CARTA ABERTA Tenho pensando muito sobre o Brasil. De verdade, esse país nunca me deu nada. Mas ok. O que acontece, porém, nos últimos anos, é que essa “terra abençoada” me tirou a paz, a sanidade e tem me deixado doente. Até o horário de verão me surrupiaram. Quando aumento o espectro de análise desse mundo verde e amarelo além do meu umbigo não sinto melhoras. Cara, olha os números que estampei na capa. São terríveis. E não colocamos na equação os pobres, negros e favelados. De fato, esse país me deixa doente... A edição 11 de Portrait Fanzine é a mais política de todas, não que as outras não tenham sido. Viver é política. Mas estampar a capa com a pergunta que ainda não tem resposta deixa bem claro qual o meu lado, se é que você ainda não havia percebido. Não posso achar certo que um país defenda o uso da violência, negue a existência de um passado nada glorioso e aumente cada vez mais o fosso entre ricos e pobres. Não foi essa a educação que tive em casa. Enquanto não me calarem, movimentos sociais e pessoas que “não são celebridades” terão espaço para mostrar o lado da história que não está nos tweets oficiais ou nas telas em 4k em horário nacional. Aqui não vamos bater panelas, mas o silêncio não fará parte das páginas dessa revista... Sei que com isso perco de vez qualquer chance de ganhar algum dinheiro com esse projeto, o que possibilitaria transformá-lo em algo maior. Mas ok (de novo), tudo bem, me viro do jeito que der. Gustavo Lima, Ivani F. De Oliveira, Sandra Regina estão do outro lado da história oficial. O lado das maiorias (sim, minoria é aquela que está no poder há 500 anos e faz de tudo para mudar os fatos). Fico feliz da minha revista estar do lado certo... Custe o preço que custar porque resistir é preciso... Embarquemos
PROJETO Alexandre da Costa
SUMÁRIO
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Por uma nova DEMOCRACIA Gustavo Lima “chocou o país” com uma pergunta simples que ficou sem resposta por quase um ano... armador do Corinthians fala de Brasil, violência, política, Doutor Sócrates texto e fotos: ALE DA COSTA
Foi algo inesperado. O Corinthians voltava ao basquete depois de duas décadas com título em seu primeiro campeonato, a Liga Ouro, uma espécie de segunda divisão do NBB. Uma festa alvinegra em São José do Campos, palco da final. Em meio a tudo isso, o armador Gustavo Lima, um dos jogadores mais experientes do Timão - com passagens por seleção brasileira, Pinheiros, Mogi, Basquete Cearense e Caxias – tira a camisa do jogo e choca os mais sensíveis (estou sendo debochado) ao colocar outra com uma pergunta até então sem resposta: “Quem matou Marielle?” É evidente que o ato político e humanitário de Gustavo em meio à conquista de seu time não passou incólume. Muita gente, muita mesmo, torceu o nariz para a atitude do atleta. Seu emprego no Corinthians, inclusive, correu riscos. No entanto, na mesma proporção das críticas negativas, a tomada de posição de um esportista brasileiro à frente de uma equipe com um histórico de posicionamentos democráticos (sim, Sócrates, Casagrande, toda aquela turma de 1982 que se fazia ouvir num Brasil ainda chancelado pela Ditadura Militar) foi um alento em meio a tanto cai-cai, individualismo e ostentação. Gustavo Lima (parafraseando aquele antigo comercial) é gente que faz... se posiciona,
põe o dedo na ferida, não tem medo de cara feia. Mais do que isso. Usa sua ferramenta de trabalho para algo maior: justiça social. Foram alguns desencontros, mas consegui conversar com Gustavo Lima numa noite de sexta com direito a um baita temporal depois de um jogo do Corinthians pelo NBB. Ele não fugiu do debate, como eu esperava. Quando essa revista chegar às suas mãos, leitor, você já saberá que Ronnie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz foram presos, quatro dias antes, dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes completarem um ano sem resposta. Há ainda muitas dúvidas no ar... “Quem mandou matar Marielle?” é uma delas... Acompanhe a entrevista exclusiva de Gustavo Lima, armador do Corinthians Basquete. Portrait Fanzine: Ronnie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz foram presos, acusados dos assassinatos de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes. No entanto, há dúvidas sobre os mandantes. Como você se sente num país no qual a solução de crimes se passa pela exceção? Algum arrependimento sobre seu ato na final da Liga Ouro ano passado? Gustavo Lima: Olha, é muito triste ficar sem resposta. Os responsáveis estão soltos (a entrevista foi feita dias antes da prisão dos 5
