Soul GÊNERO E DIVERSIDADE Ano 02, Edição 03, Junho de 2017
ENTREVISTA
Exclusiva de Passapusso à Soul
MC BAFÔNICO
Rapper e gay assumido
LUGAR INCOMUM
Culinária indiana em Salvador CROSSDRESSING
Vestidos para experimentar DICAS DIVERSAS
Viajay: turismo LGBT na web
ALÉM DO ARCO-ÍRIS 56 identidades de gênero
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2017.2
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Vestibular
CEITO ON
MEC
FACULDADE SOCIAL DA BAHIA
• ADMINISTRAÇÃO • JORNALISMO • DIREITO • EDUCAÇÃO FÍSICA (Licenciatura e Bacharelado)
• FISIOTERAPIA • GESTÃO HOSPITALAR (Tecnólogo - novo)
• PSICOLOGIA • PUBLICIDADE E PROPAGANDA
• ENFERMAGEM (novo) 2
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www.fsba.edu.br
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4009-2840
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Revista Soul. Projeto interdisciplinar produzido pelos alunos do 5º semestre do curso de Jornalismo, da Faculdade Social da Bahia – FSBA, Salvador/BA, nas disciplinas de Práticas Integradoras II e Planejamento Gráfico. Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Edição geral: Cristina Mascarenhas Edição de texto: Bárbara Souza e Cristina Mascarenhas Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Bárbara Souza e Cristina Mascarenhas Projeto gráfico: Elisangela Sandes e alunos do 5º semestre do curso de Jornalismo TEXTOS: Adriane Primo, Bianca Andrade, Bárbara Carolina Aguiar, Caroline Santana, Didica Vasconcelos, Edielson Silva, Elane Rosa, Fernanda Travasso, Harrison Lago, Isaias Gottlieb, Luan Guimarães, Nilson Marinho, Luiz Felipe Cunha, Pablo Menezes, Pedro Rodrigues, Sara Menezes e Vanessa Brunt. EDITORIAL: Bárbara Souza CAPA: Elisangela Sandes, Victor Evangelista, Leonardo Santos e Vanessa Brunt. FOTOS E ILUSTRAÇÕES: Leonardo Santos, Nilson Marinho, Freepik e Divulgação. COLABORADORES: Adriane Primo, Bianca Andrade, Fernanda Travasso, Victor Evangelista e Leonardo Santos.
Faculdade Social da Bahia – FSBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170 – 010. www.fsba.edu.br (71) 4009 – 2840 Diretora: Margareth Passos Vice-diretor: Fernando Miranda Coordenadora Acadêmica: Ornélia Marques
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ENTREVISTA
MÚSICA
TECNOLOGIA
Russo Passapusso
Rimas saindo do Armário
Conheça 6 sites com utilidades e reflexões sobre diversidade
Isaias Gottlieb Beltrão e Luan Guimarães Borges
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Luiz Felipe Fernandez
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PUTTA, um documentário
TCC
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Rap071, um exemplo que deu certo
Adriane Primo
Elane Rosa e Sara Menezes
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Além do feminino e masculino: Conheça as 56 identidades de gênero Bianca Andrade
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Preconceito Inocente
Caroline Rodrigues e Pedro Maia
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COMPORTAMENTO 4
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Vanessa Brunt e Pablo Rodrigues
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CIDADE
Vá de Bike!
Edielson Silva
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PERFIL
Garotas do Click
Didica Vasconcelos
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Mais direitos menos machismo
LUGAR INCOMUM
Sabor do Oriente Nilson Marinho
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Bárbara Carolina Aguiar
Crossdressing!
POLÍTICA
CURIOSIDADE
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Harrison Lago
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Editorial
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m seu livro Modernidade Líquida (2001), o filósofo polonês Zygmunt Bauman, falecido em janeiro deste ano, defende a tese de que a modernidade contemporânea, a pós-modernidade, se assemelha aos líquidos. Essa modernidade é “leve, líquida e mais dinamica que a modernidade ‘sólida’ que suplantou”, flui, vaza, transborda, penetra lugares, contorna o todo e todos, tal como as ondas do mar. (...) Seu horizonte (do indivíduo) é repleto de incontáveis oportunidades e realizações; é ele que escolhe os seus caminhos sem se preocupar com normas pré-estabelecidas(...)”. Cito Bauman com o objetivo de pavimentar rapidamente o caminho para a analogia que pretendo fazer ao usar a expressão ‘diversidade líquida’. Essa expressão resume bem os temas, reflexões e fatos tratados nesta edição nº 3 da Revista SOUL. Ao ler a reportagem de Capa, assinada por Bianca Andrade, que convida o leitor a conhecer “as 56 identidades de gênero”, você irá concordar que quando se fala em gênero, a diversidade é cada vez mais líquida. Assim como o horizonte da sexualidade humana é “repleto de incontáveis oportunidades e realizações”. A matéria de Harrison Lago (Crossdressing: uma experiência para além da sexualidade) nos ajuda a entender definitivamente que quando se fala sobre identidade de gênero e orientação sexual, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas em tempos de diversidade líquida, não há por que se apegar a velhos paradigmas e preconcepções como, por exemplo, o de que Rap é um universo musical exclusivo de heterossexuais. Em “Rimas saindo do armário”, Luiz Felipe Fernandez nos apresenta Rico Dalasam, 27 anos, o primeiro rapper assumidamente gay. Eis uma boa pauta para o RAP071, site criado pelos jornalistas Gabriel Soares e Pedro Enrique, fruto de um Trabalho de Conclusão de Curso – o temido TCC – de Jornalismo. Quem conta essa história são as repórteres Elane Rosa e Sara Menezes. Ao dar um web-mergulho no universo da diversidade e gênero, temáticas que ancoram o projeto editorial da Soul, Vanessa Brunt e Pablo Rodrigues de Menezes trazem dicas interessantes de sites como, por exemplo, o Viajay, que reúne dicas de turismo LGBT em cidades brasileiras, criado por um jovem baiano apaixonado por viagens, e o www.cronicasdasurdez.com, que virou livro e aborda importantes e curiosas temáticas sobre surdez. Se a famigerada proposta de Reforma da Previdência é um tema indigesto para ‘geral’, no particular ela tem o agravante do sexismo: traz prejuízo ainda maior para as mulheres, revela a matéria de Bárbara Aguiar. A Soul traz muito mais, muito mais! Vale a pena (mesmo) conferir.
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O sexismo, a homofobia, o machismo, o racismo, o sectarismo partidário, o radicalismo ideológico, a arrogância do etnocentrismo que move a indústria bélica e as guerras, a estupidez da intolerância religiosa que alimenta um fanatismo capaz de fazer o que nenhum deus jamais aprovaria: matar. Nosso ideal e nosso trabalho é contribuir para eliminar esses malévolos resquícios de uma brutalidade sólida e destrutiva. Esta 3ª edição da SOUL, produzida sob a orientação competente e dedicada das professoras Cristina Mascarenhas e Zanza Sandes, é a materialização desse trabalho coletivo por um mundo mais diverso, acolhedor e humanizado. Com a revista, os estudantes compreendem e exercitam o Jornalismo social e eticamente responsável, que renova a nossa crença de que dias melhores virão! BOA LEITURA! JUNHO 2017
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TCC
Rap071, um exemplo que deu certo!
Estudantes contam como foi transformar projeto de conclusão em negócio.
TEXTO: SARA MENEZES E ELANE ROSA
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uem imagina que o Trabalho de Conclusão de Curso termina após a formação, está extremamente enganado. O TCC, para muitos, pode servir como o início de uma carreira promissora. Este é o caso dos egressos da Faculdade Social, Pedro Enrique e Gabriel Soares. Formados em jornalismo, os jovens profissionais vislumbraram a 6
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oportunidade de transformar o seu projeto de conclusão de curso em um produto jornalístico segmentado para uma demanda de mercado que vive a sua melhor fase. Percebendo o crescimento da indústria do rap, eles atentaram para a necessidade de coberturas jornalísticas sobre
este cenário específico e para a existência de um nicho muito particular na capital baiana. Assim nasceu o site Rap071 voltado para a cobertura multimídia do rap em Salvador. Num momento de inquietações, preocupações sobre o término de um curso e o futuro profissional, os criadores do Rap071 conseguiram agregar ao projeto a oportunidade de con-
Agenda do rap em Salvador
quistar o mercado profissional. “Quando pensamos no projeto do TCC, identificamos que seria possível manter o trabalho pós-conclusão de curso, uma vez que o objeto de estudo é do nosso interesse e tendo em vista a necessidade do meio em compartilhar as informações de forma sistematiza”, comenta Gabriel Soares. Pode-se dizer que o TCC, orientado pela professora e jornalista Cristina Mascarenhas, foi um projeto piloto que deu a dupla a expertise necessária para transformar em um negócio. “Com o desenvolvimento do trabalho tivemos mais certeza ainda, pois vimos que o universo do rap em Salvador é bem mais rico e produtivo do que imaginávamos”, completa Pedro Enrique. O produto do TCC dos jornalistas ganhou expressão e, em poucos meses, ultrapassou a marca de 2 mil seguidores. A interface fácil do site, aliada à produção de conteúdo multimídia, é um atrativo para os seguidores. Além dos jornalistas, o site conta com colaboradores que produzem matérias em vídeos, áudio, textos e fotos distribuídas nas diferentes plataformas que compõe o projeto. Gabriel Soares diz que já tinha no rap um foco e que a for-
mação em jornalismo o ajudou a dar continuidade ao projeto. “O comprometimento com as premissas éticas do jornalismo também é um diferencial, já que a maioria dos conteúdos sobre rap ainda é produzida, em Salvador, por pessoas do próprio meio, sem formação acadêmica em Comunicação”, afirma. Os jornalistas pretendem ir mais longe, tendo como ponto de partida o jornalismo colaborativo e independente. O objetivo é dar cada vez mais voz e mídia para tendências e movimentos excluídos e estigmatizados socialmente, através da união entre cultura, arte e comunicação.
