Soul 8 edição, dezembro de 2019

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Soul GÊNERO E DIVERSIDADE

Ano 04, Edição 08, Dezembro de 2019

CREMOSAS E PODEROSAS

Pão com ovo? Respeita o Afrobapho!

VAI TER GORDA! Elas são poderosas elas #PRACEGOVER Produção audiovisual acessível a todos os olhares DA TABA À TOGA Resistência indígena nas universidades

TEM AXÉ NO SMITE Olorum e Iemanjá, em games

CROSSPLAY Midorii Sokido, drag queen cosplay DEZEMBRO 2019

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Revista Soul – Projeto interdisciplinar produzido pelos alunos do curso de Jornalismo do Centro Universitário Social da Bahia (UNISBA). Em 2019.2, integraram o processo de produção da publicação as disciplinas: Redação Jornalística III, Edição Jornalística, Estágio Supervisionado I, Estágio Supervisionado II, Planejamento Gráfico e Práticas Integrativas III (Produto Audiovisual). Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Comitê Editorial : Antônio Brotas, Bárbara Souza, Cristina Mascarenhas, Daniela Souza e Mônica Celestino. Diretora-Executiva: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza, Daniel Serrano, Fernanda Costa, Filipe Ribeiro, Matheus Santana e Mônica Celestino Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Adriana Telles Projeto gráfico: Elisangela Sandes Diagramação: Bruna Amorim, Emily Lima, Fábio Passos, Fernanda Costa, Filipe Ribeiro, Gabriel Rodrigues, João Lucas Dantas, Joice Antero, Jorge Mário Gonçalves, Laila Miranda, Larissa Faria, Luan Borges, Luiz Felipe Fernandez, Maria Vitória, Matheus Mota, Milena Silva, Tadeu Rezedá, Tailana Cruz, Tainá Reis, Talita Black, Violeta Minaj TEXTOS: Bruna Amorim, Caio Cardoso de Queiroz, Fernanda Costa, Gabriel Rodrigues, Harrison Lago, João Lucas Dantas, Laila Miranda, Luiz Felipe Fernandez, Milena Silva, Nilson Marinho, Talita Black e Yasmin Aguirre. EDITORIAL: Bárbara Souza CAPA: Elisangela Sandes FOTOGRAFIA DE CAPA: Ari Silva FOTOS E ILUSTRAÇÕES: André Stéfano, Arivaldo Silva, Cleiton Oliver, Elisangela Sandes, Emily Lima, Fernanda Costa, Freepik, Gabriel Rodrigues, Jefferson Dias, Nina Codorna, Pedro Gabriel, Renato Souza, Smite, Violeta Minaj, Unsplash e Divulgação.

Centro Universitário Social da Bahia – UNISBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170-010. www.unisba.edu.br (71) 4009-2840 Reitora: Profa. Dra. Margareth Passos Vice-Reitora: Profa. Dra. Ornélia Marques Coordenadora de Graduação: Profa. Dra. Clarice Pires

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 1

(JUNHO – 2016) Empoderamento feminino, a doença do preconceito (‘que dizima também quem paga o dízimo’) e combate ao feminicídio foram os temas de destaque na Capa da 1ª edição da Revista Soul, que materializou o projeto editorial proposto e concebido por estudantes do 5º semestre do curso de Jornalismo. A edição inaugural tratou de temas que só há pouco tempo passaram a ser abordados pela mídia sob o enfoque dos direitos humanos e respeito à diversidade. Um enfoque que se empenha em deixar de lado o olhar que reforça o estigma social e patologização das questões de gênero e diversidade – ou ao menos se empenha em fazê-lo. Cultura, religiosidade, serviço, curiosidades: a diversidade temática foi a marca da edição nº 1 da revista. Ah, sim: teve gorda na Soul e terá sempre! Como sempre terá magros(as), homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transgêneros, jovens, idosos (as), gente. 4

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 2

(NOVEMBRO – 2016) A 2ª edição da Soul fez jus à temática que ancora editorialmente a publicação: diversidade e gênero. Foram várias as vozes ouvidas e os posicionamentos apresentados. A principal chamada de Capa foi a entrevista com o editor-chefe do canal LGBT do jornal Correio, líder na Bahia, o jornalista Jorge Gauthier. Cultura indígena, história de luta das mulheres por direitos, inclusão de pessoas com deficiência auditiva e combate à violência doméstica também estão entre os temas das matérias da edição nº 2. A Soul reuniu diversos gêneros jornalísticos: reportagens, uma entrevista pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys e dois artigos: um do estudante de Jornalismo Théo Meirelles, da FSBA, sobre ‘Transexualidade e mídia’, e outro, da advogada e professora Natália Silveira, que integra o corpo docente da FSBA e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 3

(JUNHO – 2017) Muito além do arco-íris. A terceira edição da revista Soul publicou uma reportagem sobre 56 identidades de gênero. Isso mesmo: cinquenta e seis. A relação das crianças com a diferença – e os cuidados para que o preconceito de adultos não seja incutido nas mentes abertas dos pequenos – crossdressing e alternativas de mobilidade urbana integraram a edição nº3 da Soul. A publicação trouxe ainda uma reportagem sobre como a indigesta proposta de reforma previdenciária do governo Temer afeta, particularmente, as mulheres. Outra matéria conta um pouco da história e trajetória de Rico Dalassam, um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro e o primeiro rapper assumidamente gay do país. E mais: uma entrevista exclusiva com Russo Passapusso, cantor da premiada Baiana System, que rejeita a classificação de ‘música alternativa’ para a banda.


REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 4

(NOVEMBRO – 2017) Uma Igreja que segue as Sagradas Escrituras, acredita na Santíssima Trindade e ordena homossexuais “declarados” como líderes religiosos. O respeito à diversidade foi um dos temas da entrevista exclusiva com o reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana da Bahia, publicada na edição nº 4 da Soul. A reportagem conversou também com o professor Leandro Colling, coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), sobre a reserva de vagas para travestis, transexuais e transgêneros nos cursos de mestrado e doutorado da UFBA, iniciativa inédita na história do ensino brasileiro. Também foi pauta a depressão entre LGBTs, um dos grupos mais vulneráveis à enfermidade. A quarta edição da Soul trouxe ainda uma reportagem sobre como as brincadeiras de infância podem contribuir para a criação de estereótipos e preconceitos. “Todo mundo quer saber com quem você se deita”, diz a canção. Será que Freud explica? O artigo do professor Luiz Lopes, coordenador do curso de Psicologia da FSBA, aborda essa questão.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 5

(JUNHO – 2018) Da primeira à última página, entrevistadores e entrevistados, repórteres e personagens, fotografados e fotógrafos, articulistas: todos(as) negros(as). Ou melhor, quase todos(as), porque diversidade não combina com segregação. Com o tema “Negro (a) é Poder”, a edição especial intitulada Soul Black reverenciou a negritude. O protagonismo negro norteou a edição que incorporou conteúdo audiovisual: o Programa Soul Black pôs em tela um debate entre os jornalistas Eduardo Machado, Juliana Dias e Tairine Ceuta. Papo reto e esclarecedor sobre o racismo e suas faces perversas. A Soul Black contemplou ainda um ensaio fotográfico produzido e protagonizado por alunos do curso de Jornalismo, negros, e as belas imagens registradas pela lente do jornalista e escritor Tom Correia, captando a invisibilidade dos negros em Lisboa. Mais: entrevistas com Wanda Chase, Nara Santos, coautora do livro “É a minha cara” – que conta a história dos 30 anos da “Cia Baiana de Patifaria”, e Gil Santos, repórter do jornal Correio. Todos jornalistas. Todos negros. Todos na Soul Black.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 6

(DEZEMBRO – 2018) Da primeira à última página, entrevistadores e entrevistados, repórteres e personagens, fotografados e fotógrafos, articulistas: todos(as) negros(as). Ou melhor, quase todos(as), porque diversidade não combina com segregação. Com o tema “Negro (a) é Poder”, a edição especial intitulada Soul Black reverenciou a negritude. O protagonismo negro norteou a edição que incorporou conteúdo audiovisual: o Programa Soul Black pôs em tela um debate entre os jornalistas Eduardo Machado, Juliana Dias e Tairine Ceuta. Papo reto e esclarecedor sobre o racismo e suas faces perversas. A Soul Black contemplou ainda um ensaio fotográfico produzido e protagonizado por alunos do curso de Jornalismo, negros, e as belas imagens registradas pela lente do jornalista e escritor Tom Correia, captando a invisibilidade dos negros em Lisboa. Mais: entrevistas com Wanda Chase, Nara Santos, coautora do livro “É a minha cara” – que conta a história dos 30 anos da “Cia Baiana de Patifaria”, e Gil Santos, repórter do jornal Correio. Todos jornalistas. Todos negros. Todos na Soul Black. DEZEMBRO 2019

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(JUNHO – 2019) A SOUL nº 7 reuniu pautas muito caras à temática gênero e diversidade. A reportagem ouviu a psicóloga e professora Ana Maria Rodrigues, com mais de 30 anos de atuação e vasta experiência com pacientes psiquiátricos, sobre a polêmica Nota Técnica Nº 11/2019 que indica a retomada de internamentos de longa permanência e de eletrochoques, entre outras medidas. Numa entrevista contundente, a especialista alertou para as ameaças à Reforma Psiquiátrica e os riscos de segregação de segmentos específicos da população: jovens, pobres, negros. A SOUL contou a história de Fábio Rigueira, amputado de uma das pernas desde os oito anos, que, aos 46 anos se tornou o único brasileiro com deficiência física a concluir, com auxílio de muletas, a edição do Ironman Brasil 2018. A moça da capa foi Eva Sattiva, uma mulher drag, que propõe a rediscussão da imagem de pecadora atribuída à primeira mulher na Terra, de acordo com a Bíblia (Eva), e à “desmarginalização” do uso da maconha (cannabis sativa). A vida pós os 80 anos também foi pauta da revista, com histórias de pessoas que já entenderam: viver é uma arte em qualquer idade. Direito animal e preconceito religioso, assédio sexual e bullying também integraram a 7ª edição. 6

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FOTO: ARI SILVA E FERNANDA COSTA

