Revista Soul #6 - dezembro de 2018

Page 1

Soul GÊNERO E DIVERSIDADE

Ano 03, Edição 06, Dezembro de 2018

ENSAIO Cores, NOartes, GUETHO sons e gente ABORTO LEGAL NO BRASIL

65 hospitais para 5.570 municípios

NÃO É DE DEUS

Racismo religioso: injusto e cruel

TEM MANA NO RAP

Hiran e o beatbox de Alagoinhas

DEZEMBRO 2018

Soul

1


2

Soul

DEZEMBRO 2018


Soul

Revista Soul - Projeto interdisciplinar produzido pelos alunos do curso de Jornalismo, da Faculdade Social da Bahia (FSBA), Salvador/BA, nas disciplinas de Redação II, Redação III, Planejamento Gráfico e Estágio Supervisionado II. Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza, Caio Cardoso, Cristina Mascarenhas e Mônica Celestino Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Adriana Telles, Bárbara Souza, Caio Cardoso Projeto gráfico: Elisangela Sandes Diagramação: Camilla Trindade, Cleiton Oliveira, Victor Eduardo, Yasmin Aguirre, Roseli Servilha, Guilherme Castro, Diego Souza e Elisangela Sandes TEXTOS: Camilla Trindade, Fábio Passos, Fernanda Costa, Israel Meneses, Joice Antero, Jorge Mario, Laila Miranda, Leonardo Barbosa, Luan Borges, Luiz Felipe Fernandez, Rodrigo Lago, Sara Barroso, Victor Eduardo e Yasmin Aguirre EDITORIAL: Bárbara Souza CAPA: Elisangela Sandes FOTOGRAFIA DE CAPA: Caio Cardoso FOTOS E ILUSTRAÇÕES: Caio Cardoso, Cleiton Oliveira, Gabriel Rodrigues, Fernanda Costa, Yasmin Aguirre, Guilherme Castro, Elisangela Sandes, Freepik, Unsplash e Divulgação.

Faculdade Social da Bahia – FSBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170-010. www.fsba.edu.br (71) 4009-2840 Diretora: Margareth Passos Vice-diretor: Fernando Miranda Coordenadora Acadêmica: Clarice Pires

DEZEMBRO 2018

Soul

3


REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 1

(JUNHO – 2016) Empoderamento feminino, a doença do preconceito (‘que dizima também quem paga o dízimo’) e combate ao feminicídio foram os temas de destaque na Capa da 1ª edição da Revista Soul, que materializou o projeto editorial proposto e concebido por estudantes do 5º semestre do curso de Jornalismo. A edição inaugural tratou de temas que só há pouco tempo passaram a ser abordados pela mídia sob o enfoque dos direitos humanos e respeito à diversidade. Um enfoque que se empenha em deixar de lado o olhar que reforça o estigma social e patologização das questões de gênero e diversidade – ou ao menos se empenha em fazê-lo. Cultura, religiosidade, serviço, curiosidades: a diversidade temática foi a marca da edição nº 1 da revista. Ah, sim: teve gorda na Soul e terá sempre! Como sempre terá magros(as), homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transgêneros, jovens, idosos (as), gente. 4

Soul

DEZEMBRO 2018

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 2

(NOVEMBRO – 2016) A 2ª edição da Soul fez jus à temática que ancora editorialmente a publicação: diversidade e gênero. Foram várias as vozes ouvidas e os posicionamentos apresentados. A principal chamada de Capa foi a entrevista com o editor-chefe do canal LGBT do jornal Correio, líder na Bahia, o jornalista Jorge Gauthier. Cultura indígena, história de luta das mulheres por direitos, inclusão de pessoas com deficiência auditiva e combate à violência doméstica também estão entre os temas das matérias da edição nº 2. A Soul reuniu diversos gêneros jornalísticos: reportagens, uma entrevista pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys e dois artigos: um do estudante de Jornalismo Théo Meirelles, da FSBA, sobre ‘Transexualidade e mídia’, e outro, da advogada e professora Natália Silveira, que integra o corpo docente da FSBA e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 3

(JUNHO – 2017) Muito além do arco-íris. A terceira edição da revista Soul publicou uma reportagem sobre 56 identidades de gênero. Isso mesmo: cinquenta e seis. A relação das crianças com a diferença – e os cuidados para que o preconceito de adultos não seja incutido nas mentes abertas dos pequenos – crossdressing e alternativas de mobilidade urbana integraram a edição nº3 da Soul. A publicação trouxe ainda uma reportagem sobre como a indigesta proposta de reforma previdenciária do governo Temer afeta, particularmente, as mulheres. Outra matéria conta um pouco da história e trajetória de Rico Dalassam, um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro e o primeiro rapper assumidamente gay do país. E mais: uma entrevista exclusiva com Russo Passapusso, cantor da premiada Baiana System, que rejeita a classificação de ‘música alternativa’ para a banda.


REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 4

(NOVEMBRO – 2017) Uma Igreja que segue as Sagradas Escrituras, acredita na Santíssima Trindade e ordena homossexuais “declarados” como líderes religiosos. O respeito à diversidade foi um dos temas da entrevista exclusiva com o reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana da Bahia, publicada na edição nº 4 da Soul. A reportagem conversou também com o professor Leandro Colling, coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), sobre a reserva de vagas para travestis, transexuais e transgêneros nos cursos de mestrado e doutorado da UFBA, iniciativa inédita na história do ensino brasileiro. Também foi pauta a depressão entre LGBTs, um dos grupos mais vulneráveis à enfermidade. A quarta edição da Soul trouxe ainda uma reportagem sobre como as brincadeiras de infância podem contribuir para a criação de estereótipos e preconceitos. “Todo mundo quer saber com quem você se deita”, diz a canção. Será que Freud explica? O artigo do professor Luiz Lopes, coordenador do curso de Psicologia da FSBA, aborda essa questão.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 5

(JUNHO – 2018) Da primeira à última página, entrevistadores e entrevistados, repórteres e personagens, fotografados e fotógrafos, articulistas: todos(as) negros(as). Ou melhor, quase todos(as), porque diversidade não combina com segregação. Com o tema “Negro (a) é Poder”, a edição especial intitulada Soul Black reverenciou a negritude. O protagonismo negro norteou a edição que incorporou conteúdo audiovisual: o Programa Soul Black pôs em tela um debate entre os jornalistas Eduardo Machado, Juliana Dias e Tairine Ceuta. Papo reto e esclarecedor sobre o racismo e suas faces perversas. A Soul Black contemplou ainda um ensaio fotográfico produzido e protagonizado por alunos do curso de Jornalismo, negros, e as belas imagens registradas pela lente do jornalista e escritor Tom Correia, captando a invisibilidade dos negros em Lisboa. Mais: entrevistas com Wanda Chase, Nara Santos, coautora do livro “É a minha cara” – que conta a história dos 30 anos da “Cia Baiana de Patifaria”, e Gil Santos, repórter do jornal Correio. Todos jornalistas. Todos negros. Todos na Soul Black. DEZEMBRO 2018

Soul

5


Editorial

Mas possibilidades de argumentação em defesa da importância de lançar luz sobre o assunto são diversas, como são inúmeras as notícias diárias sobre todas as formas de manifestação do preconceito, discriminação e intolerância. Explícitas ou veladas, são todas nefastas e fruto de uma sociedade que conviveu e legitimou aberrações como a escravidão e o tráfico de seres humanos. Por interesse econômico, arrogância, conivência ou omissão, não importam as motivações. São todas indefensáveis, e envergonham a história da Humanidade. Repetimos o que foi dito no editorial da 5ª edição desta revista para que não seja esquecido: dos 518 anos desde que Pedro Álvares Cabral por aqui aportou, a sociedade brasileira foi cúmplice e deu sustentação a uma sociedade escravagista por quase 400 anos. Em 2018, o resultado das eleições presidenciais marca uma guinada radical à direita e a um conservadorismo que fomenta a intolerância à diversidade e se empenha em naturalizar o sexismo, a homofobia, o racismo, a xenofobia, a violência e o desrespeito acintoso a direitos humanos e trabalhistas. Em 2018, celebramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direi6

Soul

DEZEMBRO 2018

tos Humanos, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro 1948. Em 2018, já foram mortos dezenas de milhares de jovens negros, mulheres, gays, lésbicas, transexuais, travestis porque eram pretos, mulheres e LGBTs. Não morreram de “susto, bala ou vício”. Ou pior, foram assassinados por balas endereçadas às populações que são historicamente o alvo preferencial da sanha genocida que autoriza o braço armado do Estado a matar; sem receio, e com a aprovação entusiasmada de expressiva parcela do eleitorado. Jovens que decerto nunca tiveram motivo para cantar “soy loco por ti, America”; e agora não têm mais voz para fazê-lo. Neste ano, milhões de brasileiros fizeram emergir das urnas políti-

cos que se sentem absolutamente à vontade para declarar que “a polícia vai mirar na cabecinha...e fogo!”, como disse o governador eleito do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, do PSC, sigla do Partido Social Cristão... A resposta é sim! O tema ‘Diversidade e Gênero’ rende e renderá muitas pautas e edições da revista SOUL e em tantas outras publicações. Porque o jornalismo é uma das principais trincheiras na luta pela democracia, pelos direitos humanos e respeito à diversidade. BOA LEITURA! Bárbara Souza Coordenadora dos cursos de Jornalismo e Publicidade/Propaganda Faculdade Social da Bahia (FSBA)

FOTO: ROSY SILVA

A

o saber que a temática principal da Revista SOUL é ‘Diversidade e Gênero’, não é incomum que se siga a pergunta: “Mas esse tema rende?”, ou “Não vai ficar repetitivo tratar desse assunto todo semestre?”. Antes de responder, é sempre recomendável respirar fundo com discrição e sem perder a elegância. A resposta é uma só: NÃO.