“Vamos para uma revolução: dar voz e mídia para tendências e movimentos excluídos e estigmatizados socialmente, através da união entre cultura, arte e comunicação”. Gabriel Soares
Pedro e Gabriel: parceria no TCC e no mercado JUNHO 2017
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COMPORTAMENTO
PRECONCEITO
INOCENTE A infância é a fase da descoberta. Como as crianças costumam lidar com o diferente. O papel de ensino a igualdade é dos pais? Ou da escola? TEXTO: CAROLINE RODRIGUES E PEDRO MAIA
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a hora do recreio, Lucas, 9, conta seus sonhos para os colegas. “Quando eu crescer quero ser um grande jogador de futebol, viajar pelo mundo e disputar grandes campeonatos!”. Na cadeira ao lado, uma de suas colegas observa e de repente começa a cantar: “Nego do cabelo duro que não gosta de pentear (...)”. Lucas não gostou nada do que ouviu e também respondeu com música: “Morena do dente amarelo que não gosta de escovar”. Em outra escola, Amanda*, 10, está chateada porque a sua colega Bia* sentou-se ao seu lado. “Sai de perto de mim, você é preta, suja”. A professora não acredita no que ouve e reclama: - Amanda*, não fale assim com sua colega! Andreza responde chorando: - Mas pró, ela vai me sujar, olha a cor dela! Lucas e Amanda estudam em escolas diferentes, mas a história dos dois está unida por um mesmo ponto, o preconceito. No entanto, a criança não nasce preconceituosa, torna-se. É o que afirma Telma Dutra, psicopedagoga da Associação Brasileira de 8
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Psicopedagogia. “A maldade não está nas pessoas desde que vêm ao mundo, mas nas ações das mesmas construídas através de influências do meio social em que ela está inserida”. Ainda de acordo com a psicopedagoga, a criança faz suas considerações a partir do que vê, presencia e ouve. “Se colocarmos em uma mesma sala de aula uma criança autista juntamente com um grupo de outras crianças cegas, onde somente a criança autista pode enxergar, e dissermos a esta criança que ela é melhor do que todos os outros porque ele pode ver, há grandes possibilidades de ele expressar atitudes preconceituosas diante dos colegas. Isto porque alguém o influenciou a pensar que ele está numa condição superior ao outros”, esclarece. A psicóloga e professora Izaura Furtado conta ainda que tudo o que a criança observa, da parte de adulto, é significativo para ela. As atribuições de apelidos, modos de se referir a determinadas culturas, raças e pessoas de classes sociais diversas podem ser fácil e rapidamente absorvidos. “Uma criança por imitação ou por mo-
ava h c a “ um era f o bich d nos
delagem do comportamento de um adulto racista, por exemplo, poderá sempre associar a raça no qual o adulto tem aversão àquilo que ele faz associações”. A psicóloga explica ainda que não basta falar, os pais precisam dar o exemplo. Além dos pais, a escola também tem um papel extremamente importante no que deve ser feito para monitorar tais situações, destaca a psicopedagoga Telma Dutra. Ela explica que este processo se dá tanto dentro como fora da sala de aula, no acolhimento que os professores e funcionários devem dar a alunos portadores de deficiência, em dificuldades de aprendizado, de exclusão, entre outros casos, de forma a promover a ressocialização dos mesmos. “O objetivo é promover uma inclusão entre todas as crianças, tratando todas de maneira igualitária, e mostrando através de ensinos, dinâmicas e afins que somos diferentes em características, cor, raça, classe social, mas temos direitos igualitários e devemos tratar uns aos outros com respeito”, completa.
ele e u q e po d o i t m com o i fe os” h n e des
UNI DUNI TÊ, MEU EXEMPLO É VOCÊ! O preconceito nem de longe é uma brincadeira. Tratar desse assunto com a criança não é uma tarefa tão fácil. “O uso de brinquedos educativos, dinâmicas, diálogo e, sobretudo, o contato com pessoas diferentes é importante. A criança deve colecionar experiências diferentes com o mundo diverso em que vive”, explica Izaura Furtado. Ao chegar da escola, e mostrar à sua mãe o bilhete de reclamação pela atitude preconceituosa, Amanda* recebeu conselhos. Sua mãe, a auxiliar de serviços gerais, Gildete Vieira explicou para sua filha que todas as pessoas no mundo são diferentes uma das outras, mas que todos têm o seu valor, e são bonitos, porém cada um com sua beleza diferente, mas belos em geral. A mãe da pequena Andreza conta que comprou uma boneca preta para a filha e, depois desta conversa e do novo brinquedo educativo, Amanda* nunca mais apresentou atitudes de preconceito. A vendedora Gérica Oliveira conta que sua filha Alexia, de 02 anos de idade, estranhou o fato de seu avô ter deficiência visual. “Ela o conheceu quando viajamos para o interior e ficou
com medo de chegar perto dele, achava que ele era um tipo de bicho feio como nos desenhos”. A solução da mãe foi explicar que existem pessoas que nascem sem conseguir enxergar e outras que ficam assim com o tempo por já serem mais velhos. A aproximação também foi uma estratégia para mostrar que ele não a faria mal. Ela contou à filha que por conta disso ele precisava também de que as pessoas fossem carinhosas porque ele precisa dos olhos dos outros para algumas situações da vida. Alexia ainda continuou receosa, mas, aos poucos, acostumou com a situação do avô.
FASE DO ESPELHO A psicopedagoga Telma Dutra explica que a criança antes dos dois anos de idade passa pela fase do espelho. Nessa fase, ela sofre um processo de autoidentificação. Olha para si mesma através do espelho e pensa ser outra pessoa. Ela também ainda não sabe diferenciar quem é o outro. A partir dos dois anos é que ela começa a entender que a imagem que ela vê no espelho é ela mesma e que, exterior a ela, existem outras pessoas. Só a partir dos três anos de idade é que a criança começa a ter noções de que entre essas pessoas há diferenças físicas, de cor, sexo.
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MÚSICA
RIMAS SAINDO DO ARMÁRIO
Gênero musical tradicionalmente machista abre espaço para a diversidade TEXTO: LUIZ FELIPE FERNANDEZ
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atural de Taboão da Serra, São Paulo, Rico Dalasam, 27 anos, é um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro. Mas não é apenas a qualidade da sua música que chama atenção. Rico é o primeiro rapper assumidamente gay. Nascido na periferia e único negro da escola particular que estudava, via o preconceito estampado no rosto dos colegas, mas nunca se deixou abalar. “Eu sofri por gostar de um menino e não contar para ele, eu sofri com isso. Mas no meu mundinho particular eu não tinha nenhum conflito, era cheio de certezas”. 10
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Basta olhar para o rapper, para perceber que ele sempre usou o armário de outra forma. Começou a trabalhar na adolescência, aos 13 anos, como assistente de cabeleireiro, e, mais tarde, tornou-se assistente do renomado maquiador Max Weber. São essas experiências que ajudam a compor o estilo “camaleônico” de Rico Dalasam. A inspiração ainda vem daquela época, modelos como Alek Wek e Naomi Campbel são referências até hoje. “Acho incrível a performance delas.” São esses ingredientes que compõem o estilo irreverente do artista. Sob influência do irmão e de
um amigo, conheceu as obras de Lauryn Hill, Notorius Big e outros grandes do rap e enxergou a possibilidade de ser ouvido mesmo num dos ambientes mais hostis aos gays. “O rap sempre foi representado por homem. Homem heterossexual. Eu enxergo muito isso no rap. Inclusive usam sempre termos homofóbicos com intenção de ofender, de ganhar a disputa nas batalhas”, comenta o dj André Hulk. Mas para Dalasam a história foi diferente. Foi na “Batalha do Santa Cruz”, de onde saíram rappers como Emicida e Rashid, que ele deu os seus primeiros passos. “Tinha um es-
pírito de valorização ao outro muito grande, sabe? Havia um compartilhamento de autoestima por pessoas que não tinham nenhum recurso”, lembra. A propósito, Dalasam é um acróstico, Disponho Armas Libertárias a Sonhos Antes Mutilados, e ele fez das rimas as armas para se fazer respeitar em Santa Cruz. “Sempre foi um ambiente muito acolhedor pra mim, existia uma outra leitura sobre mim, que eu era um rapaz da moda (estudava moda na época), e nunca, mesmo que ficasse com algum menino, foi uma questão apontada por ninguém.” Depois de aparecer nas batalhas de rima, Rico lançou em 2014 o single “Aceite-C”, do EP “Modo Diverso”. Em pouco tempo a música viralizou na internet e hoje conta com mais de 400 mil visualizações no YouTube. Em seu trabalho, é forte a presença de uma linguagem original, que utiliza sempre jargões e palavras do universo pop, em contraste com as gírias da periferia de São Paulo. Em poucos anos de carreira, já acumula abertura de um show dos Racionais, apresentações fora do país e participação em música “Todo Dia” do artista Pablo Vittar. Dalasam faz parte de uma nova geração do rap que ganha visibilidade a partir da repercussão de Sulicído. A música de Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski faz uma forte crítica à centralização das atenções do rap na região sudeste e dos grupos da “moda”. “A música “Sulicídio” agitou a cena, vários artistas responderam com outras músicas, e fez com que os fãs fossem procurar novos mcs, instigou a escutar coisas diferentes”, comenta Pedro Enrique um dos criadores do site Rap071. Porém, Rico não se considera pertencente a este
movimento recente, nem ao estilo “queer rap” o qual lhe definiram. “Eu acredito muito em tudo que tá acontecendo agora, e com o rap existe uma nova safra, uma nova onda, chegando em um ponto de ebulição que vem desse lugar aí, Djonga, Bk, Baco. Eu acho mágico isso que tá acontecendo. Agora eu não aconteço nem em um lugar nem em outro, né? Parece que aconteço numa nuvem, porque eu transito no rap, transito em outras vertentes na música do Brasil e massa, mas não sou parte de uma crew nem nada, então pra mim é sempre um olhar de fora”. Um olhar de
sileira, mudou a letra da música “Vasilhame” por ter um trecho transfóbico. Nos versos “ó, os travecos tão ali, ó, alguém vai se iludir”, o termo “traveco” foi substituído por mundo. Para Pedro Enrique, o reconhecimento de Criolo e o sucesso de Rico são elementos que sinalizam a mudança de realidade no mundo e no rap. “O rap que sempre lutou contra o preconceito racial e de classe, hoje briga contra a homofobia, o machismo. A partir do momento que dentro do movimento você tem essa liberdade, a chance de nomes que vestem a luta se expressar, desconstruir os preconceitos, o rap alcança o seu maior propósito: levar uma mensagem de união a todos”.
fora, mas que está preocupado com essas temáticas. As letras de suas músicas são uma prova disso, a exemplo de “Aceite-C” que fala sobre aceitação. Essa é uma onda que afeta novos e antigos rappers. Recentemente, o rapper Criolo, um dos principais nomes da música braJUNHO 2017
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ENTREVISTA
Russo Passapusso TEXTO: ISAIAS GOTTLIEB BELTRÃO E LUAN GUIMARÃES BORGES
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em Raul, nem Gil, muito menos Tom. De Caetano a João Gilberto, não passamos nem perto. Dorival, tipo o Caymmi? Nem pensar. Podemos caminhar por inúmeras grandes personalidades baianas para tentar buscar o nome do feirense que levou milhares de pessoas ao Carnaval de Salvador com um som completamente experimental, mas jamais pensaríamos em buscar na lista dos presidentes norte-americanos: Roosevelt Ribeiro de Carvalho. A personificação da globalização. Não há nada mais nordestino. Tão difícil de pronunciar em Feira de Santana, que acabou virando Russo. Chegou a viver tempos tão difíceis quanto seu nome social instiga, mas a sabedoria do pai, de quem herdou a graça, e a força de vontade da mãe, fizeram com que o futuro fosse bem diferente. Apulso, agora, nada mais. A vontade de fazer e mostrar seu talento são o que importa. Conheça agora um pouco mais de Russo Passapusso, hoje cantor do Baiana System. Amanhã? A arte dirá.