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 7


Editorial “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. É muito provável que 2019 tenha sido o ano em que, mais do que nunca, os versos da canção “Sujeito de sorte”, de Belchior, foram entoados e declamados pelo país afora. Dizemos “provável” porque não se constrói estatística nem s e se faz ciência com base em conjecturas, crenças ou impressões pessoais. Em 2019, a Universidade, a imprensa e outros atores sociais tiveram que erguer suas vozes para explic a r obviedades dessa natureza. Não, a terra não é plana. O matemático e astrônomo Nicolau Copérnico, nascido no século XV, e, antes dele, o filósofo

grego Aristóteles, há mais de dois mil anos, já tinham indícios do formato redondo do nosso planeta. Indícios que foram posteriormente confirmados, cientificamente, graças aos avanços tecnológicos e satélites que “fotografam” a Terra. Redonda, a propósito. Sim, tem que vacinar - foi com a vacina que o Brasil erradicou, em 2001, o sarampo, doença que chegou a matar mais de dois milhões de crianças por ano na década de 1990. Não, o AI-5 não é uma possibilidade numa democracia. Assinado em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional número 5 foi o mais duro golpe à democracia, que autorizou o general-presidente a fechar o Congresso Nacional e suspender os direitos políticos de todos os cidadãos considerados opositores ao regime militar instalado pelo golpe de 1964. Com o AI-5, os antagonistas ao governo perderam o direito a Habeas Corpus para “crimes políticos”. Quem eram os opositores? Na visão dos militares, os principais eram intelectuais e artistas. Parece atual o discurso, não? Como atuais são notícias de um brasil sombrio que insiste em segregar, criminalizar e matar a cultura, a ciência, a diversidade, os direitos humanos. Uma delas é o assassinato a tiros da estudante universitária Elitânia de Souza da Hora, 25 anos, concluinte do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

(UFRB), vítima de feminicídio, tema do trabalho de conclusão de curso (TCC) de Elitânia. Outra, mais recente: o estudante Danilo Araújo de Góis, da UFRB, é acusado de atitude racista, após aparecer em um vídeo se recusando a receber um documento das mãos da professora Isabel Cristina Ferreira dos Reis, por ela ser negra. Em 2019, tantas outras manchetes sobre desrespeito, exclusão e discriminação – essas, vindas de Brasília – também marcaram de vergonha e indignação a história deste ano: a declaração do presidente da República sobre não existir fome no Brasil; as notícias sobre a exclusão de 14 ocupações e atividades da categoria de microempreendedor individual (MEI), entre elas músicos e bandas; e a exclusão da Folha de S. Paulo de edital para renovação de assinaturas de jornais da administração federal. Motivo: o periódico é considerado pelo governo um opositor. A boa notícia: em todos os casos citados, o governo voltou atrás. Voltou porque, além de pasmo e indignação, houve reação coletiva, cidadã e civilizatória. A melhor notícia de 2019: eles voltam atrás; nós seguimos em frente. Seguiremos em 2020, em defesa dos direitos humanos, da cultura, da diversidade e da vida!

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ARTIGO

ENSAIO

MERCADO EXCLUDENTE

O choque como método

Acanne: quilombo urbano e templo da capoeira

Preconceito é obstáculo para autistas

Caio Cardoso

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CROSSPLAY

Gabriel Rodrigues

Yasmin Aguirre

ENSAIO

COCAR E BECA

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A magia de Midorii Coletivo Afrabapho Cotas: universitários Sokido em close Tuxás, Pataxó, Fernanda Costa Talita Black Pankarurú e Kiriri

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ENSAIO

DEPRESSÃO & GÊNERO

MARIA, MARIA

Beleza abundante e farta autoestima

Quando o sofrimento afeta pessoas trans

Perfil dos idosos vítimas de violência na Bahia

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Talita Black

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Laila Miranda

Milena Silva

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Nilson Marinho


ACESS0 À CULTURA

MUSICALIDADE

Tecnologias que Elora: mulher trans, dão “luz a cego” no atriz, cantora e acesso às artes bailarina

Músicos negros trabalham mais para driblar racismo

Bruna Amorim

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Emily Lima

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João Lucas

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FOTOS: ARI SILVA

ENTREVISTA

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ARTIGO

O CHOQUE COMO MÉTODO POR CAIO CARDOSO DE QUEIROZ

O livro “A doutrina do Choque” de Naomi Klein ajuda a entender o uso político e econômico de cenários de crise para implementar medidas radicais enquanto reagimos (a tudo) por medo.

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cordamos com medo, evitamos notícias, evitamos polêmicas no Uber e no almoço de família. Estamos em choque. Desde o governo Michel Temer, iniciado em 2016, temos uma sensação diária de ataque a direitos fundamentais, algo agravado nas medidas do governo Bolsonaro. A constante troca de notícias ruins por outras piores, o aumento da desigualdade social, a dificuldade de diálogo e a incapacidade das instituições brasileiras de reagir reforçam esses “choques ao sistema”, numa narrativa calcada na força.

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Há mais de duas décadas a escritora, ativista e professora Naomi Klein vem estudando os choques de larga escala que atingem nossas sociedades. Mais do que somente identificar os momentos de ruptura, ela destaca como políticos e grandes empresas exploram estes momentos para aumentar seus ganhos sobre uma população atordoada, incapaz de reagir. As tais reformas “necessárias”, “urgentes” e altamente impopulares só são possíveis fora das condições normais de discussão coletiva. Foi assim, por exemplo, que a imprensa brasileira retratou a reforma trabalhista de Temer e a reforma previdenciária sob Bolsonaro. Implementar tais medidas só é possível porque, para muitas pessoas, ver o noticiário alternando Bolsonaro, seus filhos e seus ministros em absurdos diários traz uma sensação de constante cansaço e atordoamento. Ora briga-se para conter o avanço conservador-religioso sobre conselhos tutelares, ora para conter a contaminação por petróleo no litoral nordestino frente à inépcia do governo federal. Este fenômeno, segundo Naomi Klein, tem bases na expansão do capitalismo de grandes marcas no mundo, na expansão do poder do dinheiro sobre a esfera política e na imposição global do neoliberalismo, usando com frequência o “medo do outro” como arma. Seu livro, chamado “A doutrina do choque”, foi lançado há mais de dez anos, mas permanece atual. O termo “doutrina do choque” descreve uma tática brutal de usar o estado público de desorientação da população depois de um grande choque (guerras, golpes, ataques terroristas, quebras de mercado ou desastres naturais) para impulsionar medidas que beneficiam os grandes empresários. Ou seja, embora Bolsonaro pareça imprevisível ou estúpido demais para planejar cada ação e repercussão, a leitura de Naomi Klein revela a possibilidade de que ele siga, em muitos sentidos,

um roteiro pré-fabricado de ação dentro de um cenário de crise (real ou imaginária) constante. Nos últimos meses, vimos a formação de grandes crises, como a extinção do Ministério do Meio Ambiente; os excludentes de ilicitude para PMs de Sérgio Moro; e os ataques às universidades, estudantes e professores. A cada grande escândalo, sucedem situações “menores” e diferentes, com falas da ministra Damares, as brigas internas do PSL, a quase-ex-futura nomeação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada do Brasil em Washington... Todos esses tópicos parecem disputar as opiniões na esfera pública por meio de dados falsos, memes e correntes do WhatsApp, e não como discussões sérias de um país. Boa parte dos brasileiros não procura mais notícias porque não quer lidar com o peso diário de mais um absurdo. Mas é preciso lembrar: Bolsonaro, extremo como é, não é uma aberração do sistema político. Ele é uma conclusão lógica e caricatural dos sistemas político, social e cultural brasileiro dos últimos anos. Ele é o produto de um sistema poderoso de pensamento que separa as pessoas por gênero, origem, cor da pele, orientação sexual... Ele é produto de uma cultura cujo fetiche é o “mito” capaz de “defender” o homem branco, religioso, heterossexual e politicamente incorreto por ser tradicional e “melhor do que isso que tá aí”. Bolsonaro é também fruto do apoio de um movimento político de recusa absoluta ao PT, numa narrativa anticorrupção vaga, mas não é somente isso. Ele é resultado do apoio de um mercado financeiro que precisa de “inovações disruptivas” constante para desregular o Estado e criar novas condições de explorar nossas vidas. Quando percebemos as amarras econômicas e as bases moralistas às quais Bolsonaro se prende, percebemos padrões pouco chocantes. Extremamente previsíveis e até mesmo clichês, na verdade.

Justamente por isso, é preciso pensar em formas de combater essas sensações e essas estruturas. Porque mesmo sem Bolsonaro elas continuariam buscando formas de se perpetuar. O combate a Bolsonaro não é a um indivíduo ou mesmo a um grupo de pessoas que habita Brasília. Naomi Klein nos mostra que é preciso recusar o sistema que nos levou a esta situação, retomando a capacidade de articulação sociais das forças que este sistema busca atordoar.

“A “doutrina do choque” é uma tática brutal de usar o estado de desorientação da população depois de um grande choque para impulsionar medidas que beneficiam os grandes empresários.”

Caio Cardoso de Queiroz é jornalista e doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, estudando jornalismo e conflitos éticos atuais. É fã incondicional da Revista Soul, atualmente mora em Vancouver, no Canadá, onde é professor de disciplinas de Mass Media & Society e Moral Philosophy na University Canada West.

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CROSSPLAY

O mundo mágico de Midorii Sokido Personagem “mistura” drag queen e cosplay

POR FERNANDA COSTA EDITADO POR DANIEL SERRANO

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o pensar em uma drag queen, logo projetamos um artista performático travestido de mulher. Com o cosplay, imaginamos uma pessoa vestida igual a alguma personagem de desenho japonês. Mas, ao depararmos com Midorii Sokido, descobrimos uma versão inusitada desses dois universos. Em Salvador-Ba, apenas os artistas Ueslei Souza e Ygor Gabriel Marques de Amaral, criadores respectivamente de Angelina Mells e Midorii Sokido, atuam como em casas noturnas. O mais comum é ver performances de um ou outro, separadamente. 12

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FOTO: NINA CODORNA

Como em um episódio de anime, a drag queen cosplay Midorii Sokido estreou em uma festa temática. Era 2016 e Ygor Amaral resolveu misturar o cosplay com a drag, aderindo à crossplay (arte de fazer cosplay do sexo oposto) sob influência do reality show RuPaul’s Drag Race e de algumas artistas drag da cidade. Um braço em forma de bazuca, roupa confeccionada em E.V.A., lápis de olho preto e batom vermelho formaram o figurino criado pelas mãos de Ygor Amaral, que se inspirou na série de jogos do robô Mega Man, no cavaleiro de bronze Shun de Andrômeda, da franquia Cavaleiros do Zodíaco, entre outros personagens. O nome teve origem em uma das personagens femininas do jogo Guitar Hero e o sobrenome, em Saori Kido, figura que reencarna a Deusa Atena, em Cavaleiros do Zodíaco.

