Revista Soul #9 - dezembro de 2020

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Soul GÊNERO E DIVERSIDADE

Ano 05, Edição 09, Dezembro de 2020

O BRASIL NÃO ESTÁ PRONTO PARA INGRID SILVA

PANDEMIA DA DESINFORMAÇÃO Fake News: é possível rastrear (e criminalizar) quem produz SÓ TEM HOMEM Sexismo na política transforma casas legislativas em redutos masculinos PARAÍBA BIXA, SIM, SENHÔ! Hiago Cerbat, artista baiano que rima sertão com diversidade NARRATIVAS DIGITAIS NEGRAS Jovens criam estratégias para driblar exclusão digital ENSAIO FOTOGRÁFICO Esperando na janela – Paisagem pandêmica DEZEMBRO 2020

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Revista Soul – Projeto interdisciplinar produzido pelos(as) estudantes do curso de Jornalismo do Centro Universitário Social da Bahia (UNISBA). Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Comitê Editorial : Bárbara Souza, Cristina Mascarenhas, Daniela Souza e Mônica Celestino. Diretora-Executiva: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza, Cristina Mascarenhas e Mônica Celestino Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Adriana Telles Projeto gráfico e Diagramação:: Elisangela Sandes EDITORIAL: Bárbara Souza CAPA: Elisangela Sandes FOTOGRAFIA DE CAPA: Angela Zaremba FOTOS E ILUSTRAÇÕES: Elisangela Sandes, Angela Zaremba, Freepik e Unsplash.

Centro Universitário Social da Bahia – UNISBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA. CEP 40170-010. www.unisba.edu.br (71) 4009-2840 Reitora: Profa. Dra. Margareth Passos Vice-Reitora e Coordenadora Acadêmica:: Profa. Dra. Ornélia Marques

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 1

(JUNHO – 2016) Empoderamento feminino, a doença do preconceito (‘que dizima também quem paga o dízimo’) e combate ao feminicídio foram os temas de destaque na Capa da 1ª edição da Revista Soul, que materializou o projeto editorial proposto e concebido por estudantes do 5º semestre do curso de Jornalismo. A edição inaugural tratou de temas que só há pouco tempo passaram a ser abordados pela mídia sob o enfoque dos direitos humanos e respeito à diversidade. Um enfoque que se empenha em deixar de lado o olhar que reforça o estigma social e patologização das questões de gênero e diversidade – ou ao menos se empenha em fazê-lo. Cultura, religiosidade, serviço, curiosidades: a diversidade temática foi a marca da edição nº 1 da revista. Ah, sim: teve gorda na Soul e terá sempre! Como sempre terá magros(as), homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transgêneros, jovens, idosos (as), gente. 4

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 2

(NOVEMBRO – 2016) A 2ª edição da Soul fez jus à temática que ancora editorialmente a publicação: diversidade e gênero. Foram várias as vozes ouvidas e os posicionamentos apresentados. A principal chamada de Capa foi a entrevista com o editor-chefe do canal LGBT do jornal Correio, líder na Bahia, o jornalista Jorge Gauthier. Cultura indígena, história de luta das mulheres por direitos, inclusão de pessoas com deficiência auditiva e combate à violência doméstica também estão entre os temas das matérias da edição nº 2. A Soul reuniu diversos gêneros jornalísticos: reportagens, uma entrevista pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys e dois artigos: um do estudante de Jornalismo Théo Meirelles, da FSBA, sobre ‘Transexualidade e mídia’, e outro, da advogada e professora Natália Silveira, que integra o corpo docente da FSBA e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 3

(JUNHO – 2017) Muito além do arco-íris. A terceira edição da revista Soul publicou uma reportagem sobre 56 identidades de gênero. Isso mesmo: cinquenta e seis. A relação das crianças com a diferença – e os cuidados para que o preconceito de adultos não seja incutido nas mentes abertas dos pequenos – crossdressing e alternativas de mobilidade urbana integraram a edição nº3 da Soul. A publicação trouxe ainda uma reportagem sobre como a indigesta proposta de reforma previdenciária do governo Temer afeta, particularmente, as mulheres. Outra matéria conta um pouco da história e trajetória de Rico Dalassam, um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro e o primeiro rapper assumidamente gay do país. E mais: uma entrevista exclusiva com Russo Passapusso, cantor da premiada Baiana System, que rejeita a classificação de ‘música alternativa’ para a banda.


REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 4

(NOVEMBRO – 2017) Uma Igreja que segue as Sagradas Escrituras, acredita na Santíssima Trindade e ordena homossexuais “declarados” como líderes religiosos. O respeito à diversidade foi um dos temas da entrevista exclusiva com o reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana da Bahia, publicada na edição nº 4 da Soul. A reportagem conversou também com o professor Leandro Colling, coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), sobre a reserva de vagas para travestis, transexuais e transgêneros nos cursos de mestrado e doutorado da UFBA, iniciativa inédita na história do ensino brasileiro. Também foi pauta a depressão entre LGBTs, um dos grupos mais vulneráveis à enfermidade. A quarta edição da Soul trouxe ainda uma reportagem sobre como as brincadeiras de infância podem contribuir para a criação de estereótipos e preconceitos. “Todo mundo quer saber com quem você se deita”, diz a canção. Será que Freud explica? O artigo do professor Luiz Lopes, coordenador do curso de Psicologia da FSBA, aborda essa questão.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 5

(JUNHO – 2018) Da primeira à última página, entrevistadores e entrevistados, repórteres e personagens, fotografados e fotógrafos, articulistas: todos(as) negros(as). Ou melhor, quase todos(as), porque diversidade não combina com segregação. Com o tema “Negro (a) é Poder”, a edição especial intitulada Soul Black reverenciou a negritude. O protagonismo negro norteou a edição que incorporou conteúdo audiovisual: o Programa Soul Black pôs em tela um debate entre os jornalistas Eduardo Machado, Juliana Dias e Tairine Ceuta. Papo reto e esclarecedor sobre o racismo e suas faces perversas. A Soul Black contemplou ainda um ensaio fotográfico produzido e protagonizado por alunos do curso de Jornalismo, negros, e as belas imagens registradas pela lente do jornalista e escritor Tom Correia, captando a invisibilidade dos negros em Lisboa. Mais: entrevistas com Wanda Chase, Nara Santos, coautora do livro “É a minha cara” – que conta a história dos 30 anos da “Cia Baiana de Patifaria”, e Gil Santos, repórter do jornal Correio. Todos jornalistas. Todos negros. Todos na Soul Black.

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 6

(DEZEMBRO – 2018) Na 6ª edição foram abordados temas e fatos muito caros à proposta editorial da revista: informar e contar histórias de pessoas cuja vida é dificultada ou mesmo ceifada pela intolerância e ódio que espancam e matam. São histórias como a dos artifícios do racismo religioso, que se disfarça de defensor dos animais, mas adora um churrasco, até considerações sobre a diversidade étnica, cultural, de gênero, de credo.. A SOUL também mostrou o descaso do Poder Público, mesmo quando é sua responsabilidade prover as condições e assegurar a vida de quem tem o direito, por lei, de interromper a gravidez. “Segundo o Ministério da Saúde, apenas 65 hospitais realizam o procedimento de aborto legal no País. O estado de Roraima tem a maior taxa de estupros por cada cem mil habitantes, mas não conta com nenhum centro especializado autorizado a realizar o procedimento.” Assuntos que ainda pautam julgamentos no STF, a exemplo da descriminalização do aborto e o sacrifício de animais em cultos religiosos, este último considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em março de 2019. DEZEMBRO 2020

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 7

(JUNHO – 2019) A SOUL nº 7 reuniu pautas muito caras à temática gênero e diversidade. A reportagem ouviu a psicóloga e professora Ana Maria Rodrigues, com mais de 30 anos de atuação e vasta experiência com pacientes psiquiátricos, sobre a polêmica Nota Técnica Nº 11/2019 que indica a retomada de internamentos de longa permanência e de eletrochoques, entre outras medidas. Numa entrevista contundente, a especialista alertou para as ameaças à Reforma Psiquiátrica e os riscos de segregação de segmentos específicos da população: jovens, pobres, negros. A SOUL contou a história de Fábio Rigueira, amputado de uma das pernas desde os oito anos, que, aos 46 anos se tornou o único brasileiro com deficiência física a concluir, com auxílio de muletas, a edição do Ironman Brasil 2018. A moça da capa foi Eva Sattiva, uma mulher drag, que propõe a rediscussão da imagem de pecadora atribuída à primeira mulher na Terra, de acordo com a Bíblia (Eva), e à “desmarginalização” do uso da maconha (cannabis sativa). A vida pós os 80 anos também foi pauta da revista, com histórias de pessoas que já entenderam: viver é uma arte em qualquer idade. Direito animal e preconceito religioso, assédio sexual e bullying também integraram a 7ª edição. 6

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 8

(DEZEMBRO – 2019) Publicada em dezembro de 2019, a 8ª edição da SOUL foi bafônica. Na Capa, uma “fotaça” do Coletivo Afrobapho. Ao longo das 80 páginas da edição (um recorde), análises instigantes e histórias diversas de pessoas idem. Gente trans, gente preta, gente idosa, gente gorda, gente jovem, gente autista, gente que resiste, gente que cria, gente que transforma. Além de gratificante, ler (ou reler) a edição nº 8 é uma experiência reveladora sobre o Brasil. Fatos e temas abordados continuam atuais no País que oscila entre a estagnação e o retrocesso. Temas como a necropolítica, que segue pautando ações do governo federal. A pandemia da Covid-19 realçou ainda mais os contornos do descaso do atual governo com a vida de brasileiros - os pobres, vale lembrar. O racismo, a transfobia, o sexismo são notícias quase diariamente. São fartos os exemplos, entre elas o caso do espancamento até a morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, por seguranças de supermercado do grupo Carrefour em Porto Alegre (RS). O editorial da SOUL 8 afirmava: em 2019, a Universidade, a imprensa e outros atores sociais tiveram que erguer suas vozes para explicar obviedades. Parece atual, não?


Editorial assim: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. É muito provável que 2019 tenha sido o ano em que, mais do que nunca, os versos da canção “Sujeito de sorte”, de Belchior, foram entoados e declamados pelo país afora. Exatamente um ano depois, um dos versos da canção foi para sempre silenciado na voz de 180 mil brasileiros que este ano morreram, vítimas do novo coronavírus. As estatísticas sobre a disseminação da Covid-19 no Brasil e as vítimas fatais da doença, mesmo subnotificadas, são assustadoras. Convivemos nos últimos nove meses com notícias diárias sobre o crescimento do número de casos e o desrespeito às orientações das autoridades sanitárias – em várias situações protagonizado por autoridades governamentais. Teve o “fique em casa”, “lave as mãos”, “use máscara” e, para o pasmo dos sensatos, a essa altura ainda temos que conviver com a necessidade de repetirmos o óbvio: a pandemia não acabou. Não foi fácil. Não está sendo. Mas, ainda que tenhamos “chorado pra cachorro”, estamos vivos e a vacina está chegando! O cardápio de narrativas e assuntos que compõem esta edição transcende, e muito, a pandemia. Ingrid dos Santos Oliveira Silva é a personagem da matéria de Capa, um perfil assinado por Gabriel Rodrigues. Nascida em 1988 na zona norte do Rio de Janeiro, aos 18 anos ela foi selecionada entre 200 inscritos para estudar balé no Dance Theatre of Harlem

Ensemble, em Nova Iorque. Aos 24, a bailarina clássica passou a compor a formação oficial do Teatro de Dança de Harlem. Ingrid viria ao Brasil em março deste ano receber o prêmio no qual foi vencedora pelo Globo, como Pessoa que faz a diferença, mas a pandemia adiou os planos da bailarina. Através da visibilidade que tem e de outras histórias de potência, Ingrid tem encabeçado o movimento Black In Ballet (@blacksinballet), que busca mostrar a diversidade na dança clássica. Assinada por Rachel Mercês, a reportagem especial Fake news: a pandemia da desinformação, reúne dados e informações importantes sobre o tema, além da análise de pesquisadoras como Cláudia Galhardi, da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e criadora da plataforma Eu Fiscalizo, e Renata Gomes, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). A SOUL nº9 traz ainda dois artigos sobre discriminação às mulheres. O sexismo na p o lítica é o tema do texto de Tailana Cruz. O artigo de Violeta Conceição aborda os ataques machistas sofridos pelas mulheres em jogos on-line. Mas tem também notícias sobre conquistas femininas. A repórter Yasmin Aguirre conversou com Hillary Fonseca, representante da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop Bahia, sobre as jovens que têm rompido barreiras e ajudado a transformar o hip hop em um espaço

de empoderamento femnino. Vale a pena conferir também a entrevista concedida a Emily Lima por Sellena Ramos e João Cerqueira, fundadores da Casa Aurora, que acolhe vítimas de LGBTfobia em Salvador. O acesso dos povos indígenas à universidade é um dos temas da entrevista feita por Milena Silva com o vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) na Bahia, Victor Rayhata Pataxó. Era necessário e inevitável: a 9ª edição da SOUL traz também relatos e imagens sobre a experiência do distanciamento social e das novas formas de estar no mundo, tocar a vida sem sair de casa e andar pelas ruas com metade do rosto encoberta. O ensaio fotográfico intitulado Esperando na janela reúne imagzens que há um ano não causariam tanta estranheza quanto causam hoje cenas de pessoas sem máscara. Boa leitura!

