Edição #1 - Revista A Hora da Escrita

Apresentação O A Hora da Escrita nasceu no início de 2020 como um projeto de dois amigos, Sofia e Rafael, que não se conformaram com a dificuldade intrínseca a qualquer publicação de contos e ensaios no meio literário. Sentimos que no passado, por mais que houvesse menos editoras, havia mais possibilidades ao escritor iniciante. Existia uma constante circulação de revistas literárias dedicadas, quase exclusivamente, à publicação de contos em primeira mão e ensaios literários — entre elas, a revista Sur, de Victoria Ocampo. Com isso em mente, concebemos o projeto da revista, cujo foco é a divulgação de textos de autores menos conhecidos, tanto de ficção como de não-ficção.

O nome que escolhemos é uma clara alusão à novela de Clarice Lispector intitulada “A hora da estrela”. Por isso, decidimos homenageá-la como tema da primeira edição, além do fato de que, neste ano, a autora completaria 100 anos. Os olhos em volta de Clarice na capa da revista se referem ao enxergar mais além que nos permite a leitura, algo fundamental ao projeto. O escritor é como um cientista das palavras, tanto criador quanto observador da natureza.

Precisa estar com os olhos bem abertos, e se possível, ter um terceiro olho.

A revista é dividida em um manifesto e duas partes. À primeira concerne os textos de não-ficção e, como tema principal Clarice Lispector, temos os dois primeiros artigos dedicados à autora. Estes são seguidos por um ensaio sobre a tragédia grega Medeia, de Eurípedes, e seu paralelo com a condição feminina no século V a.C. em Atenas. Esta parte se encerra com um ensaio sociopolítico sobre uma atualidade: o autoritarismo em tempos de pandemia.

A segunda seção é dedicada aos textos ficcionais que recebemos por correio eletrônico. Nela se distribuem contos, crônicas e poemas, ao gosto do leitor.

Gostaríamos de agradecer aos colaboradores do projeto, em especial a Paula Granado, João Victor Magalhães de Almeida e Leonardo Marcondes Alves, que colaboraram com artigos e ensaios especialmente pensados para esta primeira edição. Ademais, deixamos sinceros agradecimentos aos ilustradores, Jaqueline Bastos e Rafael Petracco, e aos escritores que nos enviaram seus textos, depositando-nos a confiança de sua publicação.

Muito obrigado, leitor. Esperamos que você aproveite o conteúdo da revista, da mesma maneira que nós aproveitamos em fazê-la. Com todo prazer: comece a leitura!

Sofia Mello Lungui Rafael S. Agostinho Jorge

Sumário Ensaios 4 Manifesto 6 A esfinge do Rio de Janeiro 12 Tal qual Clarice 14 Medeia: agência e humanidade da mulher

19 Retrato de uma elite colonial

Ficção

22 Dois tratados sobre poesia 24 Da probabilidade: um destino 28 Lição Quintana 29 Imunidade irrisória 30 O vazio da infinitude 32 Encontro fortuito 34 Sobre vida e obra de Rodin Saussure

Manifesto artófago

O

Brasil não tem brasileiros. São coletivos dentro de um país que não valorizou seus mais velhos colonizadores. Respeita-se o índio por pena. Admira-se o boi por dó. Oramos pela galinha, por misericórdia. Mas comemos o ovo, por fome.

Quanto aos clorofilados, eu afirmo, são os verdadeiros donos desta terra. Pertencer a uma terra é mais que obter nacionalidade, é evoluir no ecossistema.

No tupi or not tupi, escolhemos o not to be. Os românticos escolheram os índios como heróis. Se um dia essa terra teve heroísmo, mais que erotismo, foi pelos Eremotherium laurilardi, não pelo Homo sapiens. Romantizar qualquer indivíduo da espécie assassina é ser cúmplice do assassinato. O bom índio não existe, porque não existe o bom homem.

No momento em que as placas tectônicas se separaram, o vaticínio foi declarado: ali nascia um país. O país dos Laurilardi. A marca da ruptura dura até hoje, são nossas praias. Onde chegaram os europeus, muitos anos depois dos índios, e mais anos ainda depois dos Laurilardi.

Quem mandou matar os Laurilardi?

Digo: os índios! A terra tornou-se suja muito tempo antes das naus portuguesas. Os índios não são bons-selvagens, porque já haviam sido contaminados pela arte e seu misticismo, que embora pareça intrínseco, não o é.

Os românticos erram por ainda acreditar na espécie. A vida animal é pura. Não foi ser batizada em água benta da catedral da Sé, mas por ser selvagem no seu mais bruto. Não é necessário ler Rousseau para entender-se, basta olhar-se. Olhe a si mesmo e veja. Você não en-

TEXTO Rafael S. Agostinho Jorge

contrará nada.

Nem o “você” existe, o certo é o “tu”.

Quem disse? Os portugueses. Mas a língua é nossa também. Qual língua? O português. E quem disse que falamos português? Temos um dialeto, que denomino-o brasileirês. Somos aberração, tanto como espécie, quanto como nação. Dividimos, matamos, beijamos, odiamos, abraçamos, mentimos, felicitamos, admiramos, invejamos, verborreizamos, e não sabemos para quê!

O que é um país? “Um território delimitado geograficamente com uma população denominada nação”. O Brasil nunca teve uma nação, salvo a Laurilardi. O pior do homem se converte no brasileiro, menos a arte. O que ameniza o absurdo do nacional, mas enferruja todo o conceito. Se um dia o Brasil teve arte, este dia começou com Machado e anoiteceu com Clarice, com quem viu seu ápice e todo o declínio.

Na Grécia antiga, a cultura nasceu para distinguir o nobre das outras classes. A culturização do homem nasce justamente com a alta cultura em oposição a uma outra que não existia, a acultura. Assim nasceu a distinção do vácuo e o vazio. Mas é uma nuance! Para isso que servem os substantivos, para catalogar as nuances. Sem nobres, o país do futebol importou sua cultura da Europa, e com alguns ajustes, chamou-a de brasileira. E daí, tivemos uma nação; que se fosse pintura, seria mosaico.

Exceto no futebol.

Mas quem disse que a cultura deve ser autóctone? Se o homem não está ligado à terra, por que a cultura o estaria? Da periferia dos

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países periféricos, estamos à beira. Quase lá, e estamos assim há mais de 200 anos. Mas a culpa não é do brasileiro, posto que ele nem existe, mas do homem como espécie. O pecado que nos rebaixou da Idade do Ouro não foi a maçã, supostamente foi comida por Eva, nem por Prometeu, que se diz haver-nos doado o fogo; mas sim, pela arte. Esta foi e ainda é nosso maior pecado. Tirando-nos da condição do bom-selvagem, precipitou-nos à religião e ao misticismo, e posteriormente, ao Estado. Este nunca soube, nem nunca saberá dissociar-se completamente daquela, pois ambos se baseiam em leis dogmáticas, o que se faz variável é a matiz, podendo ser mais ou menos flexível. Há religiões mais flexíveis que Estados.

Quem criou a arte criou a Humanidade! Por isso, a arte pode ser considerada como o início da metástase, que veria seu auge na própria religião, e por fim, no Estado-religioso. Por isso, aponto: as origens da miséria brasileira se encontram no Paleolítico. Só trazendo a arte para a realidade é que poderemos salvar a política, e o homem como espécie.

E aqui eu me dedico a uma explicação: o problema da arte não é por seu subjetivismo intrínseco, pois é fruto da condição humana. Porém, por seu misticismo. O mesmo misticismo que se vê em rituais xamânicos, ou cristãos, ou africanos, como de qualquer outra religião. O artista não é um ser tocado pelas Musas, é um psicótico, na melhor das hipóteses, ou um esquizofrênico; quando tomado como fenômeno individual.

Porém, quando visto sob a ótica social, não há explicação melhor do que delírio coletivo.

Faz parte do homem ter delírios, entretanto, deve-se reconhecê-lo. O delírio faz parte de nossa condição humana.