Uma adaptação para o estilo kawaii (nome japonês que significa “fofo”), Midorii também traz características do próprio cosplay; do rock, pelo uso de roupas brilhantes e escuras, derivadas da época de adolescência de Ygor Amaral, quando sofreu bullying na escola por ser emo (abreviação para o estilo musical emocore, com canções expressivas e melancólicas); e do visual scene kid, marcado por cabelos com franjas e mechas coloridas.

Lá, foi tratada como a “diferentona”, porém teve uma recepção mais calorosa. “Midorii Sookido tem um trabalho de grande relevância, invadindo, no melhor dos sentidos, o universo geek e otaku, se embasando em figuras de animes e personagens da cultura japonesa e convencendo o público de tais eventos a aceitá-lo pelo afeto”, ressalta o bacharel em Artes e pesquisador da cena drag em Salvador Armando Azevedo.

REAÇÃO

RECONHECIMENTO

Segundo Ygor Amaral, 23, não foi fácil aparecer montado de mulher em eventos de cultura geek, espaços voltados a pessoas que gostam de filmes de ficção científica e tecnologia e ainda muito machistas. Além da drag ser alvo de preconceito, não era comum existirem homens fazendo crossplay. O surgimento de Midorii foi um choque para muitas pessoas, mas o fato do artista conhecer outras pessoas da cena geek amenizou os burburinhos mal-intencionados. “Depois que Ygor/Midorii começou a fazer, notei um aumento na presença de drags crossplay. É bacana observar a interseção dessas duas expressões artísticas, ainda mais porque o hobby do cosplay permite que você faça versões originais de personagens. Então, além de drags poderem fazer cosplay de personagens definidos, há também a possibilidade de converter”, diz Victor Karl, 24 anos, fundador do grupo Cosplayers e vencedor de 12 prêmios na categoria, inclusive o da Comic Con Experience (CCXP), em São Paulo. “A criação de Midorii teve um papel importantíssimo na representatividade de pessoas LGBTQI+ nesses eventos de cultura japonesa”, confirma Ygor Amaral. A personagem causou estranheza também no meio drag.

Movido pela frase da música de abertura de Cavaleiros do Zodíaco, tatuada em seu corpo (“As asas de um coração sonhador ninguém irá roubar”) e sustentado no apoio dos pais, Ygor Amaral se manteve na empreitada. No início, foi difícil para os pais, pelo medo de o filho sofrer preconceito ou alguma violência física. Porém, hoje, sempre que possível, eles vão assistir às performances. A mãe, como artesã, ajuda o artista na hora de confeccionar os assessórios. O reconhecimento vem aos poucos. Midorii traz, na bagagem, performances e um workshop realizado na Campus Party Bahia de 2017; o troféu de vencedora do concurso cosplay do Museu do Videogame; o título de vice-campeã no concurso Eu Lacro, da TV Aratu, ambos conquistados em 2018; e a experiência como jurada de vários concursos cosplays da cidade. Atualmente, está em plataformas digitais, como o YouTube, para ensinar como se montar. As diversas performances deram a Midorii a oportunidade de atuar em “Gregorianas”, espetáculo teatral inspirado nas obras do escritor baiano Gregório de Matos, com elenco composto exclusivamente por drag queens soteropolitanas. DEZEMBRO 2019

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Surge um cosplay

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FOTO: RENATO SOUZA

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

FOTO: PEDRO GABRIEL

Y ral,

g or Gabriel Marques de Ama23, começou a assistir animes na infância. Mas, por ser muito tímido, jamais imaginou que, um dia, poderia copiar as vestes dos seus personagens favoritos em público e nem ser uma drag. A situação mudou quando, aos 12 anos, ganhou da mãe, Risoneide Amaral, outra fã da cultura japonesa, um sobretudo com uma cruz vermelha nas costas, além de uma peruca loira, e resolveu usar as peças durante um evento de animes. O estudante nem imaginava, mas estava fantasiado do protagonista de Full Alquemist, considerado um dos melhores animes de mangá já produzidos. “Eu era criança e estava vestido lá, de boas! Foi a primeira vez que vesti uma roupa diferente em um evento e nem era cosplayer”, conta Ygor de Amaral, ao recordar da sensação da estreia. A coragem para participar de cosplay em eventos geek veio a partir do incentivo de amigos. Em 2014, buscou na internet ajuda para a elaboração da roupa do Sub-Zero, do jogo Mortal Kombat. Na chegada com a fantasia, ficou com receio da reação do público, mas deparou-se com muitas pessoas pedindo para fotografar junto, respirou fundo e deixou se levar pelo poder da imaginação. “Não sou eu, é o Sub-Zero “, refletiu, à época. A partir dali, o filho de Dona Risoneide Amaral passou a frequentar todos os encontros de fãs de animes da cidade, sempre homenageando personagens. A fantasia era uma diversão e uma forma, para um tímido, de garantir a inserção social. Depois, tornou-se fonte de renda. Hoje, ele trabalha com a venda de apetrechos, camisetas, acessórios e fantasias, através de uma loja virtual (@ygmacrafts, no Instagram) e se traveste em festas e shows.


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Gorda ENSAIO

VAI TER

POR TALITA BLACK

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O movimento começou em 2016 quando uma foto de biquíni da modelo Adriana Santos viralizou nas redes sociais. Ela que já era ativista na causa da mulher gorda, e modelava como modelo plussize, publicou em suas redes uma foto de biquíni na praia. O post gerou um enorme número de compartilhamento e comentários.

“Sempre gostei muito de moda e passarela, mas quando me descobri como uma mulher gorda comecei a perceber que não havia representatividade”, afirma. Ela entendeu ao longo da sua vida que cada momento em que ela ficava maior o problema, não era somente a moda e, sim, coisas muito básicas como ir ao banco, sentar em uma cadeira ou até mesmo aferir a pressão. 16

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Depois da repercussão das fotos, uma amiga a convidou para um ato em São Paulo, ela não conhecia e nem tinha visto nada parecido. Decidiu convocar mulheres gordas para um ato coletivo, e pensou: por que não Vai ter gorda na praia? O ato foi realizado na praia da Barra, em Salvador, onde várias mulheres tomaram um simples banho de mar, o que chamou a atenção dos banhistas,

pelo fato de que não era comum um grande número de mulheres gordas na praia, de biquíni e sorrindo. Nesse mesmo dia a imprensa divulgou o acontecimento, que repercutiu em diversos meios de comunicação e estampou a capa dos jornais de grande circulação na Bahia. O movimento ganhou tanta força com a visibilidade que e as integrantes do coletivo entenderam: o ato não seria apenas na praia, mas em qualquer lugar. Hoje, com apenas três anos de existência, o coletivo tem projeção nacional e já foi pauta do programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo. VAI TER GORDA EM QUALQUER LUGAR.


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“Sempre gostei muito de moda e passarela, mas quando me descobri como uma mulher gorda comecei a perceber que não havia representatividade.”

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É tempo de se

AQUILOMBAR TEXTO: GABRIEL RODRIGUES

uilombo urbano, a Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro (ACANNE) é mais um símbolo de luta e resistência que ocupa a capital da Bahia. Localizada no bairro Dois de Julho, o espaço dedica-se na transmissão dos fundamentos tradicionais da capoeira angola, na crença do saber ancestral e, também, no enfrentamento às mais diversas violações e mazelas sociais. Fundada em 1986 pelo Mestre Renê Bitencourt, 60, o coletivo é retrato de diversas inquietações do seu precursor, reconhecido como herdeiro de outros grandes mestres capoeiristas, como Paulo dos Anjos, Canjiquinha e Aberrê. Criado solto nas ruas de Salvador, a capoeira surge em sua vida aos 15 anos como possibilidade de defesa dos garotos mais velho à época. No entanto, o contato ganha outras dimensões em sua vida. A ACANNE começa a emergir nesse momento. Um refúgio. O coletivo, que agrega hoje em seu espaço uma diversidade de corpos, serve, para muitos, de válvula de escape, tanto nos treinos quanto em outros momentos. A afetividade não é reprimida. Na ACANNE, preserva-se a noção de unidade, do estar organizado enquanto uma estrutura, enquanto família. O cuidado ganha uma atenção mútua, respeitando a condição e a realidade de cada um.

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Joselicio Junior, 2019

CANNE

De Capoeira Angola Navio Negreiro DEZEMBRO 2019

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FOTOS: GABRIEL RODRIGUES (P & B) E JEFFERSON DIAS (COLORIDAS)

"É uma necessidade histórica, é um chamado, uma reconexão com nossa ancestralidade para atuar no presente, é construir esperança, é construir força, é construir sonho, é construir um futuro melhor!”


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“Quando entrei na capoeira ela me mostrou um outro propósito, que não era só a luta pela luta ou brigar com quem. Então, a partir disso descobri que poderia ser um educador”, relata Renê Bitencourt.

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“A ACANNE salva vidas, empodera, cura. Sempre falo para as pessoas que não tenho um grupo de capoeira, eu tenho um sonho. Sonho que os meus alunos ajudam a realizar”, afirma Ren 32

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AFROBAPHO POR TALITA BLACK

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coletivo foi criado em 2016 depois de o grupo ouvir ofensas e expressões pejorativas, como “bixa poc poc”, “bixa pão com ovo”. O grupo, que então passou a usar isso como empoderamento, é formado por 15 integrantes, jovens negros LGBTQE+, que utilizam a arte como forma de mobilização social, promovendo também discussões em suas redes sociais e em eventos.

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FOTOS: ARI SILVA

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iniciativa é também resultante de confrontos sofridos pelo corpo negro afeminado, até mesmo com grupos dominantes da comunidade LGBT. Na maioria dos eventos frequentados por um grupo mais normativo, as bixas pretas afeminadas eram tratadas com deboches, sendo motivo de chacota. “Nossos corpos são afeminados, queremos respeito às nossas identidades”, afirma Alan idealizador do coletivo. O diálogo através da arte! DEZEMBRO 2019

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DEPRESSÃO & GÊNERO

QUANDO O SOFRIMENTO AFETA PESSOAS TRANS: uma abordagem psicológica e social

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POR LAILA MIRANDA

expressividade do número de pessoas transgênero que sofrem com a depressão é assustadora. A doença, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), afeta 300 milhões de pessoas no mundo e, segundo dados divulgados em 2016 pela revista inglesa The Lancet, acomete mais da metade das pessoas transgênero no mundo. De acordo com a revista, esse número chega a 60%. A Soul conversou com o psicólogo e homem trans Rafael Costa sobre o tema: a depressão em pessoas transgênero. O entrevistado é participante do grupo de apoio Rede Vivas, que faz o acompanhamento psicológico de homens e mulheres trans, além de demais integrantes da comunidade LGBTQI+. O Rede Vivas funciona em Salvador no bairro Cidadela. Para ser atendido é preciso entrar em contato pelo e-mail contato@redesvivas.com.br e solicitar agendamento. O grupo acredita que a conversa é um dos melhores caminhos para reduzir o índice de depressão em pessoas trans.