Soul: Você é do interior da Bahia, tem uma história ligada à vida 12
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rural, mas ao mesmo tempo traz uma bagagem cultural muito ampla, de “vários mundos”. De onde vem essa influência? RUSSO PASSAPUSSO:Eu vim do interior. Nasci em Feira de Santana. Meu pai trabalhava na roça. Vendia banana, criava gado. Pouco gado. Era mais uma roça de banana mesmo. A vida era bem rural. Minha mãe era caixa de banco. Hoje ela é aposentada. Meu pai tinha uma fixação pela coisa da leitura, do estudo, e a gente acabava conseguindo levantar alguns troféus por causa desse hábito inteligente dele. Fazia isso para trazer e manter a lógica do trabalho e da dignidade muito firmes. A minha história veio dessas representações: uma família grande por parte de pai, em Feira de Santana; e a outra de Aracajú, por parte de mãe. O nome do meu pai é Roosevelt e o nome do irmão dele é Hitler. Existe toda uma estrutura diferenciada de nomes porque o meu avô trabalhava no DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem) e na época ouvia nas rádios alguns nomes das guerras e histórias. Eu vim para Salvador justamente por minha mãe querer dar um ensino melhor para os filhos.
Soul: Por que Russo Passapusso?
RUSSO: Meu nome é Roosevelt
também, como o do meu pai. Só que na época, escreveram o nome do meu pai com um “o” só. Escreveram errado. E o meu pai insistia, quando eu nasci, para escreverem o meu certo, com dois “os”. Então o meu nome foi escrito certo. Com isso, meu pai virou o “Sr. Rossi” e eu virei “Russo”, justamente pela dificuldade de se falar Roosevelt. O Passapusso coloquei porque eu já ouvia muito no interior essa história do menino que só passa apulso. Então é Russo Passapusso por isso.
Soul: Quando foi que você se des-
cobriu músico? RUSSO: Minha irmã era a cantora da família. Meu pai levava a minha irmã para as rádios para ela poder cantar, levava para a igreja... Quando eu fui para Salvador, já por volta dos 13, 14 anos, eu comecei a encontrar outra cultura: a cultura do samba-reggae, da música baiana. Tempos depois eu comecei a estudar comunicação; e dentro da comunicação eu encontrei um grupo que é apaixonado por rádio. Rádio universitária, rádio comunitária... A gente co-
meçou a visitar as rádios comunitárias de alguns lugares para fazer um programa e depois dessa fase eu encontrei um grupo que estava interessado em comprar caixas de som e discos de vinil. Eram amigos ali da Boca do Rio. Aí é que começa a criação dentro dessa história toda. Adquiri discos de música popular brasileira, trabalhei em um sebo de discos e estava muito próximo dessa cultura.
Soul: Quais são as suas referências
musicais? RUSSO: Minhas referências musicais são as músicas de interior. O repente, o forró, muito Fagner, Alcimar Monteiro, Gonzaga, Dominguinhos, o próprio Bule Bule, Jackson do Pandeiro, Zé Ramalho, As músicas do ambiente de igreja e as músicas de religião afro também. Quando eu ia para feira de Santana, na casa dos meus tios, eu ouvia muito por causa da dualidade de religiões que a gente sempre encontrava na família. Esse imaginário de música tradicional era o inicial.
Soul: Você tem influências no Hip
Hop ou no Rap? RUSSO: A coisa do Hip Hop, eu tenho muita base disso em cima do
canto falado. Não é uma coisa da cultura Hip Hop propriamente dita. Eu não tenho raiz no Rap. Eu sou urbano. Mas eu sou adepto do canto falado e sou apaixonado pela cultura jamaicana, que é onde começa toda essa influência do Hip Hop. É da Jamaica que nasce o experimentalismo dos scratches e do DJ. O DJ, na Jamaica, é o cara que fala, que apresenta os discos. Então eu comecei a perceber esses dois campos: o da música popular brasileira, com
instrumentos orgânicos, que é o trabalho do Paraíso da Miragem – álbum -, a coisa da experimentação da música, a ressignificação, e de arriscar em novos formatos, que é o Baiana System.
Soul: Baiana System é música al-
ternativa? Qual o conceito rítmico você dá a banda? RUSSO: Eu não vejo o Baiana como música alternativa. Não vejo música como alternativa. Eu vejo alternativa como músi-
“Eu não me considero nada para ser seguido, cara. Tem a arte. Eu acho que é a arte, não sou eu. Eu sou um instrumento de arte. Esse ego do artista na frente da arte não existe. Ser seguido? Não. Não mesmo. Acredito na música que se faz e que a pessoa se identifica com aquilo, naquele momento de vida, com aquela canção.”
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ca. Eu acredito muito que o comportamento é o que doutrina a música. É uma colcha de retalhos, um quebra cabeça. A coisa do experimentalismo, do sistema de som, da música jamaicana, foi o que abriu caminho para a gente. Isso tudo, enraizado com a iniciativa de Roberto Barreto, de colocar a guitarra baiana em um ambiente diferente. A gente não se comporta como uma banda. Não somos uma banda. Nós somos um assunto. Um assunto que é sempre dissecado, ressignificado, reiterado e reentendido para que a gente possa fazer as apresentações. Então para tentar definir esse trabalho que fazemos com o Baiana: é música experimental, em constante mudança. Salve, salve a Jamaica!
Soul:
O Baiana System já está consolidado, está em busca disso, ou é moda? RUSSO: A coisa de o Baiana ser moda... Hoje em dia a gente trabalha com a continuidade. Todas as nossas músicas tem mudas, sementes que a gente tira para fazer outras músicas. O que vai fazer o futuro e a compreensão de se é movimento, ou é moda, é lá no fim. A gente não rotula enquanto vive o processo. A gente quer saber lá na frente como é que vai ser. A gente procura estar sempre fazendo diferente do processo anterior para ter um aprendizado. Tentar não achar uma fórmula feita. E é o que está acontecendo atualmente.
Soul:
Você se considera um exemplo a ser seguido em algum aspecto? Existe uma noção do que você representa ou se representa algo para seus seguidores, sejam fãs ou músicos do mesmo viés? RUSSO: Não. Eu não me considero nada para ser seguido cara. Tem a arte. Eu acho que é a arte, não sou eu. Eu sou um instrumento de arte. Esse ego do artista na frente da arte não existe. Ser seguido? Não. Não mesmo. Acre14
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dito na música que se faz e que a pessoa se identifica com aquilo, naquele momento de vida, com aquela canção. Se elas vão mudar depois e não vão mais se identificar ou se é uma canção de amor e o cara não vai estar em tempos de amor... Essa vida mutante que a gente tem. As coisas que fazem muito sentido e, na virada dos tempos, já não fazem mais. Eu não sou um exemplo. O exemplo ele é. Esse caminho de celebridade, ou de exemplo, ou de marte, eu não acredito muito nisso nos nossos dias atuais. Antigamente a gente tinha esse retrato, mas hoje não.
a isso teve a questão do trabalho, que foi muito verdadeira. A gente estava totalmente imerso em uma história, de dar continuidade a ela, e de repente ganhamos, ficamos naquela, e quando vimos estávamos comemorando em casa.
Soul: Quem é Russo Passapusso?
RUSSO: Russo Passapusso acre-
dita na arte, na música, como Deus cultural, como um Deus que movimenta e muda a vida das pessoas. Como exemplo, como fé, o invisível, um circuito independente que luta para levar isso para um público cada
vez maior, de uma forma cada vez mais experimental, original, suscetível a erros, mas também à aprendizados e é esse caminho. Valorizo muito a história da arte. Não engulo a arte. Eu vivo ela, entendo ela e ela como um ser que eu agradeço todos os dias por ela empossar meu sentimento, intuição, relacionamento e essa história de vida que está acontecendo dentro desse nosso país com tantas dificuldades. Enxergo muito o micro, procuro olhar muito pra mim, entender e chorar pelos meus erros para poder alcançar uma situação de aprendizado.
Soul: Você arrastou milhares de
pessoas no Carnaval de Salvador, algo relativamente inédito para uma banda do estilo da Baiana System. Como foi isso? Qual foi a sensação? RUSSO: Alegria e identificação com as pessoas. A percepção de fazer parte de um mar de gente. Senti a responsabilidade com a música e tudo o que ela representa na nossa vida. Esse Carnaval que passou me ensinou muito. Gratidão!
Soul: Como foi a história do prê-
mio Multishow? Vocês realmente não acreditavam que venceriam? RUSSO: A questão do Multishow foi muito simples: a gente estava fazendo o clipe do invisível, louco pelo que tínhamos que traçar e projetar, e a gente não acreditava que ia ganhar, realmente. Eu sou apaixonado por Elza Soares. Todos do Baiana, eu acho. Estava torcendo muito pela Elza, para ela ganhar o melhor disco. Não que a gente não mereça. A gente trabalhou muito. Tem muito da nossa alma e do nosso sentimento ali. E com relação ao melhor show, acho demais. A gente está se entregando, dando a nossa vida quando vamos fazer um show. Eu disse que não fomos porque não acreditamos que iríamos ganhar, mas unido JUNHO 2017
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PERFIL
Projeto de Conclusão reúne três mulheres “focadas” na boemia do Rio Vermelho. TEXTO: DIDICA VASCONCELOS
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m projeto de Conclusão de Curso, três mulheres e a boemia soteropolitana. Um desafio a seis mãos que resultou na exposição fotográfica “Rio Vermelho, boemia por trás das lentes”. A exposição que traz um olhar diferenciado sobre a noite num dos bairros mais efervescentes da capital baiana. A Soul apresenta agora alguns destes clics e a história por trás de um trabalho de pesquisa de nove meses.
ANDRÉA SILVA
Conhecida pela agilidade, credibilidade e sensibilidade nas reportagens televisivas, Andréa Silva, 44 anos, natural de Itabuna, no sul do estado, tem duas décadas dedicadas à profissão de jornalista. Repórter da Rede Bahia, começou a atuar na área, quando ainda era estudante de 16
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letras vernáculas, com registro de radialista. Atualmente, faz as últimas disciplinas do curso de Jornalismo, na Faculdade Social da Bahia, estando a um passo de realizar o sonho de tornar-se jornalista. No ano passado, apresentou o Trabalho de Conclusão de Curso, mas, ao contrário do que muita gente esperava, ela deixou a zona de conforto e partiu para uma área onde ainda não tinha experiência, o fotojornalismo. Ao lado das colegas Irina Vieira e Mônica Carvalho, apresentou a exposição fotográfica “Rio Vermelho, boemia por trás das lentes” que traz como tema a tradicional boemia do bairro do Rio Vermelho. Para realizar o trabalho, Andréa Silva conta que uniu a admiração pelo fotojornalismo e pelo foto documentário com a paixão pela história do boêmio
bairro soteropolitano. Entre os desafios enfrentados, ela destaca o processo de apuração. “As poucas fontes e a falta de interesse por parte dos visitantes em dar entrevista nos trouxe muita preocupação”, confessa. Foram muitas idas e vindas ao bairro do Rio Vermelho durante a noite e, nessa fase, Andréa Silva conta que o apoio dos amigos foi fundamental. Foram nove meses de pesquisa, entrevistas, produção de fotos e texto que trouxeram como resultado final a aprovação e a aprendizagem. “O projeto acrescentou muito na minha vida por ter sido um desafio, prazeroso e fonte de conhecimento profissional para ser usado pela vida inteira”.