NA MÍDIA

PERFIL

ESPORTE

Do “paredão” à fama

O sonho de liberdade de Elder

Ponto para a diversidade!

Camilla Trinidade e Victor Eduardo

08

Fernanda Costa

32

Israel Meneses, Luan Borges e Rodrigo Lago

40

SAÚDE

EDUCAÇÃO

ENTREVISTA

Aborto legal: Estado negligente expõe vidas Sara Barroso e Fábio Passos

Aprender a ver, para incluir meus camaradas

Racismo religioso em pauta

ENSAIO

DREADLOCKS

PERFIL

Sou do Guetho, pertenço ao mundo Gabriel Rodrigues

Atitude na cabeça

Árido e gay: Hiran manda a rima

15

18

Laila Miranda

36

Yasmin Aguirre e Leonardo Barbosa

38

Jorge Mário

44

Luiz Felipe Fernandez

48

DEZEMBRO 2018

Soul

7


NA MÍDIA

V

ocê conhece a problemática mais amada da Bahia? Nininha Problemática, uma Drag que nasceu apenas para ser um personagem de humor no youtube, entrou para música e se tornou a primeira drag queen no pagode baiano. Ela já participou de clipes das cantoras como Preta Gil, Pabllo Vittar e do grupo de funk carioca Bonde das Maravilhas. Em abril desse ano, a Problemática lançou seu primeiro single, intitulado de “NO PAREDÃO”. Um dos maiores diferenciais da Nininha é a escolha do ritmo abordado em suas músicas, enquanto grande parte das Drag Queens optam por canções mais ligadas ao pop, ela escolheu o pagode baiano. Nininha é de Sete Abril, um bairro periférico da capital baiana, e é de lá que vem toda sua inspiração para sua arte.

8

Soul

DEZEMBRO 2018


Lá vem a PROBLEMÁTICA! POR CAMILLA TRINDADE E VICTOR EDUARDO

Soul: Como começou sua carreira na internet? Como surgiu a Nininha? NININHA: Eu tinha um canal no Youtube de entrevistas, o Digo TV, onde eu entrevistava artistas locais que não tinham tanta visibilidade, não tinham espaço na TV, então eu resolvi criar esse canal com a minha pouca visibilidade, (risos) para dar um espaço para essas pessoas. Mas o público que me acompanhava sentia falta de humor, que era o que eu fazia em um antigo canal e eu sentia a necessidade de trazer uma personagem feminina. Queria trazer uma discussão mais periférica, uma coisa mais regional, com a qual as pessoas se identificassem. Havia muitos artistas na cidade fazendo o personagem do homem da periferia, o “foveiro”, mas não tinha ninguém interpretando uma mulher, nem mesmo as mulheres, então eu pensei “tem que chegar alguém nesse babado!”e, com cerca de cinco vídeos, a Nininha passou a ganhar uma proporção muito grande que eu mesmo não estava sabendo como lidar, como digerir. Soul:

Quando você se deu conta que Nininha não era mais um hobby, mas uma possível carreira, uma profissão? NININHA: O impulso mesmo para isso acontecer foi quando ganhei uma promoção do site Popline para ir ao Rock In Rio e conhecer a Pablo Vittar e a Anitta. Precisei fazer essa

viagem para o Rio de Janeiro, mas não consegui folga no trabalho, então comuniquei que iria faltar mesmo sem a liberação e quando voltei já estava com minha carta de demissão prontinha (risos). Depois disso, entendi que a partir daquele momento a Nininha era o meu trabalho, que eu teria que levá-la com mais seriedade porque seria a minha nova forma de ganhar uma grana.

Soul: Houve alguma dificuldade

de aceitação da Nininha, principalmente por não ser uma Drag padronizada? NININHA: A aceitação começa pela pessoal, né?! Eu não via a Nininha como uma drag, porque eu tinha aquele aquela visão de drag, RuPaul, divônica, salto alto, muitas perucas, maquiagem muito luxuosa, roupas muito luxuosas que era uma coisa muito distante do que eu tinha, do que eu poderia ter. A primeira roupa usada por Nininha foi uma roupa emprestada de uma amiga e a primeira roupa mesmo foi uma parceria de uma loja daqui do meu bairro, que me deu e que eu bati até o último momento. Eu não tinha essa visão, até porque também calço 43 e achar salto e tal. A galera está aceitando aos poucos e foi se reconhecendo na personagem. Era isso que eu queria. Eu queria mostrar vivência, eu queria ser uma personagem que demonstrasse vivência, que as pessoas se enxergasse nela, se vissem nela e até hoje é as-

sim. Os comentários nos vídeos são esses: “tão eu” “muito eu” “muito minha amiga” “parece minha mãe”. Isso é muito bom, fico muito feliz!

Soul:

Quando surgiu essa vontade de levar a Nininha para o cenário musical e por que você escolheu o pagodão? NININHA: Veio igual o nome, veio do nada, sabe? Eu estava refletindo, me peguei um dia escutando os trabalhos das Drags famosas da música. Falei: Rapaz o cenário drag music chegou pra bombar mesmo, chegou para ficar, né?! Pabllo Vittar abrindo caminhos para as outras, tem a Glória Groove, tem a Lia Clarck fazendo shows pelo Brasil, estão na TV e tal. Foi ai que eu parei e pensei assim: não tem nenhuma baiana nisso aí né gente?! Não tem nenhuma baiana que botou a cara, que chegou junto. E foi ai que parei pra refletir sobre a questão do machismo no meio do pagode, é um meio muito machista, só tem homens falando do corpo, falando de sexo, objetificando as mulheres, colocando as gays para serem os bobos da corte, né?! Para ter aqueles 15 minutinhos de fama, mas depois disso não se importa com mais nada, não se importa o que pode acontecer depois com essas pessoas, não chegam junto para somar realmente nessa luta.Eu pensei: poxa, eu estou nesses eventos, estou nesses palcos, eu falo com essa galera da periferia. Por que não? Por que não eu? E aí foi DEZEMBRO 2018

Soul

9


quando eu comecei a procurar uma pessoa para me ajudar nisso. E aí tive a ideia de que a primeira música que é “NO PAREDÃO” uma versão de Crazy in Love da Beyoncé, em pagode baiano, pagode eletrônico, que é o que hoje o Attooxxa faz, que Baiana System faz. Chamei um amigo meu, Ariel, falei com ele sobre a ideia. Criei uma parte e mandei para ele, e aí ele me mandou a música pronta. Procurei um parceiro para me apoiar nisso, conheci Bob 10

Soul

DEZEMBRO 2018

the Joy que me recebeu de braços super abertos assim, e se jogou nessa comigo e esteve presente nesse meu primeiro trabalho.

Soul:

Como você avalia o cenário Drag local? NININHA: O cenário drag aqui de Salvador é muito diversificado, você vê de todos os tipos, de todos os estilos, de todos os segmentos. Só que eu não vejo a gente tendo visibilidade nisso ai sabe?! Porque, às vezes, eu sinto que


existe uma certa luta de egos, velho, de quem faz mais, de quem é a melhor, de quem é isso, quem é aquilo. É uma disputa por títulos assim, que eu acho vazio sabe? Eu vejo muita briga muito desentendimento nesse meio. As pessoas me questionam porque eu não convivo muito nesses meios, que é estar fazendo performance em alguns locais muito bem frequentados por drags. É porque não me sinto confortável, não me sinto segura, porque, sei lá,

acho que a qualquer momento alguém pode puxar meu tapete, é barril demais! Então procuro fazer o meu trabalho, diga-se de passagem, de uma forma diferente, sabe?! As pessoas dizem assim:”você precisa estar fazendo performance para se preparar” e tal. Eu acho que o maior palco para mim é o contato com o público, é o humor, eu sou muito puxado por o humor e foi assim que eu consegui fazer uma carreira com humor e tal, cheguei agora com essa DEZEMBRO 2018

Soul

11


me tornar uma personalidade midiática “daEucomunidade, da periferia, me deixa muito

feliz porque eu consigo mostrar que nos guetos e nas favelas temos artes, sim, temos grandes artistas, pessoas inteligentíssimas, que só não têm oportunidade

12

Soul

DEZEMBRO 2018


coisa no Drag Music com o pagode baiano. Com o movimento QUEER nesse meio tão machista, eu faço a parte, sabe?! Aqui o cenário tem muito a crescer, vai crescer muito mais mas para a gente crescer tem que se unir e, eu vejo pouco isso, eu vejo pouca união.

