Revista Soul #5 - junho de 2018

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Soul Black GÊNERO E DIVERSIDADE

Ano 03, Edição 05, Junho de 2018

CAPRICHOSA E GARANTIDA Papo com a jornalista Wanda Chase

POR UMA NOVA SOCIEDADE Combate às artimanhas do racismo

IMAGENS DE ALÉM-MAR Pela lente de Tom Correia

BLACK EM FOCO

Estudantes, engajados e fotogênicos JUNHO 2018

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Revista Soul - Projeto interdisciplinar produzido pelos alunos do curso de Jornalismo da Faculdade Social da Bahia (FSBA), Salvador-BA. Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Adriana Telles Projeto gráfico: Elisangela Sandes TEXTOS: Caroline Rodrigues, Joice Antero, Laila Miranda, Tom Correia, Gabriel Rodrigues, Izaura Furtado e Vanessa Brunt EDITORIAL: Bárbara Souza CAPA: Elisangela Sandes FOTOS E ILUSTRAÇÕES: Tom Correia, Gabriel Rodrigues, Caio Cardoso, Joice Antero, Fernanda Costa, Elisangela Sandes, Freepik e Pixabay COLABORADORES: Edielson Silva e Harrison Lago COMITÊ EDITORIAL: Adriana Telles, Bárbara Souza, Caio Cardoso, Cristina Mascarenhas, Daniela Souza

Faculdade Social da Bahia – FSBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170-010. www.fsba.edu.br (71) 4009-2840 Diretora: Margareth Passos Vice-diretor: Fernando Miranda Coordenadora Acadêmica: Ornélia Marques

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 1

(JUNHO – 2016) Empoderamento feminino, a doença do preconceito (‘que dizima também quem paga o dízimo’) e combate ao feminicídio foram os temas de destaque na Capa da 1ª edição da Revista Soul, que materializou o projeto editorial proposto e concebido por estudantes do 5º semestre do curso de Jornalismo. A edição inaugural tratou de temas que só há pouco tempo passaram a ser abordados pela mídia sob o enfoque dos direitos humanos e respeito à diversidade. Um enfoque que se empenha em deixar de lado o olhar que reforça o estigma social e patologização das questões de gênero e diversidade – ou ao menos se empenha em fazê-lo. Cultura, religiosidade, serviço, curiosidades: a diversidade temática foi a marca da edição nº 1 da revista. Ah, sim: teve gorda na Soul e terá sempre! Como sempre terá magros(as), homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transgêneros, jovens, idosos (as), gente. 4

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 2

(NOVEMBRO – 2016) A 2ª edição da Soul fez jus à temática que ancora editorialmente a publicação: diversidade e gênero. Foram várias as vozes ouvidas e os posicionamentos apresentados. A principal chamada de Capa foi a entrevista com o editor-chefe do canal LGBT do jornal Correio, líder na Bahia, o jornalista Jorge Gauthier. Cultura indígena, história de luta das mulheres por direitos, inclusão de pessoas com deficiência auditiva e combate à violência doméstica também estão entre os temas das matérias da edição nº 2. A Soul reuniu diversos gêneros jornalísticos: reportagens, uma entrevista pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys e dois artigos: um do estudante de Jornalismo Théo Meirelles, da FSBA, sobre ‘Transexualidade e mídia’, e outro, da advogada e professora Natália Silveira, que integra o corpo docente da FSBA e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 3

(JUNHO – 2017) Muito além do arco-íris. A terceira edição da revista Soul publicou uma reportagem sobre 56 identidades de gênero. Isso mesmo: cinquenta e seis. A relação das crianças com a diferença – e os cuidados para que o preconceito de adultos não seja incutido nas mentes abertas dos pequenos – crossdressing e alternativas de mobilidade urbana integraram a edição nº3 da Soul. A publicação trouxe ainda uma reportagem sobre como a indigesta proposta de reforma previdenciária do governo Temer afeta, particularmente, as mulheres. Outra matéria conta um pouco da história e trajetória de Rico Dalassam, um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro e o primeiro rapper assumidamente gay do país. E mais: uma entrevista exclusiva com Russo Passapusso, cantor da premiada Baiana System, que rejeita a classificação de ‘música alternativa’ para a banda.


REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 4

(NOVEMBRO – 2017) Uma Igreja que segue as Sagradas Escrituras, acredita na Santíssima Trindade e ordena homossexuais “declarados” como líderes religiosos. O respeito à diversidade foi um dos temas da entrevista exclusiva com o reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana da Bahia, publicada na edição nº 4 da Soul. A reportagem conversou também com o professor Leandro Colling, coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), sobre a reserva de vagas para travestis, transexuais e transgêneros nos cursos de mestrado e doutorado da UFBA, iniciativa inédita na história do ensino brasileiro. Também foi pauta a depressão entre LGBTs, um dos grupos mais vulneráveis à enfermidade. A quarta edição da Soul trouxe ainda uma reportagem sobre como as brincadeiras de infância podem contribuir para a criação de estereótipos e preconceitos. “Todo mundo quer saber com quem você se deita”, diz a canção. Será que Freud explica? O artigo do professor Luiz Lopes, coordenador do curso de Psicologia da FSBA, aborda essa questão. JUNHO 2018

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Editorial

“A

cultura negra há algum tempo vem sendo considerada como o que há de mais típico da ‘baianidade’. Mas isso coexiste com o racismo, a desigualdade, a falta de infraestrutura em comunidades predominantemente negras, com a violência policial e intracomunitária de que é principal vítima a juventude negra etc. Acontece em todo o Brasil, a propósito: 77% das vítimas de homicídio são negras, enquanto a população negra é cerca de 51%, uma considerável desvantagem de 26%! Mesmo na área da cultura, há sinais sombrios: penso no candomblé, alvo constante da intolerância e da violência religiosas, e vejo pouco ser feito quanto a isto pelas autoridades constituídas. Caberiam uma campanha de esclarecimento e uma política de investigação sistemática e punição desses crimes.”. A declaração é do historiador baiano João José Reis, 65 anos, considerado uma das maiores referências no mundo dos estudos sobre escravidão no século XIX, em entrevista ao jornal Correio em setembro de 2017. Em entrevista à revista MUITO, em abril de 2018, a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz nos lembra a face perversa dessa (extensa) página infeliz da nossa história: o

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Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Dos 518 anos que tem hoje, o Brasil foi conivente e deu sustentação legal a uma sociedade escravagista por quase 400 anos. “Tínhamos trabalho escravo de norte a sul do Brasil, não existia local em que não existisse a escravidão no nosso território. Tem um dado interessante: a técnica da fotografia chegou aqui na década de 1850, e a escravidão só acabou em 1888. Então, o que ocorre é que o Brasil possui um dos maiores acervos fotográficos de escravidão”, conta Schwarcz.

A proposta desta edição especial da Revista SOUL, que tem o selo SOUL Black, é contar outra história: a de profissionais e estudantes de Jornalismo que vivem e reconstroem o Brasil de hoje, onde a voz nefasta da discriminação ainda ecoa de norte a sul. Mas, como a Martin Luther King, o que nos preocupa não é o grito dos maus, e sim o silêncio dos bons. É um dever do Jornalismo contribuir para multiplicar as vozes que se unem e se impõem para fazer calar toda forma de preconceito. BOA LEITURA! Bárbara Souza Coordenadora do curso de Jornalismo da FSBA


PING PONG

Wanda Chase: “Quem ousaria me discriminar?” Caroline Rodrigues

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ENTREVISTA

EM TELA

Juliana Dias, Gil Santos: Bom jornalismo respeita Eduardo Machado e Tairine Ceuta as pessoas Bárbara Souza

Newton Soares

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ONDE ANDA VOCÊ

Força e representatividade de Donminique Azevedo

FOTOGRAFIA

A invisibilidade revelada pela lente de um jornalista em Lisboa

Joice Antero

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Tom Correia

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Nara Santos: jornalismo “é a minha cara!” Laila Miranda

22 Belos, engajados e no ar!

Produções de mulheres negras ganham as telas

Gabriel Rodrigues

Vanessa Brunt

Izaura Furtado

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ENSAIO FOTOGRÁFICO

AUDIOVISUAL

ARTIGO

Por um novo projeto de sociedade

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PING PONG

“Ninguém pode dizer que fui demitida da TV Bahia por racismo. Passei “Pensei em já colocar um olho aqui, com uma 26 anos lá” frase de impacto”

TEXTO E FOTOS: CAROLINE RODRIGUES

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ornalista, negra, nascida no estado do Amazonas, no bairro Praça 14, Wanda Chase tem em seus pais e avós o principal alicerce dos seus valores e princípios. Em 1998, veio morar em Salvador e trabalhar na TV Bahia, afiliada da Rede Globo, onde participou de coberturas jornalísticas históricas dentro e fora do estado. Entre as principais conquistas profissionais está o Prêmio Banco do Brasil de Jornalismo, em 2003, com a reportagem “Angola” que mostra o processo de reconstrução do país após o fim da guerra civil. Ao longo de sua vida profissional Wanda Chase sempre buscou a valorização do negro na mídia e na sociedade. Mais do que isso: sempre buscou ser e dar exemplo, como pessoa e jornalista. “Cheguei à TV Bahia, todos alisavam o cabelo e eu vou com o cabelo cortadinho, um cortado quadrado que aqui chamava de V8. Nunca ninguém me disse: “alisa seu cabelo”. Quem teria coragem de me dizer?” Basta conversar um pouco com Wanda Chase para saber que a resposta é: “ninguém”. CONFIRA A ENTREVISTA!