E somos tão periféricos na sina da

própria espécie, nós, brasileiros. E na periferia tudo se esmaga, para caber nas bordas do infinito entre o zero e o um. Se hoje nosso estado se mescla com a religião, não se assuste, pois é somente sua relação natural. Na verdade, eles nunca se afastaram. É ingênuo não enxergar que Marx criou sua própria religião, e seus obreiros não passam de novos cristãos, quase tão miseráveis em vida quanto os primeiro. O capitalismo pode ser entendido como religião, consolidada com as reformas de Calvino e Lutero.

O fascismo come o mundo que grita por ser abocanhado, vorazmente. Nem nisso é original, o brasileiro. Eu desisto de encontrar a originalidade. Felizmente, esta não nos é necessária. Só precisamos da digestão.

Temos um Papa, finalmente! Mais ainda, um profeta. Que o inferno consuma nosso Messias. Mas este manifesto não é político, tampouco religioso, mas sim artístico. Sendo, no fundo, uma poética. Ou um manifesto poético.

Com isso, concluo: a situação atual do Brasil tem duas fontes: a arte, como produto místico que evoluiu em religião e Estado; e o delírio, como condição humana. E apelo: tratemos de desmistificar a arte. Não é o fim das metáforas e das figuras de linguagem, ou das catarses aristotélicas. Mas o fim de uma arte esquizofrênica. Não é o fim dos símbolos, nem do artista, mas do inspirado por uma força extra-humana. Tratemos de mastigar e digerir o melhor da arte, e defecar o que já haveria de ter sido expulso há milhares de anos, lá junto ao Adão e a Eva do Paleolítico.

Faremos arte, a boa arte, a arte digerida, do artista consciente, para o povo artístico, igualmente consciente de sua sina. Se de alguma forma o Manifesto lhe pareceu pessimista, saiba que ele é muito mais que otimista. Há esperança na arte.

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TEXTO Rafael S. Agostinho Jorge ARTE Rafael Alves Petracco

E

m sua biografia de Clarice, Benjamin Moser nos conta sobre uma ida de Clarice Lispector ao Egito, onde teria encarado a própria esfinge. Quando lhe perguntaram a ela se havia desvendado o segredo da fera, Clarice respondeu: “não a decifrei, mas ela também não me decifrou”.

Durante toda sua vida, a escritora mais foi comparada com Santa ou bruxa que como mulher que escreve. Moser diz que Maria Bethânia chegou a cair sobre seus pés, num ato de referência quase divina. O que havia na figura da esfinge carioca que tanto despertava - e ainda desperta - esse mistério?

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De origem pobre, a família de Clarice é originária da Ucrânia, mais especificamente do povoado de Tchetchelnik. No início do século XX, essa região sofreu diversos ataques dos russos ao povo judeu. A família Lispector então migraria, por conta da ameaça, mas não foram tão rápidos assim. Mania, mãe de Clarice, foi estuprada por soldados russos que atacaram seu povoado, e pouco tempo depois descobriu que havia contraído sífilis. Moser diz que, muito provavelmente, Clarice foi concebida para que curasse sua mãe, porque na região havia a crença de que a gravidez poderia curar a sífilis. Como tentativa de salvar sua mãe, Chaya Pinkhasovna Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920; e morreria no dia 9 do mesmo mês, quase 57 anos depois.

Não é preciso saber muito sobre medicina: está claro que a gravidez não ajuda a curar a sífilis. Inclusive, é um fator de risco para a criança, que pode nascer doente, com outros problemas graves, ou nem chegar a nascer. Mania morreu no Brasil, alguns anos depois da chegada da família nas praias do Nordeste, quando Clarice já tinha pouco mais de um ano, embora ela dissesse que tinha menos de dois meses. Clarice nunca superou a morte de sua mãe, ao menos é o que parece para Moser, sentindo-se frustrada por toda vida, já que foi concebida para ajudá-la e falhou.

Seu pai trabalhava como vendedor. Assim que chegou no Recife, era um mascate.

Eles tinham pouco dinheiro e mal dava para as despesas

básicas. Mas Clarice e suas duas irmãs nunca deixaram de estudar. Iam a um colégio católico para meninas, onde puderam consolidar uma educação bastante rígida. A família migrou para o Rio de Janeiro no fim da adolescência de Clarice. Foi lá que ela deu início aos estudos de Direito onde, à época, era a Universidade do Brasil. Nos últimos anos da faculdade escreveu seu primeiro romance, “Perto do coração selvagem”, com o qual se lançaria no mercado editorial. Um ano depois do lançamento, já casada, deixou o país com o marido, que conseguira um cargo de vice-cônsul na Itália, e ficaria muitos anos sem voltar ao país tropical. Foi no seu retorno à Itália, depois da primeira viagem ao Brasil, que Clarice encarou a esfinge no Egito, ou melhor, que elas se encararam.

Embora o título do texto remeta somente à esfinge, Clarice foi mais que a esfinge. Foi a esfinge e Édipo ao mesmo tempo. Por isso o conflito.

Clarice é humana, e toda mulher e todo homem possui seus segredos que nem mesmo eles sabem o que são, os

segredos da consciência, intrínsecos à existência de ser pensante. Já ruminava Descartes: penso logo existo, esta é nossa sina. Que menos diz sobre a natureza humana do que nos revela sobre nossa condição - escravos da consciência finita e imperfeita, que quer saber mais e não entende o dados e estímulos que a todo tempo a acometem. Entretanto, Clarice se destaca, pois quer entender os mistérios, é filósofa por definição.

Poucos são aqueles que tentam entender-se a si mesmos com a ferramenta tão primitiva e básica que é a introspecção, sem recorrer ao sobrenatural dos devaneios (aos quais todos nós estamos sujeitos).

Clarice tentou de tudo para desvendar a sua própria esfinge. Desde a religião até o misticismo, foi bruxa e Santa. Aqui eu tento aclarar um pouco a analogia para os não familiarizados com o mito de Édipo e a esfinge: diz o mito que todo homem tebano (nascido na cidade de Tebas, hoje, na Grécia moderna) que se prestava frente à esfinge deveria desvendar seu segredo, senão, seria comido ali mesmo. Édipo foi o único que soube a resposta para o enigma da fera, que era algo como: “que animal anda pela manhã sobre quatro patas, à tarde sobre duas e a noite sobre três?”. Édipo respondeu: o homem. Ao ver seu enigma desvendado, a esfinge se lançou de um precipício. Édipo, então, pode reinar como monarca de Tebas. Entretanto, a rainha da cidade era sua mãe e, sem sabê-lo, casou-se com ela e tiveram filhos. Após descobrir seus infortúnios,

Édipo arranca (ou fura, depende da versão) seus próprios olhos e passa a viver como mendigo até o dia de sua morte, uma morte heroica e divinizada, pelo oráculo de Delfos. Édipo deixou uma vida de infortúnios para tornar-se herói.

O herói grego simboliza o filósofo; a esfinge, a natureza. O que Clarice desenvolveu ao largo de todas suas

obras foi uma busca pela própria existência, pelo fim último da vida e das coisas. Mas nos resta indagar-nos se, no caso Clarice, quem ganhou foi Édipo ou a esfinge, já que ela portava o dois. Deixo ao leitor a dúvida. Arrisco-me em um aprofundamento da analogia: parece-me que a escritora, já muito madura, quando escreveu “A hora da estrela”, não era a mesma experimental, confusa, mística e quase religiosa, de “Água-viva” ou “Paixão segundo G.H.”. Sua última novela publicada em vida é algo mais concreto e engajado, menos confuso, mas não menos poético. De fato, é uma obra mais fácil de ler que suas anteced-

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entes, exceto alguns contos. Foi com essa escrita mais acessível que Clarice se popularizou, aqui uso a palavra com muitas exceções.