O que faz esse número de pessoas trans ser tão alto quando o assunto é depressão? RAFAEL COSTA: Seja por fator interno ou externo, ou até mesmo os dois, as pessoas trans sofrem com aspectos específicos que as tornam mais suscetíveis do que outras pessoas. Além dos fatores internos, os quais são relacionados ao tratamento hormonal, tem também os fatores externos que são os sociais, os quais envolvem relacionamento com os familiares que não aceitam ou não sabem lidar com a situação. Esse conjunto de fatores, aliado ao desrespeito com o nome social da pessoa trans, pode acarretar a depressão no indivíduo. 54

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Soul:

Essas questões familiares, como a falta de apoio e compreensão por parte de alguns parentes sobre a situação da pessoa trans, são questões que contribuem de quais maneiras para a depressão? RC: Primeiro precisamos pontuar que não é somente porque colocou a pessoa no mundo ou porque tem o mesmo sangue que quer dizer que realmente é família. O trans precisa de uma base de pessoas próximas para ter um diálogo e traçar vínculos de confiança. Se ele não tem isso, a probabilidade dele ter uma depressão se torna maior. Inclusive, a falta dessa confiança por parte da família e a barreira criada em torno da aceitação são

FOTO: UNSPLASH

Soul:


FOTO: UNSPLASH

Soul:Como

a hormonização pode ocasionar a depressão? RC: Muitos transgêneros buscam a hormonização já na expectativa de ter um corpo perfeito, e, além disso, muitos ainda querem que o processo seja rápido e isso provoca ansiedade e até mesmo angústia, fatores que contribuem para o desencadeamento de uma depressão. Além disso, existe também uma sensibilização não somente do corpo, como também do emocional da pessoa.

Soul: Muitos transgêneros passam por constrangimentos devido à não utilização do nome social. Como deve ser esse contato? RC: Em sua maioria, essa falta de respeito acontece na frente de outras pessoas, e além de se sentir constrangido, isso pode gerar tristeza no trans. Vale lembrar ainda que muitos deixam até de acessar o sistema de saúde para não passar por esse tipo de situação que infelizmente é muito comum. O trans, assim como qualquer outra pessoa, quer ser atendido da melhor forma possível. Quando um profissional atende uma pessoa trans, ele está lidando com as particularidades dela, as quais são diferentes das particularidades de outras pessoas. Por isso, é preciso fazer o acolhimento dando todo apoio em relação ao nome social.

como a pessoa se sente mais confortável, como ela se sente melhor. Vale lembrar que é importante desenvolver uma conversa sempre tentando agradar a pessoa, isso para que a privacidade dela não seja invadida.

Soul:

Você, na condição de psicólogo, já presenciou alguma evolução de uma pessoa trans que chegou a um estado crítico de depressão e foi melhorando com o atendimento e tratamento? RC: Já sim, e acontece. Inclusive já aconteceram várias outras coisas. A conversa pode começar a melhorar a questão familiar, que é uma base que a pessoa tem. Além disso, pode melhorar também no relacionamento com outras pessoas e isso ajuda muito no distanciamento da depressão. Podemos afirmar, sim, que o acompanhamento psicológico, quando feito de maneira correta, pode ser eficaz.

Soul:

Além de psicólogo, você também é um homem trans. Com sua experiência no atendimento de pessoas transgênero, você pode afirmar que essas pessoas se sentem mais confortáveis quando são atendidas por um psicólogo que está na mesma condição? RC: Com certeza, pois elas se sentem mais confortáveis. Sinto

que nós, trans, precisamos ter a nossa representatividade, e quando um trans sabe que está sendo atendido por um outro trans, fica mais fácil para poder firmar um vínculo de confiança e desenvolver melhor o atendimento. É importante lembrar que essa situação é tão positiva a ponto de o psicólogo ter autonomia para falar algumas algumas coisas sem ser invasivo.

Soul:Como

os profissionais da saúde podem melhorar a assitência a pessoas transgênero, já que o atendimento inadequado pode gerar constrangimento e, por conseguinte, colaborar para o desencadeamento da depressão no trans? RC: É preciso dialogar em todas as esferas, principalmente dialogar com o sistema de saúde, o que acho que já deveria estar acontecendo. Afinal, quando estamos falando de corpos diferentes, é preciso ter conhecimento e eu sei que em alguns momentos eu, na situação de trans vou estar na margem simplesmente porque eu, além de trans, sou negro. Então precisamos trabalhar para calibrar isso e usar nosso lugar de fala para dialogar sobre o assunto. O atendimento a pessoa trans só vai melhorar quando todos procurarem conhecimento, o qual só vem através do diálogo e da busca por ele. FOTO: CLEITON OLIVER

situações complicadas porque consequentemente envolvem, às vezes, questões financeiras. Tudo isso mexe com o psicológico do transgênero que já está passando por um processo de hormonização que o influencia e sensibiliza.

Soul:

Mas como deve ser esse atendimento? RC: Primeiro é imprescindível perguntar como ela quer ser tratada e como ela quer ser chamada. Com o desenrolar do diálogo, é preciso ir construindo uma relação de confiança para saber DEZEMBRO 2019

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AUTISTAS

Não há vagas! Pessoas com transtorno do espectro do autismo encaram o preconceito na busca por emprego POR YASMIN AGUIRRE EDITADO POR DANIEL SERRANO

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desemprego aflige aproximadamente 11,8% (cerca de 12,5 milhões) dos brasileiros, de ambos os sexos, de todas as etnias, de todos os credos. Para as pessoas com transtorno do espectro do autismo (TEA), esses dados parecem mais perversos. Mesmo aquelas com graduação completa nem sempre conseguem oportunidade e sucesso em suas áreas de atuação,

embora a Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764), de 2012, estabeleça o acesso ao mercado de trabalho como um dos direitos da pessoa com TEA. Não há dados oficiais sobre o assunto no Brasil, mas estima-se, a partir de estudos na Inglaterra e Espanha, que oito em cada grupo de dez autistas adultos estejam desempregados no mundo. De acordo com os dados mais recentes da Organiza-

ção Mundial das Nações Unidas (ONU), de 2013, cerca de 1% da população mundial (uma a cada cem pessoas) tem autismo. Não há pesquisa sobre a prevalência em território brasileiro.

CAUSAS

O preconceito e a falta de informação de possíveis empregadores e profissionais de recursos humanos acerca do TEA ainda são grandes e contribuem


para reduzir a empregabilidade ao autista. Ao contrário do que imagina a maioria, as limitações inerentes ao autismo não impedem o trabalho. Jovens e adultos com o transtorno podem desenvolver competências, habilidades e atitudes compatíveis com aquelas que o mercado demanda, a depender do grau de cada um, embora tenham perturbações neurológicas e dificuldade no relacionamento social. De acordo com a classificação do Centro de Controle (CDC), existem três tipos principais: o autismo clássico, com grau variável e caracterizado pela falta de contato visual com outras pessoas e o ambiente, pelos movimentos repetitivos e pela falta de utilização da fala como ferramenta de comunicação, entre outros fatores; o autismo de alto desempenho ou síndrome de asperger, comum em autistas com maior adaptação funcional, inteligentes e com gostos específicos; e distúrbio global do desenvolvimento, marcado pela dificuldade de interação social e por problemas no desenvolvimento, na comunicação e na socialização. “Para as empresas contratarem, é necessário que pessoas

tenham um nível intelectual mínimo para realizar as atividades mais simples, ou seja, tenham um grau de autismo leve. Na hora do processo seletivo, o setor de recrutamento e seleção deve analisar cuidadosamente quais atividades o autista tem melhor habilidade para exercer. Uma vez inserido no mercado de trabalho, o autista precisa estar em tratamento, juntamente com a equipe multidisciplinar da empresa”, explica a gestora em Recursos Humanos, Vanessa Maciel. De acordo com o vice-presidente da Associação de Amigos do Autista da Bahia (AMA), Leonardo Martinez, os autistas precisam ser inseridos no mercado de trabalho não apenas por ser um direito do grupo, mas também por sua capacidade laboral. “Eles devem produzir e gerar riquezas. Além disso, faz parte da dignidade da pessoa humana o direito de trabalhar e de poder contribuir com a sociedade em que vive”, explica o dirigente.

CAPACITAÇÃO

O cenário pode mudar com a ação de movimentos e organizações não governamentais. Em Salvador, existem projetos voltados para a capacitação e o

DIREITOS DOS AUTISTAS O autista tem assegurada uma série de direitos, através da Lei Berenice Piana (Lei n° 12.764), de 2012. Batizada em homenagem a uma mãe de autista que se tornou ativista dos direitos das pessoas com transtorno do espectro autista, a Lei asseverou a classificação do autismo como deficiência e a concessão dos benefícios garantidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15) também aos autistas. De acordo com a legislação, eles devem ter assegurado o acesso à educação e ao ensino profissionalizante, à moradia, ao mercado de trabalho e à previdência e assistência social. Para facilitar o acesso às políticas públicas, é imprescindível saber quantas são as pessoas com TEA no Brasil. O primeiro passo será a coleta de dados sobre os autistas no País a partir do próximo Censo Demográfico, de 2020. A Lei nº 13.861, de 2019, inclui informações específicas sobre pessoas com autismo, nos censos demográficos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a partir de 2019. Hoje, não existem dados oficiais sobre as pessoas com TEA no Brasil.

Jovens e adultos com o transtorno podem desenvolver competências, habilidades e atitudes compatíveis com aquelas que o mercado demanda, a depender do grau de cada um, embora tenham perturbações neurológicas e dificuldade no relacionamento social.


treinamento profissional de autistas. Uma das iniciativas mais importantes é o Projeto Fantástico Mundo Autista – Projeto Fama, que, desde 2014, vem incluindo pessoas com TEA no mercado de trabalho, garantindo-lhes ocupação e renda. A sede fica no Tororó, no Centro da capital baiana. Com o apoio de voluntários, o Fama oferece oficinas profissionalizantes e atividades voltadas ao desenvolvimento físico, psicossocial e cognitivo para adolescentes e jovens com transtorno, e identifica interesses e gostos dos alunos para encaminhamento a futuros empregadores. “Faltavam, na cidade, ações para o adolescente e o adulto autistas. Assim, surgiu a ideia da gente fazer alguma coisa para essas pessoas, investindo em oficinas de música, artesanato, informática, fotografia etc. e ajudando na inserção desses jovens no mercado de trabalho”, explica a pedagoga e fundadora do Projeto Patrícia Teodolina. “Estes alunos terão menos dificuldades com a coordenação

motora, linguagem e interação social, quando ingressarem no mundo do trabalho”, prevê o professor Paullo Argolo, lembrando que o Fama também aposta em aulas de capoeira e educação física. Caio Lopes, 19, é um dos beneficiários. O rapaz começou como aprendiz e já conquistou a primeira oportunidade no mercado formal. “Quando eu entrei, senti um pouco de desconfiança, tinha problemas, tinha medo de fazer as coisas e de não gostar, mas hoje já tenho um emprego. Não precisa ter medo, o autismo não é uma doença”, conta Caio. Atualmente, quatro jovens vinculados ao Fama atuam na Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), graças a uma parceria com a entidade. “É gratificante sentir como nosso Projeto faz bem às famílias desses autistas e a eles mesmos, que se sentem felizes com a inclusão”, afirma a defensora pública e coordenadora das Defensorias Especializadas da DPE/BA, Donila Gonzalez. É uma primeira chance.

