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Dossier Novas perspectivas para a liberdade religiosa na América Latina
Novas perspectivas para a liberdade religiosa na América latina
O fenómeno religioso aparece hoje como um revelador privilegiado para compreender numerosos factos e movimentos sociais do mundo contemporâneo. Não se trata, por conseguinte, de um tema que diga respeito a questões exclusivamente espirituais e/ou doutrinárias. Além disso, a religião é um fenómeno social intimamente ligado a aspectos tão fundamentais e transcendentes como a liberdade, os direitos do homem, a paz, o desenvolvimento, a justiça social e a que respeita, igualmente, assuntos de interesse imediato para as diferentes confissões e para o Estado como, por exemplo, a sua regulamentação, por meio de diferentes sistemas de relação.
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No início do novo milénio, a bancarrota do antigo carácter monorreligioso da América latina é uma novidade neste domínio. O panorama religioso americano mudou consideravelmente no espaço de alguns decénios. Não se apenas da passagem de um Estado confessional para um Estado aconfessional, ou da regulamentação do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, mas também de mudanças profundas que se têm observado na sociologia religiosa do continente americano.
Esta diversidade que, há apenas cinquenta anos, ainda se exprimia em raras ocasiões através de alguns grupos ligados ao protestantismo histórico, de pequenas comunidades judaicas e alguns restos de religiões autóctones, ultrapassa hoje todos estes quadros e exprime-se através de experiências religiosas múltiplas e muito espalhadas.
O pluralismo religioso que a América latina hoje demonstra é uma das razões que levaram o conselho de redacção da Consciência e Liberdade a consagrar um número monográfico ao conhecimento e ao exame de uma situação nova, que deve ser analisada ao mesmo tempo que outros processos inovadores no contexto jurídico das repúblicas americanas. Desejo falar das transformações que estão prestes a dar-se
no quadro das relações Estado-confissões religiosas em alguns países do Novo Continente. Estas transformações colocaram na ordem do dia, a competência que recai sobre o Estado de reger a dimensão social do factor religioso nos países de grande diversidade étnica, linguística e de crenças.
Actualmente, na maior parte das disposições jurídicas americanas, o princípio director em matéria religiosa é o da liberdade religiosa. Esta liberdade supõe um avanço apreciável em relação ao tratamento que o legislador, no meio do século XX dava àquilo que então se chamava liberdade de culto.
Convém lembrar que a maior parte das disposições jurídicas americanas se baseiam nas noções de “religião oficial do Estado”, a protecção do Estado para com uma confissão determinada e naquilo que se chama a “Protecção Nacional” do Estado para com a Igreja Católica. Esta última fórmula, herança do pensamento que reinava antes e depois da independência, estabelecia que as novas Repúblicas deviam assumir os direitos exercidos durante mais de trezentos anos pela monarquia hispânica em matéria de apresentação à Sé apostólica das dignidades eclesiásticas, da demarcação das dioceses, da comunicação com a Santa Sé, etc.
As mudanças ocorridas na concepção do Estado no decurso do século XX, com as modificações consecutivas dos textos constitucionais respectivos na América latina e em Espanha, convidam a reflectir sobre os novos sistemas de relações que os legisladores americanos sancionaram para garantir a não discriminação na aplicação das leis por razões ideológicas ou religiosas, o princípio da liberdade ideológica e religiosa e o princípio do respeito para com as crenças ideológicas ou religiosas individuais.
O exemplo espanhol da não-confessionalidade do Estado e da obrigação, para os poderes públicos, de cooperar com as Igrejas e as confissões religiosas, tem servido de referência para outros sistemas jurídicos, como os do Peru, da Colômbia e do Chile. Estes países, nas suas últimas reformas constitucionais e nas suas normas de desenvolvimento, deram prova de uma grande sensibilidade em relação aos direitos relativos à liberdade religiosa e de um princípio de reconhecimento de outras confissões para além da Igreja Católica.
Por outro lado, os casos da Argentina e do México ilustram até que ponto as heranças histórico-jurídicas respectivas – através do sobrevivência do Proteccionismo na Constituição argentina até que em 1994, o princípio da “separação da Igreja e do Estado” e a condição laica do Estado no México – têm condicionado as importantes reformas que têm tido lugar nestes dois países em matéria de associações religiosas e de culto público no decurso dos últimos decénios do século XX.
O leque de análises e de avaliações sobre as reformas constitucionais já realizadas, ou em realização, para adaptar os respectivos quadros jurídicos às novas exigências de sistema internacional de protecção dos direitos do homem e, em particular, do direito fundamental da liberdade de religião, ou de convicção, serve como pano de fundo para os autores deste volume.
Os leitores têm nas suas mãos estudos que expõem – sob o ângulo político, jurídico ou histórico do especialista de cada país analisado – as novidades, quanto mais não seja, de conjuntos normativos estatais, com uma orientação eminentemente prática, analisando as duas faces do progresso de seus sistemas jurídicos respectivos em matéria de liberdades, respeito da dignidade da pessoa e da tolerância para com as crenças, convicções e direitos do outro.
O conselho de redacção da Consciência e Liberdade deseja agradecer aos autores deste volume pela sua generosa disponibilidade e pela sua colaboração para a obra que tenho a honra de apresentar.
Rosa Maria Martinez de Codes
Coordenadora, professora titular De História da América Universidade Complutense, Madrid, Espanha