Aquela escritora deu um final trágico a sua mais ingênua protagonista. Macabéa foi morta logo após sair de uma cartomante que lhe dizia muitas coisas boas. Com a morte da menina ingênua, esperançosa, enganada pela cartomante, morreu a escritora. Os dois fatos se deram tão conjuntamente que não é possível saber qual sucedeu qual. Clarice Lispector já sabia sobre seu câncer nos ovários quando escrevia a história de Macabéa. Não havia mais esperanças? Por isso, o final tão trágico?

Creio que o Édipo Lispectoriano indagou-se tanto sobre os enigmas da Esfinge Clarice que, no final, podese dizer que a esfinge decidiu pular do penhasco. Em “A hora da estrela”, há bem menos enigmas e mais respostas de uma autora quase engajada em mostrar as misérias da vida de Macabéa, revelando-nos muito de seus pensamentos acumulados por anos de introspecção. Também como Édipo, Clarice sofreu querer indagar-se pelo enigmas da natureza, a angústia e a desordem dos pensamentos que gritam para serem compreendidos, do “eu” que quer se encontrar na multiplicidade de outros, da matéria que transpassa e quer deixar de ser no agora para submergir na eternidade.

O preço é ter de lidar com um estado muito próximo da loucura. Moser nos conta que, já perto do fim da vida, no seu apartamento no Rio de Janeiro,

Clarice usava de remédios muito fortes para poder dormir, a mente não descansava. Quando finalmente dormia, nada lhe fazia acordar. Assim foi o incêndio que quase lhe custou a vida. Por sorte, só lhe queimou a mão. O que Moser chama de “maior autobiografia espiritual do século 20”, acredito ser mais apropriado, em seu lugar “maior autobiografia filosófica do século 20”. Assim é o conjunto monumental das obras de Clarice Lispector, cuja essência se baseia nas origens da filosofia em qualquer homem ou mulher, que irrompem pelo assombro e pelo espanto, não só na escritora ou em suas personagens, como igualmente no leitor.

Nos espanta a morte de Macabéa, nos assombra imaginar a G.H. comendo uma barata, ou a cena do cego mascando chicletes, mas, mais do que isso, nos faz refletir sobre a finalidade da existência mesma, origem atemporal da filosofia que nos traz Clarice. Mesmo que em seus livros não seja possível encontrar máximas sobre o homem ou a natureza à maneira de Kant ou Aristóteles, é possível encontrar o mais puro da filosofia: a origem do filosofar. Ler Clarice nos faz questionadores de nossa própria existência, e sua prosa poética agrada.

Por mais que algumas vezes possa parecer hermética, por dar muitas voltas e poucas conclusões, há que tratar de encontrar ali menos as respostas e mais as perguntas às suas indagações. Clarice não é religião, não é mito, nem lenda, é escritora, filósofa e, por fim, heroína da literatura brasileira, heroína post mortem como Édipo.

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TEXTO Paula Granado

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ensei muito em como escrever este artigo. Por fim, cheguei a conclusão de que devo escrevê-lo como uma mulher presente em 2020 que observa uma mulher nascida em 1920. Conheci sua história, suas obras, li resenhas críticas feitas por homens renomados e foi então que percebi: homens. Sempre os homens. E sempre tão fácil acessar a este conteúdo, sobretudo atualmente. Sendo assim, falarei eu, por mim, através de minha própria voz, ao exemplo de Clarice Lispector.

Em uma entrevista para a TV Cultura no ano de sua morte, Clarice disse que escrevia sem a esperança de que sua escrita alterasse qualquer coisa. Ainda que despretensiosa, a autora impactou e segue impactando gerações desde sua primeira obra, “Perto do coração selvagem”, lançada em 1943. Este romance recebeu o prêmio Graça Aranha, colocando Lispector, aos seus 22 anos, ao lado de figuras valiosas da literatura brasileira. A autora venceu por sua originalidade assombrosa e esta primeira trama foi apenas um presságio do que estava por vir.

Clarice havia de ser Clarice. Escritora de linguagem marcante e estilo bem definido, já apresentava então o que viriam a ser traços nítidos de sua personalidade enquanto autora: o estilo fluxo de pensamento, assim como a profunda indagação do eu e de tudo que existe e que se sente.

ARTE Rafael Alves Petracco Joana, protagonista da prosa lançada em 1943, surge com a força dos questionamentos sempre presentes no repertório da autora. Neste romance acompanhamos a vida – ou melhor, a mente – desta mulher fria e observadora dada a devaneios. À Joana, o que mais importa é encontrar-se, viver – ainda que esta não tenha certeza do que é de fato viver.

Ela sente, respira, analisa. Casa-se com Otávio, o ama e o odeia por amá-lo. Ela é, assim como tantas outras seriam nas mãos lispectoria- nas, complexa. Plural.

E é sobre isso que decidi falar. Sobre as mulheres de Clarice. Porque o debate importa hoje, assim como importava na década de 40. Deixando de lado a técnica sublime e as reflexões mordazes, consideremos, então, as mulheres. Não falarei aqui de Macabéa, personagem do renomado “A hora da estrela”, pois esta é um caso à parte que merece atenção só para si.

Joana. G.H. Lóri. Estas são mulheres que refletem, que enca- ram seus vazios, que se desafiam e se investigam.

Clarice não pretendia – deliberadamente, ao menos –, mas deu voz a um grupo de mulheres em uma época delimitante para o gênero feminino, pois era ela própria uma mulher provocadora. Disse, na mesma entrevista já citada, que em sua adolescência era “caótica, intensa, completamente fora da realidade da vida”. Ainda bem.

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A autora não se contentava com o lugar-comum destinado ao seu gênero e ousou publicar sua obra mesmo com o desencorajamento de alguns a sua volta.

Ela escrevia porque precisava, pois era o que lhe dava vida e, desta forma, deu a vida a tantas outras mulheres. Não se afastava por completo das convenções sociais, afinal, era fruto de seu tempo, mas questionava a si e aos outros por meio de intensas análises introspectivas que faziam suas personagens. Clarice construiu mulheres protagonistas de suas próprias histórias e que acreditavam no valor do autoconhec-

imento. E fez isto entre as décadas de 1940 a 1970.

Este texto é um convite à contemplação da alegoria que foi Clarice Lispector e, mais ainda, um chamado para que você, que me lê agora, reflita mais sobre as mulheres ao seu redor. As que conhece, as artistas, as que aparecem nas notícias, as que vieram antes e as que virão depois.

Pense em mulheres. Leia mulheres. Em meio a tanto retrocesso, nossas vozes precisam ser ouvidas. Mulheres, publiquem.

Manifestem-se. Estabeleçam-se. Tal qual Clarice.

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Medeia: Agência da mulher

TEXTO Leonardo Marcondes Alves ARTE Rafael Alves Petracco

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asão é um herói meia-boca e ambicioso. Tenta roubar o velocino de ouro na expedição dos argonautas ao reino da Cólquida, nas margens ocidentais do Mar Negro. Entretanto, o sucesso de sua missão coube a Medeia, a feiticeira filha do rei desse país bárbaro. No embate, Medeia e Jasão se apaixonam. Para acessar o velocino, Medeia usa seus poderes e artimanhas para derrotar monstros, acaba por trair seu pai, matar seu irmão e foge com o amado para a Grécia.

Ainda assim, Jasão não consegue seu almejado trono da cidade de Iolcos e o casal passa viver por uma década em Corinto com seus dois filhos.

A oportunidade de Jasão subir na vida aparece quando Creonte, o rei de Corinto, oferece-lhe a mão de sua filha Creusa (ou Gláucia) e, consequentemente, a sucessão ao trono. É aqui que se inicia a peça de Eurípedes.

A peça praticamente não foi celebrada, sendo notável a ausência

de alusões nas cerâmicas da época.

Contudo, largamente digerida (ou indigesta), comentada e adaptada, tornou-se canônica. Desse modo, o julgamento de Medeia e Jasão nunca terminou. Aqui, segue-se uma leitura contrastando as condições das mulheres gregas do século V d.C. e a situação feminina nas sociedades contemporâneas, salientando aspectos comuns ou de potenciais universalidades.

