Revista Soul #7 - junho de 2019

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Soul GÊNERO E DIVERSIDADE Ano 04, Edição 07, Junho de 2019

EVA SATTIVA

Jeito Queen de ser mulher

COISA DE LOUCO? Choques e internação voltam à pauta DIREITOS DOS ANIMAIS Agronegócio, religião, ciência e polêmica MORAL E SEXUAL Assédio, o tormento das mulheres CHEIOS DE VIDA Depois dos 80, tem mais!

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R i t Soul Revista S l - Projeto P j t interdisciplinar i t di i produzido pelos alunos do curso de Jornalismo da Faculdade Social da Bahia (FSBA), Salvador/BA, nas disciplinas de Redação Jornalística III, Edição Jornalística, Radiojornalismo e Telejornalismo.

Coordenação do curso de Jornalismo: Bárbara Souza Edição geral: Elisangela Sandes Edição de texto: Bárbara Souza, Bruna Amorim, Fábio Passos, Gabriel Rodrigues, Joice Antero, Laila Miranda, Luan Borges e Mônica Celestino Edição de arte: Elisangela Sandes Revisão: Adriana Telles e Bárbara Souza Projeto gráfico: Elisangela Sandes Diagramação: Elisangela Sandes e Gabriel Rodrigues TEXTOS: Ailton Minaj, Bárbara Souza, Caio Cardoso, Fernanda Costa, Gabriel Rodrigues, Juliana Passos, Luan Borges, Matheus Santana, Tailana Cruz, Tainá Reis. ROTEIRO E EDIÇÃO DE VÍDEO: Fabiano Gil EDITORIAL: Gabriel Rodrigues CAPA: Elisangela Sandes FOTOGRAFIA DE CAPA: Fernanda Costa FOTOS E ILUSTRAÇÕES: Caio Cardoso, Fernanda Costa, Gabriel Rodrigues, Tadeu Rezedá, Freepik e Unsplash

Faculdade Social da Bahia – FSBA. Av. Oceânica, 2717, Ondina, Salvador – BA CEP 40170-010. www.fsba.edu.br (71) 4009-2840 Diretora: Rita Margareth Passos Vice-diretor: Fernando Miranda Coordenadora Acadêmica: Clarice Pires

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 1

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 2

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 3

(JUNHO – 2016) Empoderamento feminino, a doença do preconceito (‘que dizima também quem paga o dízimo’) e combate ao feminicídio foram os temas de destaque na Capa da 1ª edição da Revista Soul, que materializou o projeto editorial proposto e concebido por estudantes do 5º semestre do curso de Jornalismo. A edição inaugural tratou de temas que só há pouco tempo passaram a ser abordados pela mídia sob o enfoque dos direitos humanos e respeito à diversidade. Um enfoque que se empenha em deixar de lado o olhar que reforça o estigma social e patologização das questões de gênero e diversidade – ou ao menos se empenha em fazê-lo. Cultura, religiosidade, serviço, curiosidades: a diversidade temática foi a marca da edição nº 1 da revista. Ah, sim: teve gorda na Soul e terá sempre! Como sempre terá magros(as), homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transgêneros, jovens, idosos (as), gente.

(NOVEMBRO – 2016) A 2ª edição da Soul fez jus à temática que ancora editorialmente a publicação: diversidade e gênero. Foram várias as vozes ouvidas e os posicionamentos apresentados. A principal chamada de Capa foi a entrevista com o editor-chefe do canal LGBT do jornal Correio, líder na Bahia, o jornalista Jorge Gauthier. Cultura indígena, história de luta das mulheres por direitos, inclusão de pessoas com deficiência auditiva e combate à violência doméstica também estão entre os temas das matérias da edição nº 2. A Soul reuniu diversos gêneros jornalísticos: reportagens, uma entrevista pingue-pongue com o deputado federal Jean Wyllys e dois artigos: um do estudante de Jornalismo Théo Meirelles, da FSBA, sobre ‘Transexualidade e mídia’, e outro, da advogada e professora Natália Silveira, que integra o corpo docente da FSBA e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), da Ufba.

(JUNHO – 2017) Muito além do arco-íris. A terceira edição da revista Soul publicou uma reportagem sobre 56 identidades de gênero. Isso mesmo: cinquenta e seis. A relação das crianças com a diferença – e os cuidados para que o preconceito de adultos não seja incutido nas mentes abertas dos pequenos – crossdressing e alternativas de mobilidade urbana integraram a edição nº3 da Soul. A publicação trouxe ainda uma reportagem sobre como a indigesta proposta de reforma previdenciária do governo Temer afeta, particularmente, as mulheres. Outra matéria conta um pouco da história e trajetória de Rico Dalassam, um dos expoentes da nova geração do rap brasileiro e o primeiro rapper assumidamente gay do país. E mais: uma entrevista exclusiva com Russo Passapusso, cantor da premiada Baiana System, que rejeita a classificação de ‘música alternativa’ para a banda.

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REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 4

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 5

REVISTA SOUL – EDIÇÃO Nº 6

(NOVEMBRO – 2017) Uma Igreja que segue as Sagradas Escrituras, acredita na Santíssima Trindade e ordena homossexuais “declarados” como líderes religiosos. O respeito à diversidade foi um dos temas da entrevista exclusiva com o reverendo Bruno Almeida, da Igreja Anglicana da Bahia, publicada na edição nº 4 da Soul. A reportagem conversou também com o professor Leandro Colling, coordenador do grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), sobre a reserva de vagas para travestis, transexuais e transgêneros nos cursos de mestrado e doutorado da UFBA, iniciativa inédita na história do ensino brasileiro. Também foi pauta a depressão entre LGBTs, um dos grupos mais vulneráveis à enfermidade. A quarta edição da Soul trouxe ainda uma reportagem sobre como as brincadeiras de infância podem contribuir para a criação de estereótipos e preconceitos. “Todo mundo quer saber com quem você se deita”, diz a canção. Será que Freud explica? O artigo do professor Luiz Lopes, coordenador do curso de Psicologia da FSBA, aborda essa questão.

(JUNHO – 2018) Da primeira à última página, entrevistadores e entrevistados, repórteres e personagens, fotografados e fotógrafos, articulistas: todos(as) negros(as). Ou melhor, quase todos(as), porque diversidade não combina com segregação. Com o tema “Negro (a) é Poder”, a edição especial intitulada Soul Black reverenciou a negritude. O protagonismo negro norteou a edição que incorporou conteúdo audiovisual: o Programa Soul Black pôs em tela um debate entre os jornalistas Eduardo Machado, Juliana Dias e Tairine Ceuta. Papo reto e esclarecedor sobre o racismo e suas faces perversas. A Soul Black contemplou ainda um ensaio fotográfico produzido e protagonizado por alunos do curso de Jornalismo, negros, e as belas imagens registradas pela lente do jornalista e escritor Tom Correia, captando a invisibilidade dos negros em Lisboa. Mais: entrevistas com Wanda Chase, Nara Santos, coautora do livro “É a minha cara” – que conta a história dos 30 anos da “Cia Baiana de Patifaria”, e Gil Santos, repórter do jornal Correio. Todos jornalistas. Todos negros. Todos na Soul Black.

(DEZEMBRO – 2018) Na 6ª edição foram abordados temas e fatos muito caros à proposta editorial da revista: informar e contar histórias de pessoas cuja vida é dificultada ou mesmo ceifada pela intolerância e ódio que espancam e matam. São histórias como a dos artifícios do racismo religioso, que se disfarça de defensor dos animais, mas adora um churrasco, até considerações sobre a diversidade étnica, cultural, de gênero, de credo.. A SOUL também mostrou o descaso do Poder Público, mesmo quando é sua responsabilidade prover as condições e assegurar a vida de quem tem o direito, por lei, de interromper a gravidez. “Segundo o Ministério da Saúde, apenas 65 hospitais realizam o procedimento de aborto legal no País. O estado de Roraima tem a maior taxa de estupros por cada cem mil habitantes, mas não conta com nenhum centro especializado autorizado a realizar o procedimento.” Assuntos que ainda pautam julgamentos no STF, a exemplo da descriminalização do aborto e o sacrifício de animais em cultos religiosos, este último considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em março de 2019. JUNHO 2019

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Editorial

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á muito tempo se discute sobre a legitimidade do sacrifício de animais em rituais religiosos no Brasil. E ainda que o direito ao culto e à religião seja garantido pelo Artigo 5º da Constituição Federal Brasileira, que versa sobre a liberdade de crenças, entre outros pontos, as religiões, mais expressivamente as de matriz africana, são alvos constantes de críticas e ataques por esta prática ancestral. O debate sobre o Direito Animal, que não se pauta em fundamentações religiosas, é incorporado por pessoas contrárias ao ato e favoráveis a possíveis punições aos praticantes, buscando a deslegitimação da fé, o que na prática configura uma violência simbólica – e tantas vezes física – contra as crenças individuais. A atitude se ancora em leis que preveem punições para quem comete algum tipo de maltrato aos bichos, mas ganha ainda mais tensão ao se dirigir a candomblecistas e umbandistas. Esse fator pode ser responsável pelo aumento no número de casos de repressão religiosa nos últimos anos no País. Segundo o Ministério Público da Bahia (MP-BA), em 2018, foram registradas 144 denúncias dessa natureza. Sem informações gerais sobre o estado, o órgão indica dados correspondentes apenas aos processos instaurados em Salvador. O número chega a ser 12 vezes maior que o registrado em 2015. Até maio deste ano, foram contabilizados 67 ocorrências de intolerância religiosa na capital baiana. Atualmente os ataques vêm se configurando de diversas formas, desde as agressões diretas ao indi-

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víduo, verbais e físicas, em espaços públicos, até a destruição dos templos e terreiros onde acontecem os cultos. Além disso, na esfera digital, no ambiente das redes sociais, a discriminação se potencializa por atingir um público amplo e difuso, e o pior: a responsabilização judicial, por conta do dano moral à religiosidade, fica ainda mais difícil. Isso porque, geralmente, os agressores utilizam perfis falsos para disseminar fakes news (conteúdos falsos) e comentários discriminatórios. A intolerância religiosa é uma das grandes questões do século que precisam de resolução. No entanto, com as investidas do novo governo – na máxima do conservadorismo e na ideia de universalidade dos dogmas cristãos _, o respeito ao pluralismo religioso está mais ameaçado. Em janeiro deste ano, por exemplo, um terreiro de candomblé em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, foi invadido por homens armados e o pai de santo da casa recebeu diversos golpes de coronhada no rosto, um caso grave de discriminação, que entra para as estatísticas de crimes contra a liberdade individual. Em contrapartida, neste ano o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, reconhecer a constitucionalidade da lei gaúcha (nº 12.131/2004) que permite a prática com animais em rituais religiosos. O Recurso Extraordinário (RE) 494601, que tinha como objetivo a proibição do culto apenas nas religiões de matriz africana, abriu margem para diversos debates e manifestações em todo o País. E apesar dos muitos discursos de ódio, houve também

mobilizações nacionais contra o embargo. A solicitação apresentada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) violenta e confronta diretamente os direitos dos candomblecistas e umbandistas, ignora atividades ritualísticas e culturais com animais em outras perspectivas de expressão da fé, e reflete um Brasil sem memória histórica. Neste sentido, o respeito à diversidade, que nós, brasileiros, temos orgulho em propagar, é uma ideia que não se sustenta. Afinal, a intolerância religiosa e a discriminação das diferenças têm pautado ações de instituições do Poder Público, e qualquer ação que viole, de algum modo, o direito à liberdade, às crenças e à prática religiosa do indivíduo, se anuncia como mais um retrocesso.


VIDA ATIVA

IMPORTUNADAS

TRANSFORMAÇÃO

...el@s também. Nova vida aos 80!