Soul: Qual mensagem você ten-

ta levar para seu público através da sua arte? NININHA: Falando em representatividade. Eu me tornar, hoje, uma personalidade midiática assim da comunidade de Salvador, da periferia, me deixar muito feliz porque eu consigo mostrar que nos guetos e que nas favelas têm artes sim, temos artistas grandes, que temos músicos, que temos cantores e eu sempre busco partilhar dessas pessoas e mostrar nas redes sociais, onde quer que esteja que essas pessoas que estão aqui dentro, são grandes pessoas, são pessoas inteligentíssimas que só não têm oportunidade, que não têm coragem. Eu botar minha cara a tapa encoraja essas pessoas a fazer a arte delas, fazer o trabalho delas com gosto, com orgulho, sabe?! Isso me deixa muito feliz, isso para mim não tem preço. DEZEMBRO 2018

Soul

13


SAÚDE

Além dos conflitos pessoais envolvidos na decisão de interromper uma gravidez, mulheres enfrentam o estigma, o tabu... POR SARA BARROSO E FÁBIO PASSOS

Controvérsias mantêm abortos ilegais e inseguros no Brasil

14

Soul

DEZEMBRO 2018


A

o entrar numa clínica de bairro, no subúrbio de Salvador, Tania é abordada por alguém que lhe questionou que tipo de procedimento pretende realizar. Uma mulher com uniforme de enfermeira se aproxima e pede que ela vá até um quarto. No cômodo, ela recebe dois comprimidos para engolir e se deita. O médico entra em seguida, mede sua pressão e insere outros dois comprimidos em sua vagina. Até então, Tania não recebeu nenhuma informação a respeito da medicação que estava tomando: ninguém disse nada e os frascos não tinham embalagem. Alguns minutos depois, já sozinha, ela sente uma dor de barriga, vai ao banheiro e vê muito sangue com coágulos no vaso sanitário. A enfermeira então volta, lhe dá mais dois comprimidos e estende um copo d’água. O sangramento ainda dura algumas horas e causa dores ainda mais fortes. Na cama, Tania pressiona os lençóis contra o corpo, tentando estancar a hemorragia. O médico retorna, mede sua pressão novamente e a coloca em uma maca. Passando pelos corredores da clínica, a paciente é levada para uma ala cirúrgica onde, sem anestesia, o médico introduz a mão entre suas pernas para finalizar o processo. Com uma dor intensa, a mulher, de 26 anos, perde os sentidos. Em menos de uma semana ela teria que voltar àquele lugar por complicações no procedimento. Tania representa um grupo de milhares de brasileiras que até hoje buscam alternativas clandestinas para

realizar a interrupção voluntária da gravidez no País. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016, a mais recente sobre o tema, feita por pesquisadores da Universidade de Brasília, 500 mil abortos clandestinos acontecem a cada ano no Brasil. Desde 1942, o ato é considerado crime de acordo com o Código Penal Brasileiro e a punição pode chegar a três anos de prisão. Atualmente, só são autorizados procedimentos de aborto em três situações: em caso de risco de vida da mãe; gestações resultantes de estupro; e em caso de anencefalia. Neste último caso, a legalidade da questão foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aborda o tema, garantindo direitos ao embrião desde a sua concepção, incluindo que devem existir condições para efetivar o nascimento. Mas estudos e levantamentos diversos apontam que um enorme contingente de brasileiras não tem sequer acesso ao pré-natal adequado. Apesar de o aborto ser legal em caso de violência sexual, a PNA 2016 conduzida por Débora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro revelou que essas mulheres são mal acolhidas ou estão sob suspeitas de estarem mentindo.

QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA

“Depois que você toma a decisão e inicia o processo você não tem como se arrepender, você está fazendo aquilo.[...] Você cometeu um crime, eu tenho consciência disso, mas no momento era

DEZEMBRO 2018

Soul

15


aquilo que valia pra mim”, afirma Tania, hoje com 52 anos. Ela já tinha um filho, que estava completando seis meses no dia do procedimento. Tania sempre pensou em constituir uma família, se programou para o primeiro filho, mas não se sentia preparada para a segunda gestação, nem financeira, nem psicologicamente. “Tudo foi feito visando o meu filho. Eu conversei com minha mãe, minha família ficou sabendo o que eu ia fazer, porque eu tinha uma criança e não sabia se ia dar certo, se eu ia voltar”. Antes de conseguir dinheiro para o procedimento, ela tentou chás de folhas consideradas abortivas, o que não deu certo. O gasto total, em valores atuais, teria sido em torno de 4 a 5 mil reais para ir à clínica e com os remédios que teve que tomar depois, quase toda a rescisão salarial recebida na falência da empresa em que trabalhava. “Quando meu ultrassom confirmou (...) eu gritei dentro de mim ‘eu não quero isso’, e eu já vim ‘tenho que fazer alguma coisa. Se uma mulher se dedica a fazer uma coisa dessa ela tem que ter uma justificativa muito forte. É terrível”. Uma das líderes da PNA 2016 e pesquisadora do instituto de Bioética Anis, a doutora Débora Diniz afirma que uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já fez um aborto. A maioria é de mulheres casadas, religiosas, com filhos e baixa escolaridade e que, convictas de que não podem deixar aquela gestação evoluir, preferem correr o risco de serem presas ou terem problemas de saúde. O Ministério da Saúde estima quatro mortes por dia devido a complicações decorrentes de abortos em clínicas clandestinas, o que demonstra a necessidade de tratar o assunto como uma 16

Soul

DEZEMBRO 2018

questão de saúde pública, conforme aponta Diniz.

DEBATE JURÍDICO, ESTUPRO E POBREZA

Em março de 2018 foi apresentada ao STF ação com o objetivo de legalizar a interrupção voluntária da gravidez no Brasil. No processo protocolado pelo PSOL, argumenta-se que a proi-

“Segundo o Ministério da Saúde, apenas 65 hospitais realizam o procedimento de aborto legal no país. O estado de Roraima tem a maior taxa de estupros por cada cem mil habitantes, mas não conta com nenhum centro especializado autorizado a realizar um aborto”. bição ampla afronta preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, dignidade, cidadania, não discriminação, saúde e ao planejamento familiar, entre outros. Na audiência pública ocorrida em agosto, especialistas de Direito apresentaram seus argumentos. A doutora Greice Menezes, pesquisadora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirma que descriminalizar e legalizar são dois aspectos diferentes, quando se trata do aborto. De um lado, a prática deixa de ser crime, do outro, a prática passa a ser regulada. Menezes aponta que, quando se legaliza, o Estado reconhece o direito das mulheres, regulando a prática e definindo “[em] que locais ela será feita, que profissionais farão, qual protocolo as pessoas devem

seguir”, afirma a pesquisadora. Menezes aponta ainda que descriminalizar sem regular a prática é insuficiente, pois o aborto é uma realidade e a situação continuaria a mesma. Segundo o Ministério da Saúde, apenas 65 hospitais realizam o procedimento de aborto legal no País. O fato de haver um baixo número de centros hospitalares é agravado quando se observa sua distribuição geográfica: o estado de Roraima, por exemplo, tem a maior taxa de estupros por cada cem mil habitantes, mas não conta com nenhum centro especializado autorizado a realizar um aborto. Pesquisa do Datafolha de agosto de 2018, revelou que 59% dos brasileiros são contrários a mudanças na atual lei sobre o aborto e 58% dos entrevistados também avaliaram que a mulher deve ser processada e ir para cadeia se cometer um aborto, independentemente da situação. Greice Menezes afirma ser preciso pensar na maneira correta de se abordar o assunto em entrevistas. Não basta apenas perguntar se a pessoa é contra ou a favor do aborto, porque ninguém é a favor, inclusive as próprias mulheres que o fazem. As mulheres interrompem a gravidez por diversos motivos e não porque gostam. No dia 28 de setembro é celebrado o Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe. Estudos apontam que essas regiões são as que têm maiores taxas de interrupção de gravidez. Dados da ONU mostram que os países em desenvolvimento são os que tratam o aborto como crime. Nestes, também são registrados mais casos de morte materna associadas à interrupção da gravidez.


VIDA REAL

VESSEL

CLANDESTINA

MENINAS FORMICIDAS

Documentário contando a história da Dra. Rebecca Gomperts e do projeto Women on Waves, que ajuda mulheres que necessitam providenciando a opção segura de ter um aborto, quando a legislação de seus países o proíbe.

Documentário brasileiro de 23 minutos faz um pequeno panorama da situação das mulheres que abortam ilegalmente no Brasil, misturando experiências reais e atrizes que interpretam textos de mulheres anônimas que decidiram interromper a gravidez.