ARTE: ZANZA SANDES

O editorial da edição nº 8 da SOUL, publicada em dezembro de 2019, começa

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FÁBRICA DE MENTIRAS

Especialistas falam sobre logística e interesses nas fake news Rachel Mercês

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CAPA

SÍFILIS EM SALVADOR

O grand plié da brasileira Ingrid Silva

Casos da doença crescem 40% na capital

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Gabriel Rodrigues

ENTREVISTA

COMBATE À EXCLUSÃO

Sellena Ramos e João Cerqueira falam sobre a Casa Aurora

Jovens criam estratégias para driblar a e-discriminação

Emilly Lima

Gabriel Rodrigues

SÓ TEM HOMEM

PAREDÃO MULTICOR

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Sexismo na política transforma casas legislativas em redutos masculinos Tailana Cruz

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Quando o sofrimento afeta pessoas trans Tailana Cruz

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Maria Vitória

APITO? ...

Povos indígenas querem acesso à universidade! Milena Silva

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ENSAIO

Dentro de casa, a vida pulsa

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ELAS NO HIP HOP

Coisa de mulher: batalhas de rap, rodas de break Yasmin Aguirre

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ARCO-ÍRIS SERTANEJO

Baiano imprime diversidade de gênero à cultura sertaneja Violeta Conceição

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JOGO SUJO

Mulheres sofrem ataques machistas em games Violeta Conceição

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FÁBRICA DE MENTIRAS

FAKE NEWS: a pandemia da desinformação POR RACHEL MERCÊS EDITADO POR BÁRBARA SOUZA E ADRIANA TELLES

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pandemia da Covid-19 escancarou as fragilidades do modelo de desenvolvimento da civilização humana. Nesse contexto, inseridos na era da informação digital, temos lidado com um problema que é tão urgente e essencial de ser remediado quanto o vírus Sars-Cov-2: as fake news. Embora a disseminação de calúnias, boatos ou mentiras não seja algo necessariamente novo na imprensa ou no campo midiático, a desinformação que se espalha pelas redes sociais, aplicativos de mensagem e por toda a internet ganha uma nova roupagem quando analisamos o alcance, a interferência no meio social e, principalmente, o fato de que se trata de um movimento patrocinado por atores políticos. É importante não confundir erro jornalístico com fake news. O primeiro pode acontecer por diversas razões: equívoco da fonte, falta ou falha de apuração dos fatos, influência (ainda que involuntária) de posicionamentos ideológicos ou mesmo uma atitude deliberada e individual de quem produz o conteúdo. Para esses acontecimentos, que são humanos, existem as edições, retratações e desculpas públicas (que não têm a mesma abrangência do que já foi erroneamente noticiado, é preciso dizer). Quanto às fake news, o que pesquisadores da área e jornalistas têm constatado é que elas cumprem um propósito específico: desinformar, seja através da pura e simples mentira, seja através da manipulação de dados e estatísticas que apresentam uma realidade paralela e fictícia. É o que aponta Renata Gomes, professora da Univer-

sidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP: “A desinformação com viés político também faz parte da ecologia da informação com as formas tradicionais de jornalismo. Eu acho que a diferença interessante para a gente pensar é como essa desinformação se torna uma estratégia política dentro desse ambiente comunicacional, em cujo centro estão as plataformas digitais”. A pesquisadora lembra que “isso que a gente tá chamando de fake news hoje é um fenômeno que só consegue ser bem compreendido quando a gente pensa na criação e na distribuição dessa desinformação em uma estrutura que carrega uma série de características que não foram inventadas pelas fake news, mas que são muito importantes”. Na avaliação de Renata Gomes, “com a fragmentação da comunicação, o fato é que o engajamento nas redes sociais é intensificado ou diminuído pelo design das plataformas e a governança das plataformas está intimamente ligada ao modelo de negócios da internet: um modelo de apropriação e venda dos nossos dados para distribuição de publicidade”.

PANDEMIA

O fluxo da disseminação das notícias falsas no ambiente digital nunca foi tão grande. Segundo dados da plataforma Eu Fiscalizo*, aplicativo criado pela pesquisadora Cláudia Galhardi, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/Fiocruz, o número de notícias falsas cresceu assustadoramente desde o início da pandemia. Lançada em fevereiro durante audiência no Senado Federal, a ferramenta foi criada

com o intuito de servir à comunidade através da denúncia de conteúdos nocivos que fugiam da classificação indicativa direcionados a crianças e adolescentes em todas as mídias, redes de informação e entretenimento. Com o avanço da pandemia, o aplicativo passou a receber 98% de conteúdo relacionado ao novo coronavírus. Segundo Galhardi, o material coletado aponta que o teor da desinformação se deu através de ondas. “De acordo com as notificações [do aplicativo], eu fui realizando um monitoramento. No primeiro momento, teve uma onda de fake news sobre técnicas e métodos caseiros de prevenção e cura da Covid. Depois, uma segunda onda defendia a automedicação, cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina... Na terceira onda, as informações falsas se repetiam e voltavam a circular; houve também golpes bancários e golpes de arrecadações. Agora estamos em uma quarta onda que é a da antivacina, que tem como pano de fundo um ambiente em que políticos usam a vacina para atacar opositores.” Para a pesquisadora, esses movimentos não são estáticos e encontram contexto favorável no conflito político que vivemos. Entidades científicas sérias e respeitadas como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Fiocruz foram atacadas nesse percurso. Esse movimento busca provocar o descrédito da comunidade científica e das instituições globais de saúde pública. Além disso, enfraquece as medidas adotadas pelos governos no combate à doença. Negar a realidade causa danos extremamente prejudiciais à sociedade – em tempos de uma pandemia, a crença em notícias falsas DEZEMBRO 2020

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também pode causar a morte daqueles que se expõem ao vírus e consomem medicações de eficácia não comprovada, cujos efeitos colaterais podem ser letais.

ESTATÍSTICAS FALSAS E ENGANOSAS

As fake news não são criadas ao acaso. Elas seguem uma agenda que muitas vezes é política, cumprindo o papel de ludibriar a opinião pública. Nesses casos, são produto de uma espécie de milícia digital financiada por estruturas de doações para campanhas eleitorais e de lavagem de dinheiro. São disseminadas por robôs, como bots e trolls, ou ainda pelo sistema de compartilhamento “orgânico” dos grupos nos aplicativos de mensagens, quando se repassam

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conteúdos cuja autoria é difícil de rastrear. No Brasil, as notícias falsas são espalhadas principalmente através do WhatsApp, que permite o disparo de mensagens em massa, mas também estão no Facebook, Instagram e no Youtube, ou ainda em sites ligados a personagens da política brasileira, como o Pleno.News, do grupo MK de Comunicação, propriedade da família do senador Arolde de Oliveira (PSD), falecido no dia 21 de outubro em decorrência da falência múltipla dos órgãos após complicações da Covid-19. O político defendia o uso da cloroquina no tratamento da doença e chegou a dizer nas redes sociais que o isolamento social era “inútil”. A empresa, que permanece ativa, oferece serviços digitais como monetização

e administração de canais de YouTube através do MK News. Entre os clientes está o senador Flávio Bolsonaro. ¹O canal é apontado entre os gastos irregulares no relatório da CPMI das Fake News por veicular anúncios da Secretaria de Comunicação Social (Secom) em 2018. O site conta ainda com colunistas envolvidos em episódios de notícias maliciosas, como a deputada Bia Kicis (PSL), alvo de dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) que apuram a disseminação de notícias falsas e a organização de atos antidemocráticos. Nesse último, Kicis, o senador Arolde de Oliveira e outros três deputados tiveram seus sigilos bancários quebrados a pedido do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Ela já sofreu duas ameaças de expulsão do


PSL por grave infração ética e infidelidade partidária. Com a pandemia, o ²Pleno. News passou a veicular notícias com dados deturpados a respeito do vírus. “Sol forte pode matar coronavírus em 34 minutos” era a manchete de uma notícia veiculada em 9 de junho. Posteriormente ³declarada inverídica, a notícia foi retirada do ar. Contudo, mesmo desmentidas por agências de checagem ou personagens das situações em questão, as fake news voltam a circular, como um sistema que se retroalimenta. O alcance da desinformação é muito maior do que o das notícias baseadas em evidências justamente pelo modo como se configuram. São manchetes chamativas, hiperbólicas, com mensagens enviesadas e direcionadas a públicos específicos. Para Renata Gomes, isso acontece por conta da rede algorítmica de distribuição de informações e do design das plataformas que, a partir da construção de modelos de predição e tendências de comportamento, criam bolhas comunicacionais. “Como é que você conseguiria fazer essa reparação que no modelo centralizado já não era suficiente? É verdadeiramente impossível. Eu acho que a maneira mais fácil de entender é que o fact-checking não chega a quem interessa porque o público que lê o fact-checking é diferente do público-alvo chave das fake news. Esse público que lê e se preocupa com a checagem de fatos é, de alguma maneira, um grupo que trabalha na matriz de um regime de verdade e sabe que a verdade está em algum lugar. Esse lugar costuma estar mediado pelas autoridades epistêmicas, que até recentemente eram o jornalismo, o Estado, os cientistas e a universidade”.

FÁBRICA DE MENTIRAS E VIOLÊNCIA

As fake news têm potencializado atos de violência contra jornalistas ao redor do mundo e têm levado à desqualificação dos veículos tradicionais de imprensa. Todo esse sistema complexo dá sustentação à polarização social e política das informações. O movimento coordenado de descredibilizar a chamada grande mídia tem criado verdadeiros redutos comunicacionais, sobretudo porque essa lógica é amparada e endossada por atuantes da política brasileira. “A lógica é muito simples. Você tem que deslegitimar outros canais para poder sustentar a sua fake news e a desinformação que isso vai gerar. Se eu desacreditar da grande mídia, eu fico muito mais fortalecido como produtor de conteúdo falso. Eu não vou deixar que o meu seguidor, a minha audiência, fique

em dúvida. Isso é uma fábrica. É uma fábrica de conteúdo falso, cujos mecanismos têm se mostrado eficazes”, explica a pesquisadora Cláudia Galhardi. No dia 16 de abril de 2020, a repórter Andréa Silva, da TV Bahia (afiliada da Rede Globo), foi abordada por um cidadão que a assediou moralmente enquanto ela trabalhava em campo. Com um celular em mãos gravando todo o ocorrido e sem máscara de proteção, o homem a acusou de estar trabalhando livremente enquanto a emissora noticiava que as pessoas devessem ficar em casa. Sobre o caso, Andréa Silva comenta que estava realizando o último “vivo” da manhã, isto é, uma transmissão em tempo real sobre um acontecimento em curso e que geralmente conta com a entrevista de alguma fonte no local. “Eu estava na porta de uma lotérica para mostrar

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FOTO: ARQUIVO PESSOAL

a movimentação das pessoas à espera de atendimento. Tentei me aproximar, mas vi que elas estavam reativas. Então, eu falei: ‘não, eu vou fazer um vivo sem entrevista’. Demos o recado, trouxemos as informações. Quando terminou, uma pessoa parou para falar comigo, tiramos uma foto e ficamos conversando por alguns instantes. Quando me despedi, esse rapaz encostou em mim e disse ‘Andréa Silva, trabalhando, hein?’ Aí eu falei ‘É…’ Achei que ele tinha vindo me cumprimentar, falar alguma coisa comigo, como espectador. Aí ele falou ‘Andréa Silva, trabalhando normal.’ Quando ele falou isso, respondi que não estava tudo tão normal assim, já que estava de máscara e distante das pessoas. Então ele começou a dizer: ‘mas por que está trabalhando? Por que não parou de trabalhar? Por que vocês ficam dizendo que não é pra ninguém trabalhar nem sair de casa, mas você está aí trabalhando? Aí é fácil, né? Um bom salário, ganhando bem’.” Andréa conta que quando entendeu o que estava acontecendo se dirigiu ao carro da emissora, onde seus colegas estavam guardando os equipamentos utilizados na gravação. O homem a seguiu, gravando com o celular e fazendo diversas acusações contra ela. Quando seus colegas perceberam a situação, foram em direção de Andréa para saber o que estava acontecendo. “Ele não parava de gravar, dizendo ‘isso é fake news!’”, lembra a repórter. Ela revela que ficou nervosa, mas teve que se controlar “e controlar meus colegas também”. A equipe entrou no veículo da emissora e o homem continuou com o celular di-

Andréa Silva, jornalista

recionado para Andréa. “Eu fiquei quieta. Porque essas pessoas falam na expectativa de que você fale alguma coisa, né? Uma provocação para que você reproduza algum argumento também”, relata. A jornalista diz que a situação lhe causou tristeza e frustração. “Porque a gente sai de casa pra trabalhar e ele não sabe o quanto eu ganho, não sabe sobre a minha vida, minha rotina, minha labuta, sabe? A vontade que dá numa hora dessa é falar tudo isso. Mas eu escolhi não fazer isso porque uma pessoa dessa vai usar tudo contra você, arrumar uma forma de manipular e vai acabar sendo pior.” No fim do vídeo, o homem citou uma manchete deturpada veiculada no site Pleno.News dois dias antes do ocorrido, segundo a qual a 4 “Estátua do Cristo Redentor foi ‘vestida’ com a bandei-

ra chinesa”. “Vocês apoiam essa palhaçada e querem destruir o país. [...] projetando a bandeira da China no Cristo Redentor. Como é que pode, rapaz? Vão entregar isso aqui pra China? Palhaçada. A gente não vai deixar não”. Segundo dados da plataforma Repórteres sem Fronteiras, 5O Brasil ocupa a 107ª posição (entre 180 países) no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa 2020. O chamado “doxing” dá conta do novo artifício que vem sendo usado contra jornalistas e outros profissionais: ataques, ameaças e exposição de dados pessoais na internet. Talvez o exemplo mais famoso seja o caso da repórter da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello, 6que, após denunciar o esquema corrupto de desinformação pelo WhatsApp


nas eleições de 2018, sofreu intensas repressões e teve seus dados pessoais expostos gerando uma onda de violências e ameaças. A prática denunciada pela jornalista se dá através do disparo em massa de informações inverídicas para listas de transmissões. Estas, por sua vez,

contêm dados da base eleitoral do próprio candidato, mas também podem conter as informações de terceiros, como região geográfica e renda, que são vendidas por plataformas especialistas na prática ilegal. A ação se configura como doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral e não declarada.