SOUL BLACK:

Quando despertou o desejo de tornar-se jornalista? WANDA CHASE: Eu já tinha pensado em fazer várias profissões. Eu queria ser professora. Depois, meu pai disse que não, “de jeito nenhum”, professor ganhava muito pouco. Tive uma professora de português chamada Fátima Folhadela. Uma vez escrevi

um texto em que eu falava de um outro planeta e descrevia essas pessoas desse outro planeta, seus jeitos, gostos, a ação deles e tudo mais. Era uma coisa de ficção e ela achou aquilo interessante. Aí ela falou: “Wanda, tu queres o que pra tua vida? Qual profissão?” Aí eu disse “eu quero ser advogada”. Ela disse “não, tu

deverias ser jornalista, eu acho que é bom pra ti, a forma que tu escreves, seria bem interessante”. Aí eu pensei nisso, quer saber de uma coisa? Eu já gostava na época de telefonar para programas de rádio. Lá em Manaus tinha um que era “Do ouvinte ao Disc Jockey”, e eu ligava para os programas de rádio, e fui to-

Maquiagem: Nalva Maison. JUNHO 2018

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mando gosto. Aí eu pensei, eu vou fazer! E me inscrevi no vestibular. Foi a melhor coisa que eu escolhi, ser jornalista.

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BLACK: Em sua trajetória como jornalista, você já passou por alguma situação de preconceito? WANDA: Quem é negro que nunca passou por uma situação de preconceito está mentindo. Agora é o seguinte, quem ousa me discriminar? Não é humilhando, é como você chega e se impõe. Tem gente que pergunta: “você passou tanto tempo na TV Bahia, ai, mas o que fizeram com você?”. Ninguém pode dizer que fui demitida da TV Bahia por racismo. Passei 26 anos lá. Cheguei à TV, todos alisavam o cabelo e eu vou com o cabelo cortadinho, um cortado quadrado que aqui chamava de V8. Nunca ninguém me disse: “alisa seu cabelo”! Quem teria coragem de me dizer? Se eu já cheguei: “Eu sou isso e está encerrada a questão”. O saberamento, o saber, o conhecer, eu sei de onde vim. Eu sei da minha história, a história do meu povo, do nosso povo. Então você deve me respeitar com as minhas diferenças. Eu te respeito com teu cabelo alisado ou do jeito que for.

SOUL BLACK:Quais contribuições

você acredita deixar para a profissão? WANDA: Eu vivo diariamente com notícia, eu vejo todos os jornais. Eu sou jornalista 24 horas. É uma profissão que eu amo e que eu gosto. E uma coisa muito preciosa é você ter fontes, e você tem que saber cultivar essas fontes. A fonte é tudo. Ter respeito, confiabilidade, credibilidade, pra você poder sustentar uma carreira. Então pra mim é um prazer enorme saber que eu sou respeitada. Eu antes de dar qualquer notícia, eu checo quinhentas vezes, antes de contar a história, eu corro atrás da notícia. Há dois meses, li nos jornais 10

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que a Nabiyah, filha do Jimmy Cliff, era a única brasileira que estava fazendo o filme Pantera Negra. Conheço-a desde criança, ela hoje tem 26 anos e está estudando nos Estados Unidos. Eu pensei “poxa, cadê a entrevista com essa menina?”, porque tinha só dizendo que ela era baiana, filha de Jimmy Cliff, só ganhou notoriedade pelo nome Jimmy Cliff, e que a Sônia é uma paulista e num sei o quê. Consegui o contato da Sônia, mãe da Nabyia, e fui à TV Bahia e falei: “olha, é um assunto muito interessante. Única brasileira, baiana, e a vilã do filme, inclusive”. A TV Bahia comprou a ideia e eu fiz a entrevista via Skype. Sempre priorizei a cultura popular, e o dar a voz a indivíduos que são difíceis de serem ouvidos, contribuir para dar o poder de

fala a essas pessoas. A gente vive em uma cidade em que a maioria da população é negra, mas a gente vive uma desigualdade gritante, em todos os sentidos. É a violência, de todas as formas. A violência contra negros e negras, principalmente, inclusive praticada por alguns negros, os chamados “companheiros”. Eu detesto essa palavra. Eu ligo para televisão, qualquer que for, e digo: gente, companheiro acompanha, companheiro não mata, como é que se chama um homem desse...‘Ela foi morta por um companheiro’. Que companheiro? Foi morta pelo ex-marido, um amante, ex-namorado, pode ser tudo, menos companheiro. O jornalismo é isso né? São palavras. Quando falam, por exemplo, “ah é um batuqueiro”. Bem: é um percussionista. Não é um


barulho, é um som. Então a gente tem que estar atento à força das palavras, ao que tu vais falar.

SOUL BLACK: Você falou que na sua

infância lá em Manaus, você e seus irmãos não se ofendiam com piadas feitas por brancos. Não é o que vemos geralmente com outras crianças. O que acha que ocorria com você e seus irmãos para não se deixarem afetar com determinadas situações? WANDA: Nossa resposta era diferente, por conta da educação que a gente tinha. A conscientização tem que vir de dentro de casa, a educação também. Meus pais eram negros, meu avô também, e a vovó era branca. E olha que coisa interessante, a gente veio se tocar que a vovó era branca quando nós começamos a militar no movimento negro em Pernambuco. Porque ela era a nossa avó. O papai e a mamãe alimentavam sempre nossa autoestima de que tudo era possível. E assim, nós educamos os nossos. Eu não tenho filho, tenho sobrinho, e tu precisas ver o Tito. Já frequentava, desde pequenininho, reuniões de movimentos negros. O sobrinho neto, o Ben, de quatro anos e seis meses, foi ver Pantera Negra, saiu de lá enlouquecido. Antes de ele ver o filme, ele já via o desenho, tinha o boneco, já pediu que o tema do aniversário dele seja Pantera Negra. O Ben comenta, “o filme é lindo, são pessoas bonitas, pessoas negras como nós”. Ele já disse que é o ator principal do filme. E a gente vai reforçando isso mesmo.

SOUL BLACK:Você é a favor do siste-

ma de cotas? WANDA: Sou a favor sim, porque é uma dívida. Cota existe há muito tempo, os fazendeiros tinham cotas para eles, para filhos deles, então por que não? Eu sou contra é que se acomode. Não usei o sistema de cotas porque não existia, e também porque não tive necessidade, me preparei pra isso, mas tem gente que não

“Quem é negro que nunca passou por uma situação de preconceito está mentindo. Agora é o seguinte, quem ousa me discriminar? Não é humilhando, é como você chega e se impõe.”

tem oportunidades. Aí uma mulher que tem muitos filhos, e fica o mais velho cuidando dos mais novos, como é que ele estuda? O que precisa haver também são melhorias em nossa educação brasileira, como acabar com o oportunismo, o tal do “jeitinho brasileiro” de algumas pessoas, para utilizar o sistema. E a educação doméstica também ajudando nesse processo, de ensinar a honestidade, a prática da ética, com o exemplo.

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BLACK: Como participante de muitos movimentos negros, você acredita que aqui no Brasil, eles conseguiram colher frutos? WANDA: Claro, claro. Antigamente nós éramos invisíveis mesmo. Um dia tinha um cartaz escrito

“atenção senhores publicitários, negro usa calça, camisa, escova os dentes, usa óculos e até tem carro”. Eu deixei de comprar em uma loja de departamento, cancelei meu cartão porque essa loja fez um comercial que era uma menina branca, como uma sinhazinha, no dia internacional da mulher e as mulheres negras estavam vestidas de mucamas, servindo ela. Os judeus não deixam passar isso, os homossexuais não deixam passar isso. Hoje as pessoas são mais criteriosas, às vezes até exageram, tem coisa que nem precisa e às vezes ficam em um “politicamente correto”, e eu digo não, não é por aí, tudo tem que ter equilíbrio. Mas foi muita luta, de ir para as ruas mesmo. JUNHO 2018

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ONDE ANDA VOCÊ?

A FORÇA e a REPRESENTATIVIDADE da MULHER NEGRA na comunicação Donminique Azevedo sabe a importância da diversidade étnica na sociedade e na imprensa; e faz sua parte: estuda, informa, milita e inspira. TEXTO E FOTOS: JOICE ANTERO

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onversei com Donminique Azevedo na sede do Instituto de Mídia Étnica (IME), instituição criada em outubro de 2005, durante a Semana Nacional de Luta pela Democratização da Comunicação. O IME foi idealizado por jovens negros que notaram a falta de representatividade nos meios de comunicação. A instituição apoia e cede espaços para novos projetos, como Correio Nagô (www.correionago.com. br), do qual a jornalista Donminique Azevedo é editora-chefe e repórter. Filha de Eliene Azevedo dos Santos, que trabalhava como merendeira, e mais nova entre três irmãos, Donminique cresceu em uma família chefiada por uma mulher negra. Seu nome ganhou uma grafia diferente graças aos livros que a mãe gostava de ler. D. Eliene sempre frisou para seus filhos a importância do acesso à educação e à leitura e, além dos livros, mantinha a assinatura da revista National Geographic. Na adolescência, Donminique mudou-se de Entre Rios

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para Rafael Jambeiro, onde teve o primeiro contato com a área da educação. Aos 14 anos participava do programa educação solidária no qual alfabetizava jovens e adultos. Ensinava a leitura e a escrita a pessoas que às vezes tinham o triplo de sua idade, o que não foi impedimento para demonstrar sua preocupação e dedicação ao social, conquistando o respeito e o carinho dos alunos. Algumas dessas pessoas já viam valor somente no ato de conseguir escrever o próprio nome. Donminique relata que se emocionou quando ouviu de um dos seus alunos que recusou a esponja, e se orgulhou de dizer que poderia escrever o próprio nome, que tinha aprendido através da ajuda dela: “Eu vou assinar com uma caneta, agora eu sei ler e escrever e quem me ensinou foi a professora Donminique”. Sempre ligada às pessoas e à comunidade, e concluiu o magistério com dezessete anos, foi aprovada em um concurso público para ser professora, função que exerceu durante nove anos.