Essa tragédia possui, implicitamente, uma teodiceia. A busca por uma compreensão transcendental dos motivos da existência do mal e do sofrimento é uma questão existencial. Ao contrário das visões de mundo dos povos indo-europeus ou afroasiáticos, na qual uma ordem divina sujeitava os homens e os deuses, na Medeia de Eurípedes não há um mundo justo. Foi injusto o tratamento de Jasão com Medeia e nada repara essa injustiça. Ainda hoje, a teoria do mundo justo serve de alicerce para a prática de culpar a

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a e humanidade

vítima. Se a mulher sofre alguma forma de violência, torna-se naturalizada a inferência de que algo fez por merecer. Contudo, há outras concepções de teodiceias e essa peça é um ponto de partida para uma visão de mundo fundada na agência e responsabilidade políticas.

Logo no começo, Medeia teria

suplicado a Zeus – o guardião dos juramentos, tal como o pacto tácito matrimonial entre ela e Jasão – e a Themis, a deusa personificadora da ordem natural da justiça, por sua causa. Entretanto, em uma sociedade patriarcal em que um matrimônio era uma transação entre o noivo e o sogro, Medeia era uma estrangeira destituída de direitos. Por sua própria responsabilidade, não podia contar com pai ou irmão para exgir o respeito por sua honra. E Themis não tinha como equilibrar as coisas.

Com astúcia e com violência, Medeia faz que Creusa e Creonte encontrem a morte. Jasão perde, assim, suas expectativas de casamento e do trono de Corinto. Mas sua punição ainda piora.

O morticínio dos filhos não equilibra as coisas, exceto que Jasão se igualou a Medeia em um aspecto: conviver com a perda de sua família. Todavia, não foi a vingança socialmente sancionada pela lei de talião ou pelas guerras de família, pois a morte também pesou para Medeia, visto que os filhos também eram seus. Assim, não há de se

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esperar que os ímpios sejam punidos e os justos recompensados, mas cada um enfrentar as consequências de seus atos.

E Medeia enfrentou sofrimento, hesitação, humilhação, desejo de retribuir a dor que injustamente recebia. O papel da mulher posto na própria boca de Medeia (261-266) pressupõe um ideal que deveriam ser resignadas, mas reservavam o direito de revoltar-se caso fosse violado o pacto matrionial. Contudo, os deuses da justiça não intervêm em sua causa. A situação escapa do domínio de Zeus e Themis.

A não intervenção divina na agência humana resulta nas responsabilidades (e consequências) de seus próprios atos, não mais por capricho divino ou por hamartia – o pecado contra a ordem moral divina. Não há personificação caricata de um adversário ou mal externo. Os atos humanos possuem significados produzidos não por desígnio divino ou consoante a uma ordem cósmica.

Antes, esses significados resultam de ação plenamente humana. Porém, a peça não é niilista. São humanos a deslealdade de Jasão que provoca a ira de Medeia, a qual a satifaz não por impulso, mas por ato calculado.

A saída icônica de Medeia com os corpos dos filhos em um carro-dragão providenciado divinamente remete a vários símbolos. Um deles, a batalha do dragão do caos, é um arquétipo recorrente em várias mitologias. É a sentença do fim da ordem cósmica, o fim da

Themis. Recentemente, veio à tona a consciência de que o anseio por uma ordem cósmica subjante eclipsa em um mundo “tentacular”, semelhante aos dragões míticos do caos. Com efeito, quem encerra a peça é o coro, composto pelas mulheres de Corinto, com uma digressão de que os deuses aquiescem às decisões humanas meio ao imprevisto.

Cabia às mulheres gregas o papel de profetizas, como as célebres pitonisas de Tebas ou Delfos.

Aos homens cabia interpretrar os enunciados crípticos das mulheres.

Bruxas e feiticeiras foram na história europeia as mulheres que transpassavam as fronteiras e assumiam o papel de intérpretes dos desígnios divinos.

Medeia, a feiticeira, assumiu esse papel. Contemporaneamente, apesar da representatividade numérica feminina nas grandes tradições religiosas abraâmicas, ainda seu papel

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de intérprete da divindade é contestado. Em uma virada irônica no trama da história do pensamento teológico, as tendências feministas, womanistas, mujeristas e bosadi exatamente produzem interpretações como um pleno exercício de agência por parte das mulheres meio ao discurso religioso.

Essa tragédia não visava produzir uma empatia cartática. Eurípedes sabia muito bem impactar seu público. Em sua outra peça, Orestes, há uma inversão: o filho mata a mãe e é perseguido pela erínias que somente ele enxerga. As erínias de Eurípedes foram tão aterrorizantes que a plateia passava mal.

Se não comovesse o público para favorecer Jasão ou Medeia, a peça certamente produzia compreensão.

Aqui, cingem-se a afeição e o entendimento. É o prenúncio de um novo modo de concepção de mundo que estava nascente, a filosofia socrática, supostamente separando o logos do pathos, a razão da emoção. Contudo, apologeticamente Medeia (10781080) contende que a emoção derrota o raciocínio, além de causar os mais graves malefícios. Ela diz isso pouco antes de saírem os filhos, os quais são mortos fora de cena.

Eurípedes vai além dos filósofos ao persistir nas paixões. Evita ele uma resposta absoluta às questões existenciais de forma racional, mas fornece uma resposta performativa de como somos e reagimos às experiências de viver humanamente.

Surpreedemente, essa plenitude humana não foi realizada em um homem livre e cidadão – o ideal da pólis ateniense –, mas numa mulher, estrangeira, sem família nem rede social de amparo. Aqui, há um giro conceitual: o ser humano é capaz de agência. E nesse giro conceitual a mulher é indubitavelmente humana, não mais um receptáculo de procriação ou uma serva para pais, filhos, irmãos e maridos.

Compartilha Medeia a posição de migrante em famílias binacionais.

Como mulheres que deixam a “barbárie” do Sul Global para juntar-se a seus maridos em países mais afluentes, há uma precariedade no status de mãe e migrante. Ser estrangeira é disputar pela simpatia dos nativos que circundam e estar sempre sujeita a julgamentos. Quando o relacionamento amarga, não é difícil de prever qual parte será preterida em um final litigioso. A própria estada no país é precária, como a ordem de expulsão de Creonte por motivos os quais sequer ele teve controle. Mesmo seu destino para um lugar supostamente mais civilizado, havia a exclusão das estrangeiras. Lá Péricles tinha tornado legalmente inválido o casamento entre cidadãos atenisenses e estrangeiros.

O que faz a Medeia de Eurípedes singular entre as tragédias gregas foi a supreendente violência contra sua própria prole. Em outras variantes da mitologia, a morte dos filhos de Medeia foi nas mãos dos coríntios ou acidentalmente quando Medeia tenta

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transformá-los em imortais. O infanticídio, o sacrifício de filhos ou o aborto eram para os gregos decisões de prerrogativa paterna. Contudo, a condição de mulher de Medeia não reduz as motivações diante do mal e do sofrimento a uma representação estereotipada. São representações de experiências universais e uma inconformidade aos dois pesos e duas medidas. É similar à etnografia de Nancy Scheper-Hughes acerca das mulheres em condições abjetas de exclusão social no Nordeste brasileiro. As mães que dão boas-vindas às

Essa demanda por participação política resulta da recepção canônica da peça. Quando se fala em cânone literário as reações variam, mas sempre assombra a evocação a uma lista engessada de autores homens, velhos e mortos. Entretanto, vale lembrar o sentido original de cânone: a régua ou parâmetro para se medir algo. Assim, a Medeia de Eurípedes é canônica, constindo-se em um clássico ou obra-aberta, sujeita a diferentes recepções não exaustivas por diferentes comunidades leitoras. E são nessas provocações – uma nova

A CONDIÇÃO DE MULHER DE MEDEIA NÃO REDUZ AS MOTIVAÇÕES DIANTE DO MAL E DO SOFRIMENTO A UMA REPRESENTAÇÃO ESTEREOTIPADA. mortes de seus filhos não o fazem sem dor, mas moldam suas maternidades conforme suas circunstâncias de vulneraribilidade.