COMO COMBATER AS FAKE NEWS

Diante desse contexto, é importante pensar na responsabilidade das redes sociais mais utilizadas no mundo, no que diz respeito à garantia de privacidade e transparência na utilização e retenção dos nossos dados. Em um movimento tardio, dada a magnitude dos escândalos nas plataformas, as empresas estão começando a ser minimamente penalizadas juridicamente, por pressões políticas e sociais. É o caso do Facebook, que está sendo processado por não proteger os dados pessoais de seus usuários na violação ocasionada pela empresa Cambridge Analytica em 2018. Na época, o escândalo digital envolveu as informações de 87 milhões de pesso-

as, recolhidas desde 2014 e utilizadas para influenciar a opinião de eleitores de diferentes países. Mas existem alguns percalços que dificultam a sanção, como o fato de as leis referentes à navegação on-line serem muito recentes e a autoclassificação desses negócios, que são de conglomerados de viés publicitário e não jornalístico. Afinal, considera-se que eles não produzem informações, apenas as replicam e vendem para os anunciantes. Além disso, as empresas alegam que a retirada de uma postagem ou diminuição do alcance configura um ataque à liberdade de expressão, fugindo da proposta inicial das plataformas. Por outro lado, como é amplamente noticiado, existe o bloqueio deliberado de termos específicos, a restrição do alcance de postagens e, por vezes, a retirada de conteúdos julgados impróprios (como incitação ao ódio, discriminação, racismo e bullying) a partir das regras de uso de cada plataforma. As fake news não se encaixam nessas categorias e o processo de apuração para retirada de um conteúdo do ar é lento e não é transDEZEMBRO 2020

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parente, o que possibilita o aumento exponencial da desinformação. A advogada Olívia Pimentel, especialista em crimes digitais e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), conta que nada é irrastreável na internet e que, mediante intervenção legal, é possível encontrar o autor de uma notícia falsa. “Até mesmo a configuração de criptografia ponta-a-ponta não é 100% confiável. A gente já viu, em vários escândalos, que mesmo tendo a criptografia é possível sim uma pessoa capacitada pegar as informações. Toda navegação em qualquer provedor como esses serviços de Facebook, WhatsApp, Instagram, LinkedIn etc. deixa um registro. Uma vez que a medida judicial solicite as informações sobre a origem da notícia falsa, essas informações são rastreadas.” A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), com vigência a partir de agosto de 2020, se propõe a barrar ilegalidades referentes à utilização de dados pessoais na esfera on-line. Antes da lei, era possível criar listas de transmissão para a replicação de propaganda eleitoral e transmissão de produtos ou serviços sem solicitar a autorização do usuário. Muitos funcionários e voluntários das campanhas compravam o gerador de números estrangeiros, o que possibilitava a utilização de algoritmos para segmentar os destinatários que receberiam mensagens, com base na intenção de voto. Além disso, por dispor de códigos de área de outros países, eles burlaram o sistema de filtros de spam e as limitações impostas pelo WhatsApp quanto à quantidade máxima de participantes de um grupo e ao repasse automático das mensagens. 16

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COMO COMBATER NOTÍCIAS FALSAS A pergunta que nos resta é: o que podemos fazer? Como podemos nos comportar na internet para evitar o compartilhamento de notícias inverídicas que causam tanto mal social e ferem a democracia? Como se proteger na navegação on-line? Confira a seguir o que pensam as profissionais entrevistadas para essa reportagem:

Segundo Olívia, com a LGPD isso tudo mudou. “Hoje, com a lei, você tem que pedir a autorização do usuário para utilizar os dados em uma lista. Antes, quando se criava uma lista de transmissão, as mensagens se propagavam rapidamente, em questão de segundos. Hoje a lei proíbe esse tipo de ação sem o consentimento do usuário. Em relação às fake news, o que muda é que tanto quem criou a lista de transmissão quanto quem está replicando serão responsabilizados.”

“Acho muito difícil controlar tudo isso. Mas o que se pode fazer é, por exemplo, o projeto de lei das fake news virar lei. Porque assim, ao se confirmar que uma notícia é falsa, será possível notificar a empresa ou aquela pessoa que soltou a fake news e essa pessoa certamente vai ter que responder judicialmente. Só se minimiza mexendo no bolso, certo? Com sanções. Quando uma lei prevê que a pessoa vai responder a uma sanção civil, criminal e administrativa, e os provedores de serviço das redes sociais também vão responder, você já consegue mitigar isso tudo e pode dar início ao movimento gradativo de combate às fake news” - OlÍvia Pimentel, advogada especialista em crimes digitais e Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “A gente precisa saber como combater essa manipulação massiva da opinião pública. Porque isso é um ataque à democracia, é o descrédito das instituições de ensino e pesquisa e isso influencia muito. É importante que a gente realmente pense o que fazer. Como combater a desinformação. Já temos um movimento de pesquisadores que estão atuando dentro das universidades, centros de fact-checking, alunos de jornalismo que já se comportam como jornalistas. É um trabalho pequeno ainda perto da dimensão do que é a produção de conteúdo falso.” - Cláudia Galhardi, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)/Fiocruz e criadora o aplicativo Eu Fiscalizo “Eu acho que o jornalismo hoje é mais importante do que nunca. Ele é um dos caminhos pra gente sair desse buraco. E quando eu digo isso, tenho o desejo de que se crie um jornalismo mais plural e diverso, longe dos conglomerados midiáticos e jornalões. Isso só será possível com o auxílio da internet. Porque hoje, essencialmente, o jornalismo de qualidade, que pode ser comprovado factualmente, acontece nos veículos pequenos, que contam com o financiamento coletivo e se afastam dessa lógica de favorecimento aos poderosos, que são quem sustentam as fake news.” - Renata Gomes, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. “A gente tem muita força. Temos que nos reinventar sempre, temos que correr atrás, temos que buscar. Eu sei que novas gerações virão e vão continuar a fazer o nosso trabalho. Eu ainda acredito nessa profissão. Amo o que eu faço. Muita coisa vai mudar, mas a gente vai continuar sendo importante para a sociedade de modo geral.” - Andréa Silva, jornalista e repórter da TV Bahia. DEZEMBRO 2020

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ENTREVISTA

Casa Aurora:

refúgio para vítimas de LGBTfobia de Salvador Projeto soteropolitano acolhe jovens e oferece serviços multidisciplinares com valores sociais

C POR EMILLY LIMA EDITADO POR TAILANA CRUZ

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om um ano de fundação, o primeiro centro de cultura e acolhimento da comunidade LGBTQIA+ em Salvador (BA), a Casa Aurora, oferece suporte multidisciplinar e atendimento psicossocial a vítimas de discriminação e preconceito, inclusive na família. É uma tentativa de proporcionar condições de saúde e qualidade de vida para pessoas rejeitadas pelo fato de serem LGBTQIA+ e que não teriam sequer onde dormir. O projeto nasceu da necessidade de ajudar na redução dos danos causados pela LGBTfobia. A Casa Aurora significa “renascimento, princípio e um novo amanhecer” para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, queer, intersexos, assexuais e pessoas com outras orientações sexuais e identidades de gênero, explicam os fundadores e coordenadores da iniciativa, o auxiliar administrativo João Hugo Cerqueira e a assistente administrativa Sellena Ramos. Integrantes da Associação de Diversidade e Inclusão da Bahia, eles formam um casal trans há quatro anos, mas, ainda hoje, enfrentam preconceito social por sua condição. Na entrevista a seguir, detalham o funcionamento do espaço que, até o momento, já acolheu 20 jovens e, muitas vezes, tem ações financiadas pela própria dupla.


FOTO: MAXX BITTENCOURT/ DIVULGAÇÃO

Soul:

Desde a inauguração, cerca de 2.500 pessoas já passaram pela Casa Aurora para atendimentos na clínica social e participação em atividades de formação socioeducativas. Além do acolhimento, quais são os serviços oferecidos pelo projeto? SELLENA RAMOS: Oferecemos o serviço de abrigamento institucional (com alimentação e higiene pessoal); atendimento psicossocial com psicóloga, psicoterapeuta, psiquiatra e assistente social; atendimento clínico e jurídico; e atividades culturais e de formação.

Soul: Como a pessoa pode realizar inscrição para utilizar os serviços? SELLENA RAMOS: A pessoa deve entrar em contato conosco por e-mail (casadeacolhimentoaurora@gmail.com) e solicitar o atendimento. Para alguns serviços, cobramos taxas, com valor social, para quem pode pagar. Soul: Como funciona o proces-

so de cadastro e até quantos dias dura o acolhimento? SELLENA RAMOS: Para acolhimento, a pessoa precisa enviar um e-mail ou, se não tiver como, autorizar que um terceiro, de confiança, nos envie as informações necessárias. Deve-se colocar, no assunto da mensagem, “Triagem de abrigamento” e, no corpo do e-mail, um breve relato da situação, orientação sexual e/ou identidade de gênero, idade, número da identidade e CPF. Após isso, agendamos a triagem com a assistente social e a psicóloga. A pessoa precisa ter entre 18 anos e 29 anos. Caso esteja no perfil de abrigamento, será acolhida em caráter temporário por dois meses.

Soul:

A entidade se mantém principalmente com doações

Performance artística “Das ‘Coisa’ da Vida”

on-line (vakinha. com.br/vaquinha/ ajude-a-casa-aurora) e taxas de serviços cobradas apenas de pessoas que têm condições de pagar pelo atendimento. Isso é o suficiente para arcar com as despesas? SELLENA

RAMOS:

“A gente começou sem nada e isso faz com que a gente aprenda a se virar com pouco”

Nós (João Hugo e Sellena Ramos) fazemos alguns bicos, palestras e trabalhos profissionais para além da Casa Aurora. Essas seriam formas de captação direcionadas para nós, mas acabamos tendo que abrir mão para manter o espaço. Antes desta Casa, já tínhamos uma atuação profissional e dentro da militância. Muitos amigos também se juntam para ajudar e, desta forma, vamos nos mantendo.

Soul:

Já houve meses em que vocês não conseguiram cobrir as despesas? O que acontece quando isso ocorre? JOÃO CERQUEIRA: Felizmente,

as despesas nunca ficaram sem ser pagas, mas já ficamos sem algumas coisas de consumo, dentro da Aurora. Seguimos buscando a captação de alimentos, de materiais de limpeza e higiene pessoal. A gente começou sem nada e isso faz com que a gente aprenda a se virar com pouco. Mas isso não é bom, porque é muito complicado lidar (sem recursos) cotidianamente com a vulnerabilidade de pessoas, que buscam, em nós, sair desse estado.

Soul:

Por formarem um casal trans e atuarem em prol de LGBTQIA+, vocês enfrentam críticas. Como lidam com isto? JOÃO CERQUEIRA: As críticas sempre vão existir e a gente aprendeu a lidar com isso. Muitas pessoas irão falar da Aurora, mesmo sem conhecer o projeto, mas o que importa mesmo é o trabalho que está DEZEMBRO 2020

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

Fundadores da Casa Aurora, Sellenna Ramos e João Hugo Cerqueira

sendo feito e as vidas que estão sendo transformadas. Sempre quando alguém tenta criticar o nosso trabalho, nós o convidamos para conhecer o projeto de perto. É simples.

Soul: Quais são os próximos passos

JOÃO CERQUEIRA: Muita coisa

mudou: o espaço foi ganhando seu formato, (cresceu) a maturidade dos coordenadores com a administração das demandas. A responsabilidade também aumentou, depois que a

Casa ganhou uma visibilidade mais ampla, o que faz com que a gente redobre a segurança do espaço e o cuidado para não expor as pessoas acolhidas como objetos ou vitrines de vulnerabilidades.

da Casa Aurora?

JOÃO CERQUEIRA: A expectativa é

de conseguir um financiamento para manter o espaço – onde acolhemos e garantimos as três refeições diárias, itens de higiene pessoal e atendimento psicossocial para os jovens LGBTQIA+ –, além de ter recurso financeiro para que a gente aumente o nosso projeto e viabilize atividades e ideias que sempre surgem com o tempo.

Soul: O slogan da instituição é “Re-

nascimento, princípio e um novo amanhecer”. Por que Aurora? JOÃO CERQUEIRA: A escolha do nome se dá pelo seu significado real, pensando no que esse espaço pode significar para cada pessoa LGBTQIA+ que passou ou ainda passará por ele.