Jornalista, educadora, fotógrafa e documentarista, Donminique Azevedo é um exemplo de representatividade.

Iniciou sua carreira na área de educação, mas sempre teve o desejo de ser jornalista. Na época em que ingressou no curso de Jornalismo da Faculdade Social da Bahia, estava atuando na área de educação e recebeu incentivo dos próprios alunos. Teve todo o apoio da família para ingressar no curso superior de jornalismo e a responsabilidade de virar referência até mesmo para os familiares, pois seria a primeira pessoa da família a concluir o ensino superior. “Eu queria continuar fazendo comunicação, porém voltada para o social, para que eu pudesse colaborar de alguma forma”. A jornalista sabe da importância de pautar e dar visibilidade a temáticas sociais, e

“Eu me incomodo quando dizem que eu sou uma jornalista negra e só posso falar das questões étnicas, quando na verdade eu posso falar sobre tudo porque eu sou jornalista”.

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do papel fundamental dos veículos de comunicação nesse contexto, principalmente englobando questões consideradas da minoria, em contextos de recorte racial - segundo dados do IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras. Segundo ela, o recorte racial como foco de atuação veio com o reconhecimento da identidade negra. Donminique considera que sempre teve uma consciência e soube reconhecer o racismo, mas avalia que as experiências na graduação contribuíram para aliar o olhar social ao racial. “Temos ainda as dificuldades de representatividade, mas a juventude já está levando essas temáticas para a as pautas sociais, os jovens que estão hoje no ensino superior têm expressado interesse em abordar discussão de temáticas e recortes sociais”.

SHUT UP, TRUMP!

Donminique destaca que a maioria dos exemplos de representatividade está relacionada a um padrão branco e eurocêntrico, principalmente nos veículos de massa. “Dentro da própria escola falta a valoriza-

ção cultural e histórica, faltam professores negros, ampliar o olhar para as questões de gênero e desconstruir os padrões, aí se encaixa a importância social das micropolíticas”. A editora do Correio Nagô foi uma das dez jornalistas brasileiros aprovada na concorrida seleção para participar do Programa “U.S. Study Tour for Brazilian Journalists: Press Freedom and Innovation in Journalism”, nos Estados Unidos, em março de 2018. Voltado para jornalistas, e financiado pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, o programa abordava inovações do mercado jornalístico. Donminique foi a única negra no programa. “É bom ver que estamos avançando, mas ainda é muito pouco, precisamos ocupar, conquistar mais

espaços e falar de nossas vivências para que outros vejam que também podem chegar’’. Além de conquistar espaços de visibilidade, a jornalista considera ser importante que essas pessoas exerçam seu lugar de fala, ampliem o acesso de mais pessoas e sirvam de exemplo de representatividade. Idealizadora e diretora do documentário AIUÊ: escutando os sons do Quilombo, Donminique Azevedo tem pautado sua atuação como jornalista em diversas frentes e mídias, como a Cipó Comunicação Interativa, Cia Cidadão de Papel, a direção do Coletivo Cacos e a Safernet Brasil, da qual foi assessora por três anos.

Donminique na redação do Correio Nagô. 14

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ENSAIO

O negro em evidência TEXTO E FOTOS: GABRIEL RODRIGUES

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importância de estabelecer um contexto através dos detalhes representa o respeito pelas individualidades e grandezas que cada corpo exibe.

O contorno de cada rosto, os cabelos ou adereços presentes na cena desafiam os padrões já concebidos, dando margem a novas perspectivas. O ensaio fala sobre profundidade e reconhecimento, explorando muito além dos tons de quem somos, propondo uma conexão com suas próprias referências, através daquilo que identifica cada um. No palco, as lentes exibem e registram o belo e também grandes histórias, construindo um ser representativo que se empondera e encena as próprias raízes. Elementos como a iluminação e o enquadramento demonstram cores que dão protagonismo ao que o projeto propõe: o negro em evidência. JUNHO 2018

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Gabriel Rodrigues

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Ailton Minaj


Maria Vitรณria JUNHO 2018 Soul 17


Jorge Mรกrio

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Talita Black JUNHO 2018

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Maria Vitรณria , Jorge Mรกrio e Elaine Mendes JUNHO 2018

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ENTREVISTA

Ao infinito... e além! A timidez e quietude da garotinha que foi alvo de racismo podem até continuar marcando sua personalidade, mas não impedem a jornalista Nara Santos de ser como é: segura de si e audaciosa. Ao contrário de Buzz Lightyear, o astronauta do filme ‘Toy Story’, ela sabe que pode voar.

N

ara Santos sempre foi “muito tímida”, o que elevou o grau de dificuldade da missão de entrevistar pessoas durante o curso de Jornalismo, na Faculdade Social da Bahia. Entre tudo que considera ter aprendido ao longo da graduação, ela garante que desenvolveu uma habilidade imprescindível para o ofício: “ser cara de pau”. Hoje, com a voz suave e a cordialidade que lhe são peculiares, Nara aborda e indaga as fontes com muita naturalidade, a mesma que demonstra como entrevistada. Para a conversa com a reportagem da SOUL, a jornalista e escritora chega com muitos livros. Entre eles, a obra que conta a história dos 30 anos da Cia Baiana de Patifaria, “É a minha cara”, título que reproduz o bordão da antológica personagem Fanta Maria, interpretada pelo ator Lelo Filho. O livro é assinado por Nara

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TEXTO: LAILA MIRANDA EDIÇÃO: BÁRBARA SOUZA


Santos em coautoria com a jornalista Kamila Matos.

Laila Miranda: Em 2017, em co-

autoria com a também jornalista Kamila Matos, sua colega de faculdade, você lançou o livro “É a minha cara” sobre os 30 anos da Cia Baiana de Patifaria. Como surgiu o convite para fazer o livro? NARA SANTOS: Na verdade não foi um convite. A gente [Nara e Kamila] precisava de um tema de TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Na época, a gente não sabia muito bem o que escolher, estava naquela de pesquisar o tema, de pesquisar o produto. Eu já tinha em mente que eu queria escrever um livro, era uma coisa minha e aí com a vinda do TCC surgiu essa oportunidade de fazer um livro, então meu produto já estava escolhido e faltava o tema. E aí, pesquisando, a tia de Kamila lembrou que a Companhia [Cia Baiana de Patifaria] na época estava fazendo 25 anos. Então, esse foi o gancho, porque a gente precisava de um fundamento, de uma relevância pro nosso TCC. Foi a partir da necessidade do tema, porque não tinha um livro sobre a Companhia; eles têm muitos registros, tinham muitos

jornais, revistas, matérias, mas não tinha um livro, não tinha um material com um compilado muito grande de informações. Então a intenção foi justamente esta: pegar toda essa história, porque eles têm uma bagagem muito boa, 25 anos de história não é toda Companhia que tem. E foi a partir disso que a gente percebeu a importância do tema pra produção de um livro.

L.M: Quais foram os desafios en-

contrados durante a produção do livro? N.S: Muitos [risos]. Pra começar, durante todo esse tempo, muitos atores entraram e saíram da Companhia; então, primeiro precisamos fazer um mapeamento para saber onde estavam esses atores e entrar em contato com eles. Na época, a gente teve uma sorte muito grande porque Lelo Filho, que é o diretor, produtor e um dos integrantes que formou a Companhia, guardava muita coisa, ele guarda ainda muita coisa; ele me deu vários CDs, DVDs com as peças; aí eu ficava olhando e analisando, escrevendo sobre as peças, então ele deu uma ajuda muito boa. Muita coisa a gente achou na biblioteca; a gente foi pesquisar, foi atrás de entrevista, mas ele tinha um material também muito bom pra emprestar pra gente, pra que a gente pudesse, a partir

daí, pegar um ‘gancho’ e fazer as entrevistas e contextualizar um pouquinho, se basear.

L.M:

O que esse livro representa para você? N.S: Representa muita coisa. Primeiro, ele representa um fechamento de um ciclo da faculdade, então eu me lembro de muita coisa quando o livro vem à mente; representa a realização e um desejo meu, que era a produção de um livro. Representa tanta coisa, porque ali, querendo ou não, é um registro eterno, quem precisar de algum dado sobre a Companhia encontra no livro, então representa muita coisa pra mim.

