CARTA ABERTA Deu muito trabalho. Desde o início da minha carreira, sempre me virei sozinho na produção de uma reportagem e isso significava fazer fotos, entrevistas, cuidar do orçamento da produção. Sempre me vi como a redação de um homem só até todo trabalho cair nas mãos do editor. O tempo passou e as coisas no jornalismo mundial mudaram muito. Todas as revistas que trabalhei como free lancer anos atrás acabaram. Minha vida mudou bastante também. Me tornei professor e abracei toda essa ideia e tudo que ela acarreta. Mas nunca mais trabalhar numa revista? Onde, porém? Meu trabalho, meu estilo, mentalidades e pautas não interessam mais nesse mercado que preza a idolatria da subcelebridade. Meus temas não rendem milhões de cliques apesar de suas importâncias. Fazer o quê, então? Ficar se lamentando? Ah, bonitão, de jeito nenhum. Não há revista pra trabalhar, então que eu faça essa revista. Que eu volte a ser a redação de um homem só, desta vez cuidando de todos os processos que vão desde a ideia de uma pauta até a divulgação da revista, no caso, um fanzine que é o termo mais apropriado para o que você tem em mãos agora. Lindo, maravilhoso, mas dá um trabalho desgraçado. Que eu adorei. Esse número 1 organiza melhor as ideias em relação ao design da revista que você viu no número zero lançado em agosto passado. Minha inspiração para o projeto gráfico são as revistas japonesas que fazem do branco na página uma questão fundamental. O cuidado com a edição das fotos também é gigante. Ela tem que ser linda! Agora dois dedinhos de prosa sobre as matérias principais. Ambas discutem os rescaldos dos nossos Jogos Olímpicos e o que do tal legado ficou. A matéria de capa alavanca uma discussão sobre até onde vai a decadência do basquete brasileiro. A reta final do NBB mostra nossa capacidade de organização, de fazer bons jogos e lançar bons jogadores com provam Paulistano e Pinheiros, por exemplo. Então, por que o fundo do poço? Temas para uma discussão mais profunda que o Portrait Fanzine tem o prazer de fornecer argumentos. O número dois não demorará tanto pra sair. Será um especial apenas com entrevistas. Ahhh, ia me esquecendo. Esse exemplar que você tem em mãos tem vinte páginas. Quatro a mais do que o número zero. Que esse crescimento continue. Embarquemos...
SUMÁRIO
basquete pg. 4
olimpíada pg. 10
a loira do banheiro pg. 16
PROJETO
Alexandre da Costa
FUNDO DO POÇO Outrora segundo esporte do torcedor brasileiro, basquete vive sua pior crise dentro e fora das quadras texto e fotos: ALE DA COSTA
Tempos atrás, no país do futebol, o segundo esporte de todo brasileiro era o basquete. Bicampeão mundial (1959 e 1963) e três vezes medalhista olímpico (1948, 1960 e 1964), a seleção masculina apresentava talentos que encantavam o planeta como Wlamir Marques, Amauri Passos, entre tantos outros. Era um timaço, principalmente nos final dos ano 50 e início dos 60. Encarava qualquer um, podia vir Estados Unidos, podia vir União Soviética. Aí a geração de ouro foi abandonando as quadras. Entressafra? De jeito nenhum. Apareceram Carioquinha, Marquinhos, Cadum, Amauri, Oscar ... Esse time moldado nos anos 70, com adições nos anos 80, era uma das cinco maiores seleções do mundo. Em 1987, o maior momento daquelas estrelas. Em Indianápolis, no Pan-Americano, em tarde inspirada de Oscar e Amauri, o Brasil virou um jogo perdido – terminou o primeiro tempo mais de vinte pontos atrás - e bateu os Estados Unidos em sua casa, primeira derrota deles em seus domínios. Medalha de ouro sensacional. Nos últimos respiros dessa geração, ainda enfrentou com dignidade o Dream Team de Michael Jordan, Magic Johnson e cia. nos Jogos Olímpicos de 1992. Amauri parou, o mão santa Oscar idem. E o basquete brasileiro dos homens se afundou com as não participações nas Olimpíadas de 2000, 2004 e 2008 e campanhas pífias nos Mundiais. E o feminino? Mesma história. Anos setenta, o terceiro lugar no Mundial com Maria Helena, Heleninha, que lideravam um time sensacional. No rastro desses talentos, duas moças do interior surgiram e mudaram a cara do esporte. Hortência e Paula elevaram o nível do basquete feminino a um ponto impensável. Nos anos 80 e 90, as duas reinaram quadras 4