Em uma pequena cidade brasileira, uma adolescente trabalha todos os dias em uma floresta de eucalipto, onde ela persegue formigas com pesticidas. No entanto, sua luta interior acaba por ser a verdadeira luta.

UMA HISTÓRIA SEVERINA

THE ABORTION DIARIES

AFTERTILLER

O documentário mostra um momento antes da decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012 quando foram autorizados abortos de fetos anencéfalos. Severina viu-se no meio de idas e vindas de decisões judiciais. Depois de conseguir autorização para interromper a gestação de seu feto anencéfalo, ela internou-se para, no dia do procedimento, ver sua decisão revertida e ser obrigada a levar a gravidez a termo.

Se o aborto é tão comum, por que nunca é tema de conversas na mesa de jantar? Por que as mulheres que abortam sentem-se tão sozinhas, por que não há espaço para que compartilhem suas experiências? Essas são as perguntas que norteiam os 30 minutos deste documentário.

Em maio de 2009 o médico George Tiller foi assassinado por um ativista antiaborto. Após o crime apenas quatro especialistas continuam realizando o chamado aborto tardio, feito nos últimos três meses de gestação, prática legal em algumas regiões dos Estados Unidos. O documentário acompanha um pouco da perigosa rotina desses doutores, que mantêm vivo o legado de Tiller. DEZEMBRO 2018

Soul

17


ENSAIO

pertenc

18

Soul

DEZEMBRO 2018


cimento TEXTO:GABRIEL RODRIGUES)

A

ideia de viver o que se quer ser no coletivo se traduz em performance; ocupar, redefinir, desconstruir e pertencer são atos encontrados no cotidiano, mas, principalmente, no gueto. Um lugar que cabe cores, sons, corpos, artes, cabe sempre mais, descobertas, histórias, fotografias. Cada um do seu jeito. E o mais legal, a diferença neste espaço é reconhecida, vivida, performada a todo momento. O gueto é um local de pertencimento, de vozes, expressões, marcas. Há um movimento nesse ambiente que é único. Mesmo que tudo pareça um caos, com os carros, motos, bicicletas, sons diferentes em cada esquina, crianças brincando de bola e outras correndo. Ali, no gueto, tudo se combina. O ensaio nasce desse encontro. Aliás, um encontro perfeito! Sem horário marcado, só cliques.

DEZEMBRO 2018

Soul

19




ONDE ANDA VOCÊ?

22

Soul

DEZEMBRO 2018


DEZEMBRO 2018

Soul

23


24

Soul

DEZEMBRO 2018


DEZEMBRO 2018

Soul

25


26

Soul

DEZEMBRO 2018


DEZEMBRO 2018

Soul

27


28

Soul

DEZEMBRO 2018


DEZEMBRO 2018

Soul

29


30

Soul

DEZEMBRO 2018


DEZEMBRO 2018

Soul

31


PERFIL

DIVERSAS VIDAS O sonho de menino pelos olhos de um homem POR FERNANDA COSTA

A

falta de motivação, estrutura familiar, lazer e cultura em bairros periféricos costumam retirar dos jovens o sonho da ascensão social. O grafiteiro Elder Santos enfrentou as dificuldades em casa, a exposição ao crime, à evasão escolar, o uso de drogas ilícitas e álcool antes de alcançar um desejo de menino de trazer, para dentro da comunidade, um projeto social que se tornou uma alternativa para crianças e adolescentes continuar almejando dias melhores. Elder consegue superar as estatísticas e busca, através do talento artístico e da motivação para conquistar o que deseja. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), em 2015, cerca de 55,5% dos jovens já tinham ingerido bebidas alcoólicas e 9% já haviam experimentado drogas ilícitas. O Ministério Público do Brasil alerta sobre o alto índice de evasão escolar de 11,2% na mudança

32

Soul

DEZEMBRO 2018


do ensino fundamental para o médio em 2018. Elder Carlos de Lima Santos, 37 anos, solteiro, negro, natural de Salvador, morador do bairro da Palestina trabalha como professor de graffiti no Colégio Estadual Dinah Gonçalves, no bairro da Valéria, pelo Programa Educa Mais da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC). Filho biológico de Maria da Glória Bispo de Lima e Antônio Carlos Pereira dos Santos, Elder é o criador do projeto social Agente Modificadores e Mobilizadores Artístico (Amma), em Palestina, onde também atua ensinando, mas sem remuneração. Conhecido como Dego, ele cresceu em uma comunidade com falta de infraestrutura e saneamento básico e ainda sem creches, escolas, praças e acesso à saúde para atender à demanda com eficiência. Às margens da BR-324, no alto do morro, o bairro da Palestina tem cerca de 30 mil habitantes. Quando menino, Dego não tinha brinquedos, mas Rita Pires dos Santos, mulher que o criou desde os quatro meses, por ele ter sido gerado de uma relação extraconjugal de seu pai, lhe inspirou para utilizar a criatividade para desenhar bonecos de papel, criar carrinhos

de garrafa pet e fazer a leitura de livros e quadrinhos. Gêmeo de Eder, Dego nunca conheceu sua mãe biológica nem o irmão, morto aos quatro anos de uma possível infecção bacteriana. Sua família passava dificuldades financeiras, pois seu pai era alcoólatra e tinha que sustentar sua esposa, Rita, e os

“Dava graças a Deus quando tinha almôndegas com macarrão, e tinha gente que desperdiçava, eu pegava as sobras e comia”. dois filhos, Elder e meia-irmã, Ana Paula. A paixão pela leitura não foi o suficiente para mantê-lo na

escola, inquieto, ele repreendia a maneira como os professores ensinavam, gerando irritação. Aos 16 anos, evadiu do Colégio Estadual Dr. João Pedro dos Santos, na Avenida Bonocô, por causa da guerra entre facções criminosas dos bairros de Brotas e Cosme de Farias que prejudicava o funcionamento da instituição. Álcool, prostituição e almôndegas - As histórias de traquinagens e rebeldia são muitas. Aconteceu de ser expulso duas vezes da Estação Pirajá, por ter trocado, com um colega de sala, o vale transporte por merenda (lanche), não ter como custear a volta para casa, ele recebeu um pescoção (uma tapa no pescoço), mesmo fardado, de policiais que preveniam a invasão dos coletivos. Como muitos garotos, ele frequentava a escola também pelas refeições servidas no intervalo das aulas. “Dava graças a Deus quando a merenda não era achocolatado com biscoito. Quando tinha almôndegas com macarrão, eu podia comer bastante, mas ainda tinha gente que desperdiçava. Eu pegava as sobras, colocava no meu prato e comia”. Já moço, aos 22 anos, desmotivado e cansado das bri-

DEZEMBRO 2018

Soul

33


gas rotineiras que tinha com o pai, que era seu vizinho, e sua mãe de criação, Rita, já havia falecido, foi para Ilhéus, município a 460 km de Salvador. Objetivo: conseguir arrecadar dinheiro. Logo conseguiu trabalhos um no quiosque de praia e outro em uma boate, como garçom. Nessa época, o álcool fazia parte da rotina. Atingido pela herança maldita do pai, secava (bebia) umas três garrafas, por vez. Trabalhava durante toda a semana, inclusive nos finais de semana, para se manter acordado, se tornou usuário de cocaína e outras drogas. Conviveu de perto com a prostituição. Mas tinha consciência sobre seus limites e falava que, “no dia em que uma droga desinteirar o dinheiro de um sal, ela não me serve, porque, na vida, tem duas coisas importantes: comer e beber”.Nunca precisou cometer atos criminosos, como matar, roubare traficar drogas. Após dois anos e meio em Ilhéus, decidiu retornar para Salvador. “Fui tentar ganhar a vida com apenas R$ 5 reais no bolso e, quando retornei, ao descer ali próximo a Águas Claras, respirei fundo, com aquele sentimento de missão cumprida, coloquei a mão no bolso e só tinha, de novo, R$ 5 reais”. Antes, passou por outras cidades do interior da Bahia, onde aprendeu rap. Rap e breakdance - Dego voltava com um novo repertório de vida e questionamentos escritos nas suas rimas de rapper. Recebeu de uns manos (amigos), do Bairro da paz, uma fita k7 com algumas batidas para ensaiar. Nas letras, havia críticas ao sistema e exemplos de intervenções sociais para conscientizar a população de que é possível mudar a realidade, sem precisar esperar pelo governo. Como um bom filho, Elder 34

Soul

DEZEMBRO 2018

voltou para Palestina com vontade de mudar. Matriculou-se no Colégio Estadual Noêmia Rêgo, onde concluiu o ensino médio. Enquanto estudante, ele teve a orientação do professor Maurício Oliveira para cantar e trazer o rap para dentro da escola e, sempre nos finais de tarde de sexta-feira, fazia “Sexta Racional” contando com apoio dos docentes para reunir os alunos na quadra esportiva para explorar os talentos.Durante o período escolar, participou do Festival Anual da Canção Estudantil, levando canções próprias como “tempo de criança”, “insolúvel” e “ser ou não ser”. Na edição do projeto Palestina em Movimento oriundo do projeto Amma, o grafiteiro que iria dar aula não compareceu e o rapper Elder que não sabia grafitar, mas gostava de fazer desenhos em estilo cartoon, para não decepcionar aos presentes, assumiu a atividade e, assim desperta o interesse e aprendizado pelo graffiti. “Para mim, ele é como um sensei (mestre em japonês)”, diz Filipe Rodrigues, 24 anos, professor de break, um estilo de dança de rua, e rapper, conhecido como Filipe Hawkins, um dos co-criadores da Amma. Os dois participavam de um grupo em Alagados. Certo dia, estavam na gibioteca quando olhou para Elder Gold, nome artístico, e perguntou: “O que