VOCÊ SABIA? * O símbolo mundial da luta pela conscientização quanto ao autismo é uma fita feita de peças de quebra-cabeça coloridas e representa o mistério e a complexidade do autismo.

* A cor azul no símbolo do autismo conota a maior incidência de casos no sexo masculino.

* Dois de abril é considerado o Dia Mundial do Autismo, criado pela Organização das Nações Unidas, em 2007, para conscientizar as pessoas e estimular a disseminação de informações sobre o transtorno do espectro autista.

Serviço

Projeto Fama – Fantástico Mundo Autista Rua Amparo do Tororó, s/n°, Tororó Contato: (71) 3011-4245 Projeto AMA – Associação de Amigos do Autista da Bahia Rua Macedo de Aguiar, 98, Pituaçu Contato: (71) 3363-4463 CRE-TEA - Centro de Referência Estadual para Pessoas com Transtorno do Espectro Autista Praça Dois de Julho, Largo do Campo Grande Contato: (71) 3336-6147 Instituto Viva Infância Rua Ten. Gustavo dos Santos, 26, Boca do Rio Contato: (71) 3363-7717


FOTO: VICTOR PATAXÓ, ARQUIVO PESSOAL

COCAR E BECA

Resistência indígena nas universidades

Mais de 3,6 mil estudantes de povos diversos estão matriculados no ensino superior na Bahia

POR MILENA SILVA EDITADO POR FERNANDA COSTA


O RETORNO

Victor pertence à Aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, localizada no município de Santa Cruz Cabrália, no Sul baiano, fez todo o ensino médio no local onde morava e hoje é estudante do bacharelado em Produção Cultural da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Como militante, deseja que seu povo consiga ocupar todos os lugares sem uso de força, mas por meio da educação. “A gente vem aprender com o colonizador como derrotá-lo. A gente precisa estar na universidade, ocupar esses espaFOTO: ANDRÉ STÉFANO / SP ESCOLA DE TEATRO – CENTRO DE FORMAÇÃO DAS ARTES DO PALCO

Spensy Pimentel, antropólogo

ços, para sairmos sendo doutor, comunicador, advogado, e termos uma formação para ajudar o nosso povo”, diz Victor, atual vice-presidente da União Nacional dos Estudantes. Assim como outros colegas indígenas, Victor tem interesse em levar os conhecimentos aprendidos na capital à sua comunidade e transformar a realidade local. “Se a gente vem fazer um curso, não é porque gosta necessariamente. Se venho e busco um curso de Fisioterapia, não é porque é um curso dos meus sonhos ou porque quero fazer algo para mim. A maioria pensa em dar retorno (à comunidade), justamente pela questão do coletivo. Pensa: ‘O que eu posso fazer para melhorar minha comunidade? Qual curso devo escolher para poder trazer o retorno?’, explica Vanessa Pataxó, 23, estudante de Fisioterapia na UFBA e também originária da Aldeia de Coroa Vermelha. Victor e Vanessa representam muitos. A população indígena no Brasil é composta por 896,9 mil pessoas, de 305 etnias, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na Bahia, 56.742 se declaram indígenas, o que coloca o estado como o terceiro de maior população indígena do País. Mas o acesso à educação ainda é limitado. Somente pouco mais de 76% dos indígenas brasileiros com idade superior a 15 anos são alfabetizados.

FOTO: VANESSA PATAXÓ, ARQUIVO PESSOAL

nas na graduação. O professor e antropólogo Spensy Pimentel, da Universidade Federal do Sul da Bahia, explica que o aumento dessa população nas universidades está relacionado à vontade de atuar em profissões tradicionalmente não exercidas por indígenas e também ao surgimento de projetos voltados às demandas desse grupo social. “Temos lugares com experiências ‘formatadas’ para as populações indígenas, como as instituições com licenciaturas interculturais, que servem de formação e aprimoramento para professores indígenas”, diz Pimentel. Os movimentos indígenas têm papel fundamental na inserção dos alunos nas instituições de ensino. “Sem o movimento, a gente nem estaria na universidade. A luta principal é pela demarcação do nosso território, pois, sem a demarcação, não temos acesso à saúde e à educação básica”, diz Vanessa Pataxó.

FOTO: VANESSA PATAXÓ, ARQUIVO PESSOAL

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ictor Rayhatã Pataxó, 22 anos, veio para Salvador há quatro anos, atendendo a um convite para ingressar na União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), em razão de sua importante participação em diversos movimentos indígenas no Sul da Bahia. Na capital, tornou-se um dos 409 ingressantes por meio de cotas reservadas a quilombolas e aldeados em universidades federais do Estado. A quantidade de graduandos indígenas em instituições de ensino superior – cotistas ou não – ainda é restrita, diante do universo de estudantes, mas já é significativa. Em 2018, foram registrados 3.659 indígenas matriculados nos cursos de graduação presenciais e a distância situados em território baiano, de acordo com os dados do Censo de Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). A maior parte (74,5%) está concentrada nas instituições privadas. Do total, apenas 933 correspondem a discentes de universidades públicas, sendo 409 federais e 523 estaduais. As cotas contribuem, mas não são o único fator determinante para o ingresso de indíge-


Vanessa Pataxó , universitária

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ictor e Vanessa Pataxó precisaram percorrer 692 km, em uma viagem que, de carro, dura, em média, 12 horas e tiveram que se adaptar a uma cultura muito específica e resistir ao preconceito, em Salvador. Um dos principais problemas que levam à desistência do sonhado diploma está no choque cultural. “Eles sofrem a violência no dia a dia. A permanência é uma luta de cada dia”, explica o antropólogo etnólogo e tutor do Programa de Educação Tutorial, Danilo Paiva, afirmando existir racismo dentro das instituições. A discriminação está relacionada com as dimensões espirituais, as pinturas corporais e os trajes usados por esses alunos.

A língua também se torna um obstáculo. “Existem barreiras próprias como populações que têm o português como segunda língua. As universidades infelizmente são monolíngues e empurram o aluno a escrever somente o português e, consequentemente, acabam não explorando os conhecimentos oferecidos pelos indígenas”, diz Spensy. As faltas e os atrasos na entrega das atividades, por vezes, decorrentes da participação em ações reivindicatórias dos movimentos sociais, também marcam a trajetória destes discentes, causam desgastes e provocam desistência. Muitos sucumbem.

Para diminuir a evasão, o Ministério da Educação criou o Programa Bolsa Permanência, que garante um auxílio financeiro para estudantes com dificuldade de se manter na cidade em que estuda, longe da família. A UFBA, através da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil, soma 168 alunos indígenas que usufruem desse benefício, entre os quais é possível encontrar cidadãos dos povos Pataxó, Tuxás, Pankararú, Kiriri, Tumbalalá, Pataxó Hã hã hãe, Xukurú, Payayá e Atikum. O pesquisador e mestre em educação Jaime Prazeres Júnior considera que o órgão teve uma importante evolução ao longo do tempo e passou do assistencialismo, com oferta de auxílios básicos e fundamentais como moradia, alimentação e transporte, para a assistência qualificada, com garantia de bolsas acadêmicas que asseguram a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. “(O programa busca) compreender todas as questões que podem interferir no processo de aprendizagem dos alunos”, diz Prazeres.

FOTO: MILENA SILVA

Permanência, luta diária

CONTRA EVASÃO

Jaime Prazeres, pedagogo


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MARIA, MARIA

quem traz no corpo essa marca? Perfil dos idosos vítimas de violência em Salvador e na Bahia

TEXTO: NIILSON MARINHO

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eitor, antes de iniciarmos a leitura preciso te apresentar as nossas vítimas. São elas que vão nos guiar durante toda esta grande reportagem que revela o perfil e as várias formas de violência sofrida pelos idosos no estado da Bahia e na cidade de Salvador. Essa apresentação só será possível graças a dois levantamentos. 62

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O primeiro feito pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), que coleta dados desde 2011, a partir de denúncias feitas pelo canal de atendimento Disque 100 (disponível para download aqui); o segundo, realizado pelo Observatório do Idoso, da Especializada do Idoso, da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DP-BA). Para tra-

çar o perfil das vítimas vamos utilizar dados dos últimos levantamentos feitos pelos dois órgãos. Os números da pasta federal são referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018. Já o da Defensoria Pública são de 2017, 2018 e dos últimos cinco meses deste ano. Vamos às boas-vindas. Se quiser se aprofundar nos dados sugiro que clique neste link.


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Os compositores nunca falaram sobre isso. Não há em nenhum meio de pesquisa - físico ou digital - uma declaração dos dois. Uma linha sequer sobre a personagem principal de um dos grandes sucessos de Milton Nascimento, escrito ao lado de Fernando Brant. Mas farei, com a licença não autorizada dos dois mineiros (Milton, embora seja carioca, foi para a cidade de Três Corações ainda muito pequeno, com dois anos), uma rasa e curta análise da interdiscursividade da canção Maria, Maria, do LP duplo “Clube da Esquina 2”, gravado em 1978. Não é o meu papel enquanto repórter fazer você divagar sobre os versos, estou aqui para falar de um assunto “mais sério”, sem ofender as editorias e colegas que cobrem cultura. Mas é que as nossas vítimas podem se confundir entre um verso e outro da música. A Maria, de Nascimento e Brant, é um retrato fiel da mulher brasileira. Aquela que pode ser a minha ou a sua mãe, alguém que carrega o mundo nas costas sem esboçar, no fim do dia, um sinal sequer de desânimo. As nossas vítimas, assim como a estrela da canção, não existem, apenas aguentam. Muitas com uma força que não conseguimos explicar de onde vem. Caminham na linha tênue entre a vida e a morte, entre o amor e a ingratidão, a liberdade e à clausura. Enclausuradas em pequenos cômodos, esquecidas em abrigos ou lançadas à própria sorte.