mundo a fora, abrindo espaço para Janeth, outro talento raro. Tantas joias em quadra e os títulos apareceram: a medalha de ouro no Pan-Americano de Havana contra as donas da casa e o humor inesperado de Fidel Castro (1991), o Mundial em 1994 e a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Atlanta. Paula e Hortência deixaram as quadras. Anos depois, Janeth seguiu o mesmo caminho. Como no masculino, o time brasileiro das mulheres despencou em relação aos resultados e sumiu do pódio. Em contrapartida, nos anos 80, o voleibol masculino e feminino se enraizaram na sociedade. Com carisma e talento, William, Bernard, Renan, Vera Mossa, Isabel, Jaqueline viraram xodós nacionais. Impulsionados pelo olho clínico do jornalista Luciano do Valle, o vôlei virou febre nacional. Ginásios lotados, jogos emocionantes (muitos transmitidos pela TV aberta), medalhas em Jogos Olímpicos. O que parecia impensável aconteceu: o vôlei ultrapassou o basquete como o segundo esporte do brasileiro. Essa verdade se estabeleceu de vez nos anos 90. Os meninos conquistaram o ouro nos Jogos de Barcelona em 1992 – o primeiro de um esporte coletivo na história verde e amarela. Ninguém segurava aquele time. As meninas também não faziam feio. Na Olimpíada de Atlanta, jogando muito, alcançaram o primeiro pódio com uma medalha de bronze. O prenúncio de que o próximo século seria diferente. Quando os anos 2000 aportaram no planeta, o vôlei brasileiro lançou seu domínio por todos os cantos, quadras, virou referência e, claro, ganhou títulos pakas. Tantos os homens quanto as mulheres foram bicampeões olímpicos. Além disso, o talento nacional garimpou títulos mundiais, ligas, grand prix,
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Nenê Hilário foi o melhor jogador da seleção brasileira nos Jogos Olímpicos do Rio 2016. Aplaudido de pé pela torcida, continua sendo o principal nome do país na NBA
ufa. Nos últimos 25 anos, o vôlei brasileiro se manteve invariavelmente entre os três primeiros do mundo. Além disso, para um país no qual o malfeito vira palavra de ordem, sua organização ganhou elogios e virou status quo. Quantas vezes não ouvimos que o ex-técnico da Seleção Bernardo Rezende deveria migrar para outro esporte para implantar seu método? Pois é. Trabalho, organização e títulos. Buuummm. Vôlei assume o posto de mais querido do brasileiro atrás apenas do futebol. Aprendemos ao longo de nossas vidas que o fundo do poço, na verdade, quase nunca é o fundo do poço. As coisas podem piorar. A história do basquete brasileiro nos últimos anos é uma prova disso. Na chegada da década de 2010, a Confederação Brasileira de Basquete contratou o argentino Rubem Magnano para técnico do time masculino. Campeão olímpico com a Argentina anos antes, batendo o Estados Unidos estrelado com atletas da NBA, por exemplo, Magnano parecia ser o cara certo para colocar o escrete brazuca nos eixos e voltar aos Jogos Olímpicos. Além disso, havia uma geração talentosa que encontrava seu caminho na NBA – berço do 6
profissionalismo e melhor basquete do mundo. Parecia de fato que a história estava mudando. Em 2011, na Copa América (que servia também de pré-olímpico), o time de Magnano, Marcelinho Huertas, Marquinhos e cia. emocionou o país – mesmo seus jogos não sendo transmitidos por Band e Globo (você pode não gostar, mas é um fato) – principais emissoras da tv aberta brasileira. A equipe finalmente bateu a Argentina e se classificou de forma heróica para os Jogos de Londres. Mas os títulos não vieram. Havia um padrão tático sim, a seleção jogava bem, finalmente seus atletas pareciam envolvidos no renascimento do esporte no país. Na Olimpíada de 2012, mesmo atuando acima da média, caiu nas quartas-de-final depois de uma partida eletrizante