Apesar da universalidade das experiências humanas, o modo como essas experiências são vividas por mulheres revelam o quanto o status de humanidade depende da política. Há uma ponderação política no arranjo entre Jasão e Creonte, a negociação entre o casal, a súplica de Medeia a Creonte e a tratativa entre Medeia e o rei ateniense Egeu. A peça permite inferir que as maquinações são políticas, inclusive que a sujeição da mulher resulta da prática política.

teodiceia baseada na agência humana e sua consequente justificação da política informada pelas condições sociais de seus interlocutores – que essa tragédia constitui uma possibilidade de discussão.

O alerta permanece: Medeia não reproduz os erros de Helena, Pandora ou Psiquê. Ela própria é mestra de suas ações. O filicídio foi deliberado. Não foi fruto de engano, ingenuidade (atributo essencialista então associado à mulher) ou dos caprichos divinos. A moral da estória seria não negar a humanidade aos humanos, tampouco negar a humanidade às mulheres. Caso contrário, as consequências serão sangrentas.

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COVID-19:

Retrato de uma elite colonial ARTE Rafael Alves Petracco

TEXTO João V. Magalhães de Almeida

D

e tempos em tempos, eventos da ordem biológica produzem efeitos em nosso cotidiano. O novo coronavírus não foge à regra. Mas se enganam os que pensam que a pandemia veio para alterar as formas duradouras de nossas relações. Pelo contrário, seu impacto reitera e escancara aos olhos dos mais cegos um ‘velho — e conhecido — normal’.

Nem os mais otimistas apostariam que, em plena pandemia, viveríamos uma queda na taxa de pobreza e de desigualdade. É isso que apontam os estudos mais recentes acerca dos efeitos da Covid nas populações mais vulneráveis do país.

Porém, longe de corroborar com uma aparente efetividade das políticas públicas nesse período, tais resultados escacaram a brutal desigualdade no país. Isso porque, para que haja alterações significativas nos números relacionados à pobreza no país, basta seiscentos reais.

Tal normalização da desigualdade é fruto do estabelecimento de uma elite colonial e autoritária, herdada de nosso passado escravista e atualizada aos moldes do capitalismo dependente.

Quando buscamos um diagnóstico social de qualquer sociedade, o conhecemos a partir de sua história.

E a história do Brasil é marcada por um longo período de escravização, tanto dos povos nativos quanto dos

povos vindos da África. A persistência desta marca, que ainda paira sobre nossas relações, é produto de uma abolição tardia e encomendada por uma elite disposta a entrar na modernidade.

Que fique nítido, isso não significa a ausência de resistência do povo negro. Mas essa transição — entre o passado colonial e um capitalismo tardio — não se concretizou a partir de uma unidade nacional. Mas antes, a partir da reiteração do narcisismo voluntarista — para lembrar de Fanon — da elite colonizada perante a tentativa de substituição da então destituída burguesia metropolitana. Em outras palavras, ao invés de assumir para si o compromisso com a recém criada nação, a burguesia preferiu fazer desta um quintal. Nunca se constituiu, no Brasil, uma burguesia nacional de fato.

Ao contrário, existe uma elite fragilizada e subserviente aos interesses dos monopólios internacionais.

O racismo e o autoritarismo também representam herança de nosso passado escravista. A dominação de um punhado de homens sobre toda uma massa de indivíduos — no que se refere aos negros e indígenas — jamais seria possível sem a utilização sistemática de técnicas de tortura e violência e, por consequência, a criação de uma ideologia que legitimasse tal violência. É no interior desta lógica que se justifica

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a brutalidade com o outro. Como re- um projeto político antidemocrático sultado, aos poucos, o que se cria é por uma elite frustrada — do golpe uma atmosfera de violência. Isto é, de 2016 à eleição de Jair Bolsonaao rebaixar o negro à uma condição ro — , e por outro lado, a adoção de sub-humana, o assassinato de Mari- políticas de superexploração dos traelles, Ágathas e Guilhermes se torna balhadores — tais como a reforma tranão só possível como digerível. Isso balhista, a reforma da previdência e nos leva a pensar que tanto o racismo a recente privatização do saneamenquanto a violência presentes na so- to no país. No entanto, tudo tem um ciedade brasileira são produto de um preço. mesmo mal. Ou seja, do processo de É diante deste cenário que, enfim, dominação econômica de um povo chegamos à pandemia do novo corosobre o outro. Após a profunda crise navírus. Incapaz de criar crises, na verdade, econômica de 2008, o que vemos é o vírus é responsável por acelerá-las. O que uma ruptura entre o projeto neoliberal no pla- O VÍRUS É RESPONSÁVEL POR ACELERAR AS CRISES. no econômico e o projeto OCORRE O AUMENTO BRUTAL DO DESEMPREGO democrático no E A MIGRAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO PARA campo político. OS SETORES MAIS PRECARIZADOS DA ECONOMIA. Pois sabemos que, em qualquer conjuntura de crise, esta nunca é resolvi- ocorre é o aumento brutal do desemprego da, mas apenas transferida. e a migração da força de trabalho para os A crise de 2008, portanto, abriu setores mais precarizados da economia. portas para um período de austeridade Esse é o caso, por exemplo, do drama dos brutal por parte dos países em desen- entregadores de aplicativos. Fruto direto volvimento e uma superexploração do processo de desmonte do trabalho, tal dos trabalhadores destes países. No função — e xercida em sua maioria por entanto, tal agenda econômica, que jovens negros e pobres — remonta nosso tem como objetivo o aumento da passado colonial e o papel do escravo de gaexploração, não poderia se dar at- nho. Em outras palavras, enquanto a quarravés de um regime democrático entena se restringe a uma porção minúscu— sustentado por nobres ideais tais la — s etores da classe média alta e rica das como a igualdade e a liberdade. A grandes metrópoles — , a população negra consequência direta deste movimen- e pobre se submete ao risco de morte para to foi, por um lado, a admissão de servir aos patrões.

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Dois tratados sobre poesia TEXTOS Alessandra Bessa

Estou escrevendo agora e necessito de luz em meu interior, ao meu redor, da luz dos objetos e dos seres. A luz é uma chama presente que pode parecer inocente, mas guarda uma inteligência absurda.

Tão absurda que pode cegar. Ser escritora é um desafio, pois nem tudo são flores. Já que precisamos enxergar muito… Além! E há um peso em tudo isso. Que muitos não conseguem carregar e desistem de ser aquilo que foram chamados pra ser.

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Quando há luz, tudo pode ser visto, e isso engloba você e seus defeitos. Assim me veio a seguinte reflexão: no mundo, há três tipos de seres humanos - os seres comuns,que sentem a vida de maneira corriqueira, os psicopatas, que não possuem sentimentos e são capazes das piores crueldades, e, por fim, os artistas (poetas), que possuem uma sensibilidade extremada.

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Q

uando as palavras se tornam frases e as frases se tornam textos tudo desemboca em uma outra dimensão. Uma vida é escrita através dos dedos do poeta, como uma dança sutil que dispara. O poeta, escritor ou o artista da palavra (como você quiser chamar) é aquele que sente que, em algum lugar, poderá extinguir a sua dor e a sua solidão: dormindo-a no papel e nas entrelinhas do espírito das letras escritas. Ele é capaz de experienciar diversas sensações, pois se veste de múltiplas identidades. Com essa dança, o poeta almeja “rasgar” a linha de conforto da humanidade com questionamentos existenciais e filosóficos sob o signo da beleza musical da imaginação.

Desta maneira, reconhece a escrita como um lugar primordial. A compreensão do mundo sob a ótica da literatura, que é para ele a única liberdade.

A morte como um transmutar de sentimentos e inquietudes: uma necessidade e um respirar. Já que o poeta “brinca” com o infinito e com a incoerência da loucura e da dor. O poeta é um labirinto desmensurado de palavras, sentimentos, lamentos, amores, dores, formas…

E sobretudo de vazio… De vazio…

Há quem diga que a música que vive no ser da poeta é triste. Mas, como toda música triste, é intensa e bela.