Tormento delas no trabalho

Tainá Reis

Matheus Santana e Luan Borges

Cachos que transformam histórias

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Tailana Cruz

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SEM LIMITES

SOCIEDADE

ARTE

Vitórias e saúde Fernanda Costa e Gabriel Rodrigues

Reforma Psiquiátrica ameaçada

O lado preto da história

Gabriel Rodrigues

Gabriel Rodrigues

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Bullying: Precisamos falar sobre isso Juliana Passos ARTE E MILITÂNCIA

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ENSAIO

Eva Sattiva: feminismo Queen

São Joaquim, mosaico de vidas

Ailton Minaj

Caio Cardoso e Gabriel Rodrigues

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CRÔNICA

Crônica de uma morte justificada O filósofo camaronês Achille Mbembe ajuda, em seu ensaio Necropolítica, a entender como as mortes podem ser politicamente justificadas TEXTO: CAIO CARDOSO

o dia 7 de abril de 2019, dez militares do Exército Brasileiro dispararam 80 vezes em direção a um veículo no bairro de Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro. No carro, o músico Evaldo Rosa dos Santos e sua família (link1). Ao longo de seis dias, o Presidente da República, Jair Bolsonaro – ele mesmo um militar reformado do Exército e líder do governo com mais militares em cargos de alto escalão desde a redemocratização, em 1985 – não se pronunciou sobre o caso. Quase uma semana depois, afirmou que “o Exército não matou ninguém” e que as responsabilidades deveriam ser apuradas individualmente, para punições igualmente individuais (link 2). Um conjunto de “casos isolados” de militares confundindo guarda-chuva com fuzil (link 3), furadeira com arma de fogo (link 4), celular com arma de fogo (link 5) demonstram o exercício do poder por meio daquilo que o filósofo camaronês Achille Mbembe chama de “Necropolítica”, em um texto de 2003. Publicado no Brasil em 2016 na Revista Arte & Ensaios (Link 6), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o ensaio fala sobre o real exercício do poder: a capacidade de decidir, definir, quem pode e quem não pode estar vivo. Ou seja, o real

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exercício do poder está na capacidade de fazer morrer, deixar viver ou expor à morte, bem como deliberar como estes processos de execução acontecem. E esse exercício é baseado, no dia a dia, nos propósitos morais e políticos do combate ao tráfico de drogas, do combate ao crime organizado e da defesa de uma segurança pública efetiva. Nessas frentes, há uma justificativa para o exercício deste “necropoder” em sentido tático e implícito, já que os corpos que serão identificados e marcados para morrer estão concentrados em “lugares suspeitos”, com “atitudes suspeitas” ou possuindo “aparência suspeita”. Em si, a compreensão destes termos já traz outro corpo, uma atitude ou uma aparência que não desperta suspeitas, tal como determinação judicial na qual a juíza argumenta que o suspeito “não possui o estereótipo padrão de bandido” (link 7).

O INIMIGO A SER ELIMINADO

A partir das premissas de Mbembe, vemos que o direito de decidir sobre a vida do outro se articula com princípios de Estado de exceção e uma forma de identificação e ficcionalização de um inimigo em comum, real ou imaginário. São os comunis-

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LINK 7 LINK 4

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tas, o outro lado da disputa política, o político corrupto, que justificam as nossas narrativas sobre o direito de matar, oficializando a ideia da política como uma guerra. Num cenário de guerra, o outro lado não é adversário, não tem legitimidade, não tem direito a defender o seu ponto de vista; ele deve ser interditado e eliminado. O que vem junto deste ideal é a perpetuação da ideia de que vidas já estão marcadas para serem expostas à morte ou diretamente executadas. A tradução destes aspectos aparece quando pensamos em comunidades como negros (link8) (Link 9), mulheres (link10), LGBTQ+ (link 11), pessoas pobres (link 12) ou que professem religiões não-cristãs (link 13), todos expostos diariamente a um risco eminente e oficial. Aqueles que ocupam esferas de poder e traçam políticas públicas os veem como inimigos, como uma ameaça a valores ou práticas pessoais. O ministro da Justiça, Sergio Moro, afirmou, em entrevista ao jornalista Pedro Bial, em Conversa com Bial (TV Globo), que o caso do músico Evaldo Rosa foi um lamentável incidente, mas que “é algo que pode acontecer” (link 14). O uso do

verbo “poder” nesta situação demonstra mais do pensamento sobre a necropolítica do que o ministro buscava dizer. Além de pensar este “pode acontecer” pela esfera do possível, também há um sentido de autorização, de permissão, para que um veículo “suspeito” receba 80 tiros. A morte é lida como dano colateral, uma falha pequena na finalidade maior de proteção dos cidadãos. No caso de um cidadão morto em um assalto na Lagoa Rodrigo de Freitas (link 15), em área nobre do Rio, houve uma discussão nacional em torno da necessidade da redução da maioridade penal (Link 16) como forma de enfrentamento à violência (link17). Quando observamos casos como a morte do jovem Geovane Santana Mascarenhas (link 18), alvo de policiais em Salvador, ou da chacina do Cabula (link19), também na capital baiana, a ausência de uma discussão ampla e de uma resposta institucional rápida(Link 20) evidencia a importância dada a algumas existências. O “necropoder” faz referências frequentes à exceção do momento, à urgência da ação e à imagem do inimigo. Há uma proposta de institucionalização deste tipo de

medida em projeto do ministro Moro (Link 21). A “necropolítica” pode ser vista como uma relação entre política e morte em sociedades em constante estado de urgência, separando as vidas que devem cuidadas, protegidas, multiplicadas, das vidas que serão expostas à morte. Essas são o inimigo que ameaça a coesão da sociedade, da família, fazem parte do grupo que é eliminado em uma guerra que escolhe seus inimigos. É um jogo econômico de distribuição de morte e de prisão, capaz de localizar, identificar, controlar e destruir os corpos nos quais essa vida se exerce.

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VIDA ATIVA “VELHO É O MUNDO”

Idosos buscam vida produtiva depois dos 80 anos Aumento da população idosa traz a necessidade de se repensar a velhice

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nnette Bernardes, de 81 anos, Manoel Costa, 86, Erimita Cunha, 81, e Jam Lacrevz, 84, são amigos de longa data, atuaram juntos em movimentos sociais e grupos de defesa de minorias sociais e têm uma visão da velhice diferente daquela reproduzida em reuniões de famílias conservadoras, nos setores produtivos da economia, na mídia. Todos apostam na vida ativa (e produtiva) depois dos 80. “(Quando chega a velhice), uma possibilidade é parar. A outra é perceber todas as oportunidades e fazer alguma coisa. Eu optei pela segunda: assumir a vida e o que ela oferece. Tem criação a cada dia, cada hora, em cada lugar e com cada pessoa”, posiciona-se o francês Jam, que, desde 2003, se dedica a buscar produtores e ajudar no cultivo do marmelo no Brasil. “É bonito saber que, dentro dos meus limites, posso continuar fazendo o que eu gosto, as atividades que me dão prazer”. O mais velho do grupo, o português Manoel, vive num corre-corre. Além de atuar em um movimento de auxílio a pessoas de baixa renda ou sem renda, ele começou a estudar espanhol, está aprendendo a tocar pandeiro, faz parte de um coral e está escrevendo um livro. Nem todo jovem é páreo para ele. “Busco me manter ativo e ser um eterno aprendiz de tudo que me interesse”, ensina.

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Manoel, Jam e as amigas identificam diferenças na força, na agilidade física e de raciocínio, na disposição, mas deixam claro que nem sempre o envelhecimento incapacita, provoca o adoecimento, gera dependência de terceiros. O quarteto opõe-se à ideia hegemônica que associa velhice à incapacidade e ao ostracismo. O desconhecimento sobre o processo de envelhecimento é um traço cultural e recorrente que faz com que a terceira e a quarta idades sejam sempre relacionadas à decrepitude, embora existam idosos que vivem bem, sem sinais significativos de senilidade. “Vivemos em um País capitalista, onde se valoriza a produtividade. Essa estigmatização so-

cial limitante coloca o idoso em um lugar improdutivo”, explica a psicóloga Ita Silva Freitas Ribeiro, especialista no atendimento a pessoas idosas.

PREJUÍZOS

A imagem generalizante e distorcida estigmatiza, desestimula e até adoece. De acordo com Ita Ribeiro, é comum que idosos não consigam lidar bem


com o envelhecimento e apre- NOVO OLHAR sentem quadros de depressão, É importante reconhecer a ansiedade e doenças cardiovas- velhice como parte do ciclo da culares por estresse e falta de vida, valorizar as habilidades atividade física. Os exemplos do idoso, e promover o ensão muitos. velhecimento saudável e com Há consequências também qualidade de vida. A interapara a economia. Ao isolar o ção social, em conjunto com idoso, perde-se uma mão de a prática de atividades físicas, obra experiente e ainda capaz estimula o corpo e a mente. de gerar receita, renda e rique- Marcar de sair com os amigos, encontrar a vizizas. O quanha ou a família dro preocupa, ou ainda passear principalmenno shopping pote quando se dem ser associaconsidera a dos ao exercício tendência de físico.“Somente crescimento o exercício físico da população não dá conta da desta faixa etáinteração social ria. A revisão necessária para da Projeção de os idosos”, exPopulação do plica o bacharel Instituto Braem Educação Físileiro de Gesica André Calaografia e Estazans. tística (IBGE), Quem procura lançada no fazer atividades, ano passado, em geral, segue aponta que, diz Jam Lacrevz apenas uma inaté 2060, o vodicação médilume de pessoas com mais de 65 anos deve, ca. E enfrenta muitos desafios, ao menos, dobrar de tamanho. precisando inclusive superar o Elas serão 25,5% do total de preconceito por parte de profissionais da área de Educação 228,3 milhões de brasileiros. Ou seja, para crescer, o País Física. “Muitas vezes, os idoprecisa repensar sua relação sos começam e não ficam mais com as forças ativas de traba- de três meses, porque não se lho, conforme destaca análi- sentem assistidos corretamense de Ana Amélia Camarano, te. Por isso, é comum procupesquisadora do Instituto de rarem grupos com pessoas que Pesquisa Econômica Aplicada tenham a mesma idade, de pi(Ipea) especializada em estudos lates e hidroginástica, para não populacionais e envelhecimen- se sentirem inferiores ou um to e coordenadora de Estudos e fardo”, relata. Em meio à rotina cheia de Pesquisas de Igualdade de Gênero, Raça e Gerações atribuições, os amigos Annetda Diretoria de Estudos te, Manoel, Erimita e Jam Lae Políticas Sociais (Di- crevz atestam a necessidade da inauguração de um novo olhar soc) (link 3). sobre a velhice, distante e dissociado daquele que a relaciona a um processo de declínio. Entrevistados ao mesmo tempo para a revista Soul, os qua-

“Meu temperamento não me permitiu ter medo da velhice; me empurrou para manter os pés no presente”,

Lilian Carvalho, geriatra

tro relataram detalhes da vida e do que chamam de “preparação para a Grande Viagem” e os desafios enfrentados na velhice. Natural de Vitória da Conquista, no Sudoeste da Bahia, Annette veio para Salvador para cursar nutrição, sempre foi a mais ativa e resolutiva da família com sete irmãos e casou-se, em 1969, com o português Manoel. Ele perdeu o pai cedo e, ainda criança, teve que ajudar a mãe a cuidar da prole com nove filhos. Erimita nasceu em Mundo Novo, no interior da Bahia, migrou para a capital baiana com 13 anos e tornou-se professora de português. Ao longo da vida, ajudou a produzir livros sobre as tribos indígenas ciriri, tuxá e caimbé. O francês da turma chegou à Cidade da Bahia na juventude, aos 35. O resultado do encontro do quarteto está nas linhas a seguir.

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FOTOS: TADEU REZEDÁ

VIDA ATIVA ENTREVISTAS

Sem medo de envelhecer TEXTO: TAINÁ REIS

SOUL: Quando adulto(s), os se-

nhores tinham medo do envelhecimento? JAM LACREVZ: Meu temperamento não me permitiu ter medo da velhice; me empurrou para manter os pés no presente. O pensamento sobre velhice não ocupava minha mente. O que posso dizer é que não tenho medo de envelhecer, eu tenho pena de envelhecer. ANNETTE BERNARDES: Nunca tive

medo do envelhecimento. Meu medo sempre foi ser dependente de alguém, e de não envelhecer.

ERIMITA CUNHA: Meu medo de

envelhecer só chegou quando eu percebi que já estava envelhecendo.

MANOEL COSTA: Eu não costumava pensar nisso. Com o passar do tempo, 12

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veio o medo de envelhecer sendo dependente de alguém, mas, da velhice em si, nunca.

dades físicas atuais e não fazer mais do que eu aguentaria fazer.