é que a gente tá fazendo aqui?”. Dali, resolveram fazer algo pela comunidade onde viviam. Em 2012, o projetomudou de nome para Agentes Modificadores e Mobilizadores Artísticos (Amma), que realizava oficinas de breakdance, rapper, graffiti e teatro. Dego passou a ser professor de grafite, pelo Programa Educa Mais da SEC, no Colégio Estadual Dinah Gonçalves, em Valéria. Aos poucos conquistou ajuda como da vizinha, Jaciane Paixão, 31 anos, que se interessou para participar, pois “acredita que a arte e a educação têm uma grande influência na formação da identidade do adolescente e da criança”, e se tornou coordenadora da Amma. Quando parecia que tudo estava se encaminhando, Elder Gold recebeu a notícia que seu pai estava hospitalizado. Antes, os dois não tinham uma


boa relação familiar,havia muitas brigas, falta de atenção e antipatia, mas amadurecido, Dego resolveu ficar ao lado de seu Antônio, assumindo o dever de cuidar e zelar pela saúde, e todo ódio que carregava desapareceu fazendo brotar o amor paternal entre os dois. Mesmo com os problemas graves que atrapalhavam a mobilidade de seu pai, ele leva-o para alguns shows. “Meu pai era carente, bebia muito e sentia a necessidade de pessoas ao seu redor. Agora, comigo, levo para os eventos de rap e vejo que ele está feliz. Todos os meus planos incluem ele”. Inspirado pelo rapper Gabriel Pensador, Dego acredita no potencial e no talento das pessoas de bairros periféricos. Aventureiro e criativo buscou uma pequena luz na escuridão para deixar como influência sua concepção de mundo para os garotos da sua comunidade. DEZEMBRO 2018

Soul

35


EDUCAÇÃO

ABC da diversidade Falar, pensar e praticar a diversidade: é preciso conhecê-la. TEXTO: LAILA MIRANDA

A

professora Ioná Barata, que integra a equipe do Centro Multidisciplinar de Apoio Pedagógico e Psicossocial (Cemapp) da Faculdade Social da Bahia, considera diversidade um tema amplo e cita um trecho do livro ‘Pedagogia da Autonomia’, do renomado pedagogo Paulo Freire, que apresenta um conceito de diversidade: “quer dizer, mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um “não-eu” se reconhece como “si própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe”. Ioná, que assim como Freire tem formação em pedagogia, simplifica ao afirmar que a diversidade está muito ligada ao respeito e à aceitação. Ela ressalta a importância de se ver e se colocar no lugar do outro para poder compreendê-lo e daí aceitar e respeitar. Diversidade e diferenças se completam dentro do campo humano e social, defende. Para explicar, a educadora faz uma ilustração, dando o exemplo de uma caixa de lápis de cor: todos são lápis,

36

Soul

DEZEMBRO 2018

mas eles têm sua identidade própria que é a cor; cada lápis de cor possui uma cor diferente que lhe permite ter identidade própria. “Pensar diversidade é um trabalho interno. Primeiro ponto para pensar é quebrar todo preconceito que exista dentro de você. É tirar o “ou” e usar o “e”; é entender a caixinha de lápis de cor.” Fazendo alusão à filósofa Viviane Mosé, a professora Ioná aponta que é necessário deixar o pensamento binário, “ou um ou outro”, “ou branco ou negro”, “ou gay ou hétero”, e passar a pensar no “e”, no “branco e negro”, no “gay e hétero”, no “um e no outro”. Assim será possível começar a pensar diversidade. Falar de gênero é falar em diversidade. Há mais de cinquenta identidades de gênero, sendo 31 reconhecidas pela Comissão dos Direitos Humanos de Nova York (EUA) em 2016, dentre elas o não binário. O não binário é um dos gêneros que melhor representa a diversidade, pois não transita entre o binário homem-mulher, a sua identidade de gênero não se define nem por ser homem, nem por ser mulher. Ele transita entre esses dois universos. A pedagoga do Cemapp fala sobre compreender e aceitar a multiplicidade de gêneros, “identidade de gênero é uma

coisa interessante porque a cada dia vai se descobrindo uma nova identidade. E assim, qualquer uma que surja, que exista, a gente tem que compreender a pessoa humana antes de tudo. Não é o gênero que tem que vir na frente, mas sim a pessoa humana. Eu continuo pensando na pessoa humana.”

INCLUSÃO, UM PROCESSO

Destacar as diferenças a fim de fazer a inclusão muitas vezes gera o extremismo e as “pequenas ilhas” acabam se formando e é uma coisa comum, que faz parte do processo de autoafirmação das diferenças. “Dentro de toda diversidade, evidenciar as diferenças é comum e faz parte do processo. Não gera indi-


vidualismo porque é grupo, mas gera pequenas ilhas, uma série de ilhas”. Sobre o extremismo que acaba surgindo nos grupos, ela completa: “essa questão toda está na intolerância. O extremismo é tão grande que gera uma grande intolerância e as pessoas não pensam nisso. Então você quer se firmar, brigando contra a intolerância, mas acaba que você se torna intolerante também, porque você é extremista. Você faz a mesma coisa. É como se você estivesse condenando algo e você repete o mesmo padrão só que de uma forma diferente”. Conhecer, respeitar e ter empatia pelo outro é uma forma de evitar o extremismo, que exclui em vez de incluir. Ioná Barata explica que “sociologicamente a gente define inclusão como um entendimento de que as diferenças existem e que elas também somos nós; as diferenças existem, são da gente, estão com a gente.” Uma das formas de entender inclusão é pensar que há diferenças, é pensar diversidade, um processo que acontece de dentro para fora. “A gente precisa reconhecer isto: a minha identidade é composta de várias influências que eu recebi, que eu recebo, que eu ainda vou receber do mundo, por isso eu sou uma pessoa plural, mas ninguém é igual a mim e por isso eu sou singular”, conclui.

CINE CEMAPP O Centro Multidisciplinar de Apoio Pedagógico e Psicossocial promove o Cine Cemapp, projeto cujo objetivo é refletir e discutir inclusão e diversidade. O filme do mês de novembro é “As Sessões” (Ben Lewin, 2013), a ser exibido no dia 29, com certificação de três horas para os participantes. Mais informações no portal da Faculdade Social da Bahia.

Foto de Ioná Barata

YOUTUBERS NÃO-BINÁRIOS QUE FALAM SOBRE O GÊNERO

CANAL SOBRE SER MINIDOCS https://www.youtube.com/watch?v=pDkNq8--pNU

CANAL LORENA OLAF FURTER https://www.youtube.com/watch?v=l0mdSPYxM04

CANAL DA FERNAND MOTTA h t t p s : / / w w w.y o u t u b e.c o m / watch?v=uKrxvs0RWGk

CANAL DO HUGO NASCK h t t p s : / / w w w.y o u t u b e.c o m / watch?v=HdWUCLoIi-g h t t p s : / / w w w.y o u t u b e.c o m / watch?v=d9JmXWy2g2M

DEZEMBRO 2018

Soul

37


RAÍZES

Dreadlocks História, Empoderamento e Ancestralidade TEXTO: YASMIN AGUIRRE E LEONARDO BARBOSA

P

ara uns uma forma de desafiar os padrões de beleza, enquanto para outros pode ser a busca por uma identidade própria, ou um ato político e de resistência ancestral. Essas são algumas das definições mais atuais para o uso ou para a escolha dos dredlocks como penteado ou adorno capilar. Empoderamento,resistência e ancestralidade, essas são algumas das características que marcam a escolha dos dreadlocks como penteado, que também pode ser visto como um ato político ao romper com padrões de beleza e se impor frente a preconceitos. Traduzindo para o português Dread significa medo e Lock um cacho de cabelo, fazendo a junção das palavras vem o significado de “cabelos que causam medo”. Nos dias de hoje, esse significado faz bastante sentido pois as pessoas não conhecem a história por trás dos fios fazendo com que exista o preconceito. Muitos não sabem porém, os dreads existem bem antes

38

Soul

DEZEMBRO 2018

do movimento rastafarianismo, eles eram usados na África e da Índia. Nas tribos Indianas eram utilizados com intuito da praticidade pois muitos tinham dificuldades em cortar seus cabelos. Já na África os dreads são utilizados até hoje em algumas tribos como forma de empoderamento, tintas vermelhas são extraídas das árvores para as pessoas das tribos pintarem seus fios. O fato é que cada país de acordo com sua cultura, utiliza para um tipo de tradição. Muito popularizado na década de 70 adornando a cabeça do cantor jamaicano Bob Marley, que o usava como preceito religioso e filosofia de vida

pertencente à cultura rastafari, movimento judaico/cristão que surge na Jamaica em meados dos anos 30, entre camponeses descendentes de africanos escravizados. O dreadlock basicamente se


“Usar dread para mim é um ato politico, é mais uma característica que me liga a força da minha ancestralidade. E sem falar que acho esteticamente lindo. Me sinto poderoso.”

dá através do entrelace de mechas do cabelo com auxílio de materiais como óleos e ceras de base vegetal ou mesmo com a costura realizada com agulhas de crochê. Sempre manualmente. Dentre os vários tipos de dreads que existem destacamos neste ensaio dois, o natural fei-

to apenas de cabelos humanos e que só podem ser retirados com o corte do cabelo, e os sintéticos que são confeccionados a partir de fibras derivadas do plástico, e ou, materiais como linhas de lã e cordões. Estes, por sua vez são removíveis e devem ser facilmente retirados sem maiores danos aos cabelos de quem os utiliza. O fato é que os dreads tem feito a cabeça de muitos jovens em Salvador e deixado a cidade que é mundialmente conhecida por sua cultura ancestral e também ainda mais empoderada.