Soul: A Casa Aurora foi inaugurada

em maio de 2019. O que mudou de lá para cá?

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Casa Aurora: acolhimento, respeito e bom humor


SÓ TEM HOMEM

PO R

TAILA ENA NA CRUZ E ITADO POR MIL D

A SILV

SEXISMO NA POLÍTICA

Exclusão da mulher nas instituições brasileiras é uma tradição a ser superada

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Reportagem publicada na edição do dia 21 de novembro de 2020 do jornal Correio revela que 90 cidades da Bahia não elegeram sequer uma mulher para o cargo de vereadora. Ou seja, mais de 21% dos 417 municípios do estado terão somente homens nas casas legislativas. Assinada pela jornalista Clarissa Pacheco, a reportagem traz um alento: dez cidades das 90 que terão exclusivamente homens na Câmara Municipal elegeram mulheres para a prefeitura. As prefeitas eleitas nesses municípios, contudo, não terão nenhuma interlocutora no Legislativo local. Na capital, nove mulheres foram eleitas para o mandato que tem início em 2021. Assim, na próxima legislatura, as 43 cadeiras da Câmara Municipal de Salvador continuarão a ser ocupadas majoritariamente por homens. Serão 34 vereadores e nove vereadoras. Percentualmente, a bancada feminina corresponde a pouco mais de 20% do coletivo na casa legislativa municipal. Na lista dos dez vereadores mais votados figura apenas uma mulher, Ireuda Silva (Republicanos), que foi a quarta mais votada.

Vereadoras e vereadores eleitas(os) em Salvador 01. Luiz Carlos (Republicanos) 17.035 Votos 02. Geraldo Júnior (MDB) 12.906 Votos 03. Isnard Araújo (PL) 12.799 Votos 04. Ireuda Silva (Republicanos) 12.098 Votos 05. Duda Sanches (DEM) 10.436 Votos 06. Alexandre Aleluia (DEM) 10.154 Votos 07. Ricardo Almeida (PSC) 10.026 Votos 08. Emerson Penalva (PODE) 9.129 Votos 09. Carlos Muniz (PTB) 9.118 Votos 10. Júlio Santos (Republicanos) 8.810 Votos 11. Maurício Trindade (MDB) 8.738 Votos 12. Marcelle Moraes (DEM) 8.673 Votos 13. Hélio Ferreira (PC do B) 8.638 Votos 14. Paulo Magalhães Júnior (DEM) 8.536 Votos 15. Daniel Rios (Patriota) 8.089 Votos 16. Debora Santana (Avante) 7.586 Votos 17. Marta Rodrigues (PT) 7.271 Votos 18. Cris Correia (PSDB) 7.166 Votos 19. Roberta Caires (Patriota) 7.090 Votos 20. Kiki Bispo (DEM) 7.045 Votos 21. Claudio Tinoco (DEM) 7.039 Votos 22. Cátia Rodrigues (DEM) 7.010 Votos 23. Sidninho (PODE) 6.997 Votos 24. Sandro Bahiense (Patriota) 6.798 Votos 25. Téo Senna (PSDB) 6.751 Votos 26. Augusto Vasconcelos (PC do B) 6.041 Votos 27. Joceval Rodrigues (Cidadania) 5.723 Votos 28. Fabio Souza (Solidariedade) 5.682 Votos 29. Daniel Alves (PSDB) 5.647 Votos 30. André Fraga (PV) 5.621 Votos 31. Luiz Carlos Suíca (PT) 5.521 Votos 32. Anderson Ninho (PDT) 5.289 Votos 33. Carballal (PDT) 5.275 Votos 34. Maria Marighella (PT) 4.837 Votos 35. Sabá (DC) 4.830 Votos 36. George Gordinho da Favela (PSL) 4.822 Votos 37. Edvaldo Brito (PSD) 4.725 Votos 38. Silvio Humberto (PSB) 4.708 Votos 39. Tiago Ferreira (PT) 4.610 Votos 40. Irmão Lázaro (PL) 4.273 Votos 41. Dr. José Antônio (PTB) 4.192 Votos 42. Laina Pretas por Salvador (PSol) 3.635 Votos 43. Marcelo Maia (PMN) 3.460 Votos

FONTE: G1 BAHIA

A

s mulheres são a maioria na hora de escolher um representante de Estado (52,5% dos 147,3 milhões de eleitores brasileiros, de acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de 2018), mas encontrá-las na política ainda é muito difícil. O sexismo é causa e consequência do quadro de escassez de mulheres na cena política do Brasil. A pesquisa realizada pela organização internacional Inter-Parliamentary Union, compilada em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que o Brasil ocupa a 152ª posição na lista de classificação da representatividade feminina na Câmara dos Deputados, entre 190 países de todo o mundo. Somente 15% (77) dos 513 deputados federais são mulheres. No Senado, dos 81 parlamentares, elas são apenas sete. Entre as 27 unidades da Federação, apenas uma (o Rio Grande do Norte) é governada por uma mulher, a petista Fátima Bezerra. Na Bahia, percebemos que o cenário não é diferente. Nas eleições de 2018, tivemos apenas uma candidata concorrendo ao cargo de governadora (Célia Sacramento, da REDE) e três ao de vice-governadora (Mônica Bahia, do PSDB; Antônia Santos, do PRTB; e Mira Alves, do PSOL). Nenhuma baiana esteve na disputa pelo Senado. Como ocorre em outros setores sociais, a problemática fica ainda maior quando se trata da inserção da mulher negra. São raras aquelas que ascendem na política. O Congresso Nacional, hoje, tem um perfil que exemplifica o quadro excludente: os parlamentares são predominantemente homens, brancos e heterossexuais. As mulheres representam apenas 30% das candidaturas em cada eleição parlamentar,


o mínimo estabelecido pela Lei n° 9504/1997, que dispõe sobre a reserva (não exatamente o preenchimento) de vagas nos pleitos. A Lei prevê a destinação de, no mínimo, 30% e, no máximo, 70% das vagas para cada sexo na disputa por cargos de deputado estadual, deputado federal e vereador. Os partidos alegam ter dificuldade para cumprir a meta e há suspeita de fraude na eleição de 2018, com legendas lançando “laranjas” como candidatas para alcançar a cota. A exclusão é histórica. Desde 1894, ano da escolha do primeiro presidente da República por voto popular, demorou 116 anos para elegermos a primeira mulher para o cargo, Dilma Rousseff. Anos depois, ela deixou o posto pelo motivo que, também, retardou a eleição de uma presidenta para o Brasil: o machismo velado na política. O quadro, por um lado, é originário do machismo. Por outro, fortalece a manutenção deste problema no País. Para além da representatividade, eleger uma mulher faz com que as

outras, à sua volta, de tornem mais engajadas em discussões cívicas, de acordo com pesquisa da Harvard Kennedy School. Líderes femininas podem colocar em pauta, nas instâncias do poder, as demandas das brasileiras, rumo à igualdade de gênero nas diversas áreas. O sistema político precisa se articular (e muito) para lançar projetos que as defendam e as acolham. Afinal, a mulher é uma força importante para a economia e chefia a maior par-

te dos lares do País, mas ainda ocupa os lugares menos prestigiados no mercado de trabalho e ganha menos que o homem com função idêntica à sua. Neste ano, haverá eleição e teremos mais uma chance de fazer diferente.

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O Brasil nรฃo estรก pronto para Ingrid Silva POR: GABRIEL RODRIGUES EDITADO POR CRISTINA MASCARENHAS E ADRIANA TELLES

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ão é só ballet. Ingrid dos Santos Oliveira Silva é saldo das histórias que ajudou a contar e recontar ao mundo, seja como bailarina clássica, como filha, aluna ou professora, seja como mulher negra e brasileira. Agora, pela vida que carrega dentro de si, saldo da menina que nasceu em Benfica, zona norte do Rio de Janeiro, em novembro de 1988, filha de Maureny dos Santos Oliveira e Cláudio Santos da Silva. A mais velha entre os irmãos, Ingrid teve, desde os 3 anos, incentivo da família para prática de esportes, artes e capoeira. Ainda assim, precisou enxergar sua potência em um país que não estava pronto para alguém como ela e, mesmo hoje, ainda não

FOTOS:ANGELA ZAREMBA

está pronto para outras meninas que se veem inspiradas em sua trajetória de vida; um Brasil que não conseguiu reconhecer a força de uma menina negra que, desde os 8 anos, tem superado inúmeras barreiras e feito história através da sua arte e do seu ativismo. Ingrid Silva carrega em si um pouco de cada mundo em que se fez presente. É a mulher que se reconhece quando fala sobre o Centro de Referência Esportiva Mangueira, que lhe possibilitou o primeiro contato com o balé, através do projeto “Dançando Para Não Dançar”. Tudo isso, mesmo nunca tendo se imaginado no balé profissional, quando a natação e as outras atividades às quais se dedicava eram também grandes possibilidades para o futuro que já estava construindo. Ingrid carrega a força e a sensibilidade de Maureny, sua mãe, que percebeu o quanto aquela menina (que já arriscava fazer alguns passos de balé pelo que via passar na televisão) tinha para dizer ao mundo. A trajetória de Ingrid Silva é

saldo do seu próprio tempo. De quando não conseguia enxergar potencial em si mesma ou quando, entre seus 11 e 12 anos, foi instigada a seguir o balé profissional – num momento em que não existia muita representatividade negra da dança clássica, muito menos figuras que pudessem ser sua fonte de inspiração no balé brasileiro. Como bailarina clássica, Ingrid precisou desbravar muitos caminhos, sendo sua própria referência quando precisou de uma. Radicada em Nova Iorque há cerca de 13 anos, Ingrid encontrou a força que precisava para continuar sonhando nas histórias de mulheres inspiradoras em sua vida. “Eu acho que ter vindo para cá tão nova, com 18 anos, foi muito bom para eu crescer, de uma certa forma; como mulher, como bailarina, como tudo. Foi um descobrimento muito bom, me fez sair um pouco da minha bolha, explorar horizontes que eu não tinha noção que existiam e me fez crescer. Me forçou a crescer e a conhecer mais sobre a cultura do outro”, conta Ingrid.

DO DEMI-PLIÉ EM BENFICA AO GRANDPLIÉ EM NOVA IORQUE

À medida que passava a se enxergar de outra forma no mundo dança, a jovem Ingrid aproximava-se ainda mais dos abismos sociais e raciais em que o Brasil se encontra desde tempos coloniais. Não só pela falta de representatividade e pelas desigualdades, mas por ser mais uma, entre muitos bailarinos e bailarinas clássicas negras que precisaram sair do País para ter seu trabalho reconhecido – mesmo constituído majoritariamente por pessoas que têm os seus traços e seu tom de pele, o Brasil só teve a presença de uma bailarina negra (Mercedes Baptista) no palco do Teatro Municipal do Rio Janeiro em DEZEMBRO 2020

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1948, mais de 30 anos depois da sua construção. Um século depois de inaugurada, a instituição, que é sonho de muitos jovens, continua sem nenhum histórico de bailarinos ou bailarinas negras nas posições de primeira bailarina ou solista. Foi através do projeto na Vila Olímpica da Mangueira que a carioca conseguiu dar continuidade aos estudos em dança, com bolsas integrais na Escola de Dança Maria Olenewa e no Centro de Movimento Deborah Colker. Além disso, aos 17 anos, foi selecionada em uma audição para o Grupo Corpo, quando teve a possibilidade de ser estagiária da companhia. Hoje, aos 31 anos, a bailarina toma a própria trajetória como inspiração para seus próximos passos, especialmente pela força que precisou ter na época, quando sua rotina era acordar cedo para ir à escola, tinha aula de dança em dois lugares, treinava e usava o tempo no ônibus para estudar. Essa rotina se repetia ano após ano, até a chegada de Bethania Gomes em sua vida, o que transformou completamente suas perspectivas para o balé. Primeira brasileira negra a se tornar a primeira bailarina em uma companhia internacional, ao ingressar no Teatro de Dança do Harlem (Dance Theatre of Harlem), em Nova Iorque, Bethania Gomes tinha a experiência e a sensibilidade que Ingrid precisava para dar seu próximo passo. Uma visita a uma das aulas do projeto “Dançando Para Não Dançar” foi o suficiente para que a bailarina profissional percebesse a potência da jovem que hoje ocupa o posto que um dia foi seu: o de primeira bailarina da companhia. Naquele momento, a influência de Bethânia foi muito importante para que a diretora do projeto enviasse um vídeo de Ingrid ao Teatro de Dança do Harlem, à época com inscrições abertas 26

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para o intensivo de verão da companhia. Selecionada entre 200 inscritos, Ingrid recebeu a notícia com muita surpresa. E como no início tinha tudo aquilo mais como uma diversão, sair do País para estudar balé nunca esteve em seus planos. Em 2007, com a aprovação no “Dance Theatre of Harlem Summer Intensive”, a bailarina embarcou para Nova Iorque, para participar da audição presencial com Arthur Micthell, fundador da companhia e primeiro bailarino afro-americano no New York City Ballet. Uma das grandes referências do mundo da dança, Micthell foi outra figura importante para que a jovem brasileira se fortalecesse ainda mais no balé profissional. Assim, ela foi escolhida pelo bailarino para integrar a escola de dança e, 3 meses depois, foi convidada para integrar a companhia jovem da instituição (Dance Theatre of Harlem Ensemble).