SOUL: Como os senhores lidaram com a entrada na terceira idade? JAM: Tive que aceitar a entrada na terceira idade como uma coisa natural e entender que não ocorre de uma vez e sim, gradativamente. Nós estamos no (estágio de vida) “provisório” e é preciso entender isso. Tive que começar a prestar atenção nas minhas possibili-

ANNETTE: Não lidei, eu lido. Essa

questão do envelhecimento impõe uma luta diária. Você vai vivendo e percebe que cada vez está mais próximo da “grande viagem”. Eu, imaginariamente, penso que a minha mala está vazia e que preciso enchê-la. Busco saber que essa partida não é mal.

ERIMITA: Têm momentos que

ficamos chateados com certas limitações, como esquecer determinadas coisas, (o surgimento de) mais rugas, os sinais da velhice... Por outro lado, “catamos” as coisas boas, o que sustenta a gente. MANOEL: Eu tinha um pen-

samento desde criança de que não iria passar dos 27


anos. A velhice me fez encarar que temos que nos preparar para a morte. Não sinto medo e não sei determinar o sentimento quanto a isso, mas percebi que é necessário sempre reinventar a vida.

SOUL: Como os senhores encaram essa fase da vida?

JAM: Uma possi-

bilidade é parar. A outra é perceber todas as oportunidades e fazer alguma coisa. Optei pela segunda: assumir a vida e o que ela oferece. Tem criação a cada dia, cada hora, em cada lugar e com cada pessoa.

várias atividades. Quais são as principais dificuldades enfrentadas na velhice? JAM: Até alguns anos atrás, eu acordava muito mais cedo do que acordo hoje em dia; não me sentia cansado e fazia diversas atividades. Hoje, se torna necessário um momento de descanso, o que não era necessário antes.

“Meu medo sempre foi ser dependente de alguém, e de não envelhecer”, afirma Annette Bernardes

ANNETTE: A gen-

te não pode parar e ficar se lamentando. Todo dia, agradeço a Deus pelas oportunidades que tenho e que a grande maioria não tem. Busco renovar, cada vez mais, meus princípios de solidariedade humana. Isso renova em mim uma força de lutar pela promoção humana, seja onde e como for.

ERIMITA: Existe o aspecto pessoal, da qualidade de vida, e a gente faz pilates, caminha, se alimenta bem. E tem a questão da responsabilidade de saber que não podemos ficar fechados. Então eu aproveito para tentar mudar esse mundo ao redor de mim, abrir brechas para ajudar aos outros.

ANNETTE: As principais dificuldades são você reconhecer que não tem mais condição de fazer tudo da forma como fazia antes. Há mais cansaço, menos disposição.

devagar e escutamos menos e reconhecer o nosso limite pessoal.

SOUL: E o que os senhores destacam como mais bonito e significativo dessa fase? JAM: É bonito saber que, dentro dos meus limites, posso continuar fazendo o que eu gosto, as atividades que me dão prazer. É fantástico! ANNETTE: (É bonito ver) a soli-

dariedade na rua. Às vezes, fico com medo de atravessar, por causa de minha subvisão e, aí, vem alguém, coloca a mão no meu ombro e pergunta: “Quer atravessar, minha tia?’’. É um presente! E acredito que, na Bahia, isso é muito mais frequente.

ERIMITA: (A principal dificuldade é sentir) seu desejo ser superior à sua condição física. Antes, eu dizia que, para ver algo bonito, andaria o que fosse preciso. Agora, não é mais assim. MANOEL: (A principal dificul-

dade é) saber selecionar o que se pode fazer em cada dia. Não podemos mais fazer tudo, nem escolher tantas coisas. (É difícil) aceitar que andamos mais

MANOEL: Tento não perder a expectativa no dia de amanhã. Há muitos anos, tenho o hábito de planejar meu dia, para não perder a expectativa do próximo dia.

Os senhores continuam mantendo uma rotina com

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“(A principal dificuldade é sentir) seu desejo ser superior à sua condição física”, diz Erimita Cunha

Erimita Cunha e Jam Lacrevz ERIMITA: O mais bonito é superar os desafios diários. Isso dá muito prazer. MANOEL: O que mais me toca na velhice é a liberdade, principalmente quando o idoso é um pouco sábio (no sentido de) saber usar a liberdade tanto para si quanto para o outro.

SOUL: O que contribuiu para a forma como os senhores lidam com o envelhecimento? JAM: Minha família sempre foi ativa e dinâmica, o que influenciou diretamente na pessoa e no idoso que me tornei. Para mim, não existe ver um pedacinho de uma realidade, tenho que ver a realidade global. O pouco não me contenta, e isso me mantém ativo!

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ERIMITA: Fui uma menina quie-

ta demais, mais de ler e aprender na teoria. Comecei a ser mais ativa na universidade, na Juventude de União Católica (JUC), que ensinava e incentivava a agir. E Jam me empurra, me impulsiona, com essa coisa dele de não se satisfazer com o pedacinho.

ANNETTE: Isto tem muito a ver

com o meu temperamento. Lá, em casa, eram sete filhos e eu fui a que dei mais trabalho. Sempre gostei de ação e me envolvi em grupos. Isso me levava a buscar ações resolutivas e a me manter inventiva.

MANOEL: Não tive escolha. Minha família era numerosa, com nove irmãos e muitas dificuldades. Comecei a trabalhar com 13 anos, para ajudar minha família a sobreviver. Era vencer ou vencer. Teve muito sofrimento, mas teria mais se eu não resolvesse agir. Erámos eu e minha mãe guiando o barco para não afundar. E ele não afundou. Deus jogava as boias para nossas tempestades, e a gente agarrou todas.

Quais fatores colaboram para que idosos se portem de forma diferente da dos senhores? JAM: Muitos podem ter sido maltratados, massacrados, e descarregam isso na vida. (O maltrato) é negativo para a forma como vamos enxergar e lidar com a velhice. Falta de afeto e atenção acaba apagando a vida deles, e isso é triste.

SOUL:

ERIMITA: Existe um senso co-

mum com somente coisas negativas a respeito da velhice. Nossas experiências durante a vida nos ensinaram a não enxergar a velhice assim, mas muitos não tiveram as oportunidades e enxergam apenas o lado ruim da velhice.


“É necessário sempre reinventar a vida”, ensina Manoel Costa

Annette Bernardes da Costa e Manoel Pereira da Costa ANNETTE: São vários fatores. O

idoso vem de várias experiências. Traumas não superados contam. Uma família que lhe deu amparo vale muito. O casamento também influencia bastante. Se for saudável, implica positivamente na nossa vida e em como a gente enxerga a vida.

MANOEL: Muitas pessoas estag-

nam nas dificuldades que passam. Se não se levantar, a pessoa se torna um idoso amargurado e infeliz. Então é preciso encarar o problema, passar por cima dele.

positiva para quem vejo na rua. Faço hidroterapia e RPG. Show de quem eu gosto ou peças de teatro me fazem bem. MANOEL: Busco me manter ativo e ser um eterno aprendiz de tudo que me interessa. Comecei a estudar espanhol, faço parte de um

ONDE FAZER ATIVIDADES GRATUITAS E DE BAIXO CUSTO EM SALVADOR

Quais são suas principais ações para ter qualidade de vida? JAM: Cuido da minha saúde, dentro das minhas possibilidades, não cometo exageros e assisto a programas de TV ligados à agricultura. Continuar ativo nessa área me dá prazer e me faz feliz.

Programa Unimed Ativa – Aulas de ginástica geriátrica, alongamento, dança alternativa, além de atividades rítmicas cognitivas, às quartas e sextas-feiras, das 15h30 às 17 h, no Centro Terapêutico Plenitude, no bairro da Barra. Telefone: 71 3035-0412.

ERMITA: Faço pilates, tenho cami-

Projeto Teatro Médico/Faculdade Social da Bahia – Aulas de dança, de segunda a quinta pela tarde, na Faculdade Social da Bahia, bairro de Ondina. Telefone: 71 4009-2840.

SOUL:

nhado. Meditação é uma das coisas mais importantes pra mim, me ajuda a me botar no eixo.

ANNETTE: Gosto de me manter

atenta às questões nacionais e mundiais, de meditar e de buscar sempre dar uma mensagem

grupo de coral, estou aprendendo a tocar pandeiro, estou escrevendo um livro e recentemente furei minha orelha, o que tinha vontade de fazer há um tempo. Além disso, mantenho o lado social ativo e ajudo grupos carentes, o que nos ensina a viver.

Saúde na Melhor Idade – Aulas de alongamento, exercícios de flexibilidade e resistência, ginástica localizada,

além de caminhada, dias de segunda, quarta e sexta, das 6h às 7h, na sede do Grupamento Marítimo, no bairro de Itapuã. Universidade da Terceira Idade – Aulas de lazer e qualidade de vida, yoga, tai chi chuan, expressão corporal, danças de salão, flamenca, moderna, regionais brasileiras, do ventre e cigana, entre outras, em dias úteis, em turnos diversos, na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), no Cabula. Telefones: 71 3117-2275/2372. JUNHO 2019

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SEM LIMITES

Esporte traz qualidade Pessoas com deficiência encaram desporto como válvula de escape contra o preconceito

“Ironman Ironman”

Este é o nome de um dos maiores e mais famosos circuitos de triatlo do mundo, mas é também como Fábio Rigueira, 46 anos, ficou conhecido por se tornar o único brasileiro com deficiência física a conseguir finalizar a competição, com auxílio de muletas. Ao conseguir o feito, na edição do Ironman Brasil 2018, em Florianópolis (SC), ele ganhou a credibilidade que preci16

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sava para se estabelecer como um paratleta da modalidade de alto rendimento e longas distâncias que combina natação, corrida e ciclismo. Com uma das pernas amputadas desde os oito anos e sem parte de um dos pulmões, em decorrência de um câncer na infância, Fábio utiliza o esporte como um mecanismo de superação dos próprios limites físicos. Desde cedo, já dava suas braçadas na água e andava sobre duas rodas. Para ingressar no triatlo, precisou aprender a correr. Primeiro, aceitou o convite de amigos, que também têm deficiência, para ganhar habilidade jogando futebol, mas logo deixou a bola de lado e foi atrás de profissionais que o treinassem em corrida.

TEXTO: FE

Apesar de sempre ter gostado de esportes, o triatleta diz que sua relação com os desportos mudou após dois grandes acontecimentos na sua vida. O primeiro foi uma queda, seguida de dores fortes, quando ainda era criança, que o levou ao diagnóstico de um tumor ósseo no fêmur e à amputação de uma das suas pernas, após diversos tratamentos para curar o câncer. Dois anos depois, veio o segundo: uma metástase no pulmão direito, que exigiu a remoção de parte do órgão.


FOTOS: FERNANDA COSTA

e de vida a paratletas

BENEFÍCIOS

ERNANDA COSTA E GABRIEL RODRIGUES

Incialmente, o incentivo para que ele participasse de competições veio do treinador de natação do seu irmão, que o convidou para participar da Travessia Mar Grande – Salvador, fazendo um percurso de 12 quilômetros a nado, na Baía de Todos os Santos, aos 26 anos, 18 depois da amputação. “A partir daí, não parei. Me tornei campeão Norte/Nordeste de piscina e fui disputar em outros Estados”, esclarece Fábio.

O baiano já gostava de nadar e pedalar em brincadeira de criança, no bairro de Itapuã, na Orla de Salvador (BA), onde nasceu. Com o desafio da adaptação à vida com limitações físicas, o esporte ganhou, para ele, outra dimensão, passando a contribuir para a saúde, a qualidade de vida e também a reinserção social. Os benefícios desportivos vão além do condicionamento físico. A iniciação esportiva traz mudanças também no comportamento de quem pratica, dando autonomia e auxiliando na convivência em sociedade. De acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS), em geral, melhora a saúde como um todo, tanto nos aspectos físicos quanto nos mentais, principal-

mente se acompanhados de uma alimentação saudável e de noites de sono agradáveis. Para o educador físico Rogério Pinheiro, que trabalha com esporte paralímpico desde 2009, ele exerce função similar no caso de quem tem mobilidade reduzida e necessidades especiais, como Fábio. “A prática esportiva busca a melhoria da saúde da pessoa com deficiência e, em alguns casos, consegue até melhorar funcionalmente a questão da deficiência”, afirma. JUNHO 2019

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FOTOS: FERNANDA COSTA

A princípio, qualquer pessoa com deficiência pode praticar alguma modalidade esportiva, desde que respeite suas próprias limitações e submeta-se às adaptações. Por exemplo, no jogo de basquete, utiliza-se uma cadeira de rodas especial e na partida de futebol para cegos, a bola tem guizos que emitem sons.