Consciente e inconsciente do que é, ele escreve. Como uma necessidade e como um ser que é aglutinado ao ato da escrita. Condenado à escrita… Condenado à dor… Condenada a ser uma entidade texto no mundo concreto. E vai se apresentando em linhas poéticas.

Um pouco de si e feito de letras. Um pouco de si no vazio das letras. Um

pouco de si na dimensão das pessoas.

Um pouco de si no escuro das coisas exatas e inexatas.

Um pouco de si nos códigos linguísticos. Que não representam nada, apenas miniaturas de um novo mundo-texto que talvez não seja ele, mas outra coisa. Mas que se torna um alguém que fala alguma linguagem desconhecida. Desconhecida até mesmo dele, que escreve o desconhecido.

Porque a vida nunca foi dado a ser algo para o conhecer. Porque a vida, mesmo a vida criada pela poeta, não pode ser conhecida. A poesia existe, a poeta existe, existe a dor, existe a vontade, existe o amor, existe o caos. No entanto, nunca conheceremos o “grito” dessas cores.

O grito emitido é ensurdecedor.

E o universo não se apercebe. Não podemos escutá-los. A poeta sente e tenta dizer e desabrocha em sua intensidade: um sentir e um criar. Um alguém chamado poema. Que não é ela e não é ninguém. É um poema. Que como um ser, é dado a labirintos e complexidades, das quais resvalam entre as substâncias da vida e da incompreensão. O que isso quer dizer? Que os artistas sofrem, no entanto, podem viver as mais incríveis emoções transmitidas pelo olhar que possuem sobre a natureza das coisas.

Tudo pode virar poesia. Tudo pode virar pintura. Tudo pode virar música.

Há quem diga que ser artista nesse mundo é o mesmo que se perder e navegar em um mundo de dor e solidão. De fato, muitas vezes, o artista acaba dando sua vida pela arte, pois a arte é imortal e transita através dos tempos. E o artista? O artista morre.

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TEXTO Anônimo

P

eço licença à dura existência porque preciso contar ao povo surdo e à substância que sinto saudades da coisa que nunca conheci. Parece incoerência, mas é pura matemática — da mesma natureza mística do zero. Sinto saudades não do que você um dia foi — pois nunca foi — mas do que criei em mim. Eu concebi-o por inteiro, tudo ideia minha, mas não foi imaginação, foi dádiva divina. Era fruto da união do melhor com o pior da minha essência frágil, que nunca imaginei poder ser independente em algo metade meu, metade do mundo. Era questão de proporção, as coisas fluíam para o inconcebível. Algo que premonição, mas não posso dizer que já sabia. Isso seria alterar demais a realidade de que tanto fujo mas respeito, tal como respeito aos meus pais.

De fato, não soube apreciá-lo num princípio, temo que não me compreenda como carinhosa, e por isso peço com muito amor e atenção: não é fácil ser hospedeiro de parasita. Dói em mim, no centro de algo oco porém vibrante, pensar tais palavras. Escrevê-las me é um

tiro a cada letra que forma a palavra que lhe define — e exemplifica com muita didática. Ai, que dor, perdão, meu filho, mas é a realidade: foi meu pior parasita.

Contraio os olhos como se fossem cair lágrimas mas não consigo, estou seca.

O tempo até oscilava, parecia passar algo como num progresso, era um presente expandido, mas eu sabia que o instante de agora era diferente do agora-depois, e fui aceitando a ideia de mantê-lo em meu ventre já comido pelo tempo. O risco que antes me fazia temer, agora me dava razão de viver, estava orgulhosa. Era de um orgulho secreto, todavia. Já tive outros exacerbados que terminaram na pior das frustrações.

Comecei assim, numa alegria meio comedida, mas empolgante, que só os segredos guardados por uma pessoa podem proporcionar. Eu estava feliz por ter algo somente meu e dentro de mim, e isso me dava vergonha também. É que não tinha tempo para ser feliz, então era como pôr roupa nova na rua, sentia-me frequentemente olhada por ter um sorriso no rosto. Por isso, passei a caminhar como que com raiva, e muita pressa.

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Isto foi bem no comecinho, logo depois de eu saber de tudo. O tempo roncou.

Sentia que estava em mim e com muito conforto. Tentei proporcioná-lo da melhor estadia, meu ventre era hotel cinco estrelas. Acariciava-me a mim mesma como a você. Um delírio, vejo agora. À época ainda não tinha um rosto, seria demasiada confiabilidade no futuro, deste eu desconfio. Vivo no passado e tolero o presente, que me aprisiona. Não acredito nas promessas do futuro.

Caminho a cada passo, um por um, pensados no instante, no momento que elijo acionar meus músculos e digo a mim mesma: adiante. Abomino a finalidade, por Deus! Como a abomino! O fim em si é cruel e tudo que o rodeia é sórdido, da pura maldade. Culpo a divindade, qual criou um fim para o que se começa — é e só pode ter sido coisa de religioso. Por isso, não acredito em Deus, mas na natureza e no seu místico. Aí não há finalidade: há processos, por meio de onde somos presos pela eternidade. É no âmago de existir que habita a cobra que lhe pica e trai (ao homem, não a si meu filho, você foi puro), disso vem o processo de redenção que é sobreviver.

Não quero dar passos, mas sentar-me e respirar por uns minutos, ou por toda a vida. Não almejo mais que o ar que respiro, estou cansada de lutar. Talvez seja por isso, sou fraca de essência, ou louca por querer mais que a subsistência a qual fui fadada.

Da quinta semana em diante, já tão íntimos um do outro, toquei-o pôr minha epiderme. Eu sabia que estava ali, sob todas aquelas camadas de resistência do corpo jazia o melhor da

humanidade. Epiderme, derme, tecido subcutâneo, glândulas gordurosas e aquosas, músculos que pouco me serviam e suas fáscias, e por fim o tão organizado órgão, cujas três capas, perimétrio, miométrio e endométrio serviam melhor do que a mais luxuosa mansão da capital paulista. Como você podia ser tão rico, eu tão pobre! A deformação em mim fez-se então mais visível, à cada nova marca de estiramento do meu ser, já deformado, dava-lhe um traço ao seu rosto.

Uma semana depois tudo estava bem, exceto pelo tempo que parecia não passar: era ansiedade por você, querido. Já podia vê-lo com diversos pedaços de um todo que deveria ser montado: os olhos cor de amêndoa, banhada em chocolate, porque assim seriam seus cílios, como chocolate; seus cabelos seriam cor de pôr-do-sol setentrional, de um vermelho alaranjado flamejante, com comissuras labiais caídas, que desce obliquamente em continuidade com a marca que as bochechas maiores do que o

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necessário formariam um contorno de aspecto cansado, mas terno. Imaginei-o como neve congelada, brilhante e dura, pelo eterno inverno das montanhas mais altas.

Então, fui concebendo a placenta que o protegia de meu mais profundo Eu, o que deveria assegurar o desabrochar de uma inocência, mesmo que de fundo doentio, no caos. Tudo era tão lindo, místico. Ouço o ônibus passar.

Encaro a vida como vejo a paisagem que muda rapidamente conforme passa a máquina. Mamãe dizia: “alguns nascem para ser, outros para atuar”. Acredito que nasci para chorar. Há o grotesco na exceção, é imoral. Ah querido, pintava-o como a maioria, era Homem, mas no fundo queria algo distinto, mesmo que comedido e um tanto envergonhada, queria algo grandioso, espero que não seja pecado, mas queria que você fosse Jesus. Como sou descomedida! Se rezo dois terços completos e uma oração para São Marcos, tudo estará perdoado, deveria estar, tem que estar. Mas o desejo faz parte do homem, deve fazer das mulheres também. Deus que entenda, não lhe confio meus segredos. Se hoje rezo, por puro ato físico de rezar, com seus abrir e fechar de bocas, o faço por medo de que sua alma se perca por aí, se é que existe essa coisa de alma.