Leonardo Barbosa, 29 anos, estudante de Jornalismo

DEZEMBRO 2018

Soul

39


ESPORTE

Transexuais no ataque A atuação de transexuais no esporte tem produzido resultados expressivos e pautado debates TEXTO: ISRAEL MENESES, LUAN BORGES E RODRIGO LAGO

O

direito ao esporte é garantido constitucionalmente a todos os brasileiros, mas ele ainda carrega uma controversa divisão binária de gênero que impossibilita a inclusão das pessoas transexuais. Em países como a Austrália, a discussão sobre a participação de atletas trans no esporte envolve a prática do futebol. Nos Estados Unidos, um dos casos de maior repercussão aconteceu no MMA, em que a atleta trans Fallon Fox lutava contra atletas cisgeneros. Já no Brasil, o debate tomou grandes proporções a partir do caso da atleta trans Tifanny Abreu que atualmente

40

Soul

DEZEMBRO 2018

compete na Superliga Feminina de Vôlei. Tifanny Abreu, primeira jogadora transexual a atuar na superliga feminina brasileira de vôlei, ganhou visibilidade nacional ao marcar 39 pontos em um mesmo jogo, em janeiro de 2018, quebrando o recorde que antes pertencia a Tandara Caixeta, com 37 pontos. Devido ao feito, os debates acerca da participação de transexuais na categoria em que se identificam passaram a ser mais frequentes. As principais questões levantadas estão relacionadas a duas vertentes, a biológica e a social. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), transexuais são pessoas que nasceram com um determinado gênero biológico porém não se identificam com esse gênero Assim como Tiffany, muitos transexuais buscam espaço e reconhecimento em diversas modalidades esportivas. É o caso de Cláudia Santana Andrade, 36 anos, mulher transexual, da cidade de Itabuna (BA) que, depois de muito tempo jogando anonimamente, conseguiu registro pela Confederação Brasileira no naipe feminino em 3 de março do ano passado. Cláudia

já passou por muitos constrangimentos por disputar nessa categoria, mas afirma que o feito de Tifanny foi de grande importância por trazer o assunto para o debate popular. “Ela nos representa, com a visibilidade do seu caso, muitas mulheres e homens trans se sentiram motivados a agilizar documentos para atuarem no naipe em que se identificam.” Para poder jogar na categoria que sempre quis, Cláudia, que já participou de competições na Itália, precisou apresentar inúmeros documentos a organizadores de competições de vôlei que, por muitas vezes, duvidaram das comprobações. “Isso não passa de pura transfobia da parte de alguns e até mesmo

Em 2018, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista de transtornos mentais, mas ela continua na Classificação Internacional de Doenças (CID), em uma nova categoria denominada “saúde sexual”. A atualização é um marco e foi a primeira grande revisão da CID em quase três décadas.


trans em competições, o Comitê Olímpico Internacional (COI) tem apurado os casos. Segundo o COI, exigir mudanças anatômicas cirúrgicas não é necessário para preservar uma competição justa, além de contradizer as diretrizes dos Direitos Humanos.

O SOCIAL

Mesmo sem registro na CBV, Cláudia já jogava em todo o Brasil, disputando importantes campeonatos. Em um deles, sofreu preconceito por sua identidade social e procurou a justiça para que a ajudasse a reparar o constrangimento. “Chegaram a me expulsar da quadra e ainda questionavam a veracidade dos meus documentos”. Para Claudia, foi através do ocorrido com Tifanny que os técnicos e organizadores de disputas esportivas passaram a ter uma visão mais ampla em relação à diversidade de gênero. Para a atleta itabunense, uma mulher trans tem o mes-

mo desempenho de uma mulher cisgênero em quadra. “Uma mulher trans, formada de corpo e alma, tem a mesma força, a mesma agilidade e impulsão que qualquer outra mulher cis”. De acordo com Annie Peytavin, representante da Federação Interna- cional de Vôlei

“Quando participei de pequenas competições na Itália, o único preconceito que sofri foi por ser baixinha”. Tifanny Abreu, primeira transexual na superliga feminina de vôlei

(Foto: reprodução)

inveja da parte de outros. Em quadra, nós, mulheres trans, cansamos mais rápido por tomarmos uma grande quantidade de estrogênio, corremos graves riscos de trombose e muitos danos psíquicos”. De acordo com um estudo elaborado pela Organização Transgender Europe (TGEU), o Brasil é a nação mais transfóbica do mundo. Entre os anos de 2008 e 2014 mais de 600 transexuais morreram no país por razões relacionadas ao gênero. No período, foram 511 violações notificadas contra a população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais). As maiores vítimas foram transexuais. Na opinião de Cláudia, existe uma intenção maldosa por parte de algumas pessoas. “O que essas pessoas querem é que as trans voltem para a prostituição e não tenham direito a uma vida digna”. Poucos dados detalham a atuação de transexuais no mundo esportivo, mas, devido ao grande número de participações anônimas de profissionais

Antes de registrar sua participação na superliga feminina, Tifanny jogava com a equipe masculina. DEZEMBRO 2018

Soul

41


(FIV), os avanços significativos e as questões médicas que envolvem o transexual fizeram com que o vôlei passasse por mudanças. Sobre as reuniões e a participação dos trans no vôlei, a federação publicou uma nota dizendo que “o objetivo é assegurar tanto em competições de quadra como de praia que se respeite a escolha individual de uma pessoa, ao mesmo tempo que assegure condições equitativas no campo de jogo. Para competições nacionais de clubes, a participação dos transgêneros é exclusivamente de responsabilidade das federações nacionais”.

O BIOLÓGICO

Há poucos dados científicos acerca da atuação de tran-

42

Soul

DEZEMBRO 2018

sexuais em esportes no Brasil, mas muito se questiona sobre as vantagens e o melhor rendimento que atletas trans podem ter no esporte. Ainda há muitas lacunas de informações que pouco a pouco são preenchidas por meio de pesquisas direcionadas. Luciana Barros, médica endocrinologista, afirma que não existem dados sobre transexuais na Bahia. “O que se sabe de estudos científicos é que 0,5 a 1,3% da população de vários países é transgênero. Não temos dados oficiais brasileiros ainda”. De acordo com Luciana, não existe um procedimento médico padrão para a mudança de gênero ocorrer, pois cada caso é específico. “Tudo vai depender das mudanças

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

corporais que o indivíduo procura, podendo ser tratamento hormonal ou cirurgia. A portaria nº 2803 do Ministério da Saúde explica passo a passo como isso deve ser feito no SUS, já no serviço privado há variações, mas poucos médicos fazem”. Luciana faz um alerta para pessoas trans que pretendem iniciar o uso de medicamentos para se adequarem às características do sexo oposto ao seu biológico. “É necessário monitorar os níveis dos hormônios dentro da faixa de normalidade para o gênero com o qual a pessoa se identifica, pois há riscos como a trombose e embolia, alteração dos níveis de colesterol e resistência à insulina”. Quando perguntada sobre o caso Tifanny, a endocrinologista afirma que não considera como dopagem o uso de medicamentos que auxiliam na busca pelas características do sexo feminino, pois os hormônios da atleta são endógenos. A dopagem exógena é considerada irregular para a prática esportiva, uma vez que melhora o desempenho de forma artificial.

A professora Luciana Barros da Universidade Federal da Bahia (UFBA) iniciou as atividades como coordenadora do ambulatório para transgêneros da instituição em outubro.