contra a Argentina. Quinto lugar, boas sementes plantadas, no entanto, torcedor brasileiro quer o metal dourado. Ignorou os avanços reais do basquete nacional. O vôlei feminino ganhava o bi. O masculino ficava com a prata. E na hora H, o basquete falhava, por pouco. Quem ganha todas as atenções da mídia tupiniquim? Nunca o derrotado. Ok, havia algo, porém, havia o clichê da velha e boa luz no fim do túnel. Se na quadra, as coisas pareciam caminhar para um futuro promissor, os cartolas da CBB desandaram de vez. Crises de todos tipos, níveis, brigas com clubes, atletas. Ninguém se entendia. Nesse vácuo de poder, surgiu a Liga Nacional de Basquete que organiza até hoje (e bem) o basquete dos clubes com o NBB. Era evidente que as bobagens dos cartolas alcançariam o trabalho nas quadras. Sempre alcançam. A seleção feminina virou saco de pancadas e a masculina não conseguiu em quadra garantir uma vaga no Campeonato Mundial de 2014, fato inédito em nossa história. A Fiba, órgão máximo da categoria, libera convites especiais para aqueles que não se classificaram nas eliminatórias da Copa do Mundo. Mediante a um pagamento, o Brasil foi para a Copa da Turquia. Não foi ao pódio, ficou em sexto lugar. A CBB com o apoio dos Correios prometeu pagar a conta. Você viu o
dinheiro por aí? Pois é, nem a Fiba. O calote por pouco não custou a vaga dos times masculino e feminino em sua Olimpíada em 2016. Sim, você leu direito. As duas equipes quase ficaram fora dos Jogos Olímpicos que seriam realizados em casa por causa de péssimos pagadores e administradores. As patrocinadoras da seleção salvaram os times em cima da hora. A seleção brasileira com Nenê, Marquinhos, Raul, sem Tiago Spliter e Anderson Varejão, era favorita à medalha. Nesse momento crucial da geração NBA, a última chance dos atletas de brilharem com o verde e amarelo, o Brasil não estava tão distante assim dos rivais. Era uma constatação de todos os críticos. O time poderia encarar qualquer um. Os jogos preparatórios, os treinamentos, a própria integração e empenho entre os atletas mostravam que poderia surgir algo bonito no final dessa história. Mas... mas... Num grupo complicado (tinha Espanha, Argentina, Croácia, Lituânia e Nigéria), o Brasil venceu dois jogos, perdeu três. Não passou para a segunda fase. Já as meninas perderam todos os seus jogos. O basquete brasileiro deu um banho de água fria na torcida. Não vou falar do que aconteceu com o vôlei masculino... O ano de 2016 não acabou com o fracasso olímpico nas quadras. Já disse antes que os resultados na quadra eram reflexo da cartolagem da Confederação. As coisas poderiam então ficar piores? Sim e ficaram. Quando no-
vembro chegou, a Fiba anunciou “ a suspensão da Confederação Brasileira de Basquete (CBB) de seu quadro de filiados. O Comitê Executivo da entidade tomou a decisão por entender que os brasileiros não estão em conformidade com suas obrigações”. Traduzindo: a seleção brasileira e os clubes dos países estão proibidos de participarem de qualquer competição promovida pela Federação Internacional. Fundo do poço. Os resultados imediatos foram sentidos em janeiro passado. A principal competição de clubes do continente americano, a Liga das Américas, começou sem os times nacionais. Flamengo e o campeão da liga sul-americana Mogi das Cruzes, por exemplo, garantidos no torneio ficaram de fora. As dívidas da entidade alcançaram os 17 milhões de reais no final do ano passado. Durante a gestão de Carlos Nunes na CBB – desde 2009 – foi um crescimento de 1.350%. A falência da entidade respinga nas quadras. Nossa bola laranja ficou vermelha de raiva e vergonha. Alternativas para isso existem. Trabalhos sérios existem. A criação da Liga Nacional que cuida do NBB é uma prova disso. Que o basquete brasileiro tem que voltar a ser grande não há dúvida. Hoje, porém, não há técnicos para as seleções, não há participação em competições internacionais, as soluções parecem distantes... O fundo do poço é mais fundo.