Como me dói pensar demais no assunto, rezo por garantia.

Na sétima semana, podia imaginar seu caráter e algo como uma ár-

vore oval, de uma espécie distinta, algo novo e revolucionário, com raízes que se lançavam num movimento radial do centro de meu órgão-gerador-de-vida e centrifugamente entrelaçavam-no. Nunca havia sido tão animal, era a natureza no seu auge. Comeria uma bomba por você ou por mim, éramos a mesma substância. Se fosse mulher, algo que não queria que fosse, digo bem, chamar-seia Paloma. Belíssima Paloma! Se fosse homem, qualquer um seria o nome perfeito.

Era primavera quando completamos a 12ª semana: houve o fim. Não de causa, mas de término de situação. Nem lutar eu pude — estava nua em minha cama, as duas despidas, dormindo no mais profundo sono.

Tão desatenta! No estado entre sono e vigília: o paraíso. Deparei-me ensanguentada, com todos os tons de vinho que a córnea humana pode captar, que iam do centro mais vermelho-intenso à periferia de um rosa debilitado, absorvido pelo ar. Era o universo absorvendo o que lhe pertencia. Estava rodeada pelo tribunal que parecia julgar-me culpada pela tentativa de vida, e que seria pago com a pior das mortes: a da vida que nunca chegou a existir. Fiquei imóvel pelo susto de ver meu corpo decompondo-se em líquidos de odor ferroso, talvez por simples asco, talvez por decepção. Então vi um borrão que mais parecia a parte do ovo da galinha que não como por nojo. Não,

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não poderia ser você! Não deveria! Não era, de forma alguma, da maneira que o imaginava, mais parecia com um peixe, dos mais assustadores. Como fui iludida por todo esse tempo, que nem mais tem data, mas sei onde está: é hoje, ontem, amanhã ou sempre: o presente está expandido, não tem diferença. Ainda estou deitada, não pude mover-me além do raio que me prende ao círculo da eternidade. Estou encarcerada por um crime e devo permanecer aqui até a rendição dos meus maiores pecados, é questão de reflexão.

Embora tudo, eu te amei, meu anjo. Lamento que não pôde ver nem as guerras dos seus irmãos, nem o mar que abraça os continentes, ou a terra que pouco dá de comer aos pobres, nem mesmo respirou o chumbo que sai do coração civil, foi um processo são o seu, livre de humanidade. Aqui ainda deitada, só sei que os milissegundos correm e dão caráter de velocidade ao presente estagnado porque o sangue já secou e está quase preto. A vida é tão frágil e estúpida nesses preâmbulos de existência. Da sua passei a ter a minha. Agora já não nos resta nada.

Eu não chorei, nem choro: há certo alívio. Não mais existe um ser dentro

de mim. Nem mais tenho alma, estou oca. Por mais que a solidão me pegue aqui deitada, entre cadáveres e hemácias, nunca fui capaz de rompê-la em plenitude, solto um riso que ecoa pelo quarto como o grito da criança ao nascer, aquele grito de afirmação da existência, que define o caráter de um homem.

Entonei-o com graça e força por você.

Não foi um choro qualquer de criança, ou um choro de parente em velório, foi gargalhada para a eventualidade da vida. É da mais grande hilaridade como tudo acontece e depois deixa de acontecer.

Nascem baratas e mosquitos por toda a parte, mas e você? É tudo coisa de probabilidade. Lembro-me que logo depois de descobrir que lhe teria, fui ao médico e o senhor me disse: “há cinquenta por cento de chances de ser menina, os outros cinquenta menino e alguma outra possibilidade de dar aborto, então espera para contar aos outros que está grávida”.

A esta última parte mal me atentei. Só prestei atenção na probabilidade de ser menino, o que com o tempo fui alterando, como mentira que se torna verdade, e já estava perto de noventa — ou algo assim. Como eu era ingênua, deveria haver dado-lhe mais atenção. Pensei que tudo se resolveria na oração.

Lição Quintana

TEXTO Lucas Quirino

Das utopias de Quintana Aprenderia em grande estima Que só se anda pra frente Quando se olha pra cima.

Há estrelas lá no alto O literato me intima Olhe para elas E o coração não desanima.

Se as coisas são inalcançáveis, Ora, não se oprima!

A alma confiante De nada se vitima.

Mas segue assim triunfante, Pois aprendeu a sábia rima Que quem busca alvo certo, Sua jornada um dia ultima.

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imunidade irrisória TEXTO Sayonara Lopes

Ouvindo Tim Maia, percebi como minha vida é feia. Sambei por todos os verbos que o cotidiano e o vulgar me ensinaram, deitei em colchões, chãos, mãos e abraços que me rasgaram o peito. Me arrependi de decisões que sequer foram de minha autoria. Chorei meu nascimento, mesmo anos depois de me acostumar com a respiração fora do útero. Mas só ouvindo Tim Maia, essa semana, percebi como minha vida é feia.

Eu tinha por volta de meus 9 anos, quando duas obras vieram ao meu encontro, e nelas me encontrei. Sobre a primeira, pai me presenteou com um livro de capa vermelha sobre um dilema filosófico com porcos-espinhos que pessoa amargurada qualquer transformou em fábula infantil e, depois, transformou em sonhos ruins que me abraçavam pela madrugada.

Era quase insistente, como eu lia esse livreto toda noite, antes de dormir, como se a ânsia por aqueles pesadelos me enriquecesse a energia de meninez.

Enquanto pai me apresentava a dores ilustradas em aquarela, mãe as escondia de si mesma: ia de bares a cultos, e seu símbolo sinequanon era um lenço branco de tecido barato com o qual descia escadas escuras, enxugando suas lágrimas, suponho, de desespero com um requinte de desilusão. Um dia, vasculhando suas coisas, achei uma fotografia de seu nanico casamento, que trazia um poema de desamor no verso: “Se vais beijar como eu bem sei / Fazer sonhar como eu sonhei / Mas sem ter nunca amor igual ao que te dei”. julho de 2020

Aquele pesar em frente e verso passou a ilustrar minhas afetações no banco pálido da escola católica, que me introduziu à misantropia.

Anos depois reencontrei esses desatinos do acaso, devido a outros acasos desatinados. Esbarrei novamente com o paradoxo dos porcos-espinhos, destrinchando um livro de filosofia de meu autor mais estimado, e me senti personagem descartável de Clarice, devido àquela epifania que apenas me trazia mais incertezas. Não obstante, redescobri o poema que até então jurava ser de autoria de minha mãe, devido ao entalhe que teve à situação, numa coletânea de samba-canção.

Essas armadilhas na parede da lembrança me fazem pensar. Quem será o maestro cego que me rege a vida? Até que ponto sou livre, se nasci condenada ao acaso? O acaso é, de fato, acidental? Ou eu estive fadada a ser o que sou? Por tempos, achei que o desespero já me havia apresentado ao desencanto, mas ainda são muitas as dúvidas que me afastam da imunização racional. Ouvindo Tim Maia essa semana percebi como minha vida é feia.

Que beleza é sentir a natureza Ter certeza pr’onde vai E de onde vem Que beleza é vir da pureza E sem medo distinguir O mal e o bem Uh, uh, uh, que beleza!

Uh, uh, uh, que beleza! página 29

O vazio da

infinitude TEXTOS Gabriela Campiglia

Há dias em que tomo dois banhos. Um deles é para limpar o meu corpo e o outro, para me trazer ideias. Ideias em necessidade de me ausentar do mundo e renovar a alma.

Em tempos de quarentena, o tempo é vasto. Infinito. E pasmo.

Pasmo no quarto, vivendo no nada. É em meu segundo banho que renovo os meus nadas. Porque, na pausa do viver, há necessidade de outras pausas.