IRINA VIEIRA
Ela traz no sangue a profissão. Filha do editor e jornalis-
ta, Márcio Vieira, herdou dele a paixão pela comunicação. As leituras durante a infância e adolescência ajudaram a escolher, ainda quando estudante do primeiro ano do ensino médio, que caminho seguiria. Aos 27 anos, nascida em Salvador, gosta de escrever e contar histórias. Há quase dois anos, mantém o blog Noitada cultural onde fala sobre o que agita a noite na capital baiana. Irina já tinha o tema do projeto de conclusão de curso, mas precisaria dividir a tarefa com outra colega devido à quantidade de atividades para dar conta num curto espaço de tempo. Foi aí que decidiu convidar Andréa Silva que topou na hora. “Na matéria de TCC2, eu e Andréa lemos muito e escrevemos muito para ter base para fotografar. Entrevistamos Ubaldo Porto Filho, historiador, que nós deu suporte para sustentar nosso trabalho”. Foram nove messes de pesquisa que deram mais certeza do que queriam, no entanto,
perceberam que a ideia poderia crescer e a exposição fotográfica apresentar outros olhares além do das duas estudantes. Neste momento, o trabalha ganhou uma nova integrante.
MÔNICA CARVALHO
A terceira e última integrante é Mônica Carvalho, nascida em Salvador, sempre gostou de ler e escrever. A paixão pelas letras fez com que escolhesse a carreira. “Para mim o jornalismo era a única opção desejável em se tratando de curso superior”, comenta. No fechamento do curso, teve a ideia de fazer um livro sobre assessoria de imprensa, campo em que já atua há 12 anos. Sem conseguir conciliar trabalho, disciplinas e TCC, Mônica Carvalho decidiu abandonar a ideia inicial, foi quando surgiu o convite de Irina e Andréa. Para Mônica a maior dificuldade na execução do trabalho foi encontrar quem pudesse acompanhá-las nas “madrugadas fotográficas” pelo bairro
do Rio Vermelho. Ultrapassado esse obstáculo, surgiu o segundo: escrever o memorial a seis mãos. “Fazer toda a pesquisa do material e redigir o memorial deu trabalho, mas concluímos com prazer”, confessa. Para Monica, o TCC foi mais que uma atividade acadêmica. “Aprendi muito também sobre o trabalho em grupo. Foi uma experiência maravilhosa”.
COM A PALAVRA, O ORIENTADOR
Se para Andréa, Irina e Mônica o grande desafio foi dar vida ao projeto, para o professor de fotografia Paulo Munhoz, orientador do Trabalho de Conclusão de Curso, conseguir reunir as três estudantes era o mais complicado. “Elas se dedicavam, mas tinham trabalho e família para conciliar, mas, quando você orienta pessoas que querem realmente realizar, o resultado é gratificante. São pessoas inteligentes, então fomos modelando e no final deu tudo certo”. Mas para Munhoz, o trabalho não para por aqui. “Queria muito que elas levassem a exposição para o Rio Vermelho, acredito que as pessoas iriam gostar de se ver”. JUNHO 2017
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POLÍTICA
MAIS DIREITOS MENOS MACHISMO
O benefício da aposentadoria sofre mudanças. A base aliada de Temer vence disputa por 23 votos a 14 na Câmara dos Deputados. Projeto de Lei afeta, em especial, mulheres de todo o país. TEXTO: BÁRBARA CAROLINA AGUIAR
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ar conta da jornada de trabalho dentro e fora de casa, ainda faz parte da realidade de muitas mulheres brasileiras. Em contrapartida, para a maioria dos homens, a dupla jornada ainda é uma realidade distante. Além das rotinas distintas, outras diferenças sociais são percebidas nas relações homem e mulher como, por exemplo, no que diz respeito à carga horária de trabalho nas empresas. De acordo com dados do IBGE, divulgados em fevereiro deste ano, enquanto, em 2005, elas trabalhavam 6,9 horas a mais por semana, em 2015, a diferença cresceu para 7,5 horas. Outro estudo, realizado, em 2016, pelo Fórum Econômico Mundial, aponta que a participação econômica e as oportunidades das mulheres equivalem a menos de dois terços das dos homens. Para acabar com a diferença, no ritmo anual, seriam necessários 170 anos. O projeto que orientou, no período da redemocratização no Brasil, a diferenciação da idade mínima de aposentadoria para mulheres e homens, considerou, como política de equidade, a realidade de que mulheres são submetidas
“As mulheres são mais atingidas pela informalidade”.
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a muito mais h o r a s de trabalho doméstico não remunerado - a exemplo da manutenção da casa e dos cuidados com os filhos - do que os homens e por essa razão foi reconhecido o direito femini-
no à idade mínima mais baixa na Constituição de 1988. Apesar de todos os estudos sociais acerca do tema apontando para crescimento das demandas femininas, o relator da Reforma da Previdência, deputado estadual Arthur Maia (PPS-BA) não considerou
as disparidades de gênero e, no caso das mulheres, a divisão sexual do trabalho, em que elas assumem grande parte dos afazeres domésticos, e criou uma proposta que estabelece idade mínima para aposentadoria de 65 anos para homens e de 62 para as mulheres exigindo ainda pelo menos 25 anos de tempo de contribuição. O principal argumento utilizado pelos parlamentares da Câmara dos Deputados que aprovaram a proposta do dia 03 de maio de 2017 foi equilibrar as contas da Previdência. Eles alegaram que as mulheres vivem mais que os homens e, portanto, recebem o benefício por mais tempo, apesar de contribuírem menos. Ao todo, foram 23 votos favoráveis e 14 contra a mudança. “Ao elevar a idade mínima para aposentadoria da mulher, o governo desconsidera que existe uma desigualdade nas relações de trabalho no Brasil. Além de ganharem menos, as mulheres são as principais responsáveis, ainda hoje, por atribuições do lar e questões que envolvem a vida privada. Como, por exemplo, quando há um familiar que necessite de cuidados especiais, elas são as primeiras a se afastar do emprego”, comenta Augusto Vasconcelos, advogado previdenciário e professor universitário. É o caso da dona de casa Vanine Tourinho Andrade, 35 anos, que se afastou do emprego, em 2013, após descobrir que o filho tinha autismo. Para ela, a decisão de abandonar o emprego foi difícil. “Eram empresas que eu gostava de trabalhar, porém, sabia que meu filho precisava de cuidados especiais 24h. Naquele contexto, infelizmente, não tinha como eu dar conta da casa, do meu filho e ainda trabalhar fora. Tudo foi conversado com meu marido também, que concordou”, recorda. As mulheres trabalham de modo não remunerado mais que
o dobro dos homens quando os dados são medidos pela jornada semanal média. São 20,6 horas, por semana, lavando, passando, limpando, cozinhando, cuidando de filhos, enquanto a população masculina gasta 9,8 horas em média para as mesmas tarefas. A soma da jornada de trabalho pago com a jornada de trabalho não pago entre as mulheres é de 56,4 horas por semana; ao mesmo tempo, a dos homens é aproximadamente cinco horas menor. Nos lares em que os homens ocupados, com mais de 16 anos, ajudam ou precisam realizar as tarefas domésticas, dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), de 2014, apontam que a estatística é de 46%, enquanto o índice no caso das mulheres dentro das mesmas condições chega a 88%. Para Alda Valéria, diretora do Departamento de Gênero do Sindicato dos Bancários da Bahia, as mulheres arcam com o trabalho doméstico, o cuidado com as crianças, com os idosos e não são valorizadas, tampouco remuneradas. As mulheres são mais atingidas pela informalidade, fazendo com que elas tenham mais dificuldade de acessar o mercado formal
e, portanto, mais dificuldade de acumular os anos de contribuição. Deste modo, para conseguir a aposentaria seria necessário colaborar mensalmente com a previdência, mesmo sem ter renda mensal. Na casa da publicitária Nirlândia Nunes de Carvalho, 30 anos, as tarefas são divididas, porém, não igualmente. “Antes do nascimento da nossa filha, eu trabalhava fora e meu marido colaborava em casa. Porém, a maior parte das tarefas ficava comigo. A partir de 2016, quando Valentina nasceu, saí do trabalho e tudo ficou por minha conta. Agora ele ajuda durante os finais de semana, ficando a maior parte do tempo desse período cuidando do bebê”, pontua a publicitária. Para Augusto Vasconcelos, o machismo ainda predomina a sociedade brasileira, cega o entendimento de que as mulheres, muitas vezes, têm mais dificuldades em contribuir mês a mês. Ele diz ainda que à medida que se eleva a idade mínima para a mulher se aposentar, penaliza grande parte das mulheres trabalhadoras do país, que podem jamais conquistar o direito à aposentadoria. “A igualdade de gênero deve ser algo central para se alcançar a emancipação humana”, finaliza. JUNHO 2017
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TECNOLOGIA
CONHEÇA
6 S I T E S
CO M UTI LI DA D E S E RE F LE XÕ E S SOBRE
D I V E R S I D A D E Texto: VANESSA BRUNT E PABLO RODRIGUES
A internet não é terra de ninguém ou é terra de todos nós? O universo das navegações tem ancorado barcos nas mais diversas temáticas e sido um grande
EGALITÊ Destinado para a inclusão de pessoas com deficiências no mercado de trabalho brasileiro, o site disponibiliza um banco de dados com vagas de empregos direcionados a essa parcela da sociedade. O endereço vitual ainda oferece cursos gratuitos para o seu público alvo. Os cursos são viabilizados em formato de vídeos e abrangem suportes para entrevistas, técnicas profissionais e afins. Além disso, o portal ainda possibilita o acesso a um blog com dicas diversas e relatos inspiradores. Downloads de materiais educativos, como e-books completos e gratuitos, também são fornecidos no site. 20
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protagonista nas lutas pelo respeito às diversidades. Debates e informações se compilam em sites repletos de utilidades cada vez mais práticas para deficien-
VIAJAY Fernando Sandes é um baiano apaixonado por viagens e por traduzir a tecnologia em impactos sociais. Através das vertentes, o jovem criou o site Viajay, que reúne dicas de turismo LGBT em cidades brasileiras. As indicações formulam roteiros com dicas diversificadas e descrições opinativas. Ao longo do tempo, dicas internacionais também foram incluídas. No fim da página ainda é possível encontrar notícias mundiais que interessam ao público alvo. O projeto, que possibilita amizades no clube criado, já possui raízes em mais de dez capitais e deve se tornar também aplicativo em breve.
tes, gays, negros, mulheres e muitos dos iguais diferentes, que merecem tratamentos de mesma estima. Confira os seis destaques desta edição:
AZMINA AzMina é uma revista mensal online e gratuita. As publicações contêm jornalismo investigativo, sem presença de anunciantes. Entre os objetivos, destaca-se o de fomentar e elucidar temas usualmente “esquecidos” pela imprensa brasileira em relação às mulheres. As editoriais são diversas e vão desde um novo conceito da categoria de Beleza até questões sexuais. Além das reportagens e de histórias motivacionais, a iniciativa contempla criações de debates, palestras, oficinas, parcerias com pequenas empresárias e projetos de apoio psicológico feitos pela organização.