suspeitos), tem especulação do que aconteceu, mas até agora não foram fundo investigar para ver realmente o que aconteceu. A Marielle é uma pessoa ímpar, representando os direitos humanos. Há pessoas ainda no cenário político nacional que brigam e não deixam seu nome ser esquecido. Algumas homenagens foram feitas como a que estampa o escadão em Pinheiros (zona oeste da cidade de São Paulo). O que não consigo entender é porque tais homenagens sofreram tantas represálias. Quando eu coloquei a camisa perguntando quem havia assassinado Marielle, durante as comemorações da conquista da
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Liga Ouro, levei muita porrada e isso não faz sentido. A camiseta homenageava e não deixava esquecer uma mulher que tinha causas gigantescas, apartidária, brigava pelas minorias, era favelada, homossexual, negra. Ela batalhava por todas essas minorias, causas sociais, criava projetos. Então, quando você está defendendo uma mulher dessa magnitude não tem como não se chocar ao ver pessoas irem ao Escadão de Pinheiros (por exemplo) quebrar uma placa, jogar tinta na colagem. Eles pintaram em cima do rosto de Marielle. O lugar foi rebatizado como escadão Marielle Franco, apagaram de novo. Essa violência
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contra seu nome e imagem não faz sentido. estão votando, a razão do voto deles... Em tempos de polarização, as redes sociais são PF: São cerca de sessenta mil assassinatos muito prejudiciais na coleta de informações, nesse país. Um a cada nove minutos. Pou- tem a vinculação de muita coisa. Nas redes soquíssimos são esclarecidos. A violência está ciais só chegam as informações que você quer. mais do que enraizada na sociedade brasi- Claro que se o indivíduo quiser pode ir atrás leira. Como se resolve isso?? Por que o Bra- de outras notícias. Mas, as pessoas não estão sil se tornou tão polarizado? nem aí, por isso nasce a polarização. “Já escoGL: Esses números são assustadores. A base lhi meu candidato”, jura mesmo? Quando surde qualquer sociedade é a educação. Já faz giu o Bolsonaro há dois anos, eu não tinha essa muito tempo que nossos governantes larga- leitura de até onde ele iria. Quando falavam ram o ensino. Pouco tempo atrás, tivemos dele pra mim, eu só via uma pessoa, no míniuma proposta do então presidente Michel mo, ignorante. Eu não tinha essa visão de que Temer para retirar dinheiro do esporte e da pudesse vir a ser eleito. Depois, no entanto, ele cultura para colocar na segurança. Isso é uma começou a ser ouvido e aceito. Pessoas que eu tremenda ignorância. A forma mais fácil e di- julgava interessantes começaram a falar bem reta para se cuidar da segurança é você inves- dele. “Não é possível”, eu pensava. Você não tir no esporte e na cultura. Desse jeito, você votar no PT, ok! Tem outras onze opções. Esestá criando cidadãos melhores, dando um colhe um outro. A maioria dessa classe média futuro... Estão deturpadas as questões sociais. que eu tenho convivência, votou a vida inteira A gente não investe em educação. Esse é o re- no PSDB. Não fazia sentido nenhum eles voflexo: uma sociedade sem educação é violen- tarem no Bolsonaro. Por que não votou no Alta, com números altíssimos de assassinatos, ckmin? Não faz sentido isso pra mim. Desde o roubos... Há algumas semanas estava sendo começo, o Bolsonaro era só uma oposição ao votada a criminalização da homofobia.Isso é PT e isso é raso pra mim como projeto polítielementar, não pode ser uma dúvida. Homo- co. Se você me mostrar por argumentos que o fobia é crime e ponto final. Gera discussão, Serra, o Aécio Neves, tem valor, tudo bem, mas gera polêmica, a gente tá em 2019 e pautas não. Desde aquela época era apenas um voto elementares ainda tem que ser discutidas. Pe- de oposição, isso é muito raso. Não dá para quenos ganhos, no entanto, tem que ser come- votar assim. Você tem que ter crença em votar morados. A gente (por enquanto) tem a pos- em alguém que vai fazer alguma coisa. Agosibilidade de se manifestar sobre essas causas ra se chegou a esse cenário... é apocalíptico. e não podemos perder essa oportunidade. PF: Não tem esperança? PF: Em tempos de redes sociais, como en- GL: As peças que ele colocou nos Ministérios tender o significado e a importância