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Autoridade fingida Vivo em delírio que definhar é o meu caminho Vivo em vigilância que me controla em ânsia E me aprisiona da licença Que quero desse abuso E a minha doce existência te entrego com imprudência No aguardo de gozar do prazer infinto E quando os meus ossos pavonearem junto a minha pele Serei eu soberana de mim mesma?

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Encontro fortuito TEXTO Angélica Cigoli Frangella

Q

uando se mora na cidade, cada número do relógio ganha outro nome além daqueles que conhecemos.

Pela manhã, o 5 vira “hora de acordar”.

Pela tarde, o 1 vira “hora de almoçar”.

Pela noite, o 12 vira “mais um dia indo dormir tarde demais”. Quando se mora na cidade, vez ou outra se cansa dos números e de seus nomes. Quando se mora na cidade e se cansa de a todo número ser alguém, colocam a coleira no cachorro e saem para dar uma volta.

Segura firme a ponta da guia e anda alguns passos à frente do cachorro, verificando se não há cacos de vidro pelo chão. Coloca as mãos no bolso, a cabeça pendendo para frente, os pés se arrastando pela calçada que fedia com o fim da feira. Uma poça de água faz retomar sua atenção, e logo é pé-chutando-chão de novo. Não se assustava com a buzina do carro, nem com a pomba voando baixo, nem com a barata que saía da grama. Quando se vive na cidade, está sempre tomado por um estado de transe que serve de mecanismo de defesa.

Um senhor vira a esquina. Desvia o olhar da calçada. Volta para a calçada. Volta para o senhor. Ele veste um terno e segura um saco de lixo; a cabeça de fios branco-loiro e uma aparência de quem não era dali, parecia um enviado a ela para um encontro fortuito. Chutava o chão como outrora a menina fazia. Andava como um morto robotizado, quase que escorado no paredão de um condomínio. Os dois se olharam uma vez. Teve vontade de conversar com ele, mas não o fez.

Quando se mora na cidade, há sempre o medo de puxar assunto com quem pode vir a te matar.

O senhor segue seu caminho, parecendo um peregrino em direção ao resto de sua morte. Sua vida entregue a qualquer acaso, que provavelmente não é o que gostaria de conhecer. O acaso, na cidade, é cruel. Quando se mora na cidade, os homens gostam é de horas marcadas para almoço, batem a perna ansiosamente debaixo da mesa, dizem “Que pena, eu preciso ir embora. Meu chefe me mata!”. Os homens gostam mesmo de hora marcada pra

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bater cartão. Gostam de hora pra assistir o jornal sanguinário enquanto jantam e depois vão dormir, querendo uma noite tranquila mesmo depois de ter testemunhado três estupros, quatro assassinatos, cinco assaltos e mais uma notícia tão ridícula do governo; não se tem mais vocabulário para expressar a indignação. Se acostuma, se contenta, se esquece e vai dormir.

Mas o senhor provavelmente não fazia isso. Aquele senhor parecia um sujeito enviado por algum deus. E a garota puxava a coleira, dizia “Faz cocô ali na frente, a gente precisa seguir ele” e o cachorro olhava com os olhos caídos, com vontade de fazer cocô imediatamente, mas seguia sua dona.

O senhor vira a esquina, as mãos pendendo ao longo do corpo. Perdemos o senhor.

Pega o cachorro no colo, sai correndo por alguns minutos, o cachorro com a língua de fora,

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sem entender a importância sem motivo de terem cruzado com aquele senhor.

O senhor agora atravessa a rua, não está mais segurando o saco de lixo.

Está conversando sozinho, gesticulando, brigando com algum deus punitivo que fez com que usasse um terno tão quente num dia tão quente como os que são quando se mora na cidade. A garota olha novamente, e agora tem de ser a última vez. Por mais que se interesse muito por aquela figura e não consiga o tirar da cabeça, e que pense nele como um personagem dos contos que expressam seus encontros, tem de ir embora.

Quando se mora na cidade, o ideal é não olhar fixamente para alguém por muito tempo. Mesmo que, aparentemente, ela pareça estar abandonada.

Aqui se edificam humanos. Sortudos aqueles de grandes andares e churrasqueira gourmet. Quanto ao senhor, casebre de terra batida construído em terreno sequer permitido pelo governo, espera-se que qualquer dos números das horas um dia chegue e seja para ele “hora de ir”.

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Sobre a vida e obra de Rodin Saussure TEXTO Rafael S. Agostinho Jorge

Rodin nasceu francês, ou devo dizer, nasceu humano e tornou-se francês com os anos. Teve três filhos, também franceses de criação, escreveu cinco obras das quais desgostou de todas, entrou em doze relacionamentos-expresso, saiu de todos eles, claramente; noivou quatro vezes, das quais duas renderam casamentos de mais de um ano e uma de menos. A outra, faleceu com algumas semanas do compromisso, era diabética, hipertensa e tinha o mau hábito de fumar.

Durante os seus 80 anos, Rodin comprou seis cachorros, e ganhou três, e encontrou dois na rua que por pena se tornaram seus. Bondoso, caridoso e generoso eram suas qualidades.

Nunca matou ninguém, nem física, nem psicologicamente. De fato, pensou em esgoelar suas meninas, mas nunca a ponto de matá-las, não era cruel.

Foi estudante em Paris. Fazia arte, e era isto, pois nunca soube bem definir a arte que fazia, na verdade, nunca soube definir a Arte como substantivo abstrato. Demasiado abstração até mesmo para o artista plástico.

Criou obras maravilhosas, segundo os críticos, que hoje estão nos melhores museus de Nova York. “O seio”, sua mais conceituada, está no MoMa, onde ganha olhares profundos sob câmeras de celulares. É um grande seio de mulher que parece pronto para amamentar o faminto rebento da humanidade, assim define. Quando lhe perguntavam, os jornalistas a hora da escrita

assíduos por respostas mágicas e profundas.

“D´onde lhe veio esta incrível inspiração, sr.

Rodin?”, ele se calava e dizia: “é segredo, eu só senti, mas não posso contar”. Grande homem foi este, que muito nos deixou em matéria de arte, embora não soubesse defini-la. Talvez, se alguém perguntasse a Sócrates o que era a filosofia ele diria: não o sei, eu só sinto. Assim é a beleza das artes pouco entendidas, somente sentidas em seu abstracto senso de existência, sendo quase divinas.

Chego então à conclusão que Rodin Saussure foi mais que um artista, foi um profeta. Ou todo artista é um profeta ou todo profeta tem que ser um artista, mas nem todo artista tem que ser um profeta. Estando Rodin Saussure na intersecção dos dois conjuntos, ele foi um artista e um profeta. Podia ter sido o líder de uma nova seita, a sua seita. Ele sente e transmite, nada mais faltaria para fundar sua religião. O profeta-artista faleceu no dia treze de maio de mil novecentos e noventa e três.

O filho do modernismo morreu na contemporaneidade; sem nação, já que ninguém proclama nacionalidade perante a morte, o que facilita o ato, com os filhos e filhas olhando-o nos seus últimos minutos de vida, onde jazia na sua cama em Paris, mirando sua mais bela obra pela tela de uma grande televisão; disse: “C´est moi” e, num ato dramático, deixou de respirar, parecendo até que foi coisa montada.

Grande Rodin, artista até na morte. página 34

Expediente Editores Sofia Mello Lungui. Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2020).

Rafael S. Agostinho Jorge. Estudante de Letras na Universidade Católica Argentina; e de Física na Universidade de Buenos Aires.

Visual Projeto gráfico e diagramação: Sofia Mello Lungui Retrato da capa: Jaqueline Bastos, @jaqueilustra Ilustrações dos ensaios: Rafael Athaualpa Alves Petracco, @ludius.07 Demais artes: pxhere.com

Textos Leonardo Marcondes Alves. Antropólogo, pesquisador na VID Specialized University, Stanvanger, Noruega. Mantém o blog www.ensaiosenotas.com.

Paula Granado. Estudante de Letras na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

João Magalhães. Estudante de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo.

siga no Instagram! @ahoradaescrita julho de 2020

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