RAZÕES PARA ACREDITAR
DESABAFO SOCIAL
INSPIRADOS PELO AUTISMO
Agência de conteúdo humanizado e transformador, o Razões Para Acreditar é o maior site de notícias positivas do país. O propósito principal do projeto é informar enquanto amplia a esperança de um mundo mais respeitoso através de inspirações. Além de temáticas como “Arte”, “Gentilezas”, “Educação” e “Animais”, o portal ainda abrange a categoria “Representatividade”, que aborda gênero e diversidade em variadas e incentivadoras histórias. O Razões encontrou o seu público e espaço depois de uma parceria com o portal Hypeness, que agrega temáticas semelhantes.
O Desabafo Social atua na área de Direitos Humanos da Criança e do Jovem, Comunicação e Educação. O Desabafo busca maneiras de quebrar preconceitos através da criação de espaços para debates, envolvendo escolas, comunidades e instituições para promover a cultura dos direitos humanos.O site estimula o envolvimento dos jovens em causas sociais, além de apoiar o desenvolvimento e a criação de novas iniciativas concebidas pelo público. A proposta disponibiliza consultorias e contém ainda um blog, que divulga cursos, projetos empreendedores, eventos culturais e muito mais.
A Inspirados pelo Autismo é uma instituição brasileira que oferece aos pais e profissionais novos olhares sobre o tema. A abordagem é responsiva, interacionista e motivacional e propõe o desenvolvimento das habilidades sociais das pessoas com autismo através de interações prazerosas. Na plataforma é possível encontrar divulgações de cursos, consultorias e livros sobre a temática, além de um blog com depoimentos inspiradores. Vídeos, artigos e outros formatos compõem as sugestões de atividades lúdicas que também fazem parte da composição. Uma loja virtual é disponibilizada.
DICAS
S A R T EX
• Duas dicas extras ficam como somas para a lista. O Transerviços é um site que agrega oportunidades de empregos para transexuais e travestis e esclarece onde é possível encontrar trabalhos oferecidos por eles e elas. Se você é trans ou travesti e oferece algum tipo de serviço, basta se cadastrar no endereço para divulgar seu trabalho. E caso conheça algum profissional ou serviço que atenda a população trans sem preconceito, como escolas, hospitais e outras organizações, é fácil ajudar indicando os contatos no portal.
• Como dica final, fica o site Crônicas da Surdez. O portal que virou livro aborda importantes e curiosas temáticas sobre surdez, aparelhos auditivos e implante coclear. Seu conteúdo traz histórias de experiências de vida, dicas de como utilizar o aparelho auditivo, o avanço da tecnologia no tema, além informações sobre cirurgias e métodos utilizados para facilitar a vida de pessoas com deficiência auditiva. As postagens também focam naqueles que desejam dar suporte a indivíduos surdos. JUNHO 2017
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COMPORTAMENTO
Além do feminino e masculino: Conheça as 56 identidades de gênero Considerado o terceiro gênero, o não binarismo acompanha gerações e vem ganhando espaço de fala na mídia.
TEXTO: BIANCA ANDRADE
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ntre atualizações de status, lives, gifs e novos emojis, uma das mudanças do Facebook deixou os internautas com uma pulga atrás da orelha. Ou melhor, 56 pulgas. Durante 11 anos, a rede social disponibilizava apenas duas opções para seus usuários se identificarem de acordo com o gênero: homem ou mulher. Após alguns estudos feitos por Brielle Harrison, engenheira de software do Facebook, que passava por uma transição de gênero, em 2014, e percebeu a necessidade dos usuários em se sentirem representados nas redes sociais, outras 54 identidades de gênero foram adicionadas na rede social. Para os usuários brasileiros, a novidade chegou um ano depois e com 17 gêneros disponíveis, sendo elas os gêneros binários (feminino e masculino) e os não binários (trans homem, trans mulher, travesti, trangênero, homem transexual, pessoa trans, mulher transexual, pessoa transexual mulher (trans), homem (trans), neutro, sem gênero, cross gender, mft - homem que está em transição para o gêne22
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ro feminino -, ftm - mulher que está em transição para o gênero masculino. A lista parece grande, mas de acordo com pesquisadora e Mestra em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulher, Gênero e Feminismo, na Universidade Federal da Bahia, Natália Silveira, este universo abrange muitas outras identidades, que não são conhecidas pela sociedade por conta da falta de espaço de fala. Com o crescimento do debate sobre a sexualidade e as questões de gênero nos meios de comunicação, a população vem conhecendo por meio de abordagens leves e
descontraídas de alguns programas de TV, como o ‘Amor & Sexo’ (Globo) e Liberdade de Gênero (GNT), as outras 39 identidades ainda pouco exploradas e, entre essas identidades, o gênero não binário vem ganhando um maior destaque na mídia nacional. Com apenas 20 anos, Liniker de Barros Ferreia Campos, ou apenas Liniker, trouxe para a grande mídia o debate sobre as questões de gênero, primeiro através dos seus clipes no Youtube que reúnem mais de 8 milhões de visualizações, e do seu forte debate de aceitação depois com a
Vídeo: Zero – Liniker
presença em programas de TV aberta e fechada. Sua aparência, que a princípio costuma causar estranhamento para quem não tem contato direto com pessoas do gênero não binário, é composta por saia, brincos, batom, colar, turbante e bigode. O comportamento de Liniker remete a outras personalidades brasileiras que também costumam se apresentar desta forma para a sociedade, a exemplo do sul-mato-grossense Ney Matogrosso, que desde as suas primeiras apresentações ao lado do grupo ‘Secos e Molhados’, fazia questão de desafiar a ideia do gênero binário e não binário, como expõe no documentário ‘De Gravata e Unha Vermelha’, da cineasta e psicanalista Miriam Chnaiderman, de 2015. Mas afinal, o que é o gênero não binário? Natália Silveira diz que o termo existe para desmitificar a ideia de que só existe o feminino e o masculino. “Seriam as pessoas que não vão se identificar com o parâmetro fixo e acabado de ser ou não ser homem ou mulher. Vão ficar nesse “entre” o tempo todo e vão assim construir e reconstruir as suas identidades”, define a pesquisadora.
“Não se deve tratar as questões que falam sobre gêneros como se fosse falar sobre os anéis de saturno. Quanto mais naturalidade e informação sobre esse assunto, mais rápido haverá um entendimento da sociedade de que as pessoas devem ser respeitadas e ponto”, defende o jornalista Jorge Gauthier, criador e editor do canal Me Salte, do jornal Correio*
De acordo com o mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, psicólogo e membro do grupo de pesquisa: Cultura e Sexualidade (CUS/UFBA), Gilmaro Nogueira, o indivíduo não binário mistura um pouco dos considerados es-
tereótipos dos gêneros feminino e masculino na descoberta da sua identidade. “É o tipo de gênero vivenciado por pessoas que não se adequam ao masculino ou feminino, isto é, embaralham os estereótipos de gênero. As pessoas que vivenciam gênero não-biJUNHO 2017
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nário geralmente se apresentam finalmente me libertar com características sociais de e entender que o meu ambos os gêneros”, aponta. comportamento não tiA exemplo de Camila, (nome nha nada a ver com quem fictício para preservar a identi- eu queria ficar”. dade), 18 anos. Esmaltes, batons, Mesmo com a definibrincos e pulseiras nunca fo- ção de gênero, ainda há ram os acessórios pre- quem confunda identiferidos da jovem, que dade de gênero (bináatualmente se con- rio ou não binário) com sidera não binária. A orientação sexual (heteestudante revela que rossexual, homossexual, levou um tempo até assexual, bissexual ou conseguir definir a sua pansexual). identidade de gênero. A dúvida é bastante “Eu não conseguia comum entre as pessoas me identificar com as que têm o primeiro conmeninas da minha tato com o assunto e até sala, não sentava entre pessoas que já estão para conversar nem inseridas no universo de conseguia ter uma gênero. Natália Silveira relação amistosa. usa a metáfora do espelho Meu ensino médio para diferenciar a identifoi bastante difícil dade de gênero de orienporque não conse- tação sexual, que nada guia entender quem mais é do que a forma eu realmente era”, como nos enxergamos conta. versus o nosso desejo carA aceitação veio nal. “Identidade de gênede forma gradativa ro é eu olhar para o espepara a jovem. Ca- lho e me identificar com mila diz que con- referências que vão dizer tou com o apoio pra mim mesmo que sou de alguns amigos e alguém masculino, femio acompanhamento de uma nino ou nenhum dos dois psicóloga para tentar enten- e vivenciar isso cotidiader o que estava acontecendo namente. Já orientação com ela. “Eu nunca tinha tido sexual é quem eu desejo”, contato com esse universo afirma. da identidade de gênero. Pra Para Gilmaro Nogueimim era invenção da minha ra, a identidade de gênero cabeça, sabe? Durante um está ligada a vivência do tempo cheguei a confunindivíduo e independe da dir isso com minha genitália. Exemplo, orientação sexual e um sujeito pode ter me isolei de alguns um pênis e se idengarotos que gostava tificar como muna época por achar lher. “Diz respeito que era gay, mas deà experiência subpois de alguns enjetiva do sujeito, contros com a micomo homem nha psicóloga, que ou mulher, Conheça todas me ajudou a enque indepenas identidades tender todo esse de das genitánão binárias. universo, além lias, isto é, um [LINK] de me apresentar sujeito com grupos de apoio nas pênis pode ter redes sociais eu pude uma identidade 24
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FOTO: LELAND BOBBÉ
de homem ou de mulher, pois a genitália não define a identidade de gênero”, aponta o psicólogo. Fato este que segundo a pesquisadora Natália Silveira é comum acontecer na sociedade, já que o desejo sexual não esta ligado com o órgão reprodutor que o indivíduo possui e sim com a psique. “Ainda é difícil as pessoas aceitarem que existem homens trans que são gays. É muito comum a gente ouvir: ‘Ah! E porque não continuou sendo mulher? É porque identidade de gênero não tem nada a ver com orientação sexual mesmo. Ambas são autorreconhecimento, mas são instâncias distintas de autorreconhecimento”, esclarece. Apesar das dúvidas e confusões acerca do assunto, Natália Silveira pontua a importância de debater as questões de gênero na sociedade. “Quando eu não conto para as pessoas que existem várias formas de existir no mundo, as pessoas vão acreditar que só existem apenas formas restritas de existir. Não é que hoje esteja na moda as pessoas se assumirem trans, é que agora o assunto tem ganhado mais visibilidade na mídia”. O pesquisador em Cultura e Sexualidade, Gilmaro Nogueira, ainda ressalta a importância
da difusão do assunto no meio acadêmico, onde as ideias começam a ser formadas. “O debate sobre gênero nas escolas é importante para produzir uma sociedade mais justa, que se paute pela igualdade entre mulheres e homens e que respeite outras identidades de gênero, como por exemplo, das pessoas transexuais, que comumente são expulsas da escola pelo preconceito”. Criador e editor do Me Salte, primeiro canal voltado para o público LGBT (Lesbicas, Gay, Bissexuais e Transexuais) hospedado no site do jornal Correio*, o jornalista Jorge Gauthier conta que o empoderamento foi fundamental para que as questões de gênero viessem a ser abordadas na mídia. “As questões que envolvem as identidades de gênero foram, por muitos anos, colocadas debaixo dos tapetes da sociedade e consequentemente não ganhavam espaço nas mídias. Hoje, com o constante empoderamento das pessoas com as suas identidades, isso tem forçado a mídia a falar sobre esses temas. Abrir espaços para esses temas é importante para que haja mais respeito às pessoas e suas identidades”, diz. Com mais de quatro milhões de views em seu canal, marca atingida logo nos primeiros seis meses de existência do portal, o jornalista que discursa para o grande público LGBT através das suas reportagens no Me Salte, afirma que a identidade de gênero deve ser abordada pelos meios especializados e não especializados de forma natural. “Não se deve tratar as questões que falam sobre gêneros como se fosse falar sobre os anéis de saturno. Quanto mais naturalidade e informação sobre esse assunto mais rápido haverá um entendimento da sociedade de que as pessoas devem ser respeitadas e ponto”. Para Natália Silveira, esta visibilidade proporcionada pela grande mídia colabora para que as pessoas não binárias tenham
a sua existência reconhecida e a sua expectativa de vida um pouco maior do que era 50 anos atrás. “Hoje uma série de identidades está saindo dessa invisibilidade porque o debate tem emergido no Brasil e contribui para que essas pessoas possam ter a sua existência reconhecida. E qual a importância de ter a sua existência reconhecida? Ela é menos “matável” e mais reconhecida como gente”.