DESAFIOS

Mas sair do sedentarismo não é fácil. As dificuldades, por vezes, começam em casa mesmo. “O primeiro preconceito contra a pessoa com deficiência vem de dentro da família. Por querer superproteger, ela acaba colocando barreiras para essa pessoa. A família deve incentivar e ajudar o mínimo possível”, opina Rogério Pinheiro. A falta de suporte financeiro e infraestrutura também abalam.

“Mostro às pessoas que, no tatame, eu sou igual a uma pessoa que enxerga normal”, diz o paratleta Deivid Monteiro


“O preconceito a gente percebe no olhar ou na forma de querer ajudar; a pessoa te acha incapaz” Fábio Rigueira

Os investimentos em esportes paralímpicos ainda são insuficientes no País, conforme 88% dos 607 integrantes do Comitê Paralímpico Brasileiro consultados na pesquisa “Paratletas e o Esporte Paralímpico no Brasil”, realizada pelo DataSenado, em parceria com o gabinete do senador Romário (PODE/RJ), em dezembro de 2017, e publicada em 2018. Os paratletas, de acordo com dados do estudo, não dispõem de bolsas e espaços físicos em quantidade suficiente e são obrigados a treinar em ambientes inadequados. O volume de unidades é regular, ruim ou péssimo para 75% dos ouvidos e as instalações em funcionamento têm qualidade ruim ou péssima para 31% dos entrevistados e regular para outros 28%. Em Salvador, o lutador de jiujitsu Deivid Monteiro dos Santos, 35 anos, precisou trocar de academia, porque o instrutor do

local onde iria treinar, em 2016, tomou um susto ao saber que teria um aluno com deficiência visual. Em 2016, ele teve seu primeiro contato com a arte marcial e levou para a Associação Baiana de Cegos a ideia de organização de uma oficina com duração de quatro meses. Após o encerramento do projeto e um recesso de um ano sem praticar por falta de condições, descobriu que, onde fazia musculação, aconteciam aulas da luta e decidiu retornar para o esporte. Com a resistência do treinador, buscou um lugar para acolhê-lo. Adaptado, já participou de quatro campeonatos e, no Grand Slam World Tour (internacional), no Rio de Janeiro, em 2018, ficou na terceira posição. “Mostro às pessoas que, no tatame, eu sou igual a uma pessoa que enxerga normal”, diz Deivid, ao explicar que, no esporte, tem uma inclusão melhor do que em outras situações do dia a dia,

embora ainda sofra preconceito. Ele pede que a sociedade “não trate as pessoas com deficiência como coitadinhos, porque essas pessoas só têm uma limitação, que pode ser visual, física ou mental, mas têm sua capacidade”.

INCENTIVO

As dificuldades também levaram Fábio Rigueira a um recesso na prática de esporte competitivo. Descontente com o cenário desportivo, o triatleta já chegou a desistir dos campeonatos de natação pela falta de apoio financeiro. No período, resolveu fazer apenas o ciclismo, por hobby, sem nenhuma orientação profissional. Às vezes, até investia em pequenas viagens de bicicleta e, com o tempo, começou a sonhar em, um dia, dar a volta ao mundo de “magrela”. O Iroman baiano só passou a encarar o que fazia com mais reponsabilidade quando compreendeu a importância do seu trabalho. “Percebi que outros deficientes começaram a se inspirar em mim. Então não posso fazer isso de qualquer forma”, lembra, explicando que a decisão ajudou a dar visibilidade ao seu desempenho e, assim, facilitou o acesso a financiamento para competições. O potencial de multiplicação dos exemplos de Fábio e Deivid é grande. No Brasil, de acordo com a pesquisa Panorama Nacional e Internacional da Produção de Indicadores Sociais, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, 6,7% da população brasileira têm “muita dificuldade” ou “não consegue de modo algum” realizar funções e atividades básicas. Muitas dessas quase 14 milhões de pessoas têm potencial para o esporte.


ARTE E MILITÂNCIA Baiana traz uma nova definição da figura feminina através da arte

TEXTO: AILTON MINAJ

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E por que não?

EVA SATTIVA:

mulher, drag e feminista

- Você escreve tudo do jeito que eu vou falar? – pergunta a fonte, temerosa de distorções. - Não se preocupe quanto a isso, fica bem à vontade – promete o repórter, ávido por informações sobre a relação entre militância feminista e arte drag. - Ah, sim! É porque eu uso muita gíria! Se não fosse assim, eu ia tomar mais cuidado com o que dizer – argumenta, dando o tom de quem é.

(R R i s o s) s

Cabelos negros e curtos contrastam com a pele clara. Os olhos pequenos, quase escondidos pelas lentes arredondadas dos óculos e espremidos pelas bochechas a cada sorriso, fortalecem o ar tímido que envolve sua voz doce, calma e serena. Admiradora das artes, ela dançou flamenco, por grande partede sua infância e adolescência, e aprecia artistas do pop nacional e internacional, mas não esconde sua veneração pela eterna rainha do rock brasileiro, Rita Lee. Esta é Ângela Reis, 31 anos, arquiteta e urbanista, nascida em 23 de abril de 1988. Taurina de Salvador, vem de uma família tradicional sustentada por valores religiosos. Os pais católicos influenciaram sua espiritualidade, no primeiro momento da vida. Os domingos eram de missa e as noites, de oração. Aos 19 anos, a jovem começou a trabalhar em um templo. O ciclo só foi interrompido por causa da grande pressão sofrida por ela, vinda dos pais e da

igreja que frequentava, por conta da sua homossexualidade. Com 21 anos, viajou para Espanha, onde iniciou o curso de arquitetura e urbanismo, concluído no Brasil, aos 24.

TRANSFORMAÇÃO

A vida de moça pacata deu espaço para a rotina de militância feminista com o surgimento de Eva Sattiva, uma das poucas mulheres drag queens do País. “Sempre fui uma menina muito casta, idealizadora, de falar pouco e de me vestir coberta. O empoderamento que consegui trazer para minha vida vem a partir de Eva”, analisa a jovem que temia distorções do seu discurso. A arquiteta teve o primeiro contato com o mundo drag ao ser apresentada, pelo amigo

Thomaz Hagge, ao reality show especializado RuPaul Drag Race (Netflix). Logo, apaixonou-se e passou a estudar o tema. Convidada por Millita Sattiva, hoje sua “irmã drag”, para se montar para uma festa, fez brotar Eva Sattiva, uma mulher drag. Até o nome é político, um manifesto. Eva Sattiva propõe a rediscussão da imagem de pecadora e fruto proibido atribuída à primeira mulher na Terra, de acordo com a Bíblia (Eva), e remete à “desmarginalização” do uso da maconha, cientificamente chamada de Cannabis sativa. Eva encanta e choca com performances feministas e conceituais. Se antes a drag buscava representar o ideal feminino, hoje provoca a ressignificação para a figura idealizada de mulher. Artistas como ela pro-

“Sou a favor de que as mulheres ocupem todos os espaços. Drag é uma arte que vai muito além de gênero” JUNHO 2019

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curam desconstruir padrões atribuídos à pessoa do gênero feminino, através de suas caracterizações e atuações. Ser mulher drag é inusitado, pouco comum no Brasil, onde há centenas de profissionais da área. O assunto gera polêmica até entre drags. A ilustre RuPaul, grande nome mundial, não aceita mulher cisgênero em seu reality, um indicativo de rejeição. Mas a artista baiana resiste: “Sou a favor de que as mulheres ocupem todos os espaços. Drag é uma arte que vai muito além de gênero”. O visual também faz manifesto. Inspirada em famosas como Hungry e Trixie Mattel, Ângela Reis deu forma ao rosto de Eva Sattiva com o propósito de provocar. A boca grande bem delineada por um escandaloso batom vermelho, os olhos aumentados artificialmente com uso da maquiagem e bem marcados e as sobrancelhas arqueadas molduram uma drag extrovertida, ativista e feminista. “A maquiagem casa justamente com o que você tem de proposta. A minha é me transformar, até porque isso me facilita estar à vontade”, comenta. Motivada pelo poder de associação entre arte e militância, Eva atua nas noites de Salvador desde 2017. Subiu no palco, pela primeira vez, durante uma festa em uma casa de show. Desde então, vem aprimorando suas habilidades através do contato com artistas do cenário soteropolitano e também de participações em concursos, onde se submete à crítica dos corpos de jurados. Dá seu recado do jeito que pode, com muita arte.

“Sempre fui uma menina muito casta e de falar pouco. Vem a partir de Eva o empoderamento na minha vida”

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IMPORTUNADAS

TRAMPO COM TORMENTO Mulheres sofrem assédios moral e sexual no trabalho TEXTO: MATHEUS SANTANA OLIVEIRA E LUAN BORGES OLIVEIRA

ríticas à aparência, piadas relacionadas ao corpo, ameaças à estabilidade psicológica, convites inoportunos para um happy hour às escondidas e outras formas de constrangimentos fazem parte do cotidiano de milhares de mulheres nos locais de trabalho. Motivos de tormento para brasileiras de todas as idades, os assédios moral e sexual interferem na saúde, na qualidade de vida e na carreira de profissionais dos

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mais diversos segmentos da economia. As ocorrências multiplicamse. Em 2018, o Ministério Público do Trabalho da Bahia recebeu 383 denúncias e formalizou 26 novas ações judiciais acerca de assédio moral envolvendo relações de trabalho no território baiano. A tendência é de crescimento, nos próximos anos. Somente nos cinco primeiros meses de 2019, a instituição já registrou 181 denúncias e oficializou nove novas

ações judiciais. Não há distinção de gênero nas estatísticas do órgão, mas a maioria das vítimas é do sexo feminino, como apontam pesquisas.

ASSOMBRO

Os dados de abuso sexual assustam. Em cada grupo de cem brasileiras com 16 anos ou mais, 42 declaram já ter sido vítimas deste tipo de violência, de acordo com a pesquisa Assédio Sexual no Brasil, divulgada pelo Instituto


Datafolha em dezembro passado. Destas, 15 foram importunadas sexualmente no ambiente laboral. A abordagem envolve assédios físico (2%) e verbal (11%). No Nordeste, 34% afirmam ter sido assediadas no transporte público, na rua, na escola ou faculdade, no trabalho e até dentro de casa. Ao todo, 11% das nordestinas pesquisadas admitem ter sido agredidas onde trabalham. Realizado em 29 e 30 de novembro de 2017, o levantamento da Datafolha abarca 1.427 entrevistas presenciais, feitas em 194 municípios, com margem de erro três pontos percentuais para mais ou para menos e nível de confiança de 95%. Na Bahia, o Ministério Público do Trabalho tem registrados 63 casos de assédio de cunho sexual ocorridos no ambiente de trabalho, de 2015 a maio de 2019, e 11 ações para apuração da veracidade e de responsabilidades. A maior parte das vítimas é do sexo feminino. A quantidade, contudo, não dá a real dimensão do problema, em decorrência do comum silêncio do assediado por medo de represálias e da procura por proteção e justiça também em outras instituições, como a Delegacia da Mulher. A comerciária Mirlane Gomes conhece bem esta realidade. Aos 19 anos, ela foi assediada, inúmeras vezes, pelo patrão. “Ele jogava umas indiretas e eu não via como assédio. Mas, depois de um tempo, me promoveram, o que me aproximou dele. Começamos a passar boa parte do tempo juntos e os comentários foram ficando pesados: ele falava que ficava me imaginando na cama dele e que, se isso acontecesse, não iria me faltar nada”, conta. Com medo de acontecer algo pior, Mirlane pediu demissão e, no dia do desligamento, ouviu mais uma intervenção desagradável: “Você tá saindo daqui porque não está aguentando o trampo ou por que não está resistindo a mim?”, questionou o agressor.

“Depois disso, sinto desprezo, medo, nojo, culpa e muita tristeza”, releva a moça. O quadro de Mirlane é comum entre as vítimas e pode se agravar. Quando os sentimentos negativos se tornam constantes, pode ocorrer o desencadeamento de sintomas físicos, como dores de cabeça, enjoo, tontura, falta de apetite e desmotivação, principalmente para ir ao trabalho. “Os assediadores têm uma forma de manipular as mulheres, fazendo com que elas se sintam mal”, explica a psicóloga Jaqueline Anjos.