L.M:

O livro foi o seu trabalho de conclusão de curso; e, durante o curso, quais foram as experiências positivas, além desse trabalho, que você teve? N.S: Eu tive uma dificuldade muito grande, logo quando eu comecei na faculdade, de conversar com as pessoas, de ser cara de pau, né? [risos], porque jornalista tem que ser cara de pau; eu tinha muita dificuldade de chegar nas pessoas e conseguir as informações. Aprendi muito em relação a isso e hoje eu sou tranquila pra chegar e conseguir informação da forma que eu preciso. Aprendi muito sobre produção de texto, sobre o trabalho do dia a dia do jornalista; lógico que a gente vai aprendenJUNHO 2018

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do muito mais na prática, mas a teoria também nos dá um embasamento muito forte. Hoje eu tenho hábito de ler jornal, que eu não tinha antes de entrar na faculdade; já lia bastante, mas hoje eu leio muito mais, pesquiso muito mais, me deu uma visão muito ampla de mundo, de tudo. O jornalismo me abriu muito a mente pra muita coisa assim. L.M: Por que escolheu jornalismo como profissão? N.S: Desde sempre eu tive uma facilidade pra escrever, desde sempre eu sabia que eu queria alguma coisa relacionada à escrita. Eu fui crescendo e fui gostando muito da profissão de jornalista, era com a qual eu mais me identificava porque sempre gostei de escrever; pra mim é muito interessante aprender sobre diversos temas, ler sobre diversos temas e o jornalismo me proporciona isso. O jornalismo também me proporciona fazer muita coisa porque você pode enveredar pelo rádio, televisão, impresso, para assessoria; então

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você tem várias oportunidades, você pode trabalhar com várias coisas, mas sempre com aquela base da escrita, da leitura, que foi o que sempre teve a ver com a minha personalidade, com o que eu faço, e eu tenho essa facilidade pra essa área. L.M: Como foi a escolha da unidade de ensino? N.S: Eu estudei no ISBA a minha vida toda, da primeira série do ensino fundamental até o terceiro ano [do ensino médio]; então eu sabia que o ISBA tinha uma base boa, porque eu tive uma formação boa. Prestei vestibular pra Faculdade Social e prestei pra mais duas [faculdades] e, na época, o curso de jornalismo [da Faculdade Social da Bahia] era muito bem avaliado [Nota 4 no MEC, mesma que mantém em 2018]. Então, por conhecer o ISBA, por conhecer a base, por estar sempre familiarizada ali com aquele ambiente, e pela nota, pelos professores, eu tinha dado uma pesquisada, eu acabei indo realmente pra Faculdade Social.

L.M: Como foi a entrada no mer-

cado? O fato de ser uma mulher negra interferiu de algum modo? N.S:Em relação a isso eu não tive dificuldade. Eu não sei se foi sorte, eu não sei se é pelo trabalho, pelo meu histórico, mas eu não tive dificuldade para encontrar emprego. Foi bem tranquilo em relação a isso, sim. Em relação a outros pontos da sociedade, não é fácil você ser mulher negra, mas em relação à inserção no mercado de trabalho e permanência foi tranquilo para mim.

L.M:

Você já sofreu preconceito racial? N.S: Claro. A primeira vez em que eu sofri foi quando eu tinha seis anos. Eu estudava em colégio particular, minha mãe sempre nos mostrou a importância de uma boa educação. Eu estudava nesse colégio onde ela trabalhava, então é claro que eu percebia que minhas coleguinhas que tinham alto poder aquisitivo e que eram brancas me deixavam


de lado em certas brincadeiras ou elas colocavam alguma condição: “você só vai brincar comigo se você trouxer tal boneca”, aquela boneca supercara. Então, desde essa época, você percebe que tem alguma coisa esquisita ali, que você não se encaixa ou que estão te tratando de forma diferente. Questão de cabelo também, tem pouco tempo que eu comecei a assumir meu cabelo natural porque minhas coleguinhas todas dessa época usavam solto e eu não entendia porque eu não podia usar o meu e aí foi uma questão de me desconstruir. Hoje, agora como adulta, como jornalista, a questão foi desconstruir também minha mãe, porque, apesar de ela ser professora, ela achava que cabelo crespo tinha que estar preso. Então tem toda uma questão que você vai aprendendo depois de muita leitura, muito estudo que a gente começa a se desconstruir e a se entender um pouco mais. Hoje eu me entendo mais como mulher negra, claro que eu ainda estou caminhando, tem muitas questões ainda a serem esclarecidas, mas eu acho que teve um avanço de lá pra cá.

“Se eu tivesse desistido no meio do caminho, não ia ter hoje a consciência da força que tenho.”

L.M: O que é ser negra pra você?

O que isso representa hoje para você? N.S: Eu acho que nós, como mulheres negras, temos que estar primeiro muito certas de quem nós somos. A gente não pode abaixar a cabeça pras pessoas, a gente tem que ter a consciência de que nós somos tão capazes quanto qualquer outra pessoa. A gente sabe que racismo é emburrecimento, então o que eu sempre penso é que eu tenho a mesma capacidade que todo mundo de fazer o que eu quiser, de chegar onde eu quiser chegar. E hoje é aquela questão de sororidade, de você levantar outras mulheres negras que se acham incapazes porque não têm essa força de lutar contra

racismo, lutar contra o que a sociedade tenta impor.

L.M:

Como a sua formação acadêmica, sua experiência como escritora e o fato de ter sido alvo de racismo, como tudo isso te ajudou a ser a Nara Santos que você é hoje? N.S: [risos] Eu acho que se eu tivesse desistido no meio do caminho, eu não ia ter hoje a consciência da força que eu tenho pra conseguir as coisas quando eu quero conseguir. Eu acho que tudo que eu passei na vida foi importante pra formação do que eu sou hoje, pra saber que eu sou capaz de fa-

zer o que eu quiser fazer. Uma percepção do que é a vida e de onde você pode chegar, de suas capacidades como um todo.

L.M: E onde você pretende che-

gar com a sua representatividade? N.S: Eu não tenho um limite estabelecido, eu vou galgando ao longo do tempo. Eu não parei pra pensar aonde eu quero chegar porque eu sempre quero mais e eu acho que é isso que me impulsiona a sempre estar estudando, sempre estar me aperfeiçoando, sempre ser a melhor versão de mim como mulher, como profissional. JUNHO 2018

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ONDE ANDA VOCÊ?

Bom jornalismo

respeita as pessoas

“A principal questão é representatividade. É difícil as pessoas entenderem que um jovem negro seja um jornalista”, diz Gil Santos, hoje um dos melhores repórteres do maior jornal da Bahia

TEXTO: BÁRBARA SOUZA

A

história de amor desse soteropolitano com o jornalismo tem na sua gênese uma qualidade de sua personalidade: a capacidade de escuta. Foi por ter dado ouvidos ao conselho de uma professora que Gil Santos descobriu que queria mais ser jornalista do que historiador. “Professora Ilka, maravilhosa, foi que me instigou a pensar sobre a possibilidade de fazer jornalismo”. E pensar que ela nem era professora da escola em que ele estudava. “Participei de uma seleção e ganhei uma bolsa para um curso, nem lembro de que era, e foi aí que a conheci”, lembra. Coisas do destino. O garoto que perdeu a mãe aos nove anos, foi criado pela avó e cresceu “nas ruas do subúrbio” de Salvador valoriza cada conquista da sua trajetória. “Minha referência de cidade até entrar na faculdade era o lado da [avenida] Suburbana. Conheci a orla e os bairros adjacentes depois da faculdade, que também nesse sentido abriu meus horizontes”. Formado há sete anos pela Faculdade Social da Bahia (FSBA), Gil Santos, 28 anos, é repórter do jornal Correio, líder de vendas no estado. Entre os seus feitos, Gil participou de trabalhos importantes, como a cobertura do caso Geovane, indicada ao Prêmio ExxonMobil de Jornalismo, antigo Prêmio Esso. Nessa entrevista à SOUL BLACK, ele fala sobre jornalismo, literatura, sexualidade, racismo, militância. Mais: se posiciona com firmeza e serenidade, mesmo ao relatar uma situação em que, como repórter, foi alvo de preconceito racial. Ou seja, além de bom jornalista, Gil Santos é também uma ótima fonte. VALE CONFERIR! 26

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SOUL BLACK: Quem ou o quê te esti-

mulou a cursar Jornalismo? GIL SANTOS: Eu não ia fazer comunicação. Não tinha passado pela minha cabeça fazer jornalismo. Eu cheguei ao ensino médio ainda sem saber o que queria fazer. Aí naqueles três anos, eu decidi que iria fazer história. E aí, faltando alguns meses para o vestibular, uma professora me disse “Você já pensou em fazer jornalismo? Acho que você leva jeito”. Eu disse: nem pesquisei, e ela disse: “Pesquise...Veja se você se interessa”. Aí eu fui pesquisar, ler a respeito do assunto. Achei interessante, achei que tinha mais a ver do que história, fiz, e passei (risos).

“Eu tenho muito cuidado na hora em que eu vou escrever porque a forma como a imprensa retrata o que vem da comunidade, ela é... eu não diria propriamente racista, mas ela pode ser agressiva, e pode ser injusta. E às vezes é só por uma questão da escolha das palavras.”

SOUL BLACK: Além do que se apren-

de academicamente e profissionalmente no ensino superior, o que é que a experiência de ter feito um curso universitário mudou na sua forma de olhar o mundo? GIL SANTOS: Muita coisa! Você desconstrói muita coisa. Porque é, assim, inconsciente. Você nasce num lugar e você acaba construindo as referências a partir daquele contato, daquele ambiente que você vive. E aí você constrói ideias que, na universidade, você é convidado não a desconstruir, mas a repensar. Será que essa certeza é tão certa assim? Será que existem certezas? Tinha professores que me provocavam muito nesse sentido, de questionar o lugar de fala, o lugar no mundo. Essa coisa da representatividade, que está sendo muito discutida muito agora. E nunca tinha parado para pensar essa coisa do negro na sociedade, do quanto a gente vive numa sociedade racista. E a gente só percebe isso depois da universidade, onde você é provocado seja pelos professores, pelos autores, pelo que você lê, pelos colegas com quem você convive. Porque a universidade também é importante nesse sentido, porque ela te tira do seu mundo.