MARIA, A BAIANA

Como a nossa primeira vítima tem entre 76 a 80 anos, convém também chamá-la de Maria, como foi registrada a maioria das crianças que nasceram na década de 30, no Brasil, de acordo com dados do último

Censo Demográfico, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010. Não sabemos exatamente em qual cidade do estado Maria nasceu, já que os dados do MMFDH nos revelam o cenário da violência contra o idoso em todo o território baiano. O que podemos afirmar com segurança é que ela é parda e tem preferência por se relacionar com pessoas do sexo oposto. Seguindo os padrões previsíveis da época em que veio ao mundo, já era de se esperar que a senhora iria encontrar um marido, ter filhos e um punhado de netos. Assim foi. À essa altura da vida, você deve estar imaginando a nosso avó — pra ficarmos mais íntimos da primeira vítima  —   l evando uma vida mais sossegada. Digo, longe dessa rotina fatigante que nós, mais jovens, encaramos todos os dias. E antes que eu me esqueça, é preciso frisar que a nossa vítima baiana ultrapassa a expectativa de vida dos bisnetos, que é de 75,51 para aqueles que nasceram em solo brasileiro em 2016, conforme estatísticas do Banco Mundial. Sem mais apresentações, precisamos ir ao ponto que nos interessa: o nome de Maria, infelizmente, faz parte de uma lista que nos preocupa, mas que esperamos, ao fim desta leitura, rasgá-la — talvez seja mais difícil do que imaginamos. A história da nossa primeira vítima é uma das 691 espalhadas pelo estado que narram a violência contra pessoas que têm 60 anos ou mais, e que sofrem em sua própria casa com a negligência cometida pelas suas filhas,

“A Maria, de Nascimento e Brant, é um retrato fiel da mulher brasileira. Alguém que carrega o mundo nas costas sem esboçar, no fim do dia, um sinal sequer de desânimo.”

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quais os nomes não nos interessa, mas que, assim como as genitoras, têm a pele parda e possuem entre 36 a 40 anos. A Maria, ainda de acordo com dados do órgão federal, compreende que é uma vítima da violência e, com esforço próprio, procura ajuda, mesmo que, mais tarde, a um passo da Justiça cumprir seu papel, desista de levar o caso adiante e punir seu algoz. Maria é mãe e nunca deixará de ser e, como qualquer outra mãe do mundo, é capaz de doar a sua própria vida aos pupilos, mesmo que eles não mereçam.

MARIA, A SOTEROPOLITANA

Agora é preciso, então, voltar os olhos para o levantamento da capital baiana. Sendo assim, sabemos que a nossa segunda vítima, nascida em terras soteropolitanas, tem 60 anos ou mais. Com residência fixa nas imediações dos bair-

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“Essas mulheres vêm cuidando das suas gerações. Cuidam dos filhos, dos netos, dos bisnetos. No entanto, quando mais precisam deles, são colocadas de lado”. Daniela Simões, presidenta do Conselho Municipal do Idoso (CMI) da cidade de Salvador.

ros da Liberdade e São Caetano, ela sofre com a violência patrimonial cometida em sua própria casa pelos filhos. Possuindo o segundo grau completo no currículo escolar, sua renda está entre R$500 a R$1 mil. De acordo com Daniela Simões, presidenta do Conselho Municipal do Idoso (CMI) da cidade de Salvador, o perfil da vítima de violência traçado com base no banco de dados do DPE-BA, se assemelha muito às idosas que são aparadas pelo CMI. “Essas mulheres vêm cuidando das suas gerações. Cuida dos filhos, dos netos, dos bisnetos. Falando de um idoso que encontra-se em vulnerabilidade social, que só tem um salário mínimo para sobrevivência, ele precisa, muitas vezes, além de pagar aluguel, ter que sustentar seus parentes. No entanto, quando mais precisam deles, são colocados de lado”, pontuou.


O Conselho Municipal, formado por oito representantes da Sociedade Civil Organizada, articula, desde 2006, políticas de combate à violência e em prol do bem estar social dessa população. Nos últimos dois anos, a equipe técnica formada por quatro assistentes sociais realizaram 134 visitas domiciliar a idosos de diversos bairros da capital. Desse total, 12 casos precisaram ser encaminhados para a Defensoria Pública. Três deles dizem respeito à negligência dos filhos com seus pais; quatro por conflito de patrimônio; e cinco por violência verbal.

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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

ENTREVISTA

Eu, Elora! POR BRUNA AMORIM

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passos curtos corpos trans vêm ocupando espaços na sociedade. No Brasil, considerado o país mais violento para pessoas LGBTQI+, o caminho percorrido por mulheres e homens trans, desde as menores inquietações até a descoberta do seu verdadeiro ser, é um percurso longo que demanda paciência e apoio na aceitação e, principalmente, na luta diária para ocupar espaços que lhes são historicamente negados. O corpo trans, por si só, é retrato de resistência e luta; corpos trans são corpos que rompem e derrubam estruturas e fronteiras estabelecidas há séculos. Elora Santos, conhecida como Princesa Elora, mulher trans, estudante de cinema, cantora, atriz (apesar de preferir não incluir essa qualificação em seu currículo em respeito aos profissionais que estudaram para obter tal competência), bailarina e performer, reivindica seu lugar na sociedade através da arte e, consequentemente, possibilita que outros corpos não-normativos re-existam a todas essas violações sociais e de direitos. Nesta edição da Soul, Elora conta um pouco sobre a trajetória de descoberta da sua verdadeira identidade, sobre os obstáculos que enfrentou e enfrenta até hoje e como a arte lhe ajuda no processo de aceitação e conquista de espaço e visibilidade na sociedade.

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Soul: Quem é Elora?

PRINCESA ELORA: Uma meni-

na em constante aprendizado, mudança e com uma inquietação que grita dentro de mim por transformação, por descobertas, por experiências intensas que tenham o poder de virar uma chave dentro de mim, por arte e por amor. Uma menina intensa que respira arte, que precisa da arte para viver, que na verdade tem a arte como salvação!

Soul: Como surgiu sua paixão pela

arte? PE: Quando eu tinha 4 ou 5 anos de idade, meus pais, que são muito ecléticos, ouviam muita música em casa: Steve Wonder, Mariah Carey, Whitney Houston, e era nesse momento que


eu largava os meus brinquedos e sentava com eles no sofá pra ouvir e cantar junto. Foi a partir daí que desenvolvi um interesse muito grande pela música, que é pra mim a minha razão de viver, é o ar que eu respiro. A música responde todas as minhas perguntas, acalanta as minhas inquietações, quando eu penso no sentido da vida eu encontro resposta na música.

Soul:

Quando você decidiu que a dança faria parte da sua vida como profissão, como ato político, como uma outra forma de expressar sua identidade? PE: Em 2014, eu larguei o cursinho pré-vestibular e falei “quero fazer jazz” e fui dançar! A partir daí a minha vida mudou muito para melhor, porque a dança sempre foi uma coisa que fez parte de mim, faz parte da minha vida enquanto pessoa e enquanto artista, a dança é uma parte muito preciosa, muito grande de expressão e de pulsão de vida para mim. E aí eu fui aprimorar essa aptidão, essa paixão, esse desejo, e nesse percurso eu fiz amigos incríveis, ocupei espaços maravilhosos e tive experiências transformadoras. Através das conexões que fiz eu entrei, onde estou hoje, na Cia on Broadway, uma companhia de teatro musical, uma escola maravilhosa para se expressar artisticamente e para realizar sonhos.

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Tem um momento específico que você pode definir como o gatilho para a busca pela sua identidade? PE: Com 16 ano, eu acho, no final do segundo ano para o início do terceiro, eu conheci um canal na internet chamado “Canal das Bi”, um canal de LGBT que faz conteúdo para LGBT e para o mundo. Por exemplo, eles querem falar de sapatão na favela, eles trazem um sapatão da favela, traz um não binário, traz uma garota bissexual, traz uma feminista, enfim, traz todas as letras

Transicionar é sair, é levantar dessa cadeira onde te colocaram para sentar onde você quiser e assumir a posição que você quiser.

do [universo] LGBT para falar sobre sua vivência e sobre sua forma de existir. Foi a partir desse canal que eu tomei consciência da multiplicidade dentro do universo LGBT, que não se resume em 4 letras. E foi aí que comecei o meu processo, não sei se teve um momento que foi chave, que foi [como um] gatilho, foi mais experimentando, experimentando, e aos poucos me compactando àquela ideia, que era para mim também uma ideia que me causava angústia, me causava inquietação, a ideia de ser trans. Por saber das questões das sociedades, das minhas questões próprias, do preconceito internalizado, porque mesmo sendo LGBT a gente não está livre de ser machista, racista, estamos todos na mesma sociedade, logo estamos todos submetidos aos mesmos ensinamentos. Então, existe um ódio de si mesmo que é muito grande, um medo do que eu sou e do que eu posso ser! Então o “Canal das Bi” me ajudou muito, a internet em geral me ajudou muito, os livros me ajudaram muito, foi a partir daí que eu comecei a questionar, a entender, a correr atrás, experimentar e enxergar com outros olhos. Informação gera informação e ignorância gera ignorância!

Soul: E como tem sido esse percurso de conhecimento e aceitação? PE: Meu processo de descoberta com a transexualidade foi bastante lento, eu costumo dizer que foi como furar bolhas, foi como tirar várias camadas finas aos poucos. Eu passei por todas as etapas: fui menino normativo, tentei passear por essa onda da normatividade, depois fui mais andrógena, comecei a flertar com as questões de travestili-

dade, comecei a conhecer questões de gênero, as possibilidades de existência humana. Mas tudo isso era medo de assumir uma identidade cem por cento transexual, então foi um processo muito longo, precisei de ajuda de terapia, de amigos, de espaços de elaboração do meu pensamento, para conseguir me enxergar de fora da bolha e me entender enquanto pessoa.

NOME SOCIAL

Em abril de 2016, durante a semana das Conferências Nacionais Conjuntas de Direitos Humanos, a Presidência da República, zzatravés do Decreto nºº 8.727/2016, instituiu o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal. De acordo com o documento, os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, passaram a adotar em seus procedimentos institucionais o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento. O Decreto instituiu também, que o campo “Nome Social” deve constar em todos os registros de informações, cadastros e congêneres. Sendo imprescindível que o Nome Social esteja em destaque nestes instrumentos, o nome civil ou de registro, deve constar apenas para registros administrativos internos. DEZEMBRO 2019

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de acordo com a minha alma, eu estou reproduzindo o que eu sou por dentro.