Campeão da Liga Sul-Americana, o Mogi das Cruzes não disputou a Liga das Américas por causa da punição da Fiba. Equipe brasileira, ao lado do Flamengo, era favorita ao título
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fala JOSÉ NETO - técnico do Flamengo PORTRAIT: O Brasil foi bicampeão mundial de basquete, final dos anos 50 e início dos 60. Aí, nos anos 70 Marquinhos, Cadum e outros mantiveram o bom nome do país nas competições. A turma de Oscar e Marcel teve seu auge 1987 no Pan-americano. Nesse tempo todo, o basquete só perdia em popularidade para o futebol no Brasil. O que deu errado? JOSÉ NETO: O basquete viveu uma época incrível, que até hoje desfrutamos destas conquistas. Estar entre os melhores do mundo fez com que o basquete brasileiro, alem de medalhas e títulos, pudesse conquistar o respeito na modalidade. Acredito que mundialmente, com a divisão política da Iugoslávia e União Soviética, outras seleções surgiram e deixaram ainda mais competitivo o basquete. Atualmente podemos citar tranquilamente pelo menos 10 seleções que podem conquistar uma medalha em Mundial ou Olimpíada. Sendo assim, a famosa frase: “o detalhe faz a diferença”, torna-se cada vez mais verdadeira. O resultado final de uma competição de alto nível vai depender muito da preparação e da importância dada para cada detalhe. Penso que temos que focar naquilo que pode fazer o basquete crescer e não na popularidade de outras
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modalidades. Sou sempre otimista. Acredito que o basquete vem crescendo e ainda pode crescer muito P: Há alguma chance do basquete voltar a ser o esporte mais querido do brasileiro, depois do futebol? J.N :Fazer a modalidade ser mais popular, acredito que é um conjunto de várias ações, mas todas elas estão fixadas em uma coisa fundamental: desenvolver a cultura do basquete. Desta forma acredito que todas as ações desde a base (principalmente) até o adulto, terão o seu devido valor. As estratégias para isso dependem de várias entidades que desenvolvem a modalidade no país: Ministério do Esporte, Comitê Olímpico, confederação, federações, ligas, clubes, escolas, etc… Atualmente o basquete brasileiro vive um momento administrativamente complicado sofrendo uma punição pelo órgão máximo do basquete que é a FIBA. Momento de unir forças para que todos que VIVEM o basquete possam voltar a desfrutar de todos os benefícios da modalidade. P: Você é o novo técnico da seleção brasileira? J.N: Desde 2004 trabalho com a seleção brasileira. Atualmente eu tenho apenas uma função no basquete: Sou o técnico da equipe do Flamengo.