FACES DA VIOLÊNCIA

Mas as mulheres não são vítimas apenas de importunação sexual, como aconteceu com Mirlane. O assédio pode ser moral ou sexual e compreende uma vasta gama de comportamentos de natureza ofensiva. De acordo com o professor de direito penal Roberto Ribeiro, em artigo publicado pelo site JusBrasil, apesar das semelhanças, ele não deve ser confundido com o bullying, por ser mais sutil e difícil de ser provado e ser geralmente praticado por alguém em posição superior e mais favorável sobre o ofendido. De modo geral, existem três formas manifestadas no local de trabalho. O vertical ou ascendente, tipo sofrido por Mirlane no supermercado onde trabalhava, que se consolida pelo fato de a vítima estar numa condição hierárquica inferior em relação ao agressor; o horizontal, praticado por colegas de trabalho

que estão no mesmo nível na hierarquia, por questões de competição ou outros motivos; e o misto, registrado nas modalidades vertical invertida (acontece quando um funcionário hierarquicamente em posição inferior assedia seu superior e é raro) e organizacional (ocorre quando a própria empresa investe contra uma determinada pessoa ou grupo, diante de um ambiente competitivo). Fracielle Araújo ainda nem havia se formado e foi vítima do assédio horizontal no ambiente profissional, enquanto fazia estágio em um centro de atendimento psicológico. Era 2017. “Ele era meu colega de trabalho e sempre fazia ‘gracinhas’ comigo; falava muito dos bens materiais que tinha, para se gabar e ver se me comprava. Até então, eu tolerava, mas teve um dia que ele passou dos limites”, conta a jovem

“O que eu sinto é desprezo, medo, nojo, culpa e muita tristeza”, comenta a vítima Mirlane Gomes.

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de 25 anos. “Ele disse que eu precisava de sexo, que estava me faltando sexo. No momento, fiquei sem reação, literalmente sem saber o que fazer. O constrangimento tomou conta de mim”, recorda, explicando que, passado o susto inicial, levou o caso aos seus supervisores. A história chegou ao fim, porque o agressor recebeu uma advertência.

É CRIME!

Para preservar a saúde mental e física, desligar-se do emprego, como fez Mirlane, pode ser uma decisão acertada. Mas existem outros mecanismos que podem ser acionados por quem é importunado, como

“Até então, eu tolerava, mas teve um dia que ele passou dos limites”, afirma Fracielle Araújo, vítima de assédio

a denúncia para apuração e eventual publicação, à luz da legislação em vigor. O assédio moral, em geral, é tipificado como infração, considerando a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), enquanto o assédio sexual é caracterizado como crime, de acordo com Código Penal. A Lei nº 13.718/2018, aprovada no ano passado, altera este Código e classifica a importunação sexual (como podem ser consideradas as “cantadas”) como “ato libidinoso, na presença de alguém e sem a sua anuência, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, passível de aplicação de pena de reclusão de um a cinco anos. Uma lei específica para tratar do assédio no trabalho está sendo gestada. Em tramitação no Senado Federal desde a aprovação na Câmara de Deputados, em março deste ano, a proposta prevê a inclusão no Código Penal do assédio moral, ou seja, da ofensa reiterada à dignidade do outro, causando-lhe “sofrimento físico ou mental, no exercício de emprego, cargo ou função”, e a imputação de pena de um a dois anos de reclusão para o agressor, com possibilidade de ampliação para um terço a mais, se a vítima tiver menos de 18 anos. A defensora do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA), Amabel Mota, faz um alerta para a necessidade de reforçar ainda mais a legislação específica, porque o local e as proporções das agressões relacionadas à ocupação profissional deixam a vítima ainda mais vulnerável.

DENÚNCIA

Os casos de assédio podem ser levados à Comissão Interna de Prevenção de Acidentes 26

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e ao Serviço de Segurança e Medicina do Trabalho da própria empresa (caso existam), à Central de Atendimento à Mulher (telefone 180), à Procuradoria Regional do Trabalho/ Ministério Público do Trabalho – 5ª região (telefone 71 3324-3453; e site www.prt5. mpt.gov.br), ao Núcleo de Combate à Discriminação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego da Bahia (71 3329-8477), ao sindicato da categoria ou à Polícia Civil, mediante registro de boletim de ocorrência. Recomenda-se, porém, o levantamento de evidências, antes da acusação formal. Um aspecto importante é a colaboração do empregador no processo de denúncia, obviamente quando não é o algoz. Para a defensora Amabel Mota, o patrão precisa encorajar a colaboradora vitimada a romper o silencio e coletar provas contra o assediador. “O combate, contudo, é tão relevante quanto a precaução e o cuidado para que os casos de Mirlane e Fracielle não se repitam. “A opressão de gênero é a área que demanda uma atuação preventiva, diante do machismo estrutural que vivenciamos no contexto de nossa sociedade”, defende Amabel Mota. A Procuradoria Geral do Estado da Bahia (PGE), através da cartilha Assédio Moral, traz informações que colaboram para a identificação de situações de assédio moral e sexual, bem como orientações para que a vítima denuncie os comportamentos indevidos no local de trabalho. De acordo com a procuradora geral adjunta da PGE, Luciane Rosa Croda, o material é dirigido a servidores do órgão, mas a intenção é de gerar movimento, estendendo o acesso a outras instituições. Que seja um começo.


INFOGRÁFICO

CASOS DE ASSÉDIO MORAL NO MPT DA BAHIA 2019 até 31/05

DENÚNCIAS: 181 NOVAS AÇÕES JUDICIAIS: 9

2018 DENÚNCIAS: 383 NOVAS AÇÕES JUDICIAIS: 26

2017 DENÚNCIAS: 367 NOVAS AÇÕES JUDICIAIS: 30

ASSÉDIO SEXUAL NO TRABALHO DENÚNCIAS NO MPT-BA 13 CASOS EM 2015 08 CASOS EM 2016 25 CASOS EM 2017 13 CASOS EM 2018 04 CASOS EM 2019 – ATÉ 31/05

ATUALMENTE, O MPT TEM 11 AÇÕES EM ANDAMENTO.

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SOCIEDADE SAÚDE MENTAL

Retrocesso à vista?

Ministério da Saúde gera polêmica ao propor retomada de práticas como eletrochoque TEXTO: GABRIEL RODRIGUES

N

ovas orientações de tratamento para pessoas diagnosticadas com transtorno mental alteram pontos das Políticas Nacionais de Saúde Mental e Drogas do Brasil, inclusive com previsão de retomada de práticas antigas, como internamento de longa permanência e eletrochoque. Lançada pelo Ministério da Saúde, em fevereiro deste ano, a Nota Técnica Nº 11/2019 anuncia uma “Nova Saúde Mental”, mas, para muitos, representaria uma aproximação com o que se tem de mais velho no tratamento psiquiátrico e gera polêmica entre profissionais e movimentos antimanicomiais. Além de propor a ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e nas comunidades terapêuticas,

EDIÇÃO: MÔNICA CELESTINO

dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPs), que engloba todos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), o documento, entre outras medidas, faz indicativo de financiamento pelo Ministério da Saúde de compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia, próprios para a aplicação de eletrochoques, prática condenada por uma parcela dos psiquiatras e psicólogos. Assim, incentivaria a hospitalização e o atendimento desumanizado e romperia com a política de desinstitucionalização. A iniciativa se opõe ao movimento pela Reforma Psiquiátrica, iniciado no Brasil nos anos 1970 e voltado principalmente à substituição do internamento de longa permanência em hospital psiquiátrico pelo acompanhamento em serviços como o Centro de Atenção Psicossocial

e as residências terapêuticas. Hoje, este atendimento pode ocorrer gratuitamente, p e l o Sistema Único de Saúde. Usuária do CAPs II do município de Camaçari, na região Metropolitana de Salvador, e militante, Zendenia Nascimento, 77, reafirma a importância da efetivação da reforma por compreender que manicômios não tratam. “O papel do CAPs hoje é de fazer a ressocialização e integração dos usuários, como ser social de direito, dentro da igualdade dos direitos humanos; de inseri-los no mercado de trabalho; e de exigir que nos respeitem, porque infelizmente a gente vive à margem da sociedade”, explica a militante, que está em tratamento da depressão e da síndrome do pânico há pouco mais de um ano.

Soul JUNHO 2019permitir nenhum retrocesso" "Nao28podemos


POLÊMICA

As diretrizes confrontam diretamente movimentos que lutam contra o internamento de longa permanência e ações que possam gerar traumas e agravar o quadro das pessoas com transtorno mental e usuários de drogas. Em resposta, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABSM) já se manifestaram contrários. Para ambos, a medida é um grande retrocesso, abala as conquistas estabelecidas com a Reforma Psiquiátrica (Lei nº10.216/2001), no marco da luta antimanicomial que chega à sua maioridade este ano. “(É importante lutar) para que não tenhamos mais situações tão indignas de vida e tratamento nessas instituições totais e desumanas. Vale muito a pena a gente seguir lutando, não podemos permitir nenhum retrocesso”, opina a presidente da ABSM, Ana Pitta, durante a XII Parada do Orgulho Louco,

realizada em Salvador, no Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 18 de maio. O psicólogo Cleriston Costa também acredita que a proposta desestrutura todo o trabalho construído desde a Reforma Psiquiátrica, calcada no respeito ao direito da dignidade da pessoa, e convoca a população para protesto. “Precisamos ter clareza que a luta não pode ser setorial. Não pode ter a luta da educação de um lado, a luta da saúde mental do outro, a luta do petroleiro do outro. Nós temos que nos agregar e nos reunir”, defende o psicólogo. Mas não há consenso em torno da questão. A polêmica está estabelecida. Em uma longa nota pública, a Associação Brasileira de Psiquiatria, o Conselho Federal de Medicina, a Associação Brasileira de Im-

pulsividade e Patologia Dual, a Federação Nacional dos Médicos e a Federação Nacional das Associações em Defesa da Saúde Mental manifestam apoio à Nota Técnica n° 11/2019, assinada pelo Ministério da Saúde, sob o argumento de que as mudanças relacionadas no documento são necessárias. Afirma a nota: “fica claro que as mudanças ocorridas nas Políticas Públicas de Saúde Mental e Drogas no País têm como objetivo proporcionar acesso a tratamento eficiente, custo-efetivo, humanizado e com embasamento técnico-científico, levando benefícios incontestes aos pacientes e seus familiares”.

"A luta não pode ser setorial"

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SOCIEDADE PSICÓLOGA ANA RODRIGUES

'MANICÔMIO NÃO TRATA,

TORTURA!'

“As pessoas vendem o manicômio como uma forma de tratamento”, diz a psicóloga, ao comentar polêmica nota técnica do Ministério da Saúde TEXTO: GABRIEL RODRIGUES

EDIÇÃO: MÔNICA CELESTINO

Ana Rodrigues, psicóloga e professora

usuários das unidades de atendimento atuais e o novo cenário da saúde mental no País.

SOUL: Os tratamentos com longa permanência em hospitais psiquiátricos são eficazes? ANA MARIA RODRIGUES: Já está exaustivamente demonstrado que estes tratamentos não são eficazes. Eles agravam os quadros. Aparece isso no filme “Bicho de Sete Cabeças” (drama brasileiro da diretora Laís Bodanzky, com roteiro de Luiz Bolognesi, baseado na autobiografia Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano Bueno). Colocar em prática de novo isso, trazer à tona outra vez, não tem 30

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como motivação algo médico. Isso é patrocinado de algum modo. E dá muito dinheiro, porque o paciente com transtorno mental rende muito lucro para os centros que trabalham com isso. Há suspeitas de “clínicas de reabilitação” até com trabalho escravo.

SOUL: Mas hoje quem está mais suscetível às práticas de isolamento? ANA MARIA RODRIGUES: É a uma

classe um pouco mais alta, porque vai para clínicas privadas e fica mesmo isolada. A população de classe média também é muito internada. Às vezes, o internamento ocorre por puro preconceito, a pes-


soa nem é doente. Já aconteceu até de estrangeiro estar internado no Hospital Juliano Moreira, como se fosse louco, quando, na verdade, estava perdido por aí. Mas a população mais pobre vive situações muito difíceis: a maior parte tende a ir para rua, viver na rua, seja por questões financeiras, seja por brigas que acontecem (no âmbito familiar).