CONQUISTAS, PRÊMIOS E UM BAILE NO MUNDO DIGITAL

A adolescente da zona norte do Rio precisou crescer e dividir espaço com outra Ingrid, esta última com muito mais responsabilidades no mundo da dança. Precisou conhecer a cultura do outro, aprender um outro idioma e se integrar ao seu novo lar. Compartilhou experiências com quem nada entendia de Brasil e pôde aprender muito mais sobre o estado de coisas em que o país insiste em continuar. A nova Ingrid precisava resistir pelo seu presente, que também já era parte do seu futuro, por sua mãe, pela família e por todas as pessoas que estiveram ao seu lado até aquele momento. Precisou tomar consciência do que estava acontecendo e conseguir autoestima para seguir em frente. A dor da saudade precisou ser suportada, até que ela con-


seguisse compreender a importância de tudo aquilo, até que pudesse perceber a potência que estava guardada dentro de si. Com a mudança para Nova Iorque, a jovem Ingrid precisava de foco e disciplina para continuar expandindo sua arte, até nos momentos em que pensou em desistir – fosse pela rotina intensa que precisava seguir para continuar evoluindo, entre treinos e estudos, ou pelo desgaste físico e mental que precisou suportar. Em 2012, após a entrada de Virginia Johnson como nova diretora artística do Teatro de Dança de Harlem, Ingrid passou a compor a nova formação oficial da instituição.

Essa mudança, dois anos depois, tornaria Ingrid a primeira bailarina, posto mais alto em uma companhia de balé. A bailarina tornou-se o seu próprio clássico. Ingrid Silva é mais do que faz e do que diz quando levanta a voz pelas urgências em que a maioria da população deste país se encontra, ou quando se questiona sobre o momento em que o Brasil estará pronto para bailarinas clássicas negras. A Ingrid Silva do presente assume a certeza de que nada está totalmente concreto e tem a consciência de que vai precisar abrir muitas portas e enfrentar muitas barreiras. Ela quer viver em um presente em que corpos negros não sejam mais lidos DEZEMBRO 2020

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como selvagens, exóticos ou inadequados para arte clássica. “Eu não acredito que cheguei ao sucesso, eu tenho muito mais coisas para inventar nessa vida. Muito mais gente para ajudar, muitas portas para abrir, sabe?! Muitos ambientes para eu habitar, quebrando essas barreiras, para que a gente não seja encarada como curiosidade, [como acontece] até hoje. Por que que só tem eu? Tem tantas outras pessoas que estão nessa batalha também, muitas não são profissionais, porque infelizmente o nosso país não está pronto, mas quando vai estar? E como a gente quebra esse ciclo, então, eu acho que posso me definir como essa pessoa”, afirma Ingrid Silva. Com a sua vinda ao Brasil adiada por conta da pandemia da Covid-19, Ingrid diz estar ansiosa e espera poder vir assim que possível. A bailarina viria em março deste ano para receber o “Prêmio Faz Diferença”, conquistado no final do ano passado (a premiação é inciativa do jornal O Globo, em reconhecimento a pessoas, empresas e instituições cujas ações “transformaram vidas em 2019”, segundo informações da Associação da Imprensa do Brasil (AIB). Como uma boa sagitariana que diz ser, Ingrid também espera seguir explorando novos horizontes, indo para diferentes lugares, fazendo tudo que der vontade. É o saldo da mesma Ingrid Silva que assume o desejo de voltar à Bahia para conhecer mais sobre a cultura e a história local, já que, em sua primeira visita ao estado, convidada por uma amiga, não teve tempo de conhecer o quanto gostaria. A vontade da bailarina é poder voltar para dar aulas, conhecer 28

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pessoas e participar de projetos sociais; ela sonha com a oportunidade de levar a dança clássica a crianças que não têm a chance de conhecer mais sobre a cultura do balé. Quando o assunto é impacto digital, a bailarina tem assumido as redes sociais como um potencializador para compartilhar seus trabalhos, propor reflexões e amplificar seu ativismo. Com mais visibilidade e engajamento nas redes, Ingrid Silva entende que precisa se preocupar ainda mais com o que compartilha, principalmente por ocupar um espaço de representatividade na vida de outras pessoas. É através da internet que a menina de Benfica busca alcançar outros horizontes, onde jamais imaginou chegar, conectando-se com mais histórias, vivências e interesses – embora as facilida-

des e os números de seguidores no contexto digital não levem a artista a acreditar que o palco deixou de ser seu principal veículo de visibilidade. Para Ingrid, o resultado na rede social dificilmente vai superar a sensação de assistir presencialmente a um espetáculo, de perceber detalhes e gestos como acontece no teatro. Através da visibilidade que tem e de outras histórias de potência que a bailarina tem encabeçado o movimento Black In Ballet (@blacksinballet), que busca mostrar a diversidade


que existe na dança clássica. Atualmente, as mobilizações da plataforma buscam ajudar o projeto “Dançando Para Não Dançar”, que está correndo risco de fechar as portas após perder o patrocínio que tinha há 19 anos. O projeto foi responsável por iniciar Ingrid no mundo do balé e é uma das primeiras companhias de bailarinos e bailarinas em formação clássica do Rio de Janeiro. Junto a outros bailarinos negros, Ingrind criou uma vaquinha online, buscando suporte para que o projeto consiga dar continuidade às aulas ministradas para as mais de 1500 crianças que integram a ação sem fins lucrativos. A situação do projeto se soma a tantas outras da comunidade e que foram agravadas pela pandemia. Ingrid prefere acreditar que esse não

será o final de uma era, por saber que tem muita criança que precisa ser ajudada e por enxergar o projeto como um importante veículo de transformação. Diante das incertezas, ela prefere acreditar na mudança, que todos nós somos capazes de transformar o presente. Com a certeza de quem resiste por justiça e por mais oportunidades, Ingrid afirma ter a resposta para melhorar o mundo: “as pessoas precisam de uma chance”. Além do Black In Ballet, Ingrid é fundadora da EmpowHer New York (@empowher_ny), um catalisador social que busca visibilizar mulheres e histórias reais, a fim de romper paradigmas pela experiência de viver autenticamente de acordo com sua própria verdade. Os dois projetos são reflexos das mudanças nas quais Ingrid acredita e do que ela quer para o seu presente: uma realidade em que teremos a oportunidade de sermos nós mesmos, sem medo. Os esforços da bailarina são para que mais pessoas negras se vejam representadas na dança e acreditem em suas potencialidades, mesmo diante das dificuldades; para que todas as pessoas que se sentem inspiradas em sua trajetória acreditem em si mesmas, a partir de histórias de vida, de resiliência e de experiências para além do próprio corpo que habita; para que possam manter a mente aberta, para continuar se reeducando, crescendo e evoluindo a cada dia, sem autossabotagem. “Eu queria que nosso país não fosse só visto aqui fora como um país bonito, onde as pessoas só vão para o carnaval e para futebol, mas que fosse um lugar de cultura, que também fosse respeitado por isso. Que a nossas manchetes não fossem só festa, porque eu acho que o povo brasileiro é muito bom, de coração muito grande, mas a gente tem muito mais para oferecer” afirma Ingrid Silva. DEZEMBRO 2020

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COMBATE À EXCLUSÃO

Narrativas digitais negras Jovens criam estratégias para driblar desigualdades no acesso à internet POR GABRIEL RODRIGUES EDITADO POR BÁRBARA SOUZA E CRISTINA MASCARENHAS


FOTO: ARQUIVO PESSOAL

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olte dez anos em sua memória e imagine-se em um daqueles dias incríveis que você quer muito compartilhar com as pessoas que admira. Em um determinando momento, você pega um celular para registrar cada minuto, não em foto ou vídeo, mas sim através de uma transmissão ao vivo. Um celular com uma câmera que funcione, uma boa conexão de wi-fi e o cenário que você quiser ou puder pagar. Em poucos segundos, a transmissão começa e pessoas do mundo inteiro poderão acompanhar o seu dia em tempo real. Hoje o que parece simples, há 50 anos seria impossível sem a internet. O Instagram, por exemplo, que soma mais de 100 milhões de usuários ativos e já passou por diversas mudanças em suas funcionalidades, tem cerca de nove anos. A história nos mostra que sempre houve tecnologias que possibilitam esse compartilhamento, mesmo sem a experiência da instantaneidade. Antes da internet, do ‘textão’ no Facebook, essas memórias já foram bastante escritas no papel, em forma de cartas. Há seis anos criando conteúdo para internet, Mariana Palmeira, 22 anos, mais conhecida por Maroca (@falaaimaroca), considera a internet algo revolucionário, que, quando usada efetivamente, é capaz de coisas extraordinárias. Coisas essas que, depois de muito estudo, experiências e revoluções, ela própria tem buscado construir, sobretudo a partir da principal ferramenta de trabalho: o celular. “Uso o celular para tudo em minha vida, tanto pessoal quanto profissional, tanto que estou sempre investindo em tecnologia e bons celulares. Pelo celular eu gravo, edito, respondo e-mail e direct, faço tudo”, explica Maroca.

Mariana Palmeira, 22, acumula cerca de 93,2 mil seguidores no Instagram

“Falar sobre a presença de pessoas negras no ambiente digital é falar que esses negros estão nesse contexto digital de forma desigual e precária”. Tâmara Terso, doutoranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Na trajetória de Tâmara Terso, 31 anos, que é doutoranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (PósCom/UFBA), o mundo digital teve participação lenta e distante, tanto que ela foi ter seu primeiro computador após os 20 anos de idade. Para a especialista, que estuda a circulação midiática na comunicação, principalmente no jornalismo digital, a apropriação da tecnologia é importante para que “a gente possa inaugurar um outro patamar de construção de relações, de sociabilidade e poder. Em uma realidade em que as desigualdades possam ser desativadas a partir da apropriação dessas linguagens” afirma. No entanto, a pesquisadora explica que a ideia de acesso e consumo de tecnologia digital apenas através das redes sociais precisa ser superada, já que a compreensão de tecnologia é mais antiga que as próprias revoluções digitais de hoje. Para


FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Tâmara, importa que a tecnologia seja entendida como a “capacidade de construir artefatos para poder contribuir na feitura de ações, na organização de espaço, na intervenção da sociedade, do ponto de vista para ajudar resolver questões”.

IMPACTOS DA TECNOLOGIA: PRÁTICAS, RELAÇÕES E DESIGUALDADES

Tâmara Terso, 31, enxerga a tecnologia digital como forte aliada para construção de novas possibilidades de sociabilidades para pessoas negras

nologias de comunicação e informação e tecnologias digitais, mas que também dependem delas para ter acesso a direitos, como foi o caso do Auxílio Emergencial”. Diante das restrições de isolamento para contenção da Covid-19 e da necessidade de

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Em uma realidade cada vez mais impactada pelo digital, as nossas relações e práticas são constantemente mediadas pelo celular. Se o assunto é acesso à internet, a pesquisa divulgada este ano pelo IBGE mostra que, entre 2017 e 2018, o acesso por meio de celulares aumentou para 98,1%. Em contrapartida, Tâmara observa que os números mostram uma faceta cruel, a da desigualdade, especialmente quando “as tecnologias atravessam a vida das pessoas, mas elas não têm condições de responder a isso, como é o caso das parcelas que sofrem com uma desigualdade grande no acesso às tec-

O carisma nas redes de Cleidson Santana, 28, chamou atenção de artistas como Bia Ferreira e Camila Pitanga 32