SOUL BLACK:

As pautas estão por toda a cidade, no centro e na periferia. Como o fato de ter crescido na região do subúrbio lhe ajuda, como repórter, a cobrir uma pauta seja positiva ou negativa, num bairro da periferia, sem reproduzir alguns estereótipos e preconceitos que infelizmente ainda vemos em determinadas matérias? GIL SANTOS: Eu consigo hoje ver um pouco além do óbvio. Aquilo que os professores ensinam: tem que aprender a fazer o ‘feijão com arroz’ primeiro para depois ir além. Então, eu vou para uma pauta e vou primeiro apurar o lead – quem fez o quê, quando, onde, como e por quê -, mas o interessante vem quando você vai além disso. Mas se você não tem o olhar para perceber as pessoas, que as pessoas não são sombras, são pessoas...às vezes, aquela senhora que está ali no canto, com a mão no queixo olhando a cena, ela tem muito

mais coisas para lhe fornecer do que a fonte oficial. Essa coisa de você vê o outro, que, às vezes, os colegas que não tiveram essa experiência de crescer nas ruas do subúrbio não tenham.

SOUL BLACK:

Quero lhe fazer uma daquelas perguntas clássicas, mas importantes para quem é da área ou estuda jornalismo: quais as matérias que lhe foram, primeiro, mais desafiados e, segundo, foram particularmente prazerosas de fazer? GIL SANTOS: Não poderia deixar de citar o caso Geovane [Geovane Mascarenhas de Santana, 22 anos, foi visto pela última vez com vida numa abordagem da Rondas Especiais (Rondesp) no dia 2 de agosto de 2014. De acordo com matéria do Correio de 26.03.2018, “Geovane foi sequestrado, morto, esquartejado por policiais da Rondesp” e “sete dos 11 PMs vão a júri popular”]. A cobertura foi indicada ao Prêmio JUNHO 2018

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“Nunca tinha parado para pensar essa coisa do negro na sociedade, do quanto a gente vive numa sociedade racista. A gente só percebe isso depois da universidade, onde você é provocado a pensar, a debater. A universidade é importante também nesse sentido: porque ela te tira do seu mundo”

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ExxonMobil de Jornalismo, antigo Prêmio Esso. Foi uma cobertura tensa porque a gente recebeu ameaça na Redação, e que envolveu praticamente toda a editoria de Cidade, e outras editorias também porque, nos finais de semana – não sei se é de conhecimento de todos os estudantes – no plantão dos fins de semana, o repórter que cobre normalmente cultura ou esporte pode ter que cobrir cidade, porque depende da demanda. E aí todo mundo meio que se envolveu naquele processo. Quando perguntam em termos de emoção, eu cito o caso do Barro Branco [em abril de 2015, deslizamentos na comunidade de Barro Branco, na Av San Martin, em Salvador, provocaram a morte de 11 pessoas]. Ali foi um desafio para muita gente. Chegar no local e ver repórteres muito abalados, porque estavam vendo aquilo tudo. Porque por mais que a gente saiba que você está ali como profissional, em busca de informações, você não deixa de ser um ser humano. Você não deve perder essa sensibilidade nunca! Porque se você perder isso, você perde a linha para fazer o seu trabalho. Eu lem-

bro de quando a gente estava lá, no meio daquele monte de lama, com os pés enfiados no barro, e vendo o pessoal trabalhar. Aí tirava um corpo, e a gente via a comunidade se emocionar, todo mundo chorar, tudo isso te afeta. Você pode não chorar ali por uma questão profissional, mas é claro que aquilo te afeta. Foi um desafio muito grande para a gente.

SOUL BLACK:

Você falou há pouco algo muito forte, quando disse que a gente só se percebe vivendo numa sociedade racista na faculdade, depois de fazer reflexões e ser provocado a pensar sobre essa questão. Na sua trajetória como jornalista, você se sentiu em algum momento alvo de preconceito racial, de forma explícita ou velada? Ou antes, no ambiente escolar ou em algum grupo social... GIL SANTOS: Ainda na escola, não me recordo de nenhum episódio assim. Na faculdade, também não. Mas, já no trabalho... acontece. Acontecem episódios assim. A principal questão é a representatividade. É difícil as pessoas entenderem que um jovem como eu seja um jornalista.


SOUL BLACK: aparece?

Como é que isso

GIL SANTOS: Houve uma situação

em que a gente foi fazer uma cobertura, aí estávamos dentro de um prédio público para entrevistar uma fonte. Aí a família da fonte saiu do prédio e todos os repórteres foram atrás da família para ouvir alguém. Mas a família não parou para falar com a imprensa. Saímos do prédio, éramos oito ou nove repórteres. Quando voltamos para entrar, o porteiro disse que tinha recebido uma ordem e a entrada da imprensa não seria mais permitida, que o acesso estava proibido. Ligamos para a assessora para pedir que liberasse o acesso para podermos entrevistar a fonte, dentro do prédio. A assessora desceu e disse “deixe eles [repórteres] entrarem porque a fonte oficial vai falar com eles”. Aí, o porteiro abriu uma portinha e foi entrando um por um. Éramos nove. Eu fui o único que foi barrado. Ele me barrou e perguntou a assessora: - Esse aqui também?.. E a assessora disse: - Sim. Ele também é repórter. Aí eu passei.

SOUL BLACK: Que absurdo...

GIL SANTOS: E ele [o porteiro] era

negro. Acho que a faculdade me ajudou também nisso, a não bater de frente sempre. Porque eu entendo que falta representatividade. Para ele, o porteiro, era inconcebível que eu fosse repórter. Talvez ele não veja com frequência um jovem negro, como eu, na função de repórter. Esse foi o episódio mais claro em que eu vi o racismo. Velado, a gente vê sempre, é no olhar, na abordagem, mas como eu trabalho num jornal que tem um certo peso, quando veem o crachá ou quando eu me identifico como repórter do Correio, aí a postura muda. Mas, antes disso, você percebe o olhar, o tratamento...

SOUL BLACK: E a assessora se reportou a você depois, pediu desculpas?

GIL SANTOS: Na mesma hora,

quando eu passei, ela me pediu desculpas.

SOUL BLACK: O jornalista Caco Bar-

cellos fez uma crítica instigante, ao questionar o porquê de nós, jornalistas, ao publicarmos uma matéria sobre um jovem negro da periferia que foi morto, informamos no final do texto que a vítima não tinha passagem pela polícia. E Caco pergunta: se um jovem médico branco for assassinado, alguém vai apurar esse tipo de informação? Que práticas e cuidados você considera importantes para que não reproduzamos esse tipo de abordagem? GIL SANTOS: Uma vez uma excolega de faculdade, Kamila Matos, fez um comentário sobre uma matéria minha, que eu achei muito interessante, e eu não tinha parado para refletir. Foi sobre uma situação como essa de um rapaz que tinha sido morto na periferia. Eu apurei o caso, conversei com a delegada, conversei com a família. E, ao construir a matéria, eu construí pelo perfil dele. Falei que ele tinha abandonado a escola, na 8ª série, que era o quinto de cinco irmãos, que ele cresceu sem o pai, porque o pai saiu de casa. Quando a matéria foi publicada, eu li vários comentários que acharam legal. Porque fugiu daquela coisa do jovem negro da periferia que foi morto. Era a história de alguém, que teve uma vida marcada por dificuldades: interrompeu os estudos, não tinha um suporte familiar, ele não estava trabalhando, ou seja, era uma série de fatores que levaram ele àquela situação. Acho que é construir o perfil, contar a história da pessoa, do ser humano. Vamos tentar ir além, senão amanhã é José, depois é João, e a perda de uma vida é banalizada.

SOUL BLACK: Mudando de assunto. Lembro de chegar aqui na faculdade às 7h da manhã para dar aula – e não é exatamente o mo-

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mento do dia em que sou a pessoa mais atenta nem simpática (risos) -, mas sempre me chamava atenção encontrar você sempre lendo clássicos da literatura, como Machado de Assis, Dostoiévski, entre outros. Qual a importância da literatura para o jornalista? GIL SANTOS: Eu era o primeiro a chegar na faculdade, eu chegava antes do porteiro! (risos). Ele brincava comigo, dizendo que iria deixar a chave na minha mão porque se ele atrasasse, eu abriria a faculdade....(risos) Isso porque o bairro em que eu morava, Paripe, só tinha um único ônibus para vir para Ondina, e ele saía muito cedo. Então, eu tinha que pegar, senão chegava atrasado pra aula. Eu descobri a paixão pela literatura ainda na adolescência. Comecei com os gibis, com oito, nove anos, e minha mãe me incentivava muito. E aí depois fui evoluindo para os livros. A faculdade abriu caminho para autores que eu nem sabia que existiam! A biblioteca da FSBA tinha um acervo muito bom. Então, uma das minhas paixões, que eu conheci aqui (na faculdade) foram

as tragédias gregas, estando na biblioteca, procurando algo para ler.