falaWLAMIR MARQUES, um dos gênios do basquete mundial “A geração NBA é igual à de todo o mundo (faltam craques). São todos considerados jogadores médios. Pouco aproveitados em suas equipes com exceção do Nenê.” “O fracasso olímpico só trouxe mais desilusão... e o péssimo trabalho do técnico Magnano nos faz pensar em modificar nossos conceitos.” “O NBB, em princípio, é uma ótima ideia, mas tecnicamente fraca. Falta o apelo popular, ainda não pegou de vez no país. Precisa de maior apoio da mídia esportiva do país. O insucesso da seleção derruba seus efeitos populares. Com a base mal feita é muito difícil apontar revelações.” “A volta por cima só acontecerá se modificarem os homens. No momento e em 1º lugar, o novo técnico da seleção brasileira seria o Guerrinha. É preciso impor a volta das nossas características básicas de jogo. Promover uma nova implantação de jogo no país. Vender uma imagem positiva do basquetebol nacional e extirpar de vez os maus dirigentes e aproveitadores.” Com a palavra, o mestre Wlamir Marques, bicampeão do mundo de basquete com a seleção brasileira: “Vários fatores influenciaram a queda de popularidade do basquete brasileiro: A falta de títulos internacionais Péssimas gestões da CBB e das federações Fraco trabalho técnico nas categorias de base (salvo exceções) Falta da tv aberta Falta de ídolos no país Desinteresse dos patrocinadores Perda da identidade nacional (técnica e tática) Mau exemplo da NBA Falta de comando: Corrupção e omissão Mídia desinteressada com as coisas do basquete Etc,etc,etc.......” “Pra voltar a ser querido, nosso basquete: Necessita dos títulos internacionais Intervenção implica em colocarem os homens certos Técnico estrangeiro jamais (Péssimos trabalhos) Interesse público com o NBB (baixa audiência).” 9
texto e fotos: ALE DA COSTA
VALEU A 10
PENA??? 11
Olimpíada brasileira deixou questões que muita gente não quer responder texto e fotos: ALE DA COSTA
Oito meses atrás...
O Comitê Olímpico Brasileiro tinha uma meta para a Olimpíada Rio 2016. A ideia, propalada durante todo o ciclo de quatro anos, era de que o Brasil conquistaria entre 22 e 29 medalhas. Se pedíssemos que cravassem um número, o COB diria “27 medalhas serão ganhas pelo país em casa”. Fazia todo sentido tal argumento e otimismo se levássemos em conta sempre que o dono da festa, invariavel-
mente, cresce no quadro de medalhas. A esperança final, então, era colocar a delegação brasileira entre as top 10 e fazer surgir uma potência olímpica. Bom, tive um editor, décadas atrás, que me ensinou que o papel aceita tudo. Você, leitor, já está careca de saber que a meta brasileira, o sonho dourado, não foi atingida. E aí me vem a pergunta: “culpa de quem?” Com toda a certeza que tenho no mundo afirmo: “os atletas brasileiros não são culpados pelo fracasso olímpico”. Aliás, chamar a campanha brasileira de fracasso, por sinal, é um desatino e uma baita falta de consideração com aqueles que se empenharam nas quadras, campos e pistas. A meta não foi cumprida, é fato. Porém, nunca o país levou tantos ouros. Foram sete na Rio2016, o recorde anterior pertencia aos jogos de Atenas em 2004 com 5. Já no quadro geral, a quantidade de medalhas também foi recorde, 19 contra as 17 de Londres, quatro anos atrás. No final, o Brasil ficou em 13° lugar entre os maiores medalhistas. Do que se reclama, então? O problema se dá quando passamos a comparar nosso “projeto olímpico” com o de outros países. E nem falarei dos Estados Unidos porque aí é covardia. Fiquemos com a Grã Bretanha e o Japão. A Grã-Bretanha tem um projeto olímpico de desenvolvimento que completou seu segundo ciclo. O primeiro claro tinha como meta Londres 2012. Resultado? Sucesso completo. Em quase uma década, o reino inglês pulou de campanhas mais ou menos para o segundo lugar do quadro de medalhas de 2016, ultrapassando a potência China. O trabalho, é evidente, deu resultado. E o Japão que só receberá a Olimpíada em 2020 e já arrebanhou um monte de ouros que ninguém esperava no Brasil? Sorte? Não! Muito trabalho, dinheiro e um projeto afinado com a descoberta de novos talentos. Imagina então, daqui a quatro anos, o que os japoneses farão. Já disse lá em cima que não se pode atribuir um pretenso fracasso olímpico aos atletas nacio-