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cadastramento digital, a medida sancionada pelo Governo Federal deixou de beneficiar milhares de pessoas que não tinham acesso à internet ou ao celular, principalmente pessoas negras e periféricas, povos originários e quilombolas. Se falta o básico para essas populações, imagine as dificuldades de quem deseja criar nas plataformas digitais um ambiente de construção de narrativas no meio social e cultural. Os relatos do artista Cleidson Santana, 28 anos, que passou a trabalhar também como criador de conteúdo durante o isolamento social por conta da pandemia do novo coronavírus, expõem os desafios de quem tem pouco acesso aos recursos tecnológicos vistos como básicos por muitos profissionais da área. O artista fala do seu cansaço ao lembrar das barreiras que tem enfrentado para entregar um material do jeito que ele quer. Segundo Cleidson, as principais questões no momento estão relacionadas à falta de dinheiro para investir


em um celular melhor, cenários, publicidade e programas de edição. Esses aspectos são algumas das condições geradas a partir das plataformas digitais, moldando, em alguma medida, uma lógica de produção e consumo que desprivilegia muitas pessoas que não têm condições de investir em seu conteúdo. Aos poucos, mesmo sem ter notebook, câmera profissional ou microfone extra para produzir conteúdo, Cleidson tem conquistado seu público. No Instagram, o artista já ultrapassa a marca de 22 mil seguidores no seu perfil (@ ocleidson). Quem acompanha Cleidson pode consumir uma série de postagens que mostram um pouco do seu cotidiano, além dos conteúdos humorísticos no quadro “Posso Ajudar?”, em que o artista responde perguntas feitas pelos fãs. “Muitas pessoas falam comigo, comemoram que estou crescendo, por ser uma bicha preta afeminada e fora de todos os padrões. Mas se tem uma coisa que eu comecei a reparar é que tem gente que faz a mesma coisa que eu e cresce muito mais”, relata Cleidson. Quando o assunto é engajamento no perfil, o artista afirma perceber a facilidade com que alguns perfis crescem, só porque a pessoa se enquadra em estereótipos lidos como padrões na nossa sociedade. “Tem gente que bateu 200 mil seguidores no Instagram fazendo a mesma coisa que eu faço, que no caso é dublagem, só que como a pessoa é padrão, branca, ela consegue mais alcance, mais seguidores”, expõe. Além disso, questões como acesso a tecnologias de qualidade e recursos para investimento pago na criação e divulgação dos conteúdos também podem aumentar os abismos entre aqueles que detêm pouco ou muitos recursos. Conforme observa Tâmara Terso, “falar sobre a presença de pessoas negras no ambiente digital é falar que esses negros

estão nesse contexto digital de forma desigual e precária”. Os dados sobre Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) de 2019 revelam, por exemplo, que mais de 74% da população negra e pobre acessa a internet apenas por celular e a partir de pacote de dados pré-pagos. Muitas vezes o celular é o único recurso tecnológico que artistas negres têm para fazer circular seu trabalho em outros lugares e, mesmo que na precariedade, conseguir se desprender do “karma” necropolítico do País, que incide violentamente nas populações não brancas. Quando o acesso à internet é entre pessoas pretas e pardas, a Síntese de Indicadores Sociais de 2019 divulgada pelo IBGE, realizada pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC-BR), aponta que cerca de 23,9% de pretos e pardos sofrem com a restrição de acesso a esses serviços, enquanto brancos englobam 15,2%. Segundo a pesquisadora Tâmara Terso, foi a primeira vez que essa pesquisa ganhou recorte de raça, um dado importante para perceber como as pessoas negras estão em relação ao acesso aos dispositivos digitais e à internet. Outra pesquisa que reforça esses dados é a divulgada no YOUPIX SUMMIT 2020, realizada pela Black Influence, o Site Mundo Negro, YOUPIX e Sharp, cujos números apontam como os níveis estruturais do racismo impactam na vida de pessoas não brancas, de diversas formas, quando o assunto é criação de conteúdos para internet. Os resultados desse estudo mostram que 57% dos criadores são brancos, enquanto pardos assumem 22% e pretos 17%. O documento busca viabilizar a pouca representatividade no mercado do marketing de influência e, principalmente, as desigualdades que estão estabelecidas tanto nas diferenças de tratamento quanto na de valo-

“Quando o acesso à internet, A Síntese de Indicadores Sociais de 2019 divulgada pelo IBGE, realizada pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC-BR), aponta que cerca de 23,9% de pretos e pardos sofrem com a restrição de acesso aos serviços de internet, enquanto brancos englobam 15,2%.” DEZEMBRO 2020

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FOTO: GIOVANNA HEMERLY

Mariana Gomes, 22, tem buscado repensar a participação da tecnologia digital na vida de pessoas pretas. (Foto do lançamento da Conexão Malunga).

res. As condições de trabalho a que influenciadores negres ou indígenas são muitas vezes submetides também foram destacadas na pesquisa. A análise revela que pessoas negras criadoras de conteúdo, ou profissionais de um modo geral, são mais contratadas para trabalhar em projetos sobre temas que abordam racialidade ou assuntos próximos.

AUTONOMIA, CRIAÇÃO E OUTRAS PERSPECTIVAS DE USO PARA A TECNOLOGIA

Para alguém que adentrou no mundo dos blogs quanto tinha 12 anos e, aos 15, passou a integrar um grupo de robótica na escola, Mariana Gomes (@gomarigo), 22 anos, hoje estudante de Jornalismo e cofundadora do Conexão Malunga – iniciativa de discussões sobre Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para autonomia –, acredita que todas suas vivências foram importantes para transformar sua

percepção e relação com a tecnologia. “Eu pude entender a tecnologia também nesse espaço de criação, de você se perguntar quais são as demandas da sua comunidade, da sua cidade. E de pensar formas inovadoras de impactar aquela realidade. Isso me abriu portas, no sentido de perceber que eu poderia estar em mais lugares”, analisa Mariana. Capoeirista angoleira pela ACANNE (Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro), Mariana Gomes aponta também para relação crítica que ela tem quando está imersa na virtualidade. A estudante diz acreditar muito nos valores e fundamentos apreendidos através da capoeira, responsáveis por reposicionar seu pensamento e usos em relação às tecnologias digitais. “Hoje consigo compreender a tecnologia não só nessa questão de acesso, mas gosto de pensar assim: 1) tem a questão de você acessar por acessar; 2) tem a questão da apropriação, “o que estou fazendo com isso e como é que se ali-

nha a minha vida, aos meus interesses?”; e 3) tem a questão de governança, que é estar na mesa de decisões, tomar as decisões em relação aos desenvolvimentos,” reflete. Já Maroca lembra que passar a trabalhar com a tecnologia foi muito desafiador no começo, não só pelos poucos recursos, mas principalmente pela falta de representatividade nesses espaços. Foi diante dessa falta que a influenciadora decidiu criar conteúdos para o Youtube e depois para o Instagram. “Quando comecei era justamente essa a ideia: ser a inspiração para muitas mulheres que não sabiam se maquiar ou cuidar dos próprios cabelos. Hoje temos uma gama maior de pessoas pretas, falando sobre diversos assuntos, e óbvio que precisamos conquistar cada vez mais espaço, mas eu enxergo que está acontecendo uma evolução”, reflete Mariana Palmeira.


PAREDÃO MULTICOR

Movimento cultural leva público LGBTQIA+ a paredões Diversidade marca festas na periferia da capital baiana POR TAILANA CRUZ EDITADO POR MÔNICA CELESTINO


Soul: O paredão ainda é muito marginalizado pela sociedade, por ocorrer na periferia. O Paulilo Paredão sofre com isso? MATHEUS PAULILO: O paredão é marginalizado porque, muitas vezes, é organizado por facções criminosas e porque muita gente tem visão elitista e preconceituosa das coisas feitas na favela. O Paulilo Paredão sofre preconceito, pois, além de ser uma festa de favela, é uma festa LGBTQIA+, uma festa de diversidade. É importante salientar que nosso movimento é pacífico e que dialogamos com a sociedade e movimentamos a economia dos bairros da periferia. Todos os paredões são feitos em locais onde a acústica nos ajuda, e não desacatamos nenhuma regra dos órgãos públicos. Temos regras, temos horário (para começar e terminar) e temos o básico: respeito. Soul: Apesar do preconceito fora da periferia, o Paulilo Paredão tem conquistado espaço entre as camadas populares. Quantas pessoas participam de cada festa? MATHEUS PAULILO: Não tenho noção de média, mas, no Palco Origens (montado no Espaço Cultural da Barroquinha, no Centro), no Carnaval de Salvador, pediram muito e o meu show foi o segundo maior público do dia. Fiquei muito feliz, quando soube que o público co-

meçou a chegar na hora do meu show. Foi gratificante saber que as pessoas acompanham de verdade. Vendo tudo isso, acredito no meu público.

Soul:

O Paredão Paulilo ainda é uma festa só para o público LGBTQIA+? MATHEUS PAULILO: Ultimamente, tenho percebido que o Paredão se tornou um movimento de pessoas que acreditam num futuro de inclusão, de liberdade, de interação com gente igual e diferente de nós.

Soul: Quais são os planos para o

Paulilo Paredão no futuro? MATHEUS PAULILO: Os próximos passos são transformar o Pare-

dão em um festival, criar uma gravadora e nunca perder o foco de dar visibilidade a artistas locais que estão começando (bandas, cantores, fotógrafos etc.). O Paulilo Paredão será o local das pessoas mostrarem seus trabalhos.

Soul: Quem a senhora tem como referência?

MATHEUS PAULILO: Tive dificul-

dade para aceitar que eu era favela, mas hoje sei que minhas referências perpassam por Silvanno Salles, Nara Costa, MV Bill, Racionais, Black Stylle e também Mariah Carey, que está presente nas minhas roupas, no meu comportamento no palco.

Soul:

A senhora tem formação em Comunicação Visual. Como isso ajudou na criação e execução da festa? MATHEUS PAULILO: Venho de uma família de artistas. Minha mãe é atriz e artesã; e meu irmão é dançarino e cantor de rap. Na minha casa, tem muita arte. Cresci nesse meio e isso vinha aguçando minha criatividade. A formação (em Comunicação Visual) me ajudou com o lado técnico, com noção de cor e imagem; e me ajudou a saber a vender a ideia. FOTOS: DIVULGAÇÃO

P

ara dançar, a DJ, produtora e comunicadora visual Matheus Paulilo, 23 anos, moradora do bairro de Castelo Branco, precisava deixar a periferia e ir para bairros boêmios de Salvador (BA), no Centro ou na Orla Marítima. Logo, logo, percebeu a falta de paredões para o público LGBTQI+ no lugar onde vivia. As festas, em geral, eram realizadas por homens hetero e cis para heterossexuais. Inquieta com a situação, a artista não-binária criou, há cerca de um ano, o que vem sendo considerado um dos maiores encontros LGBTQIA+ de Salvador: o Paulilo Paredão. Sem periodicidade definida, o evento ocorre sempre em bairros periféricos da cidade e tem acesso gratuito ou com bilhetes vendidos a preço popular. Na programação, repertório musical diversificado, com funk, pagode, arrocha e outros ritmos, tocado em aparelhos de som automotivos, em alto, muito alto, volume. Neste bate-papo, Matheus Paulilo explica como funciona sua invenção.


“A gente milita dançando com a mão na consciência, né?” Soul: Como e quando começou o

seu contato com a música? MATHEUS PAULILO: A música sempre esteve presente na minha vida. Ainda na adolescência, escrevia músicas e lançava na internet, junto com um amigo. Utilizei isso para o trabalho de conclusão do curso de Comunicação Visual, quando decidi fazer um CD com meu grupo de amigos. O CD tinha o nome “Andrógina”. Nele, eu representava uma personagem, uma pessoa andrógina, por isso o nome. Fizemos uma intervenção urbana, no Centro da cidade, e esse material chegou a um produtor, que me convidou para fazer uma matinê. A festa foi um sucesso e, desde então, estou tocando como DJ.

Soul:Como a senhora percebe a

participação de trans e drags no pagode baiano? MATHEUS PAULILO: (A participação de) drag é uma coisa mais nova, mas trans sempre teve. São exemplos Leo Kret e Fabete, que não tenho certeza se é trans. Com a modernidade, vamos ocupando espaços e as referências aumentam: Nininha Problemática, Miguella Magnata, A Dama, que é uma mulher lésbica, A Travesti. É muito importante que elas estejam no auge, para nos desejar mais feliz. As músicas delas nos empoderam. Quando vejo uma

mulher, uma drag, cantora, fico muito feliz em ajudá-la.

Soul:

Existe um movimento de mulheres no pagode que aparentemente vem crescendo. O machismo na cena musical baiana diminuiu? MATHEUS PAULILO: Pagode é uma manifestação cultural. O machismo é muito forte, em qualquer área. No pagode, não é diferente, pois a letra sempre exalta a virilidade do homem e sempre fala de uma necessidade das mulheres por homens. Mas a gente milita dançando com a mão na consciência, né?


SÍFILIS EM SALVADOR

SÍfilis volta a assombrar Salvador

Volume de novas ocorrências da doença cresceu 40% na capital em 2019 POR MARIA VITÓRIA EDITADO POR JOÃO LUCAS DANTAS

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uita gente achava que a sífilis era uma doença do século passado, mas essa percepção já não procede. Entre 2015 e 2019, a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) contabilizou aproximadamente 34 mil casos de infecção na população baiana. Somente em 2019, Salvador (BA) registrou 3.625 novas ocorrências, o que representa um aumento de 40% dos diagnósticos em comparação a 2018, quando 2.582 novos casos foram detectados por equipes profissionais. Entre os pacientes, estão homens e mulheres heterossexuais, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Causada pela bactéria Treponema pallidum, transmitida na relação sexual ou na gestação, da mãe para o bebê, a infecção pode trazer consequências graves à vítima, como danos cerebrais irreversíveis, e até a morte. Além de predispor a pessoa para o contágio pelo vírus HIV, ela pode evoluir para enfermidades cardíacas e articulares e neurossífilis (acidente vascular cerebral e meningite). A boa notícia é que pode ser tratada. Na capital baiana, pode-se assegurar acesso a meios de prevenção, diagnóstico e tratamento no Centro de Educação em Saúde do Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), no bairro do Garcia. Outra opção é o Casarão da Diversidade. Lá, o Centro de Promoção e Defesa dos Diretos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CPDD) garante orientação, prevenção e tratamento gratuitos de sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, oferta serviços de acolhimento e orientação psicossocial e jurídica, faz encaminhamento à rede de saúde e assistência social, além de prestar acompanhamento em psicologia, direito e pedagogia a pessoas LGBTQIA+. Para compreender melhor os motivos que têm causado o aumento do volume de ocorrências e as possíveis medidas para reversão do quadro, entrevistamos a coordenadora do Centro de Educação em Saúde, a fisioterapeuta e especialista em Educação em Saúde Marli Miguez Sena de Jesus. 38

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“É importante c pessoas, principalm preservativo, que e de diversas doen transmissíveis e a g Mas isso pode não casos de sífilis, por provocadas por bac lesões nos órgãos gen uso do preservativo 100% de preven


conscientizar as mente, para o uso de evita a transmissão nças sexualmente gravidez indesejada. o ser suficiente nos rque, em infecções ctérias, que causam enitais, só o não trará nção.”