SOUL: A

Nota Técnica nº 11/2019 gera polêmica por indicar a retomada de internamentos de longa permanência e de eletrochoques, entre outras medidas. Sobre qual paciente incidiria essa medida? ANA MARIA RODRIGUES: A medida tem um quê de perseguição em relação a uma determinada classe específica (jovens, pobres, negros), mas isso não é tão fácil de ver, porque obviamente (...) as pessoas vendem o manicômio como uma forma de tratamento.

SOUL:

Entre os tratamentos pós-Reforma Psiquiátrica e previstos pela Nota Técnica nº 11/2019, quais são mais efetivos? ANA MARIA RODRIGUES: Grupos de artes. O fato de participar, de constituir um grupo de teatro, tem um efeito terapêutico muito mais eficaz e permanente do que outras práticas (como internamento), por exemplo. Afirmo com a certeza de quem já acompanhou muitas pessoas.

SOUL: Como a senhora avalia a retomada da eletroconvulsoterapia (terapia com eletrochoque), acenada pela Nota Técnica nº 11/2019? ANA MARIA RODRIGUES: É muito grave! Muita gente acredita que o eletrochoque é capaz de ter um impacto em quem está depri-

mido. Isso não chega a ser falso; ele pode ter algum efeito para o deprimido, mas o que acontece mesmo é que é utilizado de forma extremamente punitiva, e não como tratamento. Isso também é feito com a medicação, principalmente com criança. Você dá medicação para as crianças ficarem quietas. O nome técnico para isso é: contenção química. O medicamento trava os movimentos, inibe; a pessoa perde os movimentos.

SOUL: A senhora acredita que retornaremos a essas práticas? ANA MARIA RODRIGUES: Por mais que queiram colocar em prática (a Nota Técnica nº 11/2019), vão encontrar resistência. Às vezes, a gente esquece que há resistência por parte da população; tem pessoas que resistem. Não se tem muito controle sobre essas coisas. Quem fez a Reforma Psiquiátrica? Ela teve muita participação de profissionais da saúde, claro, mas a luta antimanicomial não só foi conduzida por profissionais da saúde; os familiares e os pacientes também participaram ativamente disso.

SOUL:

As mudanças apresentadas pela Nota Técnica nº 11/2019 anunciam o que está por vir? ANA MARIA RODRIGUES: A medida é uma tentativa de retomar práticas (como isolamento em manicômio) que alguns profissionais consideravam que nunca mais iriam retornar. Tem gente que está meio em pânico com isso. Toda vez que se fala em internação tem que levantar suspeitas. O pessoal diz: “manicômio não trata, tortura!”. O isolamento era utilizado durante o regime autoritário pós-1964. A gente não pode

ignorar essas coincidências. Ser a forma predileta de tratamento de um determinado regime não é um acidente! As formas de tratar são usadas como medidas punitivas; como forma de silenciar, de impedir manifestações coletivas, de apagamento das diferenças, de ameaça para determinados tipos.

SOUL:

Como fica a atuação dos profissionais contra essas medidas? ANA MARIA RODRIGUES: Comecei trabalhando como psicóloga no pior dos quadros, durante o governo militar (1964-1985). Mesmo que o quadro esteja piorando agora, ainda não chegou como era antes. Os conselheiros tutelares seguiam ordem judicial para “tratar” criança para deixar de ser “bicha” e não tinha lei para nos proteger, nem o Conselho Federal de Psicologia estava articulado nesse sentido, mas a gente encontrava formas de resistência. Mesmo no pior dos quadros, existe espaço para a resistência. A gente encontra formas.

SOUL: Para a senhora, que atua também como professora (Ana Rodrigues é professora do curso de Psicologia da FSBA), como resistir nesse momento para que as mudanças não impactem, de forma negativa, na formação de novos profissionais? ANA MARIA RODRIGUES: Digo aos meus alunos, e a mim mesma, que a gente tem que estudar muito. Literatura é importante. A gente está vivendo para escolher e decidir que forma (de resistência) a gente vai usar. Se a gente tiver maduro, nós não vamos deixar acontecer o pior. Eu estou apostando nisso!

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SOCIEDADE BULLYING

Agressor mora ao lado Vítima e algoz são fragilizados e precisam de tratamento especializado TEXTO: JULIANA PASSOS

auta de debate em salas de aula, reuniões de família e grupos de amigos, o bullying contra crianças está em toda parte, inclusive em ambientes íntimos, que inspiram confiança. Na escola, são comuns. No Brasil, 17 em cada grupo de cem adolescentes com 15 anos afirmam que são vítimas frequentes de piada, boato maldoso, rotulação, ameaça, exclusão e outras práticas agressivas algumas vezes por mês, no local onde estudam, conforme pesquisa mais recente do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizada em 2015 e divulgada em 2017. Constantes durante a infância e adolescência, fases de formação da personalidade, as agressões físicas e psicológicas intencionais e repetitivas podem atrapalhar o amadurecimento e provocar baixo rendimento escolar, traumas e até doenças como depressão na vítima. Mas também repercutem na vida do agressor,

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que pode, por exemplo, ter desempenho escolar aquém do esperado, desenvolver transtornos e necessita de acompanhamento profissional. Recentes casos do chamado bullyicídio, o suicídio relacionado ao sofrimento de bullying, assustam ainda mais a sociedade. Em entrevista à revista Soul, a psicóloga Amanda Cerqueira alerta pais e educadores sobre práticas associadas ao bullying, como o assédio, defende tratamento para vítima e agressor e explica que quem sofre ataque pode se transformar em algoz no futuro.

SOUL : Como o bullying se difere do assédio? AMANDA CERQUEIRA: O assédio

não tem necessariamente o regime contínuo; não é duradouro; e ocorre em determinados momentos, quando o agressor tem oportunidade de cometêlo. Pode ser efeito do bullying, mas não necessariamente (estas práticas) estão interligadas. O bullying é o comportamento repetitivo que pode vir em forma de repúdio, ofensa, apelido e ocorre onde a criança e o adolescente sempre estão presentes, em convivência no dia a dia, como a escola. Caracteriza-se pela relação de opressão, de ofensas. O agressor escolhe como vítima o que seja mais fraco, o “inferior” a ele, e o ofende, causa danos.

SOUL:

Então o agressor é uma pessoa próxima da vítima. Quais os perfis do agressor e da vítima?

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Psicóloga orienta tratamento ao agressor para evitar transtorno no futuro AMANDA CERQUEIRA - O agressor é uma pessoa prepotente, que não respeita a individualidade do outro. Pode ser uma criança ou um adolescente que não respeita as diferenças ou que também sofra de baixa autoestima, mas que prefere se mostrar como uma pessoa que está bem e oprime outras crianças para se sentir melhor. A vítima é uma criança que se sente fragilizada naquele ambiente, não está inserida em um grande grupo, fica um pouco mais recolhida, tem menos amigos e é vista como vulnerável.

SOUL: Por que a criança vítima de bullying cede à pressão do agressor? AMANDA CERQUEIRA: A criança até os 12 anos tem um pensamento muito concreto, acredita que aquilo que lhe é dito realmente vai acontecer, e desenvolve o medo (quando ameaçada). Medo de ir à rua, medo de brincar com os colegas. A vítima começa a se isolar, a demonstrar baixa autoestima, porque é


SOUL: Quais são os principais sinais

“A vítima se sente tão sozinha e se vê tão fraca que não sabe como se defender” muito xingada, é menosprezada, tem exaltadas as características que sejam diferentes dos demais. Muitas vezes, o agressor se mostra tão mais forte que o outro ou tem uma “gangue” (que o ajuda) que amedronta; ou a vítima se sente tão sozinha e se vê tão fraca que não sabe como revidar e se defender.

SOUL:

Quem são os principais agressores? AMANDA CERQUEIRA: Estudos comprovam que crianças e adolescentes que não têm um bom vínculo com os pais, que sofrem rejeição ou com a ausência de pais separados ou mortos e não conseguiram elaborar esses traumas, podem se tornar agressores. Muita raiva e muita revolta são características daqueles filhos e alunos que não têm uma educação muito diretiva, não têm limites e podem se tornar agressores. O agressor é o jovem que não sabe respeitar as diferenças dos outros, que acredita que todos têm que ser iguais: toda menina tem que ser loira de cabelos lisos e/ou ter olhos verdes; todos têm que ser magros; todos têm que ser heterossexuais. Tem também exemplos de vítimas que se tornam agressores, na escola ou em outros ambientes, quando estão em contato com crianças menores.

manifestados por uma criança ou um adolescente que sofre bullying? AMANDA CERQUEIRA: A criança ou o adolescente vitimado(a) já não se concentra tanto nos estudos, seu rendimento escolar já não é o mesmo. Às vezes, na presença de algum vizinho ou adulto, a vítima se retrai e quer voltar para casa. Ela vive angustiada, já não tem tanta vontade de brincar e tanta criatividade, e tem medo de tudo. Ela fica em isolamento e está sempre em contato com os pais (liga e faz perguntas) como: “Mãe, você está aonde?”.

SOUL: Como os pais podem identificar se seus filhos sofrem bullying? AMANDA CERQUEIRA: Os pais precisam fortalecer as ligações com seu filho e estabelecer um vínculo emocional forte, de segurança; ficar atentos às relações do filho; sempre observar seu grupo de amizade e se ele interage. E os pais têm que saber como abordar a criança (em caso de suspeição), porque ela fica envergonhada em contar. SOUL:

Quais especialistas podem tratar quem sofre e quem pratica o bullying? AMANDA CERQUEIRA: Os principais especialistas são psicólogos, psiquiatras e psicopedagogos. O psicólogo porque é habilitado para fazer atividades interventivas. O psiquiatra porque, muitas vezes, a criança desenvolve um transtorno, por conta da magnitude da violência que sofre, e precisa de acompanhamento medicamentoso. E o psicopedagogo porque, às vezes, a vítima teve prejuízos na sua formação e desenvolveu alguns problemas que impactam no estudo. O agressor também precisa passar por profissionais como psiquiatra e o psicólogo porque, às vezes, ele está demonstrando que pode ter outro distúrbio futuro e precisa de uma avaliação. JUNHO JUNH JU UN NH HO 2019 20119 20 9

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TRANSFORMAÇÃO

Desafios da transição capilar Mudanças nas madeixas crespas ou cacheadas impactam sobre autoestima das mulheres TEXTO: TAILANA CRUZ

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uem vê a designer de interiores Paula Vieira orgulhosa das suas madeixas encaracoladas não imagina que, um dia, os fios cacheados eram motivo de tristeza. Quando ela era criança, a cabeleira volumosa chamava atenção. As pessoas achavam áspera, pediam para tocar, olhavam com certo repúdio. “Isso sempre mexeu com minha autoestima. Passei toda a minha infância com penteados que deixavam meu cabelo preso. Foi muito complicado lidar com o volume de cabelo”, recorda a jovem, que está entre os 70% dos brasileiros com cabelos cacheados ou crespos (cerca de 145,95 milhões) registrados em levantamento do Instituto Beleza Natural com a Universidade de Brasília (UnB). Anos mais tarde, Paula passou a fazer relaxamento, ao ouvir de um amigo que deveria tentar usar o cabelo solto e não conseguir lidar com o grande volume sem apelar para a intervenção com produtos químicos. “Vivi presa ao alisamento por anos e, quando misturei esta química com descolorante, meu cabelo sofreu um corte químico (quebra brusca e irremediável dos fios), que afetou minha autoestima”, explica a designer, que, há cinco anos, aderiu à moda da transição capilar. 34

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CUIDADOS A reviravolta ocorreu a partir de 2012, quando resolveu fazer a complexa e lenta retomada das característinatucas rais dos fios t à ttextura, t l quanto ao volume, à aparência. O processo pode demorar de um a dois anos e envolve cuidados com os cabelos, com hidratação profunda, lavagem com shampoos e condicionadores específicos, entre outros procedimentos estéticos, e até atenção especial com a alimentação. Aconselha-se regular consumo de proteínas, vitaminas e minerais e ingestão de água para proteção e fortalecimento dos fios e prevenção de queda, quebra, perda do brilho, ressecamento e crescimento aquém do esperado. A água é responsável por levar os nutrientes ao bulbo capilar, enquanto as proteínas, como carnes, peixes e ovos, são compostas por aminoácidos (como a queratina) que blindam os fios.