Para a Confederação Brasileira de Atletismo, a meta foi alcançada e superou as expectativas: onze finais e uma medalha de ouro no salto com vara
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nais. Os caras batalham e não é pouco, quase sempre sem condições, sem técnicos competentes, sem intercâmbio, sem lugar pra treinar. E não estou exagerando. Não há e nem houve no Brasil, a ideia de se criar de fato uma política esportiva. O brasileiro quer a medalha, mas não se importa em saber como o atleta vive nos quatro anos anteriores aos jogos. Aí fica fácil criticar. Você lembra das suas aulas de educação física? O que mudou de fato nesse cenário? O quanto se pensou no trabalho de base, com a criança, no dia a dia? É este o grande vilão do esporte
brasileiro. Nunca pensar no moleque da escola. Para os mandachuvas do COB, se houver grana, mande para o cara de alto rendimento. Não discordo disso. Tem que ter dinheiro para todos eles. Mas o moleque da comunidade não poderia ser visto com outros olhos? Os Jogos Olímpicos de 2016 custaram 40 bilhões de reais. Desse montante, se investiu pouco mais de 3,5 bi em projetos olímpicos (verba pública, não se esqueça). É um belo valor. Só a natação, por exemplo, teve para o ciclo olímpico cerca de 120 milhões de reais. Então não
Ginástica brasileira deu show com três medalhas no masculino. Além disso, apresentou para o mundo a talentosa Flávia Saraiva - quinto lugar na trave e oitavo por equipe
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se pode dizer que não teve dinheiro. Mas o que incomoda é como esse dinheiro foi empregado. Em quais grupos, quem foi beneficiado e por aí vai. A natação, já citada acima, levou só a medalha de bronze de Poliana Okimoto na maratona. Das piscinas, nenhuma conquista. Judô e vôlei feminino também caíram pelas tabelas. A vela também “fracassou”. Não há algo errado? Melhor (ou pior): cada medalha brasileira custou 194 milhões de reais. Não há algo errado? A partir de outro ponto de vista, não dá para negar que 17 modalidades brasileiras melhoraram de desempenho em comparação a outros jogos. O melhor exemplo é a canoagem que faturou três medalhas. Fato impensável anos antes. Ainda teve a ginástica artística masculina e feminina. E os ótimos resultados nas provas de arremessos e saltos do Atletismo com direito a finais e medalhas inéditas. Mas a conta não fecha. É muito pouco para o montante gasto. Como eu disse antes, vou re14
petir pra deixar bem claro: os atletas brasileiros não têm culpa alguma se o país não ganha medalhas. Eles não fazem “corpo mole”. Agora não podemos isentar de culpa os dirigentes esportivos. São eles que definem para onde o dinheiro vai. Não duvide que muitos deles não entendem nada de esporte. Querem a medalha e nada mais. Legado? Palhaçada, né? Rafaela Silva ganhou a primeira medalha de ouro do Brasil nesses jogos. Ela é um caso – que não é exceção – que nasceu num projeto social na comunidade em que vivia. Lá, ela foi descoberta, se viu potencial na moça. Rafaela não é a única história que nasceu num projeto social. Isso é o que chamamos de trabalho de base. Se Rafaela e outros saíram de projetos sociais, será que não deveria ser esse o foco? A tão falada e pouco entendida política esportiva não teria um belíssimo ponto de partida? Esporte é educação. Será que ninguém vê isso? Porque investir no atleta consagrado é fácil – o
Caminhos opostos: esgrima brasileira (foto na página anterior) conseguiu ótimos resultados, duas quartas-de-final pela primeira vez em sua história olímpica. Já a natação, sem César Cielo, não ganhou nenhuma medalha nas piscinas e comemorou apenas o bronze de Poliana Okimoto na maratona aquática