FONTE: HTTPS://WWW.LOC.GOV/ITEM/98514501/

Soul: O número de casos de sífilis cresceu em Salvador. Qual é a forma mais eficaz de combate à doença? MARLI MIGUEZ: (A forma mais eficaz ainda é) conscientizar as pessoas, principalmente, para o uso de preservativo, que evita a transmissão de diversas doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada. Mas isso pode não ser suficiente nos casos de sífilis, porque, em infecções provocadas por bactérias, que causam lesões nos órgãos genitais, só o uso do preservativo não trará 100% de prevenção. (Nestes casos), a bactéria está na lesão e, se ela não estiver no pênis e estiver em outra área do corpo, a justaposição de superfícies vai proporcionar o contágio (mesmo com o uso do preservativo). Soul: Existe, então, outra forma eficaz de combate à proliferação da sífilis, a ser somada ao uso do preservativo? MARLI MIGUEZ: Sim. (A outra forma é) o tratamento do infectado. As pessoas tratadas não irão transmitir a sífilis, por isso é importante que as pessoas saibam da doença, qual é a lesão e procurem o tratamento. Soul:

Quais são os fatores que contribuem para o aumento dos casos de sífilis na Bahia?

MARLI MIGUEZ: Falhas nas campanhas de prevenção. As campanhas não conseguem ser eficazes porque geralmente são feitas (somente) em períodos festivos, como Carnaval e São João.

Soul: Em caso de diagnóstico positivo para sífilis, o que a pessoa deve fazer de imediato? MARLI MIGUEZ: É importante avisar ao parceiro ou à parceira, porque, às vezes, um trata e o outro, não. Os dois devem fazer o tratamento. Soul: Onde procurar ajuda?

MARLI MIGUEZ: Todas as unidades

básicas de saúde oferecem tratamento para sífilis, que geralmente é feito com penicilina. Além do Cedap, há outros centros de referência em Salvador, como o Serviço Municipal de Assistência Especializada, localizado no bairro da Liberdade.

Soul: Caso o paciente possua alergia a penicilina, o que fazer? MARLI MIGUEZ: A partir do momento em que a infecção é detectada, o paciente não pode sair da unidade de saúde sem receber medicação. Caso o paciente tenha alergia à penicilina, o médico irá analisar qual antibiótico fará mais efeito naquela pessoa. Devido à possibilidade de choque anafilático decorrente de alergia à penicilina, são feitos testes com o medicamento antes da aplicação. DEZEMBRO 2020

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APITO? ...

Acesso à universidade e escola bilíngue entram na pauta indígena Jovem Pataxó representa seu povo em entidades estudantis brasileiras

POR MILENA SILVA EDITADO POR EMILLY LIMA

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Soul: O ensino da rede pública do

restante do País se diferencia daquele ministrado em escolas da sua aldeia. Poderia explicar quais são essas distinções? VICTOR PATAXÓ: O nosso ensino é diferenciado. Há professores indígenas, que conhecem a nossa história, que tiveram seus avós como antepassados que lutaram e sabem a real história do nosso povo no País. Aprendemos na prática: nossas pinturas nos ensinam a matemática; e aprendemos o plantio através da Lua, da terra. A escola pública fora da aldeia parece mais um presídio. Os estudantes chegam na sala de aula, ficam parados, em forma de quadrado, ouvindo só o que a professora tem a falar. Depois, têm 15 minutos de sol, que é o intervalo, com a tia da merenda atrás das grades lhes servindo com talheres de plástico, como se eles fossem ferir alguém. É um modelo da época

da ditadura (regime autoritário instaurado pós-golpe civil militar de 1964) ainda.

Soul:

Quais as pautas indígenas no âmbito da educação? VICTOR PATAXÓ: zDuas das pautas

Soul:

Dentro da UNE, existe algum evento ou atividade específica que trabalha com pautas sobre os estudantes indígenas? VICTOR PATAXÓ: Ainda não, mas estamos construindo um espaço de estudantes indígenas dentro da UNE. Sou o primeiro diretor indígena da entidade. Não é difícil construir, mas precisa de mobilização da estrutura. Nossa ideia é fazer com que esses estudantes estejam presentes na entidade. Houve uma manifestação conjunta do Núcleo dos Estudantes Indígenas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) com a UNE pelas bolsas de permanência, que (o presidente da República, Jair) Bolsonaro queria cortar. Conseguimos fazer uma grande mobilização em Brasília e derrubar isso tudo. Agora, fazemos grandes movimentações, junto com FOTOS: DIVULGAÇÃO

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atural da aldeia Pataxó, localizada no sul da Bahia, o estudante universitário Victor Rayhata Pataxó, de 23 anos, chegou onde nenhum outro indígena havia alcançado. Há dois anos, ele é vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) na Bahia, liderando uma organização que historicamente reúne representantes acadêmicos na luta por melhores condições educacionais no Brasil. A trajetória do rapaz com os movimentos sociais se iniciou na aldeia de Coroa Vermelha, em Santa Cruz de Cabrália. Aos sete anos, ele já participava de delegações em manifestações em Brasília (DF). Lá, deu os primeiros passos na militância pelo direito dos povos indígenas à terra, à educação e à saúde, junto com lideranças da comunidade. Nesta entrevista à Revista Soul, Victor Pataxó explica que é o primeiro diretor indígena na entidade estudantil e que a organização se prepara para construir um espaço para esses acadêmicos*. Sua maior meta dentro do movimento é organizá-lo “para que os eixos indígenas e estudantil hajam de forma conjunta”. A UNE, contudo, ainda não tem uma pauta de reivindicações para “os donos da terra”.

principais da gente são as necessidades de se entrar na universidade e de se ter escola dentro de cada aldeia, que ensine a nossa língua (o patxohã), além das línguas ditas obrigatórias.

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cola, pela entrada na universidade e pelas cotas destinadas a indígenas e quilombolas, que dão oportunidade ao nosso povo de entrar na universidade e aprender, com o colonizador, a utilizar as armas que ele usa contra a gente.

permanência dentro das universidades.

“(A educação básica brasileira segue) um modelo da época da ditadura ainda” as organizações indígenas, para que os parlamentares aprovem uma lei que garanta que essa bolsa seja obrigatória e não desampare os estudantes indígenas que necessitam dela para a 42

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Soul: Você convive com dois eixos de tensão na história brasileira: primeiro como indígena, povo que luta desde 1500 pela existência e pelo direito à terra; e segundo como militante estudantil, na luta pela educação. Qual a proximidade entre os movimentos estudantis e indígenas? VICTOR PATAXÓ: São movimentos que se organizam de maneira muito diferente, mas que se conectam, de alguma forma. Até hoje, o movimento indígena é o mais unido de todos, mais blocado, pela forma de luta, e sabe expressar sua opinião de forma conjunta. Já o estudantil é um movimento amplo, que dialoga com diversas faces, com diversas raças, inclusive com o movimento indígena. Os dois movimentos se conectam pela nossa luta pelo ensino, pela es-

Soul: Na UFBA, existem 168 estudantes indígenas matriculados atualmente. Qual é a importância da integração desses discentes com as entidades estudantis? VICTOR PATAXÓ: A entidade estudantil precisa organizar os indígenas que estão dentro da universidade, para reivindicar pautas que nos atingem. Tivemos cortes nos investimentos da universidade e fomos diretamente atacados porque quem sai de suas aldeias para estudar, principalmente na capital, vive através das bolsas, por não conseguir se sustentar de outras formas (longe de casa). As bolsas de permanência garantem que esses estudantes não saiam dos cursos. Minha maior meta é me organizar para que os eixos indígena e estudantil hajam de forma conjunta. Soul:

Como o movimento estudantil é apresentado pelo senhor à comunidade? VICTOR PATAXÓ: Minha primeira responsabilidade foi conseguir entrar para o movimento. A segunda é levar a entidade até a aldeia e trazer também o movimento indígena para dentro do movimento estudantil, para que isso não se distancie. A principal meta agora é continuar levando o movimento estudantil para dentro das aldeias, das comunidades. Em diversas universidades, existem núcleos. Na UFBA, o maior é o Núcleo dos Estudantes Indígenas (NEI), que tem quase 200 integrantes.


Soul: Como vice-presidente de uma entidade estudantil, o senhor precisa estar presente em eventos políticos. O senhor tenta levar sua identidade indígena para esses eventos? VICTOR PATAXÓ: Em todos os espaços onde a gente estiver, a gente demarca espaço, mostra que está ali, reivindicando as nossas lutas principais. Estar ali já é (criar) um espaço de resistência. Por isso, é importante estarmos ocupando espaços como a UNE, a Ubes, enfim... Quem não é visto não é lembrado e, mais do que nunca, precisamos ser lembrados. Soul:

O senhor veio para Salvador a convite da União dos Estudantes Secundaristas e, na capital, ingressou no curso superior.

Como se inseriu no movimento estudantil? VICTOR PATAXÓ: Depois de participar de muitas delegações indígenas em Brasília, conheci o movimento estudantil, a partir de um familiar, que participou de uma Conferência da Juventude. Ele conheceu a União da Juventude Socialista (UJS), entidade da qual faço parte agora e, depois, outras entidades estudantis. Com o tempo, comecei a gostar (do movimento estudantil), criei grêmio na escola e entrei na União Municipal dos Estudantes Secundaristas da cidade (Santa Cruz de Cabrália). Depois, virei vice-presidente da Associação Baiana Estudantil Secundarista (Abes) e, daí, surgiu o convite de vir para Salvador. Vim parar

“Estamos construindo um espaço de estudantes indígenas dentro da UNE” a capital e foi muito difícil, mas necessária, a adaptação, porque este é o centro político do Estado.

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FOTO: ELORÁ SANTOS

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FOTO: YASMIN AGUIRRE

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FOTO: ELORÁ SANTOS

FOTO: KLEITON OLIVEIRA

FOTO: YASMIN AGUIRRE

ENSAIO FOTOGRÁFICO

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FOTO: TAINA REIS

FOTO: GABRIEL RODRIGUES

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FOTO: YASMIN AGUIRRE

FOTO: MARIA VITÓRIA

FOTO: TAINA REIS


ELAS NO HIP HOP

Mulher conquista espaço no hip hop

Eventos são abertos à participação feminina, mas garotas ainda sofrem preconceito

POR YASMIN AGUIRRE EDITADO POR LARISSA FARIA

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s batalhas de rap, o som dos DJs, as rodas de break e as sessões de grafite de Salvador (BA) já não são “coisa de menino”. Aos poucos, a cultura hip hop deixa de ser uma manifestação artística e política iminentemente masculina. Jovens mulheres rompem as barreiras constituídas historicamente e transformam, cada vez mais, o hip hop em um espaço de empoderamento feminino. Organizadas em coletivos, as garotas fazem arte com uma dimensão política – o que fortalece os laços identitários de jovens afrodescendentes – e apoiam os artistas na militância. Em entrevista à Revista Soul, a Representante da Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop Bahia e colaboradora do site de jornalismo cultural especializado Rap Zeroseteum (https://www.rapzeroseteum.com/), Hillary Fonseca, 22 anos, discute como a participação das mulheres é fundamental para a consolidação dessa cultura na capital baiana.

Soul:

Como você observa a aceitação da mulher no movimento hip hop? HILLARY FONSECA: A mulher vem desconstruindo o pensamento de que ela é apenas coadjuvante ou apenas companheira de alguém da cultura. Em muitos espaços, identificamos uma dificuldade em nos encarar como atrações principais, o que acaba nos colocando apenas como parte de uma cota, mas, aos poucos, as mulheres vêm se articulando para reforçar o seu papel e sua importância no cenário cultural e ocupando espaços de produtoras, organizadoras e áreas afins para se impor.

Soul:

As mulheres ainda são pouco valorizadas por empresários e produtores? HILLARY FONSECA: Hoje em dia, temos algumas mulheres que já começam a ter um pouco de destaque, mas, ainda assim, somos (convidadas para cobrir) a cota nos eventos. Muitas vezes, os produtores querem pagar menos nos cachês, pelo fato de sermos mulheres. Às vezes, passam até a impressão de que estão fazendo o favor em contratar mulheres.

Soul: Ainda existe o pensamento arcaico de que somente o homem pode participar do movi-

mento ou você percebe uma visão diferente nessa nova geração? HILLARY FONSECA: Antes, as mulheres precisavam se vestir igual aos homens, ter um jeito masculinizado, para serem aceitas por eles e terem “lugar de fala” dentro do movimento. Hoje, em Salvador, há um número crescente de mulheres que estão participando ativamente da cultura do hip hop, como MCs, Bgirls, Djs e grafiteiras. Além disso, há vários grupos feministas, como o Coletivo Arminina, em que mulheres, ligadas a vários elementos (rap, DJ, break, grafite) se reúnem para produzir rodas de conversa, eventos, oficinas para mulheres.

Soul:

O rap é uma das principais expressões da cultura hip hop, com forte abordagem de temas políticos desde seu surgimento, nos anos 1970, no subúrbio de Nova Iorque (EUA). A senhora acha que o gênero ajuda no empoderamento feminino? HILLARY FONSECA: Sim, porque ele é um movimento de militância, de luta por direitos. É um movimento que surgiu para mostrar as mazelas da sociedade, o preconceito que a população preta e pobre sofre, e isso caminha junto ao que as mulheres querem. Esse é um espaço pra expor nossos questionamentos, um espaço de conscientização e demonstração de que a mulher tem muito para transmitir.