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Soul: O que é a “transição” para Elora?

PE: Transição para

Mesmo sendo LGBT a gente não está livre de ser machista, racista...Estamos todos na mesma sociedade, logo, estamos todos submetidos aos mesmos ensinamentos.

mim sendo bem piegas, bem clichê, é realmente transcender as expectativas que são colocadas na gente por uma sociedade vigente, por algo que está préestabelecido, as expectativas das pessoas sobre o nosso corpo, sobre a nossa vida, sobre nossas escolhas. Transicionar é sair, é levantar dessa cadeira onde te colocaram, para sentar onde você quiser e assumir a posição que você quiser. É um processo eterno, as pessoas devem pensar “seu peito já parou de crescer”, “você já tá do jeito que você quer”, “e aí a transição, os hormônios”, mas para mim é muito mais uma situação interna, do meu psicológico do que relacionado a fisiologia do processo. O momento que estou vivendo ago68

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Qual o papel da sua família nesse caminho de descobertas, em que todo apoio é essencial? PE: Eu acho que na vida de toda pessoa LGBT, exceto em alguns raros casos, a família representa uma dificuldade, um medo e quem nos acolhe são os nossos amigos, né?! Comigo não foi diferente, eu comecei me abrindo para um [amigo] depois para outro e aí juntos fomos tendo essa descoberta desse processo da minha busca pela identidade, porque a primeira vez que eu me assumi sobre sexualidade foi como um menino gay, eu ainda não entendia essas questões de gênero, eu ainda não entendia as várias possibilidades de existência, e então foi primeiro para minha melhor amiga, depois para outro amigo e aos poucos eu fui formando essa corrente de força, essa base, essa estrutura de apoio. Os meus amigos, com certeza, em primeiro lugar, e a minha mãe posteriormente, mas com muita dificuldade, muita desconstrução, muita conversa ela conseguiu colocar o amor acima de todo preconceito.

ra [da hormonioterapia], embora caótico, tem muita alegria também, porque não tem nada mais maravilhoso do que estar bem no corpo que habita, se amar e se encontrar. Mudou muita coisa, mudou radicalmente e agora eu posso dizer que teve um gatilho, uma chave, porque eu deixei tantas inseguranças, tantos medos de lado, como me colocar diante da sociedade e me colocar diante das pessoas, para me apresentar, para fazer amizades, para me relacionar amorosamente, tudo se tornou mais aberto porque agora eu estou esteticamente e fisicamente

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Voltando para o assunto arte. Como é ser artista trans, ocupando espaços normativos que são historicamente negados aos corpos tidos como estranhos (gays, lésbicas, trans, etc.)? PE: Ser trans nesses espaços, ser trans em qualquer espaço, é um desafio, mas a arte e os artistas dialogam meio que na mesma frequência, a gente se entende e então é mais fácil de entender artisticamente a minha necessidade de me expressar enquanto mulher, a minha necessidade de que interpretando papel feminino eu tenho as ferramentas que


eu preciso para me expressar artisticamente. E assumir essa posição de libertação, de ser aceita, de ser vista e de ser notada enquanto mulher, dentro de uma companhia de teatro musical, me libertou para que eu pudesse vivenciar qualquer coisa, para que eu pudesse fazer qualquer personagem, sem me sentir limitada, nada como ter a sua verdade validada! Eu não me importo em interpretar papéis masculinos, mas para mim é internamente importante ser vista como mulher, ser respeitada como mulher. Eu tenho muita sorte de ter uma diretora muito parceira, ela é a nossa chefona, Juliana De-Vecchi, uma pessoa muito especial, muito incrível e ela teve muito tato para lidar com essa situação, muita sensibilidade e a gente tá construindo juntas um caminho que seja bom para as duas.

Soul: Qual é o seu sonho? O que te motiva a continuar? PE: Eu tô agora numa maré de produtividade, então tem muita coisa que eu gostaria de falar, quem me segue nas redes, nas redes sociais, sabe que eu faço todo um processo de militância, eu falo sobre as questões da mulher trans, falo sobre as minhas questões, eu tento sempre tocar em pontos que são importantes. Eu carrego uma angústia dentro de mim desde muito pequena e me expressar, escrever textos, compor músicas, dançar, tudo isso são formas de me libertar dessa angústia, de colocar para fora um pouco do que eu penso e do que eu sinto, de [tentar] inspirar outras pessoas. Então meu maior sonho seria pegar tudo isso que eu produzo de conteúdo e transformar em alguma coisa grande, alguma coisa que modifique estruturas, alguma coisa que inspire pessoas, seja como atriz seja como cantora, eu quero fazer diferença como artista e me expressando!

PE: Esse processo pode ser mui-

to doloroso e eu não sei se tem muito como fugir dessa troca de pele, dessa descamação, desse processo lento, eu acredito que a gente tem que deprimir para ascender. Estejam com pessoas que te amam e em quem você confia, não force a barra, não tente se “arrancar do armário”, respeite o processo, experimente possibilidades e aos poucos você vai tentando dialogar com as pessoas, dialogar com a família e com quem importa pra você, mas em primeiro lugar respeitando seu processo, respeitando seu tempo, sem se pressionar, tentando não sofrer muito.

Soul: E qual recado você deixa para

a sociedade? Como ela pode contribuir para que a mulher trans ocupe espaços e tenha visibilidade? PE: Amem a si mesmos porque quando vocês se amam vocês podem amar as pessoas como elas são, amem as mulheres trans, aceitem as mulheres, vejam, dialoguem, peguem na mão. Quantas você já beijou hoje? Com quantas você dialogou? Quantas você conhece? Quantas tem na sua faculdade? Na sua família? Então, humanize a mulher trans,

desconstrua seus preconceitos, tenha empatia, tenha solidariedade, tenha amor pelas mulheres trans, ame uma mulher trans, enxergue beleza na transexualidade, enxergue beleza no que é diferente de você. E ame como um ato político!

DIREITOS DA POPULAÇÃO TRANS

Em 2009, através da Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009, o SUS incorporou o direito ao uso do nome social em todos os serviços de saúde pública, tanto nos especializados - aqueles que já prestavam acolhimento à população trans -, como em qualquer outra área de atendimento. Já o Processo Transexualizador - que inclui cirurgias de redesignação sexual, por exemplo - no Sistema Único de Saúde (SUS) foi regulamentado e ampliado por meio da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013.

Soul: Qual mensagem você deixa para as mulheres trans? DEZEMBRO 2019

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Sétima arte com acessibilidade Ancine exige oferta de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Libras em todas as salas até 1° de janeiro

POR EMILY LIMA EDITADO POR MATHEUS SANTANA Edimilson Sacramento: tecnologia e acesso a Deborah Colker

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ssíduo frequentador de cinemas, o recém-formado em jornalismo Marcelo Moita, 23, está na expectativa de assistir melhor aos filmes, a partir de 1º de janeiro de 2020. No primeiro dia do novo ano, todas as salas de exibição da sétima arte do País devem passar a dispor de recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Língua Brasileira de Sinais (Libras) para acessibilidade de deficientes visuais e auditivos, por determinação da Instrução Normativa nº 128/2016, da Agência Nacional do Cinema (Ancine). O jovem, que tem deficiência 70

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visual e auditiva, por causa do seu nascimento prematuro (com apenas cinco meses), costuma frequentar o cinema pelo menos duas vezes ao mês, com o auxílio do motorista pessoal ou de algum amigo. Com os recursos, terá mais independência. “Eu sempre conto com ajuda das pessoas. Quem me acompanha geralmente precisa me explicar, de forma descritiva, o que acontece nas cenas em que não há áudio”, explica. Segundo a assessoria de comunicação da Ancine, os novos dispositivos permitirão que, individualmente, a pessoa com deficiência tenha a experiência au-

diovisual. O espectador poderá escolher, por meio de um display semelhante a um telefone celular, a tecnologia assistiva mais adequada para ele. Os aparelhos facilitam o acesso e a compreensão das obras, independentemente da limitação sensorial. Com equipamentos desse tipo, Ednilson Sacramento, 57, que convive com a deficiência visual há 25 anos, em função da retinose pigmentar – doença que acomete cerca de 3 milhões de brasileiros, de acordo com dados da Associação Retina Brasil – já assistiu ao espetáculo da Companhia de Dança Deborah Colker, em julho deste ano, no Teatro Castro Alves

FOTO: EMILY LIMA

ACESSO À CULTURA


PENALIDADE

FOTO: EMILY LIMA

Há receio, contudo, de que a Instrução Normativa não seja observada pelos distribuidores e exibidores, devido ao custo da adequação. O descumprimento da norma da Ancine, porém, pode resultar em multas que variam entre R$ 500,00 a R$ 100.000,00. Desde 2016, a Agência mantém uma Câmara Técnica de Acessibilidade, destinada ao acompanhamento do processo de implementação da tecnologia assistiva nos cinemas do Brasil. Até setembro deste ano, os exibidores precisariam assegurar que 35% das salas tivessem recursos de legendagem, legendagem descritiva, audiodescrição e Libras para quem solicitasse, porém apenas dois cinemas de Salvador atualmente contam com esses recursos. Estão adaptados o Cinemak Salvador e o UCI Orient Barra, localizados respectivamente, nos shoppings Salvador e Barra.

Em geral, o interessado pode ir direto à bilheteria, selecionar o filme e o horário que desejar e adquirir os ingressos. A atendente do UCI Oriente Barra Gleice Souza ressalta que todos os filmes em cartaz podem ser escolhidos, mas a pessoa com deficiência visual ou auditiva precisa preencher um formulário de solicitação para os recursos acessíveis serem liberados. Os produtores resistem à oferta dos dispositivos como estratégia para reduzir os custos de produção. “A gente (o grupo de pesquisa Tramad -Tradução, Mídia e Áudiodescrição do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia) sempre oferece os serviços da audiodescrição (tradução de imagens em palavras para o público com deficiência visual), mas os produtores costumam dizer que é muito caro disponibilizar recursos de acessibilidade”, afirma a professora, pesquisadora e coordenadora do Núcleo Especial e do Grupo de Pesquisa e Extensão, Acessibilidade e Arte da Universidade do Estado da Bahia e integrante do grupo Tramad, Sandra Rosa. Além disso, faltam profissionais preparados para atender às pessoas com deficiência nos ambientes culturais. “Quando os profissionais nos recebem nos

Marcelo Moita: mais autonomia na sala de cinema

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

(TCA); e viu a exposição de fotografias “Mariana”, de Christian Cravo, na Caixa Cultural Salvador, realizada no ano passado. Nas duas ocasiões, ele ganhou autonomia para apreciar as obras por contar com um aparelho com fones, pelos quais ouvia uma gravação audiodescritiva dos trabalhos.