PARA ASSISTIR
Liberdade de Gênero, João Jardim, 2016 (GNT): a série traz 14 histórias, em 10 episódios, de pessoas que viram suas vidas serem transformadas ao aceitar e mostrar para o mundo a sua verdadeira identidade de gênero.
De gravata e unha vermelha, Miriam Chnaiderman, 2015: O documentário brasileiro traz entrevistas com diversas personalidades que, em suas histórias de vida, colocaram em perspectiva o modelo de identificação binário homem/mulher, e questionaram os estereótipos construídos para cada um dos sexos. São entrevistados o cantor Ney Matogrosso, a cartunista Laerte, a atriz Rogéria e o estilista Johnny Luxo, entre outros. JUNHO 2017
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CIDADE
VA DE bike ! Como tornar Salvador mais atrativa ao ciclismo. TEXTO: EDIELSON SILVA
assim começou... Desde pequeno, Daniel Bagdeve saía de bicicleta, pelo bairro da Federação, para a casa de sua avó. Cresceu utilizando o veículo para transitar pela cidade. Nunca se envolveu em um acidente de trânsito, mas nem por isso acredita que Salvador seja um lugar seguro para ciclistas. A percepção de Bagdeve pode ser comprovada por números. De acordo com os dados da Transalvador, nos últimos dois anos, 272 ciclistas foram vítimas de acidente no trânsito, sete morreram. O administrador Daniel Bagdeve é um dos coordenadores do projeto Bike Anjo, que incentiva o uso de bicicletas como meio de transporte, mas ao mesmo tempo cobra da administração local condições para isso. Quarta maior capital do país, com cerca de 2,9 milhões de habitantes, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa), Salvador também ocupa a quarta posição entre as maiores estruturas de ciclovias no Brasil, com aproximadamente 204 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas. Isso corresponde a cerca de 2% da malha viária da cidade. Há quatro anos, a capital baiana vem passando por um processo de requalificação e ganhando novas vias para ciclista, mas boa parte destas vias está na orla da capital. “Isso não facilita o deslocamento das
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pessoas para o trabalho ou para resolver problemas dentro da área comercial da cidade, obrigando os ciclistas a saírem das ciclovias”, reclama Bagdeve. No entanto, com as mudanças no trânsito houve uma redução de aproximadamente 10% no número de acidente de 2015 para 2016. Além da questão da mobilidade, os ciclistas enfrentam outro problema, a educação no trânsito. “Existem motoristas que não respeitam as ciclovias e os ciclistas, causando acidentes e até mortes”, reclama o analista de sistemas Antônio da Silva que também atua na coordenação do Bike Anjos. Fábio Castro, 37, há 11 anos pedala pelas ruas de Salvador, e já foi vítima de motorista desatento. “Teve uma vez que um carro não respeitou o limite de 1,5 metros, previsto no código de trânsito. Acabei me chocando contra o carro”, conta. O acidente não deixou feridos, mas gerou uma grande discussão no meio do trânsito entre motorista e ciclista. As empresas de ônibus e a prefeitura têm tentado resolver este problema. Cerca de 2500
motoristas de ônibus e táxi foram capacitados para saber como agir diante dos ciclistas. Existem ainda campanhas de conscientização feitas pela Saltur por meio das redes sociais. No entanto, existem medidas que o ciclista pode tomar para prevenir acidentes. “Fazer ser visto, chamar a atenção do motorista de alguma maneira fazendo contato visual, fazendo sinal com os braços e usar sinalizadores quando preciso”, explica Bagdeve.
SUSTENTÁVEIS Operado pela empresa Tembeci, o Bike Salvador é um projeto de sustentabilidade que tem o objetivo de solucionar problemas de mobilidade mostrando que a bicicleta é um meio de transporte econômico,
sustentável e não traz danos para a cidade. No total são 40 estações espalhadas pela cidade, principalmente na orla. O credenciamento anual ao serviço é feito com apenas R$ 10,00.
FOLGA
Em vigência desde fevereiro deste ano, um projeto criado pela Secretaria de Cidade Sustentável e Inovação (Secis), oferece um dia de folga ao
funcionário da secretaria que usar a bicicleta para chegar e sair do trabalho durante 15 dias. Além dos benefícios que a saúde, a sustentabilidade também está sendo levada em conta. A Secretaria Municipal de Gestão (Semge) está analisando o projeto para estender a toda classe de funcionários públicos municipais.
ANJOS
Apesar de existir uma quantidade expressiva de pessoas
que usam bicicletas em Salvador, outras não sabem como pedalar e muitas têm receio de andar de bike sem um grupo de ciclistas para se sentirem mais seguras. O projeto EBA, Escola Bike Anjo, tem uma plataforma na internet que permite que qualquer interessado solicite ajuda para aprender a pedalar, a planejar roteiros e o acompanhamento de rotas. O trabalho é todo desenvolvido por voluntários.
“De acordo com os dados da Transalvador, nos últimos dois anos, 272 ciclistas foram vítimas de acidente no trânsito, sete morreram. ”
BIKE ANJO
BIKE SALVADOR
QUANDO ACONTECE Segundo domingo do mês na Orla de Piatã, em frente ao mercado Atakarejo. Último domingo do mês no Campo Grande, em frente ao Teatro Castro Alves. HORÁRIO A partir das 8 horas.
ONDE ENCONTRAR? 40 Pontos espalhados pela cidade (principalmente na orla) COMO FUNCIONA? Taxa anual de R$ 10,00
www.bikeanjo.com.br
www.bikesalvador.com
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ENTREVISTA
PUT TA , um documentário
Vídeo traz um novo olhar sobre o universo da prostituição. TEXTO: ADRIANE PRIMO
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s frases acima resumem como Pantera, Diva Santos e Xayenne Prado passaram a se prostituir. A primeira, uma mulher cis, que após ser estuprada e sofrer com o machismo do pai foi levada para um bordel aos 13 anos. As duas últimas, mulheres trans que foram postas nas ruas ao assumir sua identidade de gênero para a família, sendo vítimas de cafetões e cafetinas. Essas três histórias dão vida ao documentário Putta. Resultado de um Trabalho de Conclusão de Curso de Audiovisual da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). O filme, de 28 minutos, resgata algo que foi tirado por 28
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muito tempo das prostitutas: a voz. Contando assim, as histórias soam tristes. E são. Pois refletem uma construção social equivocada acerca do que é ser mulher, trans e puta. Entretanto, o documentário não explora as condições que as levaram até ali, essas são memórias trazidas pelas personagens. São as histórias de vida de cada uma delas. Assim como você tem a sua e eu tenho a minha. Em Putta, ser puta é detalhe. O que você vai ver e ouvir
são narrativas de mulheres, que em vez de usar um computador, uma vassoura, uma câmera fotográfica ou um veículo como ferramenta de trabalho, usam o corpo. É essa humanização que faz Putta ser um filme necessário para que a sociedade olhe para a prostituição como uma atividade que precisa ser discutida com seriedade. Afinal, estamos falando de uma das profissões mais antigas do mundo e que até o ano de 2012 reunia mais de 40 milhões de pessoas em todo o globo, segundo Relatório Mundial sobre a Exploração Sexual, da fundação francesa Scelles.
“Eu não conheço minha mãe. Meu pai foi preso e eu morei um tempo com meu avô, mas a mulher dele me colocou em um abrigo”.
Xayenne
“Meu pai jogou uma cadeira de madeira na minha testa, então minha avó me deu R$20 reais e disse pra eu seguir minha vida”.
Diva
“Meu pai não acreditou quando eu contei que tinha sido estuprada. Então minha mãe deixou uma mulher me levar”.
Pantera Sob direção da mineira Lílian de Alcântara, que junto com seus parceiros Adriano Sousa (direção de som), Adolfo Delvalle (direção de entrevistadas e produção), Atilio Gazola (assistência de som), Atilon Lima (direção de fotografia), Camila Larroca (direção de arte e produção), Camila Vital (produção) e Luiz Todeschini (câmera), Putta, além de dá voz ativa a três prostitutas de Foz do Iguaçu, reacende debates sobre machismo, violência contra mu-
lher, transfobia, prostituição infantil e, claro, as nuances que permeiam o universo feminista. O filme já passou por festivais em São Paulo, Minas Gerais, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Argentina, Colômbia, Portugal, Chile e Guatemala. Foi premiado na Romênia como melhor documentário do mês de maio de 2016, pelo Months Film Festival, evento de cinema on-line internacional que premia as melhores produções do ano. Nessa entrevista, a diretora
Lílian Alcântara conta como foi o processo criativo do filme, ressaltando a necessidade do tema ser tratado de forma mais ampliada e livre de tabus. Soul – Lílian, você já tinha abordado o tema prostituição anteriormente em um trabalho de monografia já com outra perspectiva, pois buscava discutir como as profissionais do sexo eram retratadas no cinema. Por que você voltou ao tema? LÍLIAN – O pulo de um trabalho para o outro foi uma consequJUNHO 2017
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me toda nossa pesquisa foi direcionada a vários países da América Latina, nossas referências estéticas vêm de distintos países, mas principalmente a forma de lidar com o outro, para quem não convive há tantos anos com “os seus” é muito diferente. Isso é um avanço quando vamos falar de um tema tabu, porque a diferenciação de nós e do outro, ou da equipe e das prostitutas, no caso, é algo que jamais faríamos, isso é o que gera um diálogo tão honesto e tanta confidência no set de filmagens.