O método mais usado para conseguir assumir os fios naturais é o Big Chop ou o grande corte. Trata-se de suspender o uso de substâncias químicas para alisamento por um período e, depois, fazer o corte apenas das partes da cabeleira que ainda contêm produtos remanescentes das últimas aplicações. Outras opções são deixar o cabelo crescer até ter segurança para cortar ou simplesmente raspar a cabeça e, então, iniciar uma relação no8INa transição, ocorrem até momentos de medo de se ver no espelho. O excesso de frizz, as pontas desalinhadas, o volume nunca mais visto, a aparência desajeitada incomodam. De acordo com a cabelereira Jô Nascimento, a situação pode causar uma série de questiona-


PODEROSAS

Apesar do sofrimento, a adesão à transição dá sinais de avanços. Nas ruas, em parques e praças, na cena cultural, na mídia, são vistas cada vez mais, pessoas com madeixas naturais ao vento, enormes e livres de amarras. A socióloga Lídia Matos afirma que vem aumentando, nos últimos anos, o volume de mulheres com transição capilar ou com cabelos crespos e cacheados assumidos. Para a socióloga, mulheres negras e de cabelo crespos estão se autorizando a romper com o alisamento, se empoderando para assumir o cabelo natural e mostrar sua origem e identidade afrodescendente por meio dos fios. Artistas como Taís Araújo e Lucy Ramos exercem influência na decisão. Mais do que uma alteração na estética, a transição capilar é a evidência da transformação do modo de se ver e do desejo

FOTO: TAILANA CRUZ

mentos e abalos na autoestima da mulher com cabelos crespos ou cacheados. Mas passa. Especializada em cuidados com cabelos crespos e cacheados, a cabeleireira Juliane Padilha diz que, “de um lado, existe a pressa em superar logo a transição, ver seu cabelo natural, sentir e aprender a cuidar dele; e, de outro, as críticas e os comentários racistas, inclusive dos familiares e de pessoas próximas”, que abalam as emoções da mulher em mudança capilar. Paula Vieira atravessou esta fase de mal-estar com a autoimagem, mas, depois de perceber o primeiro cacho se definindo, entendeu que aquilo seria transitório. “Não tinha muito o que fazer. Fui aprendendo a lidar com meu cabelo. Hoje, há quem me peça dicas de como assumir o cabelo”, afirma, ao informar que não se arrepende dos dois anos de investimento e espera.

Juliane Padilha assumiu o cabelo natural e decidiu trabalhar com isso

de se mostrar diferente do habitual, de acordo com sua identidade. Mas ainda é significativo o volume de “alisadas”. Cerca de 25 milhões de brasileiras, conforme pesquisa da consultoria Kantar Worldpanel, em 2016, utilizavam escova progressiva, uma das principais técnicas para alisamento. A cabeleireira Juliane Padilha atribui a opção à influência do padrão estético predominante no passado recente sobre o mulherio: “Durante muito tempo, fomos ensinadas que a feminilidade, a beleza e o poder da mulher estavam no comprimento do seu cabelo e se valorizou somente os cabelos lisos como saudáveis e bonitos”. Por isso, produtos químicos, altamente tóxicos, eram aplicados até mesmo em crianças e gerações inteiras cresceram sem conhecer o seu real cabelo. Agora, esta fase parece estar chegando ao fim.

“Vivi toda a minha infância com penteados que deixavam meu cabelo preso”, afirma Paula Vieira, que passou por transição capilar após anos de alisamento.”

Paula Vieira passou pela transição capilar por dois anos JUNHO 2019

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ARTE CRÍTICA MUSICAL

Referência no rap nacional, Djonga, em seu terceiro álbum, fala sobre suas origens, em rimas ainda mais potentes TEXTO: GABRIEL RODRIGUES

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pelido surgido da poesia e das rodas de rap, Djonga tornou-se o nome artístico de Gustavo Pereira Marques, 24, que performa sua lírica afiada sobre suas vivências enquanto homem negro, em um País que carrega, até hoje, marcas da escravidão instaurada no Período Colonial. Um dos grandes nomes do rap brasileiro atualmente, ele acaba de lançar, exclusivamente no Youtube, seu terceiro álbum, intitulado de “Ladrão” para provocar uma reflexão sobre como o racismo estrutural condi-

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ciona corpos negros a este papel perante a sociedade. Escritor e compositor, o artista mineiro gosta de se reafirmar, nas entrevistas que dá, como um cara comum, de bairro, da Zona Leste de Belo Horizonte, Minas Gerais, que tem muito a dizer ao mundo. E assim o faz, cada vez mais sonoro e potente! Sua nova obra chega com músicas que versam sobre autonomia, resgate, ancestralidade, representatividade e muitas, muitas, referências a respeito da conscientização social e racial, principalmente, diante da conjuntura atual do País com recrudescimento da intolerância e da discriminação. Com dez composições, o álb bu u toca nas suas oribum g gens, aproveitando a insp piração da casa dos avós, ond on de ocorreram as gravações, de onde reún re ún n parceiros. Doug Now e reúne Chrris Ch ris MC participam da fai& Chris “Vo “ Vozz” z” e MC Kaio cantam em xa “Voz” “Tip “T ipo” o”,, enquanto Felipe Ret faz “Tipo”, “ eu “D euss e o Diabo na Terra do Sol”, “Deus um u ma referência re efe uma musical ao clássico do do Cinema C sico Novo, do diretor

baiano Glauber Rocha, que conta a história de um vaqueiro que mata um coronel ao se revoltar contra a exploração imposta por ele. A obra reflete sua trajetória. Seu primeiro clipe, “Hat-Trick”, é simples – em uma situação que imita a casualidade, sem nada espetaculoso –, porém bastante simbólico por instigar muitas reflexões. Com roteiro assinado pelo próprio rapper, nos permite enxergar como as vivências de homens negros, na contemporaneidade, estão pautadas sob a perspectiva da branquitude e acabam perdendo suas identidades, liberdades e subjetividades no convívio social. No clipe, o lar se torna a chave para essas prisões. Próximos dos seus familiares, da comunidade e irmãos de cor, as violências parecem desaparecer. Entretanto, o final dessa história aponta para uma realidade crua, onde o negro ainda será um alvo fácil, mesmo livre das correntes constituídas a partir de construções colonialistas e eugenistas.


O rapper, que se tornou uma referência entre os jovens a partir de “O menino que queria ser Deus” e “Heresia”, escreve sobre suas narrativas, seus pais, seus avós, seu filho, além de nos apontar para as diversas violências de um sistema social opressor e genocida. Ele nos apresenta uma realidade que os livros de história não mostram e que não ganham manchetes nos jornais de grande veiculação nacional, sobre as lutas diárias dos corpos pretos deste País, principalmente daqueles que são pobres e vivem na periferia. Suas músicas nos possibilita questionar e refletir sobre quais outros espaços os negros, que compõem mais de 54% da população brasileira (correspondente a aproximadamente 112,6 milhões de pessoas), estão como protagonistas, quando não estão representados como vítimas da violência e das mazelas sociais. Djonga fala sobre perspectivas, sonhos e oportunidades, em um País onde um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos; onde a desigualdade racial é alarmante, e, no entanto, pouco choca.

O projeto audiovisual, intitulado ‘O lado preto da história’, retoma discussão sobre a representação do negro no País

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ENSAIO

ANTONIO OLIVEIRA, 77, há 52 anos trabalha na feira

Vem muita gente; vem do Rio, de São Paulo, do Exterior

TEXTO: CAIO CARDOSO

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Dentro d

a feira de São Joaquim, Salvador pode ser vista e ouvida de uma forma direta: um cotidiano caótico, provocativo, barulhento e tortuoso. Na feira, as pessoas. Um povo que vive e se apropria de um lugar, no qual as relações se estendem por décadas entre bancas de produtos da moda e mantimentos básicos. Os que continuam ali seguem laboriosamente a rotina de expor suas mercadorias, se postando na sombra enquanto oferecem sempre um acordo melhor do que seu vizinho. O envelhecimento neste ambiente salta aos olhos, ora alegre, ora carregando uma espécie de cansaço que contorna e pesa os olhos. Este ensaio visual traz a diversidade das pessoas e das suas histórias de uma forma crua - com uma profusão de elementos vivos -, soteropolitana.

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FOTOS: CAIO CARDOSO, GABRIEL RODRIGUES E TADEU REZEDÁ

VANDERLINDA LACERDA, 70, há 50 anos trabalha na feira

Tudo que tenho depende da feira

da feira, o povo TEXTO: GABRIEL RODRIGUES

Ah! A Feira de São Joaquim é um tanto bom de sorriso. Um tanto quanto caótico, mas, no fim, tudo compensa. Tem de tudo um pouco. A cada minuto um chega e já se acomoda, com uma intimidade de quem sempre frequenta. Tem gente de todo lugar, conversa para não se acabar, comida boa com vista pro mar. Tem muita música! Um estilo diferente a cada passo que se dá. Ah! Essa tal Feira de São Joaquim é um tanto bom de alegria, de uma imensidão de se perder de vista. Tem cheiro de ervas, de bicho, de gente. Vende frutas, verduras, sementes. Faltam adjetivos para descrever o tanto de história que existe nesse lugar. Ah! A feira resiste ao tempo, na sabedoria da geração mais antiga, na memória de quem insiste em ficar. É no corpo de quem muitos anos esteve na feira e acompanhou seu crescimento que a poesia se revela. São quase seis décadas calcadas na pele de quem viveu praticamente uma vida inteira na feira, e que as poucos foi ganhando um novo lar. JUNHO 2019

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ENTREVISTA DIREITO DOS ANIMAIS

“Não podemos eternizar práticas cruéis, sob o argumento de que é cultura” Debate sobre direito animal e manifestações culturais é fundamental, defende o advogado Yuri Lima TEXTO: BÁRBARA SOUZA

A todos os pintinhos que são diariamente triturados vivos ou colocados em sacos plásticos para asfixiarem até a morte, por não terem utilidade à indústria de ovos. A todas as 5,26 bilhões de galinhas do mundo todo que, embora mutiladas, confinadas e privadas de seus comportamentos naturais e de suas necessidades e direitos básicos, botam anualmente 1,2 trilhões de ovos para o bicho homem fazer gemada, quindim, baba de moça e mais uma infinidade de coisas.” O trecho foi extraído da dedicatória de Yuri Fernandes Lima, 39 anos, na sua

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dissertação de mestrado em Relações Sociais e Novos Direitos, pela Universidade Federal da Bahia, intitulada “Certificação de bem-estar animal na indústria de ovos”. Nascido na cidade de São Paulo, formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Yuri é uma daquelas pessoas que ao falar sobre direito animal revela aspectos interessantes sobre ele: é um profundo conhecedor da matéria, defende a causa com contundência e milita por ela no âmbito profissional e pessoal – é vegano. Muito gentil e ponderado mesmo ao tratar de crueldades inimagináveis com

animais, o professor do curso de Direito da Faculdade Social da Bahia (FSBA) não altera o tom da voz. Nessa entrevista à Revista SOUL, Yuri Lima fala sobre a emenda à Constituição do Brasil que veda práticas que submetam à crueldade qualquer animal, analisa avanços da legislação internacional e brasileira, e aborda temas polêmicos como o debate entre direito animal e sacrifício de animais em rituais religiosos, a utilização de animais em pesquisas científicas, a matança de jumentos para exportação e produção de gelatina para os chineses, vaquejadas e rinhas de galo. Vale conferir!


SOUL:

O que é direito animal? Qual a fronteira do direito animal com o direito ambiental? YURI FERNANDES LIMA: Essa é uma boa pergunta. Na verdade nós sustentamos que o direito animal seja uma disciplina autônoma, independente do direito ambiental. Justamente porque ele tem regramentos próprios, princípios próprios e a gente também defende que ele tem uma forma de ser ensinado, uma metodologia própria. E o direito animal, acho que mais do que direito ambiental e mais do que os outros ramos do direito, é um ramo interdisciplinar. No direito animal a gente vai estudar uma série de outras ciências e de outras áreas do direito, para poder compreender.

SOUL: Pesquisando sobre o assunto, eu li um artigo em que o autor afirma que o direito ambiental tem como premissa o animal como uma espécie que tem uma função na natureza; já o direito animal considera animal como um ser senciente, ou seja, que tem a capacidade de sentir dor, alegria etc. Essa é uma boa definição? YURI: Sim. Na verdade, quando eu fiz a graduação de Direito, nem tinha a disciplina de direito ambiental, eu nem estudei direito ambiental. Porque o direito ambiental era visto como uma espécie do direito administrativo. Hoje, a gente tem a mesma situação: o direito animal é visto como espécie do direito ambiental. Mas, de fato tem essa diferença. Porque no direito animal, a gente dá ao animal o protagonismo, não só mais como um ser senciente, mas como um ser consciente. O que a gente defende é que ele

seja considerado pelo nosso ordenamento jurídico como um sujeito de direitos.