Verônica Castro: “Falta qualificação para nos receber”

espaços culturais, eles ajudam por boa vontade, do jeito que podem. Mas não existe uma pessoa qualificada para nos receber e lidar com uma pessoa com a deficiência”, afirma a aposentada Verônica Castro, 50, que perdeu a visão aos 20, em decorrência da retinopatia diabética – uma doença que ocorre quando o excesso de glicose no sangue danifica os vasos sanguíneos da retina. Ela recorre a familiares ou amigos para ter acesso à descrição, mesmo que de forma amadora.

BENEFÍCIOS

A nova medida, se cumprida, deve melhorar a qualidade de vida das pessoas com deficiência. A professora Sandra Rosa explica que, quando uma pessoa não frequenta ambientes culturais, tem reduzido o repertório de percepção simbólica sobre o mundo, além de perder a chance de estabelecer novas relações interpessoais e de poder construir algo para o mundo. “É necessário incluir as pessoas com deficiência em espaços culturais, pensando em possibilitar que elas não só apreciem a obra, mas também que possam se interessar em trabalhar e realizar aquilo. Quando o deficiente visual frequenta, compreende e participa, pode despertar o desejo de ser um artis ta, fotógrafo ou até mesmo cineasta”, explica Sandra Rosa. Assim, se faz inclusão para acesso e produção de arte. DEZEMBRO 2019

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MUSICALIDADE

BLACK ROCK! Músicos negros trabalham o triplo para driblar preconceito POR JOÃO LUCAS EDITADO POR FILIPE RIBEIRO

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ANOS 50

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o longo da história, destacados artistas brancos, como Elvis Presley e The Beatles, contribuíram para a caracterização do rock como um gênero genuinamente da cultura branca, mas o gênero – poucos sabem – tem raízes no blues, na música popular negra estadunidense. O rock é black, porém se tornar um rock star é uma missão difícil, mesmo para quem vive em uma das cidades mais negras fora da África, como Salvador (Bahia). Conhecido na cena local, o músico, produtor cultural e dono do estúdio Caverna do Som, Irmão Carlos, explica que o músico negro enfrenta o preconceito no dia a dia. “A gente raramente percebe, mas tive que trabalhar três vezes mais do que meus amigos brancos, principalmente nas bandas de rock. Nas festas e nos eventos em que eu toquei, todas as bandas são formadas por pessoas brancas. Para cada passo dos meus amigos, no rock, tive que dar três para estar junto”, afirma o profissional, que define sua música como punk raulseixista com base na black music. O preconceito é velado, dificilmente acintoso. Dá-se na sutileza, na escolha do cast, na seleção dos destaques, na distribuição dos recursos. “Consigo contar nos dedos bandas de rock que têm negros. O rock não consegue acessar as camadas mais baixas da sociedade. Tenho consciência de que rola esse preconceito”, afirma o guitarrista, compositor e vocalista da banda Exoesqueleto, André Dias.

O racismo estrutural repercute nos espaços artísticos e culturais da cidade. O cenário musical de Salvador reproduz as formas de ser, pensar e agir da sociedade local. Autor de livros como Aumenta Que Isso Aí é Rock and Roll, Heavy Metal com Dendê, Comunicação e Música Popular Massiva, Comunicação e Estudos Culturais, o pesquisador e músico Jeder Janotti Jr. considera que a cena rock mantém as práticas preconceituosas vivas no ambiente artístico. “O rock tem essa fachada um pouco mais tolerante (do que outros gêneros e ritmos musicais), de suposta quebra de alguns comportamentos hegemônicos. De algum modo, o ambiente é de tolerância, o que é muito pouco. Tolerar significa permitir a convivência, desde que cada um fique em seu quadrado. O que rompe, de fato, as barreiras preconceituosas é convívio em meio à diferença, uma prática pouco comum em várias das manifestações roqueiras contemporâneas”, pontua Jeder Janotti Jr.

MUDANÇA DE ARES

Muitos artistas, inclusive roqueiros, mudaram de ares para se adequar ao mercado que emergiu com a explosão da axé music, nos anos 1980. Logo, logo, o rock tornou-se sinônimo de resistência, cultivado principalmente pela classe média ainda receosa com a onda popular surgida com a partir do fricote de Luiz Caldas, do samba reggae do Olodum e de outras estrelas desta grandeza.

“As bandas de rock (Cravo Negro, Elite Marginal, Diário Oficial), que tocavam nas rádios e em festivais, eram quase mainstream, na época do primeiro Rock in Rio (1985). Só que rolou aquela velha reunião fechada, falando: ‘você vai ficar no rock ou vai tocar axé?’ Tuca Fernandes tinha uma banda massa (Diário Oficial) e foi pro axé; Manno Goés foi pro axé. Os que não foram ficaram de fora e o mercado fechou com o axé. A rádio de rock que a gente tinha fechou, a Transamérica, que tocava rock, passou a tocar axé”, pontua o jornalista Chico Castro Jr., editor do Caderno 2+ do jornal A Tarde. “Desde os anos 1980, o rock virou uma coisa de meninos de classe média, onde a população negra é menor, em uma cidade profundamente desigual como Salvador”, completa.

Chuck Berry ANOS 60

Jimi Hendrix ANOS 70

ANOS 80

Raul Seixas

ANOS 90

Nirvana

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JOGOS

JOGO ON-LINE LANÇA DIVINDADES DE ORIGEM AFRICANA Falar sobre diversidade no universo gamer é algo ainda novo, mas a iniciativa de criar representatividade já é real em algumas empresas de games.

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s novas divindades no universo gamer trazem mais que novidades: elas representam a valorização da diversidade religiosa. Olorum e Iemanjá são os novos campeões do Smite, jogo eletrônico mundialmente disputado em mais de quatro plataformas, que em 2019 incluiu o Senhor do Òrun e Senhora das Águas entre seus personagens jogáveis. A criação dos personagens é um marco na história dos games. Além de serem as primeiras divindades africanas do Smite, o deus e a orixá inauguraram o panteão Yoruba, 14º do game. Lançado em março de 2014 pela Hi-Rez Studios e Titan Forge Games, o Smite é um game do gênero MOBA (multiplayer online battle arena) em terceira pessoa. Pode ser jogado nas plataformas da Microsoft Windows, PlayStation 4, Xbox One e Nintendo Switch. Nele, jogadores controlam um personagem (deuses, deusas ou outras entidades) relacionado a cosmologias de diversas partes do mundo, em combate individual ou grupo com entidades controladas por outros jogadores ou por bots. No Brasil, o jogo se consolidou graças à parceria estabelecida com a Level Up! Games (LUG), que fez migração das contas para o servidor brasileiro em agosto 2014. Para os religiosos, Olorum habita a dimensão Òrun, de onde contempla silenciosamente o mundo e sua criação.

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POR HARRISON LAGO

No Smite, ele é Olorun – o Regente dos Céus, que decide vir ao mundo e assumir o papel de líder dos deuses, para que estes se unam e tragam fim ao sofrimento dos seres mortais e imortais. Iemanjá, é na cosmovisão africana, a senhora das águas primordiais, símbolo da fertilidade, associada ao surgimento do Àiyé, o mundo físico, dimensão paralela ao Òrun; em território baiano, ela é também padroeira dos pescadores. No Smite, ela é Yemoja, a mãe cujos filhos são como peixes, que deixa seu lar no Rio Ogum para ajudar Olorun em sua missão e auxiliar seus aliados com curas e estratégias de proteção. O pai de santo Mauro Gois explica que a interação através da tecnologia, pela difusão de informações ou curiosidades sobre a religião, já é muito importante. “Criar uma interatividade com o público que

goste de jogos faz com que as pessoas tenham mais conhecimento sobre os povos de matrizes africanas, quilombolas e todas essas culturas que são esquecidas”. Além disso, o babalorixá considera que espaços assim são importantes porque geram conhecimento sobre o candomblé, religião que ainda sofre com o preconceito e o racismo estruturante das nossas relações sociais. “Conexões assim deveriam acontecer não só no meio da indústria dos jogos, mas no comércio, nas escolas e em faculdades. Todos os núcleos possíveis deveriam adotar essa atitude. Mas, infelizmente,


IMAGENS: SMITE

nossa realidade hoje é muito diferente”, desabafa. Para o candomblecista Marcelo Fraga (37), a visibilidade ainda é muito pequena, mas o primeiro passo já foi dado com o lançamento dos dois personagens. “A inserção desses deuses nesse meio de jogos é muito importante, precisamos mostrar para as pessoas que nossa religião é viva e muito rica culturalmente”. Hoje, o Smite tem 103 personagens jogáveis – representantes de diversas culturas e sistemas de crença. Em entrevista ao portal Versus, AJ Walker, designer da Hi-Rez, responsá-

vel pela concepção de Olorun e Yemoja, diz que mais divindades de origem africana podem entrar no jogo. “Estamos interessados há certo tempo em várias mitologias da África (...) e, por meio da nossa pesquisa, os personagens do Iorubá foram os que mais se destacaram: eles possuíam os nomes mais conhecidos, e muitos dos personagens se zencaixariam bem no jogo, com histórias ricas para utilizarmos”, comentou. Além de agradar pela representatividade dos personagens, o jogo chama atenção pelo seu visual. A gamer Violet Minaj (20), estudante de jornalismo, explica que joga diversos MOBAS e o que mais agrada no Smite é a visão de jogo e de-

sign dos personagens. “É bem interessante o fato de colocarem personagens de origem africana. Já era apaixonada pela representação e habilidades dos Deuses, agora mesmo fiquei encantada com esses lançamentos. O Smite em si já é um jogo que abraça minorias, e sua jogabilidade só o torna ainda mais atrativo”. DEZEMBRO 2019

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HABILIDADES DAS DIVINDADES AFRICANAS OLORUM é o primeiro Deus do panteão afro-brasileiro a entrar no jogo (junho de 2019), e é também o primeiro mago a se beneficiar de chances de acertos críticos, ou seja, quanto mais poder mágico ele adquirir, mais forte seus golpes ficam. IEMANJÁ é a primeira guardiã com ataques básicos de longa distância em linha. Esses ataques passam através dos aliados, concedendo-lhe cura e um escudo de 3s. Nos inimigos, seus ataques causam danos como lentidão e atordoamento. Em vez de mana, Yemoja usa um novo sistema chamado Omi.

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LINKS https://www.smitegame.com/gods/olorun https://www.smitegame.com/gods/yemoja https://levelupgames.uol.com.br/levelup/ DEZEMBRO 2019

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www.unisba.edu.br (71) 4009-2840 atendimento@unisba.edu.br

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