cara já fez todo o trabalho sozinho antes. Pegar o atleta já pronto é fácil – o cara já fez todo o trabalho sozinho antes. É tão lógico que da quantidade se consegue a qualidade e aqueles que tem o poder de investir nada fazem. Propaganda bonitinha de banco, políticos empolados em discursos intermináveis, no fim, nada alteram pra valer na rotina do esporte olímpico nacional. E há um último item nessa procura pelos culpados: o torcedor brasileiro. Esse só quer saber da medalha. São raros aqueles que acompanharam todo um ciclo, que sabem de fato o que aconteceu com o atleta A, por que fracassou, por que triunfou. O que importa é o resultado! Para a maioria da torcida brasileira (e mídia também, claro), esporte olímpico só interessa a cada quatro anos. E dá-lhe vaia para aqueles que ameaçam o nascimento de uma potência olímpica. Quer uma prova disso? Paulistano e Pinheiros se enfrentavam no clássico da capital pelo campeonato
paulista de basquete masculino. Luta pelo topo da tabela, bons talentos em ambos times, enfim, um jogaço. Público? Nem 40 torcedores. Há algo de podre no esporte brasileiro.... e parece que ninguém se importa!!!!!! Oito meses depois... Vejo campanha oficial dizendo que valeu a pena, que está tudo lindo e maravilhoso. Vejo também um monte de auditorias em um monte de Confederações que não fizeram bom uso de dinheiro público. Vejo atletas profissionais perdendo patrocínios. Vejo arenas fechadas, às moscas. Vejo nenhum apoio de fato no trabalho de base – que continua nas mãos de abnegados. Vejo o esporte ainda longe da televisão aberta (ok, Rede TV e Band tentam). Vejo que perdemos a grande chance de nos tornarmos uma potência esportiva ou ainda abraçarmos de vez a ideia de termos uma cultura esportiva. 15
a LOIRA do banheiro
e sua versão da história
texto: ALE DA COSTA
arte: LICIDA VIDAL
Quando aqueles garotos arrancaram minha calcinha, percebi de fato que não se tratava de um sonho. Fechei os olhos com toda a força do mundo e consegui sair de mim. Me lembrei do tempo em que papai batia na mamãe. Eu sempre fechava os olhos e voava longe. Com aqueles meninos, naquele banheiro fedido, não foi diferente. Eu tinha 13 anos. Quando papai esmurrava mamãe, tinha cinco. Mamãe morreu. Papai, não sei. Ao ficar órfã, minha vózinha chegou do interior para cuidar de mim. O cheiro dela é inesquecível, doce, acalentador. Quando estou de “bico”, procuro pensar na sensação que tinha ao ela chegar perto de mim. Era bom.
Vovó sempre me arrumava para a escola. Dizia que eu tinha de estar sempre linda. Ela penteava meus cabelos “dourados” de princesa. Ela dizia isso e me deixava feliz. Meu uniforme estava sempre bem cuidado, merenda gostosa dentro da lancheira. Fui feliz nesses anos. Me complicava em matemática, mas no resto eu ia bem. Vovó se orgulhava dos “10” que tirava em redação. Eu adorava escrever cartas melosas, cheias de romantismo barato, para ninguém. As escondia numa caixa de papelão rosa, em formato de coração. Tinha virado mocinha aos 11. Não foi um susto ver aquele sangue escorrendo pelas minhas pernas porque a vovó e a tia Ceci (minha fessora) já haviam me explicado que isso aconteceria. A partir daquele momento eu era uma mulher. E a vovó completou: “uma mulher dos cabelos dourados”. Foi um dia bacana. Eu seguia crescendo e me apaixonava pela primeira vez. Guto era bonito, forte, esperto, tinha 16. Já bebia e dizem que já tinha até feito sexo. Eu gostava dele. Contei para vovó e ela pediu para eu me cuidar. “Não sei se gosto desse rapaz”, disse. Não era ciúme ou implicância dela. Era apenas uma sensação... Um dia, criei coragem e fiz um poeminha para ele. Coisa boba, coisa de menina. Mas totalmente sincera. “Meu Deus, ele quer me encontrar!” Nunca me senti tão doida quanto naqueles segundos antes de ver o Guto, sozinha. Eu estava apavorada. Queria, porém, estar com ele. “Será que ele já tinha me notado antes?” Eu mal podia me segurar dentro do meu corpo. Queria voar longe de felicidade. Naquela época, estudávamos à tarde. Ele queria se encontrar comigo quinze minutos depois do último sinal. Daria tempo para a gente con-
