram tal sua verossimilhança com o presente. Porque não considerarmos as obras atuais em nosso

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exercício de auscultar o futuro ? Filmes como Metrópolis, Farenheit 451, Blade Runner, Matrix, foram objetos de estudo que realizei em 2008 para a revista América. Jamais publicamos.

Notem, que ao falarmos de gestão na área da arquitetura e obras públicas, em verdade estamos a buscar desvios a entraves de ordem burocrática e judicial para podermos projetar algo minimamente integro. Vale citar aqui a plataforma de comunicação criada por um pequeno grupo - Pedro Arantes, Guilherme Wisnik, Victor Chinaglia, eu, e o Sindicato dos Arquitetos de São Paulo - que tem a pretensão de atingir os estimados cento e oitenta mil estudantes de arquitetura; mais do que isto, colocar em conexão todos os movimento coletivos do País - na organização e ocupação das cidades - para que estes troquem experiências e resultados obtidos através de suas ações vitoriosas ou não. É preciso observar que as ações desses grupos, por preservação e criação de espaços públicos e qualidade de vida urbana, têm partido da vontade popular e está sempre a nos anteceder em vontade e ações políticas. O interessante dessa plataforma é a revelação da qualidade de determinadas lutas no que tange gestões públicas paralisantes. Dará ênfase ainda à geografia, antropologia, história regional. Receberá artigos de professores e estudantes do Brasil todo e os colocará em conexão. ________________________________________ SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA Ressalto, insisto exaustivamente no papel fundamental dos historiadores e da disciplina de história. A qualquer cidadão brasileiro deve ser oferecido completo panorama de sua região geográfica, de sua história passada, recente e presente. Toda essa informação deve ser colocada de maneira a permitir conexões entre economia, história (política) e arte/cultura. Substituiria aquilo que conceituamos como aulas, por períodos de debates. Os “alunos” seriam orientados a ir buscar as informações: onde e como. A mídia e os pensamentos conservadores e progressistas devem ser debatidos, questionados. O questionamento faz parte da curiosidade humana e deve ser provocado a cada dia. Incentivados nesses debates a estabelecer as conexões entre as informações. Conhecimento aqui entendido, sempre, como conexão entre informações. Três informações bem selecionadas, formam um tripé; dezenas delas não conectadas, são puro eruditísmo verborrágico Barbosiano (de Rui Barbosa, a besta de Haia, o Carlos Lacerda de sua época). Coloco a geografia, história e economia estreitamente conectadas em completa reverência aos pensamentos do descomunal pensador Milton Santos. Sua obra deveria ser sempre citada. E a arte como exercício permanente de liberdade do pensar além dos limites do racionalismo. Neste momento me ocorre, eliminar termos que - insisto, neste instante, por que talvez possa me arrepender - eufemísticos: “o homem” e “nós”. Como por exemplo: “o homem” têm alterado a paisagem. Ou: “nós” somos os responsáveis pela desigualdade social. Embora no Antropoceno, emprega-se corretamente “o homem” como agente bioquímico da mudança. O Tao da Física e o Ponto de Mutação de Fritjof Capra, embora os tenha lido remotamente, me ocorrem como referência para uma fase mais adiantada, todavia, antevisões menos aprofundadas de seus conteúdos poderiam ser abordadas. Falo em estudos regionais em alguns parágrafos acima e aventaria a possibilidade desses estudos serem desenvolvidos em itinerância permanente.

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Assim, a escola, os tais POSTOS de ARQUITETURA, suas sedes, serviriam como pontos de chegadas, hospedagem, e partidas de delegações estudantis. Portanto, sua arquitetura poderia mudar e/ou, edifícios deveriam ser adaptados, equipados a tal itinerância. A noção de nação deve ser tema constante, assim como o olhar crítico sobre símbolos e costumes que regem as sociedades locais e globais. Tento fazer entender melhor isto quando comento o papel da indústria cultural. Uma ampla visão da ciência e da técnica se faz necessária para ensaiarmos qual ciência e qual técnica a nós se adequaria a partir do conhecimento da natureza de nossos territórios, de nossas culturas; e quais criaremos ao bem comum, assim como desmantelaríamos a mistificação ao redor da ciência e tecnologia a serviço do capital, do acumulo e, principalmente, como algo inalcançável, criando-se assim algo semelhante a uma fé religiosa. Neste sentido, considero o estudo da técnica como ação libertadora. Porém, tal abordagem da ciência e da técnica só é possível se as encararmos como criações ilusórias do homem e, como tal, convenientes a determinados momentos de sua história. No Oriente a precisão dos cálculos astronômicos de há muitos séculos já estava bastante desenvolvida. A Terra era o centro. No Ocidente, a ciência acreditava e fez crer: nós erámos o centro. No momento adequado e conveniente, Copérnico e Galileu como que inventaram a mudança. A longa crença no Sol como centro, foi conveniente para trazer aquela humanidade ocidental ao ponto em que chegou. Hoje, esse Ocidente descobre ( ou inventa ) que nem o Sol é o centro do Universo. Equações matemáticas que tentam conter uma origem para o Universo não cessam de ser revistas. Portanto, a realidade tem sido uma invenção humana e, assim pensando, a ciência e a técnica poderiam ( e estão ) passar por transformações conceituais profundas. Pode parecer estranho colocarmos isto aqui, mas este é o momento em que aquilo que entendemos como ensino, desconecta-se de tudo já elucubrado para ele mesmo. Paro por aqui esta dissertação de primeiras imagens por incapacidade de saber quão abrangente deve ser a educação. O início dessa escola engendraria suas formas finais, suas fases, e sua própria transitoriedade. Não faço aqui nenhum atentado contra o capitalismo, mas à maneira retrógrada como, cada vez mais, atua sobre a educação de forma alienante. E neste imenso País, como se essa fosse terra de ninguém, na combinação de ganância e ignorância. Esta nefasta configuração do capital necessita urgente reflexão sobre sua incoerência na qualidade de nossa arquitetura e ensino.

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