A atleta Cláudia afirma nunca ter utilizado nenhuma substância ilegal que colaborasse com o seu desempenho em quadra. “Minhas participações foram sempre prezando pelo respeito às outras competidoras”. Primeira jogadora transexual a atuar num time de médio porte na região metropolitana da capital baiana, Cláudia recebe do seu treinador, Paulo Henrique, motivação extra para seguir inserida no esporte. Ele explica que não há uma grande diferença entre uma pessoa trans e outro atleta, apenas faz uma ressalva para a musculatura e alguns órgãos que não perdem as características iniciais. Mesmo sem receber um auxílio do poder público, Paulo diz que uma ajuda poderia acolher jogadoras como Cláudia e tantas outras, que daria a essas atletas esperança por melhorias no acesso ao esporte. Ainda

acredita que, quando a questão trans estiver regulamentada no COI - Comitê Olímpico Internacional, o incentivo vai ser superior ao que tem na atualidade. Sobre o desempenho de Cláudia o técnico diz: “É extremamente relativo, quanto mais tempo passa e a pessoa demora de fazer o processo de mudança, é óbvio que ela vai se sobressair melhor que as outras atletas”. Ainda esclarece que a diferenciação não é tão grande, sobretudo no aspecto biológico. Em resposta ao questionamento sobre o recorde, que antes pertencia à jogadora Tandara, ter sido quebrado justamente por uma atleta trans, Paulo diz que tal feito é extremamente relativo e que não é possível tirar conclusões por conta de apenas um ano de temporada de Tiffany. “É óbvio

que uma atleta que passa por uma pré-temporada, tem toda uma preparação inicial e isso corresponde ao rendimento anual do atleta. Depende muito de como ele se condicionou durante o início do ano”.

NAIPE é uma palavra informalmente usada no vôlei para designar a categoria em que o/a/x atleta compete. TRANSEXUAIS são pessoas que nasceram com um determinado sexo biológico (masculino ou feminino) mas não se identificam com ele.

DEZEMBRO 2018

Soul

43


ENTREVISTA Estudante de Direito, Carolina Suzart: defesa da Constituição e combate à intolerância

SACRIFÍCIO DE ANIMAIS

O pode. O AFRO, não. O

TEXTO: JORGE MÁRIO

termo racismo religioso tem sido mencionado e pautado por grandes veículos de notícias. Seja porque terreiros de candomblé espalhados pelo Brasil afora estão sendo atacados de forma cruel, tendo seus elementos sagrados danificados, ou porque no último dia 9 de agosto de 2018 no STF (Supremo Tribunal Federal) em Brasília ocorreu o julgamento de um recurso extraordinário 494.601, movido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que pedia a proibição do abate de animais para fins religiosos de matriz africana, naquele estado. A reportagem da SOUL entrevistou Carolina Suzart, 35 anos, estudante de direito e também ekedi, iniciada há quatro anos no candomblé, que fala sobre liberdade de credo, prevista na Constituição brasileira, e relata experiências reveladoras sobre a violência e carga de preconceito do discurso e das atitudes de intolerância e racismo religiosos.

44

Soul

DEZEMBRO 2018


SOUL: No último dia 9 de agosto,

o STF julgou um recurso gerado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que pedia a proibição do sacríficos de animais para fins religiosos de matriz africana. Dois ministros votaram contra e um ministro pediu revisão do caso. Se na próxima sessão o STF favorecer o MP do Rio Grande do Sul, quais os reflexos você acha que teriam aqui na Bahia? CAROLINA SUZART: Acredito que o reflexo negativo não se dará somente na Bahia, mas em todo o contexto do Brasil. No ramo do direito existem as possibilidades de rever os dispositivos, podem ocorrer mudanças dentro do ordenamento jurídico. Muitas dessas mudanças ocorrem na base do respaldo da jurisprudência que em termo mais formal, fora da “língua juridiquês”, seriam os resultados de julgamentos anteriores que podem servir como base para fundamentações jurídicas posteriores. É como se abrissem brechas. E nesse contexto que abrange o Ministério Público de um estado brasileiro como foi no Rio Grande do Sul, pode sim afetar os outros contextos de vários estados brasileiros, pois estaria dando brechas para mais perseguições e discriminações. Por isso é tão importante a luta para que não prossiga esse ato que ofende e fere a Constituição Federal já que a mesma garante no Artigo 5º de seu texto o direito de culto e religião.

SOUL:

No ano de 2013 o então vereador Marcell Moraes (PV) criou um projeto de lei propondo a proibição do sacrifício de animais no candomblé em Salvador. Segundo a entrevista que Marcell concedeu ao jornal Correio, ele dizia que as oferendas teriam que mudar, que a cultura não poderia virar tortura. Existe a possibilidade de substituição dos sacrifícios de animais? CS: Em primeiro lugar, esse se-

nhor, que diz ser um servidor público que trabalha para o povo, é um total desinformado e ignorante no sentido mais forte da palavra. Não existe tortura no ato das oferendas nas religiões de matriz africana. Nós não batemos, nem torturamos e muito menos maltratamos os animais. Explanar o ato não convém até porque são coisas internas da religião que somente um iniciado tem acesso. Nem mesmo os iniciantes que ainda não foram confirmados na religião têm acesso a isso. Porém, o que posso informar é que cuidamos dos animais, damos banho, rezamos e pedimos permissão para praticar a oferenda. Não existe substituição no sacrifício de animais posto que a energia vital do ato de oferendar é justamente esse: ofertar algumas partes do animal e o restante cozinha-se e todos da comunidade do terreiro e visitantes que vão às festas/celebrações comem o alimento. Então, para além de ferir o ato de oferendar alheio ainda se mexe com toda a estrutura organizacional do terreiro e implica no ato de alimentar da comunidade.

coisa. O ato de ofertar oferendas não diz respeito somente ao candomblé. Além do mais, o ato de proibir e abolir uma prática que é vital e de suma importância de uma religião é um ato de violentar o direito de culto e manutenção da fé. Como falei anteriormente, a Constituição Federal brasileira assegura no Artigo 5º o direito de cultuar, celebrar e manter a fé. Proibir o sacrifício de animais nas religiões de matriz africana é sim violentar a religião em si.

SOUL:

A senhora considera que a pouca quantidade ou a falta de representantes na esfera politica, ou no judiciário contribui para ações como a do MP do Rio Grande do Sul ganhem força a ponto de serem julgadas?

SOUL: Os movimentos e as enti-

dades negras falam muito do genocídio do povo negro, principalmente nas favelas, periferias, a partir de ações militares e policiais. A senhora considera que a tentativa de alterar os rituais das religiões de matriz africana é uma forma de violência? CS: É uma forma de violência, sim. Essa perseguição é fruto do racismo estrutural porque não é somente a religião de matriz africana que se pratica o ato de oferendar. E muito menos isso é algo atual e somente de negros. Na Grécia Antiga, o povo, ao cultuar os deuses, subiam ao Olimpo e davam oferendas que também eram animais. Os messiânicos também colocam oferendas no altar, inclusive peixes. Os budistas, a mesma DEZEMBRO 2018

Soul

45


CS: Com toda certeza a falta de

representatividade das religiões de matriz africana e nos assuntos que permeiam o contexto que engloba a discussão da negritude, a afirmação do povo negro, afeta diretamente esse momento que vivemos. É sabido que a política brasileira virou um palco de fanáticos religiosos e lobistas da agricultura. Por que o maltrato que os animais sofrem nos abatedouros não comovem os políticos como abala a galinha que é oferenda num terreiro? Fica evidente e explícito que o que acontece é uma perseguição da bancada evangélica às religiões de matriz africana. É uma caça e escárnio com a religião alheia e que fere totalmente a estrutura dos direitos da justiça brasileira. Faz-se necessário e é de extrema urgência o povo de santo se auto-organizar e buscar referências que possam representar as demandas que estamos sofrendo. Enquanto existir uma bancada evangélica, de homens brancos e burgueses ditando regras, nós seremos as 46

Soul

DEZEMBRO 2018

“A todo o momento eu sou discriminada por ser da religião do Candomblé. Basta eu andar nas ruas com as minhas vestes brancas, com meu ojá branco cobrindo a minha cabeça, com minhas contas penduradas em meu pescoço”. maiores vítimas. SOUL: A senhora já sofreu preconceito por ser do candomblé? CS: A todo o momento eu sou discriminada por ser da religião do candomblé. Basta eu andar nas ruas com as minhas vestes brancas, com meu ojá (torço ou turbante) branco cobrindo a minha cabeça, com minhas contas pendurada em meu pescoço. Já se levantaram do assento do ônibus coletivo para não ficarem do meu lado. Já fui xingada por uma senhora evangélica nas ruas. Um vendedor ambulante já disse que o demô-

nio estava em meu corpo. Um ex-namorado me “pediu” que eu não fizesse macumba para ele pós término do relacionamento. Já tive pessoas que ao descobrirem a minha religião mudaram a forma de me tratar. Já fui xingada e hostilizada por colegas da faculdade. Se eu for enumerar todas as formas de violência que sofri, não irá caber nessa entrevista. Pois, não me faltaria texto. Nós, praticantes das religiões de matriz africana, e mais propriamente nós do candomblé, vivemos a perseguição rotineiramente. E o problema


é justamente que a perseguição não está se dando somente na senhorinha que me xinga de demônio ao me ver de branco. Estamos sofrendo represália no âmbito político e posteriormente do jurídico. Vivemos tempos difíceis e para além de lutar para existir, nós resistimos!