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versar bastantão antes da turma da noite chegar. “Não sei se gosto desse rapaz!” Lembrei da minha vózinha. Deixei meus cabelos soltos. Uma amiga emprestou um batom bem clarinho e discreto. Estava cheirosa. Meu sapato novinho estava brilhando. Presente da vovó. “Ele ia gostar de mim?” E sentada ali fiquei entre os pavilhões dois e três. Estava frio. Eram quase seis horas e a noite já tinha chegado. Coloquei o casaquinho que minha avó tinha feito. Estava com o cheirinho dela. Senti saudades. Levei um susto. Deixei minhas coisas caírem no chão, mas não tive chance de pegá-las. Foi tudo muito rápido. Dois amigos do Guto me seguraram com força. “Cadê ele?” Eu tinha medo desses garotos. Eram grandes e encrenqueiros. Estavam sempre na diretoria. Um deles tinha mais de 18. Me apertaram com força e me jogaram para dentro do banheiro do pavilhão dois. Caí de joelhos e bati o queixo no chão. Não estava entendendo nada. Aí, uma voz doce e conhecida quase me acordou daquele pesadelo que se iniciava:
queles animais em cima de mim. Solidão. Quando um deles quebrou meu pescoço não senti mais nada. “Desculpa, vovó, não vou conseguir limpar o sapatinho novo...” Ao acordar num mundo estranho, sentia frio. Estava presa naquele lugar. Meu cativeiro eterno. Nunca soube como fora meu enterro. Não vi mais vovó. Não sei há quanto tempo estou aqui. Não sei o que aconteceu com o Guto. Às vezes, me olho no espelho e choro com o que vejo. Meu rostinho todo machucado. Um rastro, um pequeno rastro de sangue que sai do nariz em direção ao queixo que nunca limpa, por mais que eu tente. Olhos fundos. Olhar perdido. Cabelos dourados não mais dourados. Enfim...
... confusa como toda menina de 13 anos.
Tenho medo do escuro. Aprendi com o pas-
“Quer dizer que a putinha loira quer me dar?”
Era o Guto. Seus amigos riam alto. O eco daquelas risadas naquele banheiro fedido me fez ver papai matando mamãe de novo. Foi ali na minha frente. Tinha cinco anos. Estava novamente paralisada. Não conseguia gritar, chorar. Tremia, tremia, tremia. “Vovó, segure minha mão...” Quando aqueles garotos arrancaram minha calcinha, percebi de fato que não se tratava de um sonho. Fechei os olhos com toda a força do mundo e consegui sair de mim. Tinha 13 anos. Não estava mais em mim e isso aliviou toda a dor daqueles minutos que não acabavam. “Olha Guto, é cabacinha!” “Oba, é minha. Não tem mais isso no mundo”. “Eu primeiro, eu mando, esqueceram?” Tentei escapar mais uma vez. Um dos amigos do meu primeiro amor acertou um soco no nariz. Me afogava no meu sangue. Num instante, tão instante que quase não percebi, uma gota desse sangue caiu no meu sapato novo. “Deixa, vovó, eu limpo quando chegar em casa”. Tanta dor. O cheiro horrível da17
sar do tempo a deixar a luz desse banheiro acesa quando todas as outras do colégio são desligadas. Não durmo e para não ficar louca, ando em círculos, acompanhando o caminho que a luz faz ao bater no piso. Solidão. Uma vez, duas, três, tentei me comunicar com um menino. Nem todos são maus ou cruéis como o Guto. Nunca quis fazer nenhuma maldade com eles. No entanto, o susto que levavam era tão grande que os paralisava. Dois morreram de medo. Outro, enlouqueceu. Juro, não era minha intenção. Apenas queria contar a minha história...
Poxa. Você quer ouvir a minha história? Você quer ouvir a minha história? Você quer ouvir a minha história? Você quer ouvir a minha história? Você quer ouvir a minha história?
Você quer ouvir a minha história?
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Você quer ouvir a minha história? 19
até o próximo número ...