Lílian Alcântara, diretora.
ência inevitável. A questão para mim é que a imagem da mulher no audiovisual segue estereótipos e arquétipos muito estreitos, as ficções são conduzidas a designar dois tipos de mulheres: donas de casas/mães perfeitas e putas, sejam estas de profissão ou mulheres de “atitudes vulgares”. Por isso, na minha monografia decidi trabalhar o arquétipo da prostituta. Foi muito difícil fazer um recorte sobre isso, porque a intenção era mesmo discutir como o cinema alimenta o imaginário binário de “mulher” ou “puta”, inclusive como se puta nem fosse mulher. Ao longo da pesquisa acabei me deparando com um movimento muito organizado, questões muito mais profundas do que eu estava preparada para entender sobre o mundo da prostituição, e por isso terminei desviando um pouco da ideia inicial para fazer uma crítica ao cinema – como instituição – pois, mesmo quando se tenta ser feminista (ao falar de prostitutas), não se escutam as prostitutas, fala-se delas sem lhes dar voz, criam-se personagens ficcionais baseando-se em notícias de jornal, em histórias rasas, ou em imaginação mesmo. As prostitutas dos filmes nunca se organizam, seja para distribuir camisinha ou discutir o papel delas e seus direitos, para se defenderem (enquanto mulheres) e isso é muito gra30
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ve, pois estamos avançando nas discussões sobre o papel da mulher no cinema, mas mantemos a mesma divisão entre mulheres e prostitutas. A partir desta crítica é que me senti motivada a fazer eu mesma um filme sobre pros-
É preciso quebrar todos os tabus sobre mulheres prostitutas t i t u t a s , n ã o sobre prostituição, mas sobre mulheres, que ao invés de trabalharem com uma câmera ou um computador, trabalham com sexo. É preciso quebrar todos os tabus sobre mulheres prostitutas, antes de falarmos da prostituição como um sistema que inclui clientes, cafetões, e por onde permeiam crimes contra a mulher.
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– Cada componente é de uma região diferente do Brasil e de outros países também. Essa diversidade cultural deu volume referencial para a abordagem do tema? LÍLIAN – Quando fomos fazer o fil-
Soul – A percepção de vocês acer-
ca do assunto foram quebradas – ou reconstruídas – ao longo do processo? LÍLIAN – Antes do filme, a maioria da equipe não conhecia a história de uma prostituta, não tão a fundo, e é claro, ouvi-las e abraçá-las faz com que tudo aquilo que me propus a pensar deste minha monografia se tornasse algo sólido. Não é uma questão da imagem da mulher, é uma vida, o cotidiano de alguém, a história inteira, não dá pra simplesmente pensar o que achamos ou não achamos da prostituição, ela é real, e precisa ser retratada e entendida, antes de discutida.
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– O nome “Putta” faz referência a mitologia romana – o que vocês fizeram questão de deixar claro no doc. Quais os reais critérios para escolha do nome, visto que esta ainda é uma palavra de conotação pejorativa? LÍLIAN – Dar título para projetos é sempre um desafio, a primeira coisa que alguém vai saber do filme é o nome, então essa escolha era muito importante, buscávamos um nome sucinto, que revelasse o sentido do filme de cara. No processo de pesquisa discutimos muito desde as perspectivas da Gabriela Leite, prostituta, ativista, que fundou a organização na-
cional de prostitutas no Brasil, um resumo válido da obra dela é que ela não quer mudar nada na prostituição, ela não quer falar de trabalhadoras sexuais, o nome é “puta”, e deve ser usado. Não é para tirar ninguém da prostituição, com pena e vitimismo, é criar um ambiente de trabalho possível e honesto para quem quiser trabalhar como prostituta, ou precisar, porque claro, trabalho é algo que a gente precisa, não é hobby e lazer. Então pesquisamos de onde vinha a palavra puta e descobrimos essa história incrível da mitologia, e que putta, vem de rapariga, quenga, piriguete… são palavras que podem designar “moça, menina, garota” e em outro lugar significa prostituta, ou seja, as palavras para prostituta são as mesmas que para mulher, isso une as mulheres em um só grupo e quebra a divisão de “mulher” e “prostituta” que desde o início estávamos tentando explicar, além do mais, quando inserimos o segundo t: Putta, gera uma intriga “porque dois t”? Então o espectador já vai para o filme sabendo que é sobre putas, mas querendo entender o segundo t! Parece que funcionou.
Soul – Vocês trazem uma mulher
cis e duas mulheres trans para a frente da câmera. Com isso vocês quiseram ampliar o debate? LÍLIAN – Na verdade, a gente ia trabalhar só com mulheres cisgênero porque o tema já era muito amplo, incluir as discussões de gênero, para um curta-metra-
gem – de primeira viagem ainda – era muito pretensioso, mas as personagens vieram, nós não tivemos escolha. Buscamos muitas mulheres, mas todas elas desapareciam de alguma forma, decidiam não participar, foi quando o Adolfo (encarregado pelo elenco) nos apresentou a Diva, nós não tivemos dúvidas de que ela deveria estar no filme e tudo que tínhamos planejado a respeito disso deixamos para trás. Em seguida apareceu Xayenne, que já era uma amiga, frequentadora dos mesmos espaços que os estudantes, e por último, é que encontramos uma mulher cis. Por pouco o documentário não foi só com mulheres trans! E depois que começamos as entrevistas não pensamos mais nisso, estávamos tratando de três prostitutas, tanto que a relação com o corpo, ou outras questões de gênero não foram aprofundadas.
Soul – Quando vocês entenderam
que esse trabalho acadêmico poderia participar de festivais? LÍLIAN – Tendo o filme pronto era necessário jogar ele pro mundo, se ele ficasse só na internet não teria diálogo, debate, projeção coletiva. E este é um filme feito para incitar debate, precisamos exibi-lo em festivais, mostras, cineclubes, saraus, onde for, mas que tenha gente.
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– Na sua visão, o tema
prostituição ainda é tratado de forma estigmatizada no Brasil? LÍLIAN – Isso é bastante sério, uma ala radical do movimento feminista está brigando neste mesmo momento contra o projeto de lei Gabriela Leite, porque entende que a prostituição é parte da cultura machista, e essa discussão é longuíssima, mas não deveria dividir as mulheres que lutam pela liberdade feminina. A Gabriela Leite tem uma frase que eu acho que resume isso tudo: “Eu penso que se você considera uma pessoa vítima é porque já estabeleceu uma relação de dominação com ela. Nesse particular, prefiro os conservadores. Eles são mais claros, menos ambíguos”.
FIQUE SABENDO Mesmo não sendo crime no Brasil e ser uma atividade reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a prostituição não é uma profissão regulamentada. As mulheres e homens que atuam como profissionais do sexo têm seus direitos trabalhistas negados e ficam em maior situação vulnerabilidade. Essa regulamentação era a grande bandeira de luta de Gabriela Leite (1951-2013), prostituta por opção, que tornou-se um das principais ativistas sobre os direitos das prostitutas no país. Fundou a ONG Davida, criou a grife Daspu e escreveu o livro ‘Mãe, avó e puta’, onde contou sua trajetória. Mesmo com toda militância, Gabriela não viveu o suficiente para ver os direitos das prostitutas legislados no país. Atualmente, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) tenta aprovar o projeto de lei que leva o nome da ativista. JUNHO 2017
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LUGAR INCOMUM
Sabor do Oriente Govinda, conheça um pedaço da Índia no centro de Salvador. TEXTO: NILSON MARINHO
N
ão é preciso visitar a Índia para sentir a atmosfera sagrada e mística do populoso país da Ásia Meridional, tampouco para experimentar o sabor dos temperos e especiarias de lá. Basta pegar qualquer ônibus que passe pelo centro da capital baiana e seguir a procura do Restaurante Govinda, localizado na Ladeira do Barris, nos Barris. Para esse público, a experiência de cruzar o Oceano Índico sem sair de solo baiano começa um pouco antes: quando é preciso enfrentar a agitação dos transeuntes, a gritaria dos comerciantes e o trânsito maluco do centro histórico de Salvador. Engana-se quem pensa que o experimento acaba por aí. Para ter acesso ao casarão de número 190 é preciso fazer uma verdadeira peregrinação para subir a íngreme e suja ladeira que dá acesso ao estabelecimento. Mas para os apreciadores de um espaço inti-
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mista e uma alimentação sagrada, conhecida como prachada, o esforço vale a pena. Mesmo servindo pratos da culinária indiana no mesmo local há cerca de 18 anos, são raros os moradores do bairro que sabem informar sobre o sabor escondido no velho imóvel de cor laranja. “Go o quê? Nunca ouvi falar!”, reponde apressadamente um pedestre que divide a estreita rua com os carros. Na fachada do prédio, que no térreo abriga uma pequena birosca, não há nada que indique os serviços do estabelecimento. Já na porta, uma tímida placa, com letras garrafais “Toque a campainha e aguarde”, e o cheiro de incenso, que exala pelo ar, servem de pistas para quem procura o exótico e rico tempero hindu. Ao apertar a campainha, o cliente é recepcionado pela simpática anfitriã Tatiana Ferreira. Já nos primeiros lances da escadaria de madeira, é possível escu-
tar o som dos mantras que preenche todo o restaurante dando um ar místico ao ambiente. A chef Tatiana é sócia do seu marido, um antigo vendedor de incensos e um devoto do movimento religioso Hare Krishna, o uruguaio Jhan Bavam. “Há 20 anos conheci a religião e fui convidada a cozinhar no templo e sobrevivo até hoje assim”, diz ela. O casarão alugado pelo casal já pertenceu a cinco donos diferentes, todos adoradores do deus indiano, mas eles nunca saíram de lá. “Aqui, serve de espaço para aulas de ioga, culinária natural e até já realizamos um casamento indiano”. O cliente que visita o restaurante não pode esperar por um menu fixo, todos os pratos servidos pela chef são uma surpresa, o que torna o local ainda mais peculiar Ela é a única daquele lugar que vive apressadamente, pelo menos enquanto atende aos visitantes que começam a chegar por volta das 11h. O frenesi da clientela só começa mesmo às 12h em ponto, quando o barulho da campainha interrompe o som oriental e, aos poucos, as cinco mesas começam a ser ocupadas. Logo que chegam, os clientes são agra- ciados com um prato
de entrada, geralmente petiscos acompanhados de algum molho à base de ervas. Só que o mais esperado é o prato principal. Uma variedade de hortaliças e verduras dão a cor, mas o sabor fica por conta das alternativas que substituem a carne e os derivados do leite. Para arrematar, uma sobremesa é servida, nada em grande quantidade, já que o cardápio anterior fica responsável por saciar o cliente. A maratona gastronômica que custa R$25 só termina com um cházinho que, além de ajudar a digestão, faz o visitante sentir-se “mimado”, com tamanha preocupação da dona da casa. “Sou adepto da comida natural há cerca de 10 anos, e a sensação que eu tenho é que eu estou sendo servido pela minha mãe. A comida é tão deliciosa e o espaço é tão aconchegante que venho todos os dias pra cá”, conta o servidor público Márcio Ferreira, 50, que de tanto frequentar a casa se tornou amigo da chef e agora goza do privilégio de uma parceria que lhe dá o direito de almoçar todos os dias a um preçinho camarada. Além dos fiéis frequentadores, o movimento de outras pessoas que circulam pela casa chama atenção. É que o restaurante também funciona como
pensão, com quartos individuais que custam cerca de R$ 400,00. São cinco no total, três alugados e dois esperando por hóspedes que aceitem a experiência de viver em um local tão original. A decoração também está a venda, são quadros com imponentes deuses que chegam a custar R$ 1 mil reais, produtos raros e considerados grandes achados para quem gosta de antiguidades. Também há produtos de menor valor, como livros, produtos naturais e até um brechó para os visitantes e adeptos da religião que costumam viver com pouco. É somente por volta das 16h que o movimento na casa começa a minguar. É nessa hora que Tatiana pode respirar em paz e enfim experimentar os pratos que foram servidos mais cedo aos clientes. Mas o descanso não pode durar muito, é preciso ter pressa, porque apesar de comercializar produtos frescos, os pratos mais elaborados devem ser preparados à noite, antes da sua meditação para os deuses hindus.