SOUL BLACK: Quem são seus autores

prediletos, além de Garcia Márquez? GIL SANTOS: Sou apaixonado pelos clássicos! Agora, por exemplo, eu comecei a ler “O vermelho e o negro”, de Stendhal. Eu li por muito tempo as tragédias gregas porque são minha paixão. Na faculdade, eu conheci Dostoiévski, “Crime e Castigo”, e que foi muito importante para o meu TCC, porque ele fala disso: da coisa da punição, de você repensar. Eu estava fazendo um TCC sobre sistema prisional, a questão da ressocialização, e no livro Dostoiévski fala sobre isso, por exemplo, ao dizer que a consciência é a pior prisão, né? Quando você toma consciência do crime e sente culpa e remorso, essa culpa é a pena, independentemente de você ser preso ou não.

SOUL BLACK:

A gente falava antes sobre representatividade...Para além da literatura, quem são as suas principais referências?

GIL SANTOS: Depois que você

entra na faculdade e começa a debater, problematizar e repensar sua vida, seu olhar pro mundo, você se dá conta de algumas coisas. Por exemplo, eu me dei conta de que, entre os autores que admiro na literatura, não tinha nenhum negro.

SOUL BLACK: A gente poderia citar

Machado de Assis, pelo menos fora do anúncio da Caixa Econômica Federal... GIL SANTOS: Sim, sim. Mas no jornalismo falta essa representatividade também. Hoje, eu gosto muito do trabalho de Georgina Maynart [da TV Bahia]. Tenho também como referência Alexandre Lyrio [repórter do jornal Correio], que foi a primeira pessoa que meu editor me apresentou quando comecei a trabalhar no jornal. Eu disse a ele: analisei seus textos na faculdade! (risos)

SOUL BLACK: Teve um sobre as elei-

ções, que a gente discutiu em jornalismo opinativo... GIL SANTOS: Exatamente!...(risos), que gerou a maior polêmica na sala...(risos)

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BLACK: Qual a sua relação com a militância? GIL SANTOS: Acho que a militância é fundamental porque, sem militância, tudo vai permanecer como está. Agora, o que me incomoda um pouco é o discurso radical em qualquer militância – seja na militância negra, na militância LGBT, na direita, na esquerda – é quando há o extremismo. Porque o extremismo inviabiliza o diálogo, você não ouve o outro. O que vem acontecendo há muito tempo é que o discurso da população negra tem sido calado, então a militância tem mesmo que lutar para garantir a nossa voz, mas não acho que, para isso, temos que calar o outro. Volto a dizer, meu incômodo é com o extremismo, não com a militância, que é, repito, fundamental para mudarmos e 30

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avançarmos. GIL

SANTOS:

Não visto a camisa de um movimento específico, mas eu apoio. Participo quando tem passeata, ajudo a divulgar, enfim, debato, tento levar esse debate aos círculos dos quais faço parte.

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BLACK: Recentemente, você publicou um texto no canal Me Salte (http://blogs.correio24horas.com.br/mesalte/como-voce-descobriu-que-era-gay/), em que você faz um comentário sobre o filme ‘Love, Simon’ [Greg Berlanti], e defende o direito das pessoas de falarem com quem quiserem, quando quiserem e se quiserem, sobre sua orientação sexual? Como é que foi a reação dos leitores? GIL SANTOS: Acho que cada um tem o direito de expor sua sexualidade no momento em que achar que é devido, para quem quiser, da forma que quiser e se quiser. O que a gente aconselha é que a pessoa não viva infeliz. Se ela está infeliz, fingindo ser uma coisa que ela não é, nosso conselho é que ela busque a felicidade. Mas ela não tem que se sentir obrigada a escancarar isso pro mundo, a chamar os vizinhos, a contar para os colegas de trabalho com quem ela se deita. Isso é muito íntimo, é de cada um. A minha sexualidade eu descobri na minha adolescência e foi meio nesse turbilhão de ‘você tem que dizer’, ‘você tem que se expor’. Hoje, eu conheço uma pessoa, que ele é pressionado por alguns colegas para se expor, e eu sempre digo: você se expõe a hora que você quiser e se você quiser! Enfim, ninguém tem obrigação de expor sua vida pessoal. Tem que ser tudo natural.

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BLACK:Você acha importante que a faculdade tenha veículos e espaços que abordem questões de diversidade e gênero, e ampliem essa discussão?

GIL SANTOS: Claro! Essa discus-

são tem que ser feita. Porque a grande maioria dos gays e lésbicas se descobre na adolescência, e não se discute isso nas escolas. Eu lembro que na escola em que eu estudava tinha um conservadorismo. Não se discutia isso, não se tocava nesse assunto, não se falava de sexualidade. Eu vim para a faculdade, assim, pisando em ovos, eu estava ainda me descobrindo, era tudo muito novo pra mim. Eu tive sorte de conhecer uma pessoa que já tinha se descoberto há mais tempo e me ajudou muito, me indicou leituras, e isso me ajudou a amadurecer meu olhar para essa questão. Tem que ser discutido até para ajudar a quem está passando por isso entender melhor o seu lugar no mundo, senão ele fica perdido.

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BLACK: Sobre o futuro: como você imagina que vai estar na sua carreira jornalística? Em que estágio você gostaria de estar profissionalmente, por exemplo, daqui a dez anos? GIL SANTOS: Se eu te disser que eu nunca pensei em nada na minha vida, nunca planejei muito, as coisas foram acontecendo. Interessante pensar nisso...(faz uma pausa) Acho que essa é uma realidade de muita gente. Nunca imaginei que iria fazer um curso superior, e fiz. Nunca pensei que iria, ainda durante a faculdade, entrar em lugares como presídios, que muito jornalista mais experiente nunca entrou e entrevistar gente como Ravengar. A gente brinca, né? Ah, fulano vai apresentar o Jornal Nacional, mas a gente não planeja muito. Uma coi-

sa que eu digo é que um dia quero ir para a sala de aula, quero ensinar. Não agora, mas quero.

SOUL BLACK:Pensa em ser editor?

GIL SANTOS: Interes-

sante que as pessoas tendem a achar que o sonho ou a evolução de todo jornalista é ser editor. Mas, não necessariamente. Lá no jornal, por exemplo, dois excelentes já foram convidados para a função de editor e não quiseram. É aquela história: me dá o salário de editor, mas eu quero ser repórter!... (risos)

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TECNOLOGIA

A TELA ESTÁ PRETA

Produções audiovisuais de mulheres negras conquistam audiência e ampliam diversidade e representatividade étnica na internet. TEXTO: VANESSA BRUT

S

er mulher e ser negra no Brasil “pode ser sinônimo de um sofrimento diário ou de uma missão diária”, desabafa a estudante Acsa Almeida, 21 anos. Mas, prontamente, ela pondera que “depende das atitudes que essas mulheres vão ter”. Um caminho é render-se, o outro, é agir, ou melhor, produzir. “É o poder de ajudar na quebra de dois preconceitos absurdos com uma só vida”, diz a jovem que encontrou no YouTube a possibilidade de representatividade que não achava em outros meios. Descobrir youtubers como Raíza Nicacio e a baiana Jéssica Dantas, ajudou Acsa a enxergar, entre outras coisas, a beleza do 32

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seu cabelo crespo. “Até o início de 2013, eu só encontrava youtubers brancas e do cabelo liso. Quando via um tutorial de maquiagem, por exemplo, não tinha como me inspirar direito, simplesmente porque as dicas pra uma pele negra nem sempre são iguais. Depois, isso foi se quebrando, fui sendo melhor representada e, atualmente, temos essas mulheres fortes que estão mudando o chamado ‘padrão’”. A partir de 2015, com o crescimento de comentários positivos tanto quanto manifestações de racismo, a maior plataforma gratuita de vídeos percebeu a necessidade de valorizar as vozes negras. Assim, foi criado o

YouTube Black Brasil, que reuniu, em 2017, mais de 90 criadores de conteúdo para reforçar e discutir a importância da representatividade negra. Iniciativas como a do YouTube não só ampliaram o número de negros na plataforma como incentivaram produções para muito além dela. “Ser racista não é simplesmente ‘afetar negros’, é regredir toda uma sociedade brasileira. Essas produções não são somente para que nós, negros, possamos visualizar e debater. É para todos, porque a consequência alcança a todos”, pontua a diretora de produções audiovisuais, Camila de Moraes, que produziu o premiado documentário O Caso do Homem Er-


rado. “Com mulheres fazendo vídeos e ganhando autonomia nas suas próprias roteirizações, edições e diálogos para as câmeras, essa história já ganha uma mudança. Quem sabe quantas delas podem acabar produzindo um longa a ser futuramente lançado no YouTube?”, pondera. Na avaliação da cineasta, “essa força feminina e negra na plataforma é um ganho que capta diversas vertentes, como o de incentivos para uma independência antes não existente”.