SOUL:

Nos últimos tempos, se tem falado muito no termo racismo religioso. O que de fato é racismo religioso? CS: Racismo religioso é o ato de discriminar a religiosidade alheia ou fé alheia fundado num ato perverso, na verdade num mecanismo perverso calçado no racismo estrutural. No contexto do nosso país e pela própria historicidade brasileira, ainda temos as marcas do período escravocrata e a perseguição ao povo negro. Prova disso é o genocídio do povo negro e na seara religiosa temos a perseguição às religiões de matriz africana: candomblé e umbanda. O racismo religioso é o reflexo de uma sociedade racista e contra a negritude cultuada pelas crenças de herança africana e negra.

ta das casas alheias pela manhã num domingo e muitas pessoas não gostarem desse ato. Mas eles não são perseguidos pela vestimenta, adereços, adornos e procedimentos religiosos como os adeptos do candomblé são afrontados. A intolerância religiosa desrespeita a fé alheia enquanto o racismo religioso agride uma determinada raça ou povo.

SOUL: O racismo religioso atinge

exclusivamente os negros? CS: Acredito que o racismo religioso atinge toda e qualquer crença que agrega raças e etnias, porém dentro do nosso contexto brasileiro, os negros são os atingidos por esse mecanismo per-

verso que é o racismo religioso. Visto que são as religiões de matriz africana que sofrem as represálias e perseguições. Ou seja, a religião do negro, que cultua os “santos” e entidades negras, com a música negra e a comida negra é a religião que não presta. É religião que é “demoníaca”. A pregação nos ônibus coletivos, por exemplo, é feita por evangélicos da linhagem pentecostal. Se um filho de santo subir no coletivo para falar a “palavra de exu”, além de ser apedrejado e expulso do ônibus, com toda certeza a pregação seria proibida. Mas, falar de um santo branco, com cabelos lisos e olhos azuis é permitido.

SOUL: Qual é a diferença entre racismo religioso e intolerância religiosa? CS: Há diferença, embora os assuntos se cruzem e se envolvam um ao outro. A intolerância religiosa conota toda e qualquer discriminação e agressão ao ato religioso de outrem. A religiões, seitas, igrejas, congregações, terreiros, sinagogas, etc. e todo e qualquer meio de manifestação religiosa. Já o racismo religioso, para além de adentrar a intolerância religiosa em si, vai mais longe. Pois, perpassa o contexto da intolerância pelo viés da religiosidade relacionada à cor da pele, à descendência, à ascendência da religião perseguida em si. Por exemplo, os testemunhas de Jeová podem ser vítimas de intolerância religiosa pelo ato comum de eles baterem na porDEZEMBRO 2018

Soul

47


PERFIL

ÁRIDO E GAY:

direto de Alagoinhas, Hiran não perdoa nas rimas TEXTO: LUIZ FELIPE FERNANDEZ

F

oi com voz embargada que Hiran Fernandes atendeu a ligação às 9h, a melhor e única alternativa restante para conseguir um espaço na agenda do rapper. Natural de Salvador, até os 17 anos se criou no lifestyle interiorano de Alagoinhas, cidade conhecida como a “terra das laranjas” do nordeste baiano: um lugar árido para ser gay. Aos 23, há pouco mais de um ano, ele passou de backing vocal de uma banda de rock para ser a voz principal da sua história na música e no rap. Em viagem a São Paulo com a banda Limbo, se deu conta de que aquele sonho

48

Soul

DEZEMBRO 2018

era o dos outros integrantes do grupo, não o dele. Ficou “deprê” por não estar “expressando a sua verdade” naquela cidade descolada, com inúmeras influências e diversidade cultural. Deu início à sua carreira solo, gravou um vídeo no meio de uma rua de Sampa. Foi julgado, voltou para casa e, com um beat encontrado na internet, lançou o seu primeiro single “Choque de Bass”. O single despertou a atenção do produtor Thiago Magalhães, que lhe abriu as portas do estúdio onde trabalha com Baco Exu do Blues, o rapper baiano, que estourou com a música Sulicídio

(2017). A voz sonolenta de Hiran ao telefone era em parte resultado do fato de ele ter dormido tarde assistindo ao Prêmio Multishow 2018, em que Baco recebeu duas estatuetas. Convite para ir ao evento Hiran já teve, mas dispensou. Estava com viagem marcada para o Rio. O músico reconhece que ainda não está acostumado com a rotina do sucesso, conquistado após o lançamento da canção e EP intitulados “Tem Mana no Rap”, que lhe renderam shows na cobiçada cena Rio-São Paulo. Em curto prazo, ele não acredita que irá absorver com naturalidade tantas novidades,


como estar sentado ao lado do ídolo Caetano Veloso no MIAW MTV – afinal de contas, “um ano é muito pouco”. O gosto pela música veio

“terra das laranjas” do nordeste baiano: um lugar árido para ser gay.”

ainda na infância, incentivado pela mãe. Aos 9 anos, Hiran começou a cantar, com as referências acumuladas ao assistir programas de TV que exibiam shows de MPB e clipes internacionais. Acompanhou as produções do universo pop, mas desde aquela época já se sentia atraído pelo hip-hop. Mesmo com o reconhecimento da mídia especializada, entrevistas para o Estadão e participação no Cultura Livre, o baiano ainda sente que falta algo. Não que seja pouco chamar a atenção de críticos e, por exemplo, ser convidado para tocar na Virada Cultural de São Paulo, mas admite não ser conhecido pelos rappers, assim

como é por artistas de outros gêneros. Desde que começou a carreira, não para de trabalhar, mas também ainda não está presente na grade dos festivais de rap de Salvador. A única experiência, na boate Amsterdam, foi “horrorosa”: “Eu via a homofobia nos olhos das pessoas. Ninguém precisou me dizer nada”. O novo fenômeno do “queer rap”, gênero que tem crescido nos últimos anos no Brasil e nos Estados Unidos e mistura a estética “gangster” com o universo LGBT, Hiran não considera a cena do rap especificamente machista ou homofóbica. Nada que não seja encontrado em o u tros estilos musicais, mas justificado por ele por uma possível origem nas periferias. Ele não “passa pano”, mas sep a r a aqueles que têm men o s acesso à i n formação d o s que preferem ignorar. Hiran atribui uma maior responsabilidade aos canais do YouTube, produtores e contratantes, que têm a capacidade de fazer a “inserção” dos rappers LGBT no mercado. Mesmo com a “Quebrada Queer” no canal RapBox, a carreira sólida de Rico Dalasam e a ascensão do próprio Hiran, por exemplo, a música feita por MCs gays não está sendo ouvida pela maioria dos admiradores do segmento. Na verdade, é o rap que tem se tornado um produto cada vez mais consumido pela população LGBT. Hiran sabe que ainda tem muito para conquistar e reconhece que teve a “sorte” da sua

competência encontrar músicos como Russo Passapusso, que o convidou para cantar no Navio Pirata do BaianaSystem, no carnaval, assim como Thiago Magalhães, que o convenceu de que ele tinha muito mais para falar do que havia escrito em sua primeira música. Depois de “Tem Mana no Rap”, o produtor continuou com Hiran e o trabalho só terminou após mais seis faixas e o primeiro álbum lançado. Se antes pedia a ajuda da mãe para costurar as roupas da moda, hoje veste looks de estilistas de artistas como Elza Soares e Liniker. “Hoje em dia curto a moda de uma forma mais especializada”. “Longe do fim”, Hiran quer “muito mais”, como diz na faixa “Furando as Blitz”, que tem participação de Vandal. Mas uma coisa é certa: não pretende esquecer Alagoinhas. Mesmo com a rotina completamente diferente, sempre que pode marca presença em shows, batalhas de rima e na pista de skate. Ele cita os conterrâneos Jean Wyllis e Solange Almeida, que ganharam o Brasil, cada um em sua área, mas não retornaram para a cidade. Hiran sabe que ocupa um lugar desejado por muitos, mas impossibilitado por limitações financeiras, sociais e principalmente de um pensamento tradicional e conservador. Diferentemente de tantos outros artistas da cidade, uns que ele jura terem talento, Hiran partiu para a capital. Sem dinheiro para morar e comer, inicialmente contou com a ajuda de amigos e, agora, tenta entender o porquê de colegas de infância pedirem para tirar foto com ele. Mas não liga: quer ser exemplo para outros jovens, gays, de Alagoinhas, que têm o brilho ofuscado pela intolerância, preconceito e pela falta de oportunidades, para mostrar que as “manas” podem estar no rap ou em qualquer lugar que desejarem. DEZEMBRO 2018

Soul

49


50

Soul

DEZEMBRO 2018


DEZEMBRO 2018

Soul

51


www.fsba.edu.br

52

Soul

DEZEMBRO 2018

(71) 4009-2840


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.