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CURIOSIDADE
CROSSDRESSING!
UMA EXPERIÊNCIA PARA ALÉM DA SEXUALIDADE Traçar o final de um encontro é como burlar a trilha gostosa que a curiosidade criou TEXTO: HARRISON LAGO
FOTO: MARC JACOBS LAUNCHES MAKEUP LINE
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primeiro encontro de um casal pode ser em qualquer lugar ou a qualquer hora, mas ninguém controla mesmo é como pode terminar ou os caminhos que pode seguir. Há quatro anos, Juliana estava no balcão de um bar no bairro do Rio Vermelho. Vestido vermelho, salto alto, cabelos escovados, aguardava o seu tão sonhado “crush”. Felipe era um conhecido da sua melhor amiga, tinha acabado de se formar em economia e já estava estabilizado na vida. Já Juliana cursava o penúltimo semestre de administração e estagiava em uma escola próxima do Centro da cidade. O tão aguardado momento do encontro aconteceu! Felipe estava vestido com uma camisa polo azul, calça jeans e um tênis discreto. Ele chegou de mansinho, beijando a mão de Juliana, que logo o convidou para sentar e pedir algo. Papo vai, papo vem, naquele mesmo balcão, Felipe convidou Juliana para o cinema e, com um sorriso bobo, ela aceitou. Nesse ritmo se passaram três semanas, tempo suficiente para Felipe pedir Juliana em namoro. Ansiosa por esse momento, ela aceitou logo de cara. A relação da estudante e do jovem economista estava maravilhosa, sempre cheia de programas românticos e quentes.
Após o oitavo mês de namoro, Felipe disse que queria testar “coisas novas” em sua relação com Juliana. Explicou que tinha um desejo que nem toda mulher entenderia, mas que ela era especial e, por isso, sentia-se à vontade para compartilhar esse tão secreto capricho. A namorada, aguardando um fetiche comum, não pensou duas vezes, topou a ideia na hora. Felipe disse então que sentia vontade de beijá-la com um batom vermelho, mas, em vez dela, ele deveria estar usando o batom. A história de Felipe não é única. Ele faz parte do universo crossdresser! São pessoas que eventualmente gostam de usar roupas e acessórios tidos como do “sexo oposto”. A psicóloga Karlesy Stamm, especialista em Sexualidade Humana, conta que há diversas formas de praticar crossdressing. “Alguns crossdressers se montam apenas para ficar em casa, alguns apenas usam um ou outro acessório ou roupa (um salto, uma calcinha, uma saia), outros se montam por completo (com roupas, acessórios, saltos, perucas e maquiagem)”. No entanto, como pode parecer no primeiro momento, o crossdressing não deve ser visto como algo relacionado a homo, hetero ou bissexua-
lidade. “É importante que se entenda que essas formas de expressão da sexualidade não influenciam e nem têm relação com o desejo de vestir-se com roupas socialmente atribuídas ao sexo oposto. São desejos de ordens diferentes e que não tem correspondência direta entre si”, esclarece a psicóloga. Felipe é um exemplo disso. Ele conta que se vestir com roupas femininas não interfere na sexualidade. “Sou um homem que gosta de se vestir de mulher, estou namorando e sou heterossexual. Tenho uma vida masculina, como qualquer outro homem, mas de vez enquanto meu lado feminino toma conta de mim”. A sexóloga Lúcia Pesca ressalta que é importante diferenciar a orientação sexual de cada pessoa (gay, hetero ou bi) da identidade que ela assume. “Ninguém escolhe uma certa orientação sexual. Ela é construída por diversos fatores: biológicos, psicológicos, sociais e culturais. O crossdresser é um exemplo isso”. Para Felipe, o prazer de se vestir de mulher reside no ato de parecer feminina, o que explica, por exemplo, a preferência por ser chamado de Priscila quando montado. Essa é uma característica de quase
todo crossdress, escolher um nome ou sobrenome que o melhor represente nos momentos em que estão na persona oposta. “O desejo de se vestir é uma experiência única e importante para a autoestima. Ao realizar esse “desejo”, o crossdresser se sente completo” explica a psicóloga Karlesy Stamm. Respeito a essas questões, amor e compreensão foram os principais elementos que levaram Juliana a aceitar Felipe/ Priscila. Ela confessa que no início achou muito estranho, principalmente quando, depois do batom, Felipe passou a acrescentar meias calças, saltos, mais maquiagem, sutiã e peruca. Foi testando tudo aos poucos, sem julgamentos, por entender que o importante era satisfazer a ambos. “Ao meu ver, o desejo dele é apenas um fetiche, apenas com um grau diferente dos “normais””, comenta Juliana. Hoje em dia, Felipe declara que não tem apenas uma namorada, mas sim, uma parceira que pode compartilhar os seus desejos mais íntimos.
Obs: Os nomes dos personagens desta reportagem foram alterados para Felipe e Juliana a pedido deles a fim de manter a privacidade do casal.
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CONTO
ENSAIO SOBRE
CHEGADAS Para ler escutando “Dancing on my own”, na voz do Calum Scott. Pode repetir quantas vezes quiser. TEXTO: FERNANDA TRAVASSO
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onhos nunca foram meu forte. Refiro-me ao momento em que você dorme e esquece que esse mundo aqui fora existe. Passei boa parte da infância tentando entender como eram que as projeções, do que poderia ter sido ou foram, aconteciam na imaginação de algumas pessoas. Eu, apenas, deitava e dormia. Cheguei até a escutar meu avô falando entre um cochilo e outro, e achava graça da insatisfação de Tia Hilda quando lia incansavelmente nas revistas de astrologia que sonhar com cobra é traição. Mas foi numa tarde de outono, quando as janelas estão úmidas e as horas devagar que a minha relação com o mundo onírico mudou. Raramente recebia, com antecedência, um convite para sair, mas dessa vez foi diferente. Um e-mail de uma amiga falava sobre um encontro poético com antigos colegas da faculdade - os distraídos que preferem escrita criativa a investigações sobre a política do país. Não só decidi ir, como cheguei um pouco mais cedo. Por mais blasé que fosse, era a oportunidade de retornar aqueles corredores que nunca pensei um dia voltar. Sentei um pouco distante. Deparei-me com duas moças que provavelmente se conheciam e um rapaz que vestia uma
camisa de super-heróis. Folheei uma revista semanal e me distraí entre os quadros na parede. A sala foi ficando movimentada e ela entrou. Cabelo médio, escuro, calça jeans tipo 90s e um sorriso contido que garanto não esquecer tão cedo. Estranho, não? Pensei alto, quando alguém chamou meu nome e pediu para que eu me apresentasse. Preferi não levantar da cadeira e lembrei de alguns versos rabiscados em agendas na minha estante. Acho que também falei de alguns livros e minha vontade de escrever numa varanda antiga em Veneza. Todos riram e eu me senti mais confortável. Ela me olhava atentamente, como se quisesse me reconhecer e eu tinha a mesma sensação. Quem sabe em um bar, livrarias da cidade, noites viradas no Rio vermelho. Quem sabe? Na saída, cumprimentei alguns conhecidos e adiantei os passos como se estivesse com muita pressa. Não estava, era apenas charme mesmo. Alguma coisa nela tinha me incomodado, talvez a voz, o cheiro ou o jeito de trocar as palavras de lugar. Ela era tão intensa, poética, voraz. Eu tão subentendida, sucinta e mais mil adjetivos contidos que ela jogava na minha cara só de olhar. Estava eu ficando louca? - Helena! ¬ (gritou, segurando meu ombro) - Sim. - Você deveria voltar mais vezes. - Ah, claro! - Podemos trocar alguns textos, tomar um café. - Podemos sim. – assenti, mesmo sabendo que poderia ser a última vez que estávamos nos vendo.
mente daquele jeito. Coloquei Norah Jones na vitrola, abri um vinho e fiquei me questionando. Teria acontecido algo de fato ou era apenas a minha carência apelando até para lados não opostos? A campainha tocou. Mas como ela descobriu meu endereço? Perguntei-me depois de vê-la através do olho mágico. Sem esperar, ela foi me conduzindo pelo corredor, escadas e já estávamos na cama. Ela sorriu de leve, o mesmo sorriso contido da primeira vez que a vi. Olhamo-nos fixamente por alguns segundos, quando sua mão deslizou pelo meu quadril e abriu o zíper. De cima, liguei todos os pontos que rodeavam suas costas. No fundo eu sabia que estava procurando por alguma coisa, talvez respostas pra todas as perguntas que guardei dentro dos diários. Mas, minha única certeza era que eu estava ali e queria ficar. Ela foi encostando a cabeça em minha barriga e escorregando a língua por todas as divisões do meu corpo, também sussurrava alguma coisa que não lembro. Minha vontade era de gritar e esquecer que existia a manhã seguinte. Até que a campainha tocou. Acordei assustada e quase quebrei a taça que estava no colo. Sem entender nada, corri para a porta. Através do olho mágico, percebi. Não era ninguém.
Passei o resto do dia tentando entender como uma mulher – que eu nem conhecia – poderia me desestabilizar emocionalJUNHO 2017
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