DESIGUALDADE EM TELA

Segundo dados apresentados no final de janeiro de 2018 pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) que fazem parte do estudo Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos de 2016, dos 142 filmes lançados comercialmente no respectivo ano, os homens brancos dirigiram 75,4% dos longas-metragens registrados e, na outra ponta desta tabela, as mulheres negras não assinaram nem a direção, nem o roteiro nem tampouco a produção executiva de nenhum filme nacional naquele ano, num país em que a população é formada por 51% de mulheres e 54% de negros. O estudo mostra que 19,7% de mulheres brancas dirigiram longas. Os homens negros dirigiram 2,1%. O roteiro desses filmes também foi escrito principalmente por homens brancos (59,9%), mulheres brancas (16,2%) e parcerias entre homens brancos e mulheres brancas (16,9%). Dados atualizados do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), vinculado ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que acompanha o tema, mostram que mulheres negras não dirigiram ou roteirizaram um filme sequer entre os de

maior bilheteria no período de 1995 a 2016. Nos últimos oito anos, conforme o balanço, os índices flutuaram. Mulheres dirigiram 10% dos filmes em 2014, sem nunca ultrapassar 24% de todas as produções, recorde observado em 2012. Para Acsa Almeida, hoje mais autoconfiante, a atuação de youtubers que abordam temáticas como moda e maquiagem para a população negra tem sido fundamental para o aumento da representatividade étnica. Mas as dicas e as reflexões das cidadãs engajadas vão muito além das questões estéticas e interessam a públicos diversos. Temas como literatura, cinema, dicas sobre independência financeira e a beleza atrelada à

militância também estão entre as temáticas abordadas por essa geração de mulheres engajadas dentro e fora da web. Confira a variedade de assuntos e estilos de oito youtubers negras:

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LUCIELLEN ASSIS VIDA INDEPENDENTE E EMPODERAMENTO CAPILAR Em 2014, a baiana de 24 anos perdeu o medo dos comentários preconceituosos e criou o seu canal. Os primeiros vídeos abordam, justamente, o orgulho do autoconhecimento que descobriu ao se assumir como crespa. Após ajudar diversas meninas a passarem pela mesma fase de autoaceitação, a audiência cresceu. Hoje, com 37 mil inscritos, Luciellen traz nas suas produções assuntos que variam entre estética, beleza negra, moda, autoestima, empoderamento e relações raciais. Além disso, a jovem aborda reflexões acerca de relacionamentos, viagens e vida financeira independente. “O objetivo principal é fazermos essa troca de experiências sobre a vida como um todo”, resume a youtuber. 34

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NÁTALY NERI

GABI OLIVEIRA FILMES E SÉRIES

Formada em Comunicação Social (UERJ), Gabi Oliveira tem recebido reconhecimento pelo seu trabalho no canal DePretas no YouTube. Com mais de 100 mil seguidores, em seus vídeos ela aborda assuntos que vão desde as relações étnico-raciais até dicas de produções audiovisuais que podem contribuir para empoderar o público, como filmes, séries e palestras. Vencedora do concurso Youtube Nextup e atual embaixadora Seda Brasil, Gabriela está na lista de mulheres inspiradoras da Think Olga e já fez palestra no Latin America Education Forum (LAEF) na Universidade de Harvard.

AUTONOMIA INTELECTUAL E FINANCEIRA + DIY’S Nátaly Neri é apaixonada por brechó, costura, moda e a ideia de que tudo pode ser reaproveitado de alguma forma. Assim, a youtuber dá dicas de ‘faça você mesmo’ (tradução para a famosa sigla DIY) em aspectos que vão desde a moda até âmbitos decorativos. O objetivo do canal é incentivar a autonomia de quem assiste com garimpos e discussões sobre as melhores opções de consumo. Neri, porém, não deixa de abordar reflexões e críticas sobre respeito e equidade, sem ignorar tutoriais de maquiagem, cabelo e outras dicas – com muitas gambiarras.


TATI SACRAMENTO BEM-ESTAR A youtuber apresenta dicas de lifestyle, principalmente no âmbito do bem-estar. Com indicações sobre atividades físicas, gastronomia saudável e reflexões de autoconfiança, Tati aborda a sua redescoberta enquanto mulher negra, que precisa cuidar da saúde, da mente e do corpo. Em meio a receitas práticas, a jornalista formula tutoriais detalhados que não perdem a objetividade ou concisão.

“Essa força feminina e negra na plataforma é um ganho que capta diversas vertentes, como o incentivo para uma independência antes não existente”. CAMILA DE MORAES, diretora de produções audiovisuais

DE MUDANÇA PARA QUEM VAI MORAR SÓ Mari Ribeiro saiu de casa para realizar um sonho: morar sozinha. Mas como a vida é um grande jogo entre expectativa e realidade, ela percebeu que nem tudo seriam flores (e nem tudo o que parecia espinho, realmente iria ferir). A youtuber resolveu dividir suas experiências nessa fase de vida através de vídeo, compartilhando semanalmente e de forma interativa conselhos e relatos sobre responsabilidades, descobertas e boletos a pagar sem perder a objetividade ou a concisão.

ANA PAULA XONGANI LIVROS

CAMILA NUNES MAQUIAGEM Camila Nunes é formada em Maquiagem e Estética e criou o canal no fim de 2012 para ajudar mulheres de pele negra a se automaquiarem. Com dicas e truques para inspirar, a youtuber ainda reúne temáticas como looks, cabelo e decoração.

Estilista de moda afro, a youtuber vai muito além da profissão e mergulha em temáticas como feminismo, empreendedorismo negro e... livros! Com resenhas e listagens de obras literárias que possam agregar reflexões e crescimentos pessoais e profissionais para o seu público, Ana ainda recheia o canal com dicas de literatura negra infantil e com uma variedade temática que ainda agrega penteados, makes e muitos bate-papos (nada) aleatórios. que não perdem a objetividade ou concisão.

NEGGATA CRÍTICAS SOCIAIS Lorena Monique é estudante de Ciências Sociais da UnB, responsável pelo projeto “Ah branco! Dá um tempo!” que inclusive virou um minidoc. Com muito sarcasmo, o canal aprofunda sobre preconceito racial de maneira argumentativa e descontraída. JUNHO 2018

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Soul Black EM TELA

O programa Soul Black apresenta elas e ele: JULIANA DIAS, TAIRINE CEUTA e EDUARDO MACHADO! Newton Soares, estudante de jornalismo - 8ยบ semestre 36

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Ele e elas são jornalistas por formação. Elas e ele são excolegas de faculdade.

Ele e elas têm informação. Elas e ele têm opinião.

Ele e elas são negros. Elas e ele têm convicções.

E histórias pra contar...

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FOTOGRAFIA

UnBlack Lisbon | A

invisibilidade do negro na fotografia portuguesa

Durante quase dois meses ando a esmo pelas ruas de Lisboa. Entre janeiro e março , o frio e a chuva são intensos, os ossos doem. Os poucos dias de sol e luz são revigorantes. A língua oficial é cosmopolita: idiomas do mundo inteiro circulam nos eléctricos, ocupam as ruas do Chiado, invadem o Mosteiro dos Jerônimos. Cidade fixe onde as pessoas fazem contato visual, numa saudação muda e cálida, sem excessos. Salvador está presente a todo instante: contrastes e semelhanças, saudade e repulsa, fluxo-refluxo enviesado de um lado a outro do Atlântico. Flanar sem destino, vagar fotografando: a forma de descobrir o que a urbe oferece de mais instigante. Percebo como são raros os negros onde há a presença massiva do turismo. Deslocados em seu não lugar, permanecem invisíveis ao olhar estrangeiro. Nos sítios onde mais circulo, Praça da Figueira, Rossio, Praça D. Pedro IV e também no Largo São Domingos, onde um memorial evoca o massacre de milhares de judeus, em 1506, 38

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noto a explícita separação: de um lado, numerosos grupos de turistas bebem ginjinha; do outro, a algaravia dos imigrantes que conversam animadamente. Observam-se de longe. Não se misturam. Não parece haver disposição para o diálogo. Sento-me num dos bancos onde os africanos se concentram. Ao perceber que tento fotografá-los, um senhor, alertado por outro, me interpela. “Cá não podes fazer isso”, diz

com firmeza, mas sem rispidez. Peço desculpas. Mostro a câmera desligada (alguns registros já haviam sido feitos clandestinamente). No topo desta página, ele aparece apontando um lugar vago. Como se dissesse aos intrusos “fora daqui”. Evito que ele tenha o rosto identificado. É o mínimo. Sendo ele, eu teria feito o mesmo: afinal, quem é você, estranho, por que deseja me fotografar, o que pretende fazer com a minha imagem? JUNHO 2018

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Visito a primeira mostra de um fotógrafo português que ainda se considera amador. Vejo emolduradas as vielas de Alfama, idosos contemplativos em suas janelas, roupas estendidas em varais suspensos ao longo das fachadas; becos e escadarias em luz e sombra. Não vejo negras ou negros nas imagens. Mudo de calçada na rua da Palma e descubro por acaso o Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa. Entro. Há uma exposição de Claudia Andujar sobre os Yanomami, indescritível de tanta potência. Na sala de pesquisa, acredito que vou me deparar com um Ferrez ou um Gaensly em versão lusa. A atendente, muito solícita, diz que não há registros de negros, que é muito difícil encontrar esse tipo de imagem. Por sua indicação, ainda vasculho o sítio do Centro Português de Fotografia, que fica no Porto. Nada encontro. Durante uma aula com José Soudo, folheio o fotolivro mais importante de Portugal: Lisboa, cidade triste e alegre (1959), de Costa Martins e Victor Palla. Pergunto ao professor por que é tão raro encontrar pessoas negras retratadas pela fotografia portuguesa contemporânea. “Sim, é difícil. Sei que naquela época [da ditadura] os negros eram considerados como não pessoas”, ele responde. Do alto do miradouro São Pedro de Alcântara, a vista é muito gira. O vento gelado castiga a pele. Turistas com Leicas penduradas no peito fotografam os casarios iluminados pelo sol de inverno. Penso nas palavras do mestre Soudo. A depender da direção a que se apontem as objetivas, continuaremos todos não sendo. Pessoas. JUNHO 2018

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Sim, é difícil. Sei que naquela época [da ditadura] os negros eram considerados como não pessoas.