SOUL: No direito familiar, há sempre uma das partes, uma pessoa, que aciona a Justiça, por exemplo. Quem aciona ou pode acionar um advogado em nome do animal, já que, nesse caso, é um animal (e não uma pessoa) o “sujeito de direitos”, como o senhor disse há pouco? YURI: Essa é uma questão bem debatida, porque aí a gente está falando de capacidade processual, ou seja, quem vai representar o animal para pleitear os direitos dele em juízo? Basicamente, é o Ministério Público, que tem esse dever de zelar e tutelar os animais, e as organizações da sociedade civil, como as ONGs, principalmente aquelas que têm como objeto específico a defesa dos animais. São basicamente esses dois entes que vão propiciar a defesa dos animais em juízo.

prática, é que existe um volume muito grande de demandas principalmente de outras áreas, e o Ministério Público acaba não tendo condição, não tendo tempo e não dando prioridade para essa temática. Por isso, a importância da provocação. A gente tem um instrumento, que se chama representação, e qualquer cidadão pode se valer dele para noticiar um fato ao Ministério Público, pedir uma investigação e pedir providências.

SOUL: No caso da Lavagem do Bonfim, foi o Ministério Público que proibiu a participação de animais no cortejo. Há entidades e pessoas que argumentam que se trata de uma tradição, uma festa popular que acontece uma vez por ano, e criticam a decisão do MP por considerá-la um tipo de cerceamento a

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No caso do Ministério Público, ele precisa necessariamente ser acionado por alguém ou pode agir por iniciativa própria nesses casos? YURI: Ele pode ser provocado, mas ele pode agir de ofício também. O que a gente tem, na

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Tribunal Federal), justamente porque consiste numa prática cruel e a crueldade é vedada pela Constituição. Mas o que aconteceu? É o que a gente chama de efeito backlash. Houve uma reação política a uma decisão judicial. Logo depois da decisão do STF, houve a promulgação de uma lei e também de uma emenda constitucional, ambas para proibir a prática da vaquejada como manifestação cultural.

SOUL:

uma manifestação cultural... YURI: Outra questão muito pertinente. Porque o debate entre o direito animal e as manifestações culturais é um assunto muito delicado e muito importante. Eu, inclusive, no final do ano passado, dei uma aula em Lençóis [localizado a 426 km de Salvador, na Chapada Diamantina] num curso organizado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que era sobre práticas tradicionais, e a minha aula foi 54

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sobre a interface entre direito animal e práticas tradicionais. Como é que funciona isso? A cultura não é algo estanque, não é algo que deve ser mantido só porque é considerado cultura. Como a própria sociedade e o próprio direito estão em constante transformação, adaptação e melhoramento, então a cultura deve seguir da mesma forma. Inclusive no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade da vaquejada, que ficou bem famoso, o voto da ministra Carmen Lúcia e de outros ministros também foi nesse sentido: no sentido de que a gente não pode imortalizar, eternizar práticas que são cruéis, que são degradantes, que são indignas, sob o argumento da cultura.

SOUL: A proibição da vaquejada está sendo respeitada? Porque a gente tem notícias de que esse tipo de ‘evento’ ainda acontece, por exemplo, em municípios baianos como Serrinha... YURI: (respira fundo) A vaquejada foi considerada inconstitucional pelo STF (Supremo

Hoje, o que é que está vigendo?... YURI: Está vigendo isto: a emenda à Constituição, que acrescentou um parágrafo ao artigo 225 [“reconhece que os animais são dotados de sensibilidade, impondo à sociedade e ao Estado o dever de respeitar a vida, a liberdade corporal e a integridade física desses seres, além de proibir expressamente as práticas que coloquem em risco a função ecológica, provoque a extinção ou submetam à crueldade qualquer animal”]. Você mencionou a rinha de galo também, não foi?

SOUL: ...não, mas iria perguntar exatamente agora sobre isso... YURI: Com relação às rinhas, também são proibidas por decisão do STF, essa mais antiga, mas a gente sabe que, infelizmente, ainda acontecem. A Farra do Boi, em Santa Catarina, por exemplo, ainda continua acontecendo, embora já tenha sido proibida. Então, é uma questão agora de a gente fiscalizar esse tipo de evento e continuar impugnando no âmbito do Judiciário ou mesmo no Legislativo. SOUL:

A proibição vale para os rodeios também, não? Que inclusive parecem ainda mais cruéis, com práticas como apertar os testículos dos animais ou introduzir objetos no ânus dos animais... YURI: Eles fazem tudo isso. Qual a situação hoje dos rodeios? A gente tem ações pontuais. Tem


bastante rodeio em São Paulo. Então, tem muita ação judicial que é ajuizada para impedir a realização de um rodeio e aí geralmente a gente tem decisões favoráveis (à proibição). Então, está nesse plano, de apagar incêndio no Judiciário.

SOUL: No âmbito do Poder Legislativo, temos alguma bancada ou grupo de parlamentares que encampe a defesa dos animais? YURI: A gente tem o contrário: a bancada do agronegócio que é totalmente contra os direitos dos animais, principalmente se a gente falar de animais de produção, e que defende também rodeios...

SOUL: A 6ª edição da SOUL tratou da discussão sobre o sacrifício de nas religiões de matriz africana e racismo religioso, na entrevista de Carolina Suzart ao repórter Jorge Mário. Recentemente, o STF decidiu, por unanimidade de votos, que o sacrifício de animais em ritos religiosos é constitucional. No julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso sustentou

que “a liberdade religiosa é um direito fundamental das pessoas, é um direito que está associado às escolhas mais essenciais e mais íntimas que uma pessoa pode fazer na vida”... YURI: Essa questão é uma questão muito delicada. O próprio STF na decisão, ele diz que o sacrifício é constitucional desde que não haja a crueldade, que é vedada pela Constituição. A gente tem essa questão: proibir o sacrifício de animais nas religiões de matriz africana enquanto você tem os animais de produção que são criados de forma muito cruel, em escala muito maior e são mortos. E não só a indústria da carne, mas a indústria do leite, a indústria de ovos – que foi objeto de mi-

nha pesquisa de mestrado. Então, é hipócrita você falar que no candomblé eles maltratam os animais e que a gente tem a indústria aí vendendo e todo mundo comendo carne. Esse é um ponto. O outro ponto é que outras religiões também praticam algum tipo de sacrifício: a gente tem, por exemplo, as religiões mulçumanas, o islamismo e o judaísmo, que têm a prática halal [no halal, o animal é degolado; o abatedor pronuncia, em árabe, a frase “em nome de Deus” antes de fazer o corte com uma faca afiada. O abate é realizado com a face do animal voltada para Meca] e a prática kosher [que também tem como base do abate a degola de bois e aves, supervisio-

“É hipócrita você falar que no candomblé maltratam animais e que a gente tem a indústria aí vendendo e todo mundo comendo carne”.

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nada por um rabino], respectivamente. A jugulação cruenta, que consiste em degolar o animal, totalmente consciente, ele precisa morrer consciente e o sangue jorrar até que ele morra. Isso na nossa cultura não é permitido. A gente precisa da insensibilização prévia [do animal].

SOUL: Outras religiões também...

YURI: Você tem também práticas do Cristianismo. A Semana Santa é um exemplo. Não se come carne, mas se come bacalhau, por exemplo. Aí você tem um estímulo ao consumo do bacalhau, que é um animal. Muita gente acha que o bacalhau não é um animal, mas é: o bacalhau também sofre, também morre asfixiado. No Natal, você um consumo em grande escala do peru, do tender, do chester... Então, eu acho que a gente tem que ter todas essas discussões quando a gente fala de sacrifício de animais, e não só do uso dessa prática pelas religiões de matriz africana...

SOUL: E soa como discriminação ou mesmo racismo religioso porque não se discute o consumo do peru de Natal, por exemplo, e o catolicismo... YURI: Exatamente. A gente tem o perigo de resvalar no racismo quando se diz o candomblé não pode fazer o sacrifício de 56

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animais, mas todo o resto que acontece em outras religiões e na indústria da carne pode.

SOUL: O senhor é vegano? YURI: Sim, sou vegano.

SOUL: E a questão dos jumentos?

YURI: Os jumentos estavam sen-

do abatidos até a gente conseguir a liminar aqui na Bahia. E o interesse é do mercado Chinês. Os chineses fazem uma gelatina do couro do animal que tem supostamente propriedades terapêuticas, rejuvenescedoras, é um elixir da vida longa e saudável, uma coisa milagrosa. Uma questão que eu falo sempre: é preciso ter cuidado porque algumas pessoas dentro do próprio movimento [de defesa dos animais] começaram a praticar xenofobia contra os chineses. Os chineses comem cão e gato? Sim. E a gente come porco e vaca. Só mudam os animais de acordo com a cultura. É o que a gente fala de especismo seletivo, que é a discriminação de uma espécie pela outra, porque ela é diferente; e é seletivo porque tem uma perspectiva que é essa: são adoradores de cães e gatos, mas comem boi e galinha.

SOUL:

Outra questão polêmica é o uso de animais em pesquisas. Como é que está essa questão, do ponto de vista jurídico no mundo e no Brasil hoje?

“O coelho é muito utilizado em testes de produtos que são aplicados nos olhos, maquiagem, por exemplo. Eles colocam o produto nos olhos do coelho e observam o que acontece com o animal (vivo). A gente vê fotos de animais com os olhos corroídos porque o produto é corrosivo”. YURI: Essa é outra questão de-

licada e polêmica. No Brasil, a gente tem uma legislação bem recente, a Lei Arouca [Lei 11.794 - sancionada em 2008, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva -, que criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que regulamenta o uso de animais em pesquisas]. A gente tem a utilização de ani-


mais para pesquisas científicas, nas universidades, como também em testes que são feitos por empresas, teste de toxidade, por exemplo, para saber se o produto que vão lançar no mercado é potencialmente perigoso ou lesivo, e testam antes em animais. Sobre a utilização em pesquisas científicas, a gente tem a utilização de ratos, cães, gatos, primatas – primatas menores - e coelhos, esses são os cinco principais grupos que são usados. Por exemplo, o coelho eles utilizam muito em testes de produtos que são aplicados nos olhos, maquiagem por exemplo. Eles colocam o produto nos olhos do coelho e observam o que acontece, com o animal vivo. Então, a gente vê fotos de animais com os olhos corroídos porque o produto é corrosivo e coisas piores. Você tem testes da indústria do cigarro com cães e macacos e os animais ficam ali inalando as cinco mil substâncias tóxicas do cigarro. Tudo isso ainda é feito. A nossa legislação, no Brasil, não proíbe ainda, infelizmente. Muitas coisas que ainda são permitidas aqui são proibidas em países europeus.

diretrizes. São relativamente recentes e são muito bons. Mas não foram acatados integralmente pelo nosso (do Brasil) ordenamento jurídico. A Constituição de 1988 foi um avanço, em todos os aspectos. Dentro da Constituição, o artigo 225, é considerado um marco das constituições chamadas ecológicas, que trouxe um capítulo específico sobre o meio ambiente. O fato é que se deu um papel importante para o meio ambiente, que proíbe a crueldade, as práticas que levem o animal à extinção – que é o que está acontecendo com os jumentos – e as práticas que coloquem em risco a

função ecológica da espécie. Ou seja, em termos de Constituição, a gente teve esse avanço importante.

SOUL:

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi proclamada em 1978 pela Unesco. Dez anos depois, foi promulgada a Constituição de 1988, que veda práticas de crueldade ou de maus tratos aos animais. Em termos de direito dos animais, quais foram os principais avanços nesses últimos trinta anos no Brasil? YURI: No Brasil, a gente ainda está muito atrasado. Essa Declaração foi feita em Bruxelas, na Bélgica, em 1978, depois a gente teve a proclamação dos direitos dos animais, pelo Partido Verde alemão, em 1989. Esses são dois instrumentos internacionais importantes, que a gente chama de soft law, porque não obrigam, mas são JUNHO 2019

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