Soul: As rimas que as mulheres

trazem nas músicas são diferentes das rimas masculinas? HILLARY FONSECA: Sim. Porque nós trazemos o olhar e a vivência feminina diante da sociedade. Nossos questionamentos, mesmo sendo voltados pra mesma questão, acabam tendo um diferencial em relação a como somos vistas e encaradas pela sociedade, além de trazermos temáticas que só são vivenciadas pelas mulheres.

“(O rap) é um movimento que surgiu para mostrar as mazelas da sociedade, o preconceito que a população preta e pobre sofre, e isso caminha junto ao que as mulheres querem. Esse é um espaço pra expor nossos questionamentos, um espaço de conscientização e demonstração de que a mulher tem muito para transmitir.” DEZEMBRO 2020

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ARCO-ÍRIS SERTANEJO

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Artista, educador e paraíba bixa, sim, Sinhô!

Baiano rompe estereótipos com mistura de elementos da chamada cultura sertaneja e do mundo LGBTQIA+

POR VIOLETA CONCEIÇÃO EDITADO POR MARIA MELO

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iago Cerqueira Batista, ou simplesmente Hiago Cerbat é um artista irará-feirense, nascido em Feira de Santana, mas com alma iraraense. Com um sotaque nordestino aprumado, ele carrega na veia uma bagagem artística e didática herdada da família, quase inteiramente composta por profissionais da área de educação e liderada por patriarcas afinados com a música, e trilha carreira buscando conciliar arte e educação. Com graduação em Artes, ele hoje é professor, mas nunca abandonou a produção artística. O jovem licenciado possui projetos de ilustração, teatro e canto e inova nas artes plásticas, ao espalhar pelo mundo desenhos que juntam elementos culturais do Sertão e do universo LGBTQIA+. Com seus traços, rompe com estereótipos e faz ativismo. Não vamos revelar muito mais neste texto. Se aprochegue e venha conferir a entrevista com Hiago.

ILUSTRAÇÕES: HIAGO CERBAT

Soul: Muitos

dos seus desenhos têm uma pegada gay nordestina. Outros trazem sentimentalismo. Todos são referenciados com uma ação cotidiana e/ou ao ativismo LGBTQIA+. Qual é a sua inspiração? HIAGO CERBAT: Eu sempre vou tentar trazer, nos meus desenhos, uma perspectiva da comunidade. Minha inspiração é sempre produzir personagens com estereótipos gays. Na maioria das vezes, tento pegar personagens que não são gays, como Tempestade (X-man – Marvel Comics) e Batman (DC Comics), e dar esse aspecto a eles. Para fazer essa inclusão, pego obras de outros artistas e faço releitura ou me inspiro em letras de artistas LGBTs (para criar). Te-

nho Theo-Hoxessualien e Cabra Macho, que, primeiro, foram ilustrações e, depois, ganharam vida. Tenho uma porção de O.C., que são esses personagens criados pela gente. Quando eu resolvo fazer desenhos que fogem desse padrão, uso (como referências) sempre artistas que comungam desse universo.

Soul: Em seu Instagram de trabalho, há ilustrações de sua autoria e peças com sua principal personagem, o Cabra Macho. Quem é ele? HIAGO CERBAT: Criei esse personagem justamente pensando em compilar esse arcabouço da cultura nordestina – à qual eu queria dar uma visibilidade ainda maior – com a perspectiva LGBTQIA+. Criei o Cabra Macho,

que leva em suas músicas uma conotação divertida e vai estar justamente falando do universo da comunidade LGBTQIA+ e do cenário nordestino.

Soul: A gente observa que o Cabra Macho foge do modelo corriqueiro de drag queen. Essa personalidade forte, presente nessa personagem, vem de alguma inspiração especial ou do estereótipo regionalista de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte?” HIAGO CERBAT: Quando pensei em fazer esse projeto (com tema LGBTQIA+), fiquei com medo de criar algo e ficar sendo só mais um nesse espaço. Um dia, assisti uma reportagem sobre uma drag queen feita por uma mulher e achei incrível. Entendi naquele momento que, para fazer uma, não basta você se vestir de mulher, mas, sim, criar um personagem para passar uma mensagem. Passei a pensar que, no espaço onde eu vivo, no interior da Bahia, tem uma regionalidade forte nordestina presente. O gay do interior diverge muito da visão que se tem do homem interiorano, de cabra macho, de homem viril, de homem másculo, e o homossexual não pode ter essa aparência de sertanejo ou de vaqueiro. Então, comecei a querer quebrar esse DEZEMBRO 2020

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paradigma. Falei comigo mesmo: “Vou criar um personagem que traga essa característica do homem nordestino, do homem viril, do homem sertanejo, mas que ele seja gay”.

Soul: Qual

foi a sua intenção ao criar essa personagem? HIAGO CERBAT: O Cabra Macho surgiu nessa intenção de mostrar às pessoas que o homossexual pode ocupar o espaço que ele quiser e que não precisa abdicar da sua cultura, uma cultura tão rica, uma cultura tão maravilhosa, que é a cultura nordestina, para se entender gay.

Soul: A arte pode instigar a discus-

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HIAGO CERBAT no Instagram: “Hoje eu venho com essa perfeição, inspirado nos desenhos de minha amiga @egotizar, espero que g…

Foto hcerbat • Seguindo Irará, Bahia, Brazil

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https://www.instagram.com/p/B4d0Ad9hasW/?utm_source=ig_web_copy_link

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são social, levando em conta a luta pelas minorias sociais (LGBTQIA+, negros, pobres etc.)? HIAGO CERBAT: Quando eu comecei a estudar arte, cientificamente falando, percebi que aquilo podia ser muito mais que um espaço de entretenimento. Existiam discursos, existiam diálogos, existia um meio de comunicação muito maior do que se imagina, nas artes. Sempre gostei de pensar nessa perspectiva de construção social. Tentei buscar – e tento até hoje –, tanto nas minhas produções quanto nas produções que eu aprecio, mensagens que falem pelos grupos periféricos, LGBTs, negros, pobres e nordestinos. Quem está nessa área tem esse dever social de usar aquilo que é um dom, que aperfeiçoou durante a sua vida, de uma forma que não seja simplesmente para entreter. Você precisa levar uma mensagem por trás disso tudo.

Soul: O senhor acredita no poten-

cial da arte como estímulo ao debate e à mobilização, mas o Brasil vive um período de redução dos incentivos a projetos de cultura e artes e de exclusão da disciplina Educação Artística do currículo escolar obrigatório no Ensino Médio. Como você analisa, como artista e professor, este cenário atual? HIAGO CERBAT: Continuamos lu50

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tando pela não retirada da Arte do currículo da Educação Básica. O projeto da retirada fortalece a segregação social, visto que não afeta a todos. A rede (de ensino) particular, por exemplo, vai continuar oferecendo a disciplina. (A retirada) priva o aluno do contato com o processo de construção social histórica que vai se definir, principalmente, através da produção artística. Então, se o aluno não tem acesso a isso, acaba tendo um déficit, principalmente quando ele estiver no processo competitivo de mercado.

ideia aqui e ela vai sendo passada pelos seus alunos. Isso é maravilhoso e eu não me vejo não sendo professor.

Soul:

gistério sempre foi a de artes? HIAGO CERBAT: Cheguei a entrar na universidade cursando Química, mas a veia artística falou mais alto, com o passar do tempo. Quis fazer arte, principalmente porque me identificava demais com tudo que a envolvia. No canto, na dança, no desenho... eu queria estar envolto por 01/12/2020 HIAGO CERBAT no Instagram: “Se avexe não!!!” tudo isso nas escolas, em eventos culturais. Sentia que queria Foto trabalhar naquilo, então segui a hcerbat • Seguindo

Como a postura do atual governo pode influenciar no processo de formação e atuação profissional no mercado cultural? HIAGO CERBAT: As propostas do governo são muito na perspectiva fascista, ditadora e de promoção da ideia de censura, porque a arte, de uma forma geral, está aí para trazer discussões ao público e levar as pessoas a pensar. Quando você começa a fazer as pessoas compreenderem, de uma forma descontraída, o cenário político, seja por uma novela, uma piada, uma charge, você fala para uma massa maior. Então, o governo vai se preocupar muito em censurar e a censura parte daí, cortando apresentações, cortando charges, cortando tudo que vá contra seu discurso. É uma falta de respeito com os artistas, com essa gente que já não tem uma segurança de trabalho e na sua construção profissional, e que agora está ao “deus dará”, agindo por eles mesmos.

Soul: Por que resolveu ser professor, quando já tinha uma carreira como artista? HIAGO CERBAT: Ser professor foi uma consequência do estudo de artes. O mercado, para a gente que é artista, é muito cruel. Como minha família é toda composta por professores, acabei entrando nesse meio também. Soul: Sua área de atuação no ma-

Irará, Bahia, Brazil

formação nessa área. Na minha família, há algumas pessoas que têm uma veia artística. Meu avô é cantor e meu pai também cantava. Tive várias influências, mas acho que vim mesmo fazer a diferença na família.

“O Cabra Macho (...) mostra às pessoas que o homossexual pode ocupar o espaço que ele quiser e (...) não precisa abdicar da sua cultura”

Soul: Como o sr. lida com o ensino das artes? HIAGO CERBAT: Meu papel na sala de aula é exatamente o de mostrar para meus alunos a importância da arte na vida deles e na vida social das pessoas. Busco sempre trazer para meu trabalho essa perspectiva de transformar a visão das pessoas. É um processo de formiguinha, porque você consegue discutir essa 9

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JOGO SUJO

Preconceito dentro da tela Mulheres sofrem ataques machistas em jogos on-line

POR VIOLETA CONCEIÇÃO EDITADO POR YASMIN AGUIRRE

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ma partida clássica do jogo MOBA on-line : League of Legends. Um nick genérico, sem identificação de gênero, é utilizado pela jogadora. A disputa começa! A gamer escolhe uma “campeã suporte” e prepara-se para iniciar o combate, quando é interrompida, aos gritos, pelo seu colega de equipe: – Só pode ser mulher! Mulher só sabe jogar de suporte. Mulher nenhuma sabe escolher nada, a não ser a roupa que usa para sair com o homem, grita o oponente da jovem gamer. Sem acreditar no que ouvia, a player abandona a partida. No ano anterior, em 16 de abril de 2019, um grupo russo sagrou-se como a primeira equipe feminina a disputar o mundial do game League of Legends. O clima é de comemoração, mas a Vaevictis foi vítima de machismo, durante a League of Legends Continental League (LCL), promovida pela Riot Games. A adversária, a Rex, formada somente por homens, baniu os principais suportes do game, reforçando o discurso misógino de que as mulheres sozinhas não causam danos. A jogada facilita a permanência da rival. Os dois episódios são corriqueiros no cotidiano de quem participa de games on-line. Todos os dias, garotas, de todas as idades, são vítimas de atos machistas, são discriminadas e são até mesmo assediadas nas competições. A Pesquisa Games Brasil – encomendada pela Sioux Agência de Tecnologia Interativa, pela Blend New Research, pelo Núcleo de Estudo de Negócio e Marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing e pelo GO Gamers – indica a predominância de mulheres no mundo dos videogames em 2019 (53,6% do universo de jogadores), mas elas ainda são o principal alvo de sexismo e cyberbulling. Um estudo mais antigo, publicado pela Universidade

de Ohio em 2016, revela que 100% das mulheres que jogam por pelo menos 22 horas semanais já sofreram algum tipo de assédio. Ambas as situações estão correlacionadas e têm um mesmo determinante: o machismo estrutural, que corrompe e desestrutura as relações femininas nos âmbitos social, político e cultural. Devido ao machismo, mulheres são silenciadas pelo gênero, têm suas habilidades menosprezadas e são depreciadas quando desempenham funções majoritariamente exercidas por homens, mesmo que demonstrem competência para isso. O que ainda as fazem continuar? A esperança de mudança. No universo dos games, crescem as equipes compostas só por mulheres e surgem coletivos de proteção de players, como o “MyGameMyName”. As iniciativas impulsionam as meninas para que ocupem espaço em eventos e competições, motivando-as a não calarem mais suas vozes. Afinal, lugar da mulher é em FPS, em MOBA, em RPG, em Plataforma, em todos os estilos. Lugar de mulher é onde ela quiser, seja ajudando o time como suporte, eliminando com o dano do seu ADC, pokeando com um mago ou, até mesmo, protegendo seu time com um Tank. E, então, vamos jogar?

“Devido ao machismo, mulheres são silenciadas pelo gênero, têm suas habilidades menosprezadas e são depreciadas quando desempenham funções majoritariamente exercidas por homens, mesmo que demonstrem competência para isto. O que ainda as fazem continuar? A esperança de mudança.”

FIQUE SABENDO ADC: Herói do jogo FPS: Jogos de tiros GAMER: Jogador MOBA: Arena de batalha para jogadores on-line (Multiplayer Online Battle Arena) PLAYER: Jogador POKEANDO: Atacando o adversário constantemente NICK: Pseudônimo RPG: Jogos com personagens imaginários (Role-playing game) Tank: Campeão que suporta bastante dano DEZEMBRO 2020

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