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Tom Correia é jornalista, escritor e fotógrafo | www.tomcorreia.com.br

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Reflexões étnico-raciais e a construção de um novo projeto de Sociedade...

Nossos passos vêm de longe ...”a frase da médica, ativista negra e diretora executiva da Anistia Internacional Jurema Wernecknos faz pensar sobre a questão racial no Brasil de hoje. Neste ano, completam-se 130 da “abolição da escravatura” no País. Mas o MNU (Movimento Negro Unificado), que também em 2018 completa 40 anos de presença ativa na luta pela cidadania da população negra, vai afirmar que “a princesa 44

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Isabel se esqueceu de assinar a nossa carteira de trabalho ...”. Como terá sido o dia seguinte, o 14 de maio de 1888, não é difícil de imaginar, diante do que ainda presenciamos na sociedade brasileira. Neste ano celebram-se também os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e verificamos que ainda há muito a avançar. Segundo a ONU, a população negra é a mais afetada pela desigualdade social no Brasil. Após o término do re-

gime de escravidão, à população negra ainda foram dificultados o acesso ao sistema educativo e a posse de terra, exatamente o contrário das condições oferecidas aos imigrantes europeus que eram atraídos para o país que se pretendia lançar numa era de progresso. Hoje, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os índices de violência contra a mulher negra aumentaram em 35%, enquanto esses mesmos índices em re-


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vas lógicas de estética capilar à mulher negra, alimenta segmentos específicos da indústria cosmética. O sistema de saúde também é segregador no que se refere ao atendimento à população negra. Mulheres negras, em serviços de ginecologia e obstetrícia, recebem menor quantidade de anestesia, por se considerar que o corpo negro “aguenta mais a dor”. O mesmo se passa nas emergências hospitalares, nos casos de atendimentos a homens negros. As respostas das políticas públicas de saúde para as situações de anemia falciforme, condição que afeta maioritariamente a população afrodescendente, ainda é in-

suficiente para a promoção da qualidade de vida dessas pessoas. O preconceito e o descaso ainda grassam, o que leva, por exemplo, ao entendimento de sintomas associados à anemia falciforme (cansaço, dor nas articulações, pernas cansadas, febre, mal-estar, tonturas), como sinais de preguiça, displicência, dissimulação, ou ainda como resultados do consumo de drogas ilícitas. Cerca de 61% da população encarcerada no Brasil é negra. O sistema carcerário brasileiro não está falido nem é ineficiente. Faz parte de um sistema assente na “biopolítica”, na perspectiva do filósofo francês Michel Foucault, que nos JUNHO 2018

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vai falar sobre as lógicas do Estado que controla, vigia e pune. O filósofo camaronês Achille Mbembe avança nessa análise, identificando a “necropolítica”, pela qual se determina quais são os “corpos matáveis; corpos que merecem ou não merecem viver”. Aproximadamente 48% da população negra brasileira ocupa o mercado informal e precário de trabalho, e muitos dos estão no mercado formal ocupam postos de trabalho menos qualificados, com pior remuneração e que exigem pouca escolaridade. Cerca de 54% da população brasileira é negra, e apenas 12% dela está nos cursos superiores. Pensar em políticas públicas de reparação, visibilizadas através de cotas raciais e sociais para o acesso ao ensino superior, é uma questão fulcral para o combate da desigualdade social no Brasil. Quem é contra as cotas para o acesso ao ensino superiordeve começar a discuti-las a partir de um período anterior, reportando-se aos primórdios do século XX, quando havia cotas para filhos das classes sociais privilegiadas frequentarem as faculdades de Medicina, Engenharias e Direito. Assim, diante desses cenários, precisamos falar sobre o racismo. Precisamos pensar sobre o Estado-Nação brasileiro construído numa base socioeconômica escravocrata, latifundiária, patriarcal e sexista. Precisamos reconhecer que o racismo perpassa a sociedade brasileira de diversas formas. O racismo institucional é exercido quando pessoas, no exercício da sua profissão (médicos, enfermeiros, professores, policiais, vendedores etc.) praticam a discriminação racial. É também exercido quando a Academia Brasileira de Letras “embranquece” o escritor Machado de Assis e não reconhece, ou reconhece tardiamente, o valor literário de escritoras negras como Carolina Maria de

Jesus e Conceição Evaristo. O racismo religioso é evidenciado quando templos de religiões de matriz africana são cerceados e criminalizados na expressão da sua religiosidade, ou se têm que pagar IPTU, quando este não se aplica, historicamente, a outros espaços religiosos. O racismo ambiental se expressa tanto nesses contextos quanto nas dificuldades burocráticas para a titulação de territórios quilombolas. A população negra, sendo maioria, está sub-representada nos espaços de poder e sobrerrepresen-

“Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda a hora que quer ...”.

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tada em condições de precariedade social (serviços prisionais, serviços públicos de saúde mental, pessoas em situação de rua, tráfico de pessoas, trabalho análogo ao trabalho escravo, crianças aguardando adoção, jovens em conflito com a Lei e jovens cumprindo medidas socioeducativas). O racismo linguístico se expressa associando a cor negra a aspectos negativos e criminalizados da sociedade (mercado negro, serviço de preto etc.) e no uso da palavra denegrir, ao invés da palavra depreciar. A palavra quilombo foi intencionalmente apropriada e disseminada pelo colonizador, para designar as comunidades que escapavam do regime escravocrata, buscando intimidar outros cativos que pretendessem seguir o mesmo caminho, pois, nas línguas bantu, o sentido de quilombo era de “acampamento provisório, em condições insalubres e de guer-

ra”, ao contrário da palavra mocambo, que significava “acampamento de refúgio, proteção e bem estar”. Assim, ainda nessa mesma linha de apropriação cultural e linguística, o colonizador passou a designar mocambo como habitação insalubre e indigna. Foram inúmeros e significativos os movimentos de resistência e luta desses povos historicamente subalternizados. Entretanto, a História oficial não os registrou ou os deturpou. Resgatar esses percursos históricos para pavimentar caminhos para “nossos passos que vêm de longe” é uma missão inadiável, e é um caminho sem volta, mesmo que estejamos a viver num estado de exceção e num momento de retrocessos e desmontes de políticas públicas de reparação e de compensação. Desconstruir (na perspectiva do filósofo africano, argelino Jacques Derrida) os conceitos naturalizantes e visões estigmatizantes é nossa tarefa diária. Pautar nossas reflexões sobre a realidade brasileira com base em autor@s negr@s que possuem um pensamento decolonial (Angela Davis, Audre Lorde, bellhooks, Patricia Hill-Collins) e autor@s negr@s brasileir@s na mesma perspectiva (Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, Jurema Werneck), é uma ação de construção de um novo projeto de sociedade, que vá de encontro ao ditado popular “Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda a hora que quer...”. Sobre a autora: Izaura Furtado é psicóloga (Universidade Federal do Paraná), Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e da Educação (Universidade de Valência – Espanha) e Mestre em Educação Especial (Universidade de Cabo Verde – África Ocidental). Docente do curso de Psicologia da FSBA (Faculdade Social da Bahia) e Coordenadora do Centro Multidisciplinar de Apoio Pedagógico e Psicossocial da FSBA.


ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB VHIUGQAZXSWEDCRFVTGBYHNYNJUMIKLOPQW FGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGABVHIUG ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB VHIUGQAZXSWEDCRFVTGBYHNYNJUMIKLOPQW FGHIAVKZUNOC0LORISMOFGABCDFGABVHIUG ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB Luiz Lopes é psicólogo e coordenador Y do curso VHIUGQAZXSWEDCRFVTGBYHN N J deUPsicologia M I Kda FSBA. LOPQW FGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGABVHIUG ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB VHIUGQAZXSWEDCRFVTGBYHNYNJUMIKLOPQW FGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGABVHIUG ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB VHIUGQAZXSWEDCRFVTGBYHNYNJUMIKLOPQW FGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGABVHIUG ABCDEFGHIAVKZUNOVXZAWQUNSFGABCDFGAB GLOSSÁRIO COLORISMO: o conceito é usado para chamar a atenção para os diferentes níveis de preconceito e marginalização sofridos pela população negra, dependendo de quão mais afrodescendente é sua aparência. Isso inclui não só a tonalidade da cor da pele, mas também outras características, como largura do nariz, grossura dos lábios e textura dos cabelos. DESIGUALDADE RACIAL: toda situação de diferenciação negativa no acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas

pública e privada, em virtude de raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica. DISCRIMINAÇÃO RACIAL OU DISCRIMINAÇÃO ÉTNICO-RACIAL: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica, incluindo-se as condutas que, com base nesses critérios, tenham por objeto anular ou restringir o reconhecimento, exercício ou fruição, em igualdade de condições, de garantias e direitos nos campos político, social, econômico, cultural,

ambiental, ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada. INJÚRIA RACIAL: ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. RACISMO: ideologia baseada em teorias e crenças que estabelecem hierarquias entre raças e etnias e que historicamente têm resultado em desvantagens sociais, econômicas, políticas, religiosas e culturais para pessoas e grupos étnico-raciais específicos por meio da discriminação, do preconceito e da intolerância. JUNHO 2018

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PÉROLAS NEGRAS

EMICIDA,

por Didica Vasconcelos

GILBERTO GIL, por Bruno Ganem

OBAMA,

por Bruna Valente 48

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www.fsba.edu.br

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