do já mostram quais serão os caminhos escolhivoto e a apresentação de projetos políticos? dos. Jair Bolsonaro acabou com o Ministério GL. Quando alguém tem um posicionamento do Esporte. E ainda tem essa Damares (Minismais político, e deixa isso bem claro, é alvo de tra da Mulher, Família e Direitos Humanos). críticas, sofre bullying pela ignorância dos ca- Está tão caricata a coisa que acho que ela coras. Quem é Marielle? Por desconhecer quem mandando um ministério é só disfarce. Sabe, ela foi, tudo que representava... as críticas uma cortina de fumaça... Ela serve como uma acontecem. Eu não quero levar pra mim tudo espécie de disfarce para não se tocar mais funaquilo que aprendi, quero que outros caras do nas coisas que são sérias. Só pode ser. Bolconheçam e se posicionem da mesma maneira, sonaro aparecendo com a camisa do Palmeiras, que eles fiquem curiosos para saber em quem de chinelo... a Damares... não é possível que 8
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isso seja verdadeiro, que isso seja de verdade... jogar justamente no Corinthians e seu passado não tão distante de luta pela democraPF: É a política, o futuro de Gustavo Lima? cia com o Doutor Sócrates, Casagrande... GL: Eu não penso em política. Não pretendo. GL: Sem dúvida, Sócrates seria um dos pouA melhor amiga da minha mãe era a professora cos que estaria lutando hoje. Deixou um legaLisete Arelaro, que se candidatou ao governo do, tenho lido muito sobre ele. Você precisa do estado de São Paulo pelo PSOL. Era amiga ser democrático, correr atrás de informação íntima, frequentou minha casa por anos. En- e, quando possível, se posicionar. Eu gostaria tão, aprendi política participando das conver- que isso acontecesse. Pouquíssimos jogadores sas em casa. Sempre teve esse viés político de tem coragem hoje em dia. Sócrates é um oásis conversas lá em casa. Eu não pretendo ser po- ainda.. Os caras (em linhas gerais) são alienalítico porque acho esse meio muito sujo. Pre- dos, caras que admiramos tanto como jogador tendo trabalhar com projetos sociais, com o não tem o discernimento de escolher as pessobasquete. Em periferia. Isso sim me interessa. as que eles apoiam. O Ronaldinho Gaúcho era embaixador do Barcelona fazendo campanha PF: E você politizado e questionador vem pro Bolsonaro? Não tem noção do que está
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fazendo? O cara passou pelo Barcelona que é um dos clubes mais politizados, de resistência na ditadura do General Franco na Espanha, e não conseguiu absorver nada? Se ele não tem consciência disso não pode ser embaixador do Barcelona. E não faltam exemplos disso. Houve um evento na Gaviões da Fiel, uma homenagem ao Casão. Puderam falar muito sobre o envolvimento dos jogadores na democracia corintiana. O Casagrande falava com paixão sobre isso. Hoje em dia, mesmo como comentarista da Rede Globo, ele tem posicionamento. Minha mãe faleceu há um ano e meio e o dinheiro que ganho é para sustentar minha família. Venho de uma família que me deu condições de estudo. Se eu perdesse o emprego no
Corinthians, e quase perdi por causa da história da camiseta, eu estaria satisfeito. Houve sim muita pressão depois daquele episódio, muita cobrança. No entanto, muita gente gostou por causa da publicidade positiva que rendeu ao clube, mesmo sendo contra. Nem passou pela cabeça dessas pessoas quem era a Marielle. Eu poderia ter perdido o emprego e ia fazer outra coisa, não tem problema. Não vou ficar me lamentando. Quero lutar pelas coisas que acredito e se tiver que fazer, vou fazer ... morrer de fome, não vou. Com essa energia que eu tenho, vou fazer outra coisa. Seja social, seja pra ganhar salário mínimo e me virar. Eu acredito nisso. Tem que ter consciência do mundo que está vivendo hoje.
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CALAR ? JAMAIS ! A psicóloga Ivani F. de Oliveira analisa o crescimento da violência contra a mulher num contexto de um país que abraça o conservadorismo texto e fotos: ALE DA COSTA
Uma cultura de violência se estabeleceu no Brasil. A chegada do homem branco ao “Novo Mundo” fincou a lei dos mais fortes como ponto de partida para qualquer tipo de relação lá no século XVI. Olhando para hoje, não se pode negar a realidade que nos açoita a cada esquina. Não sei se estou exagerando, mas no mundo contemporâneo mais do que nunca “viver é muito perigoso”, como dizia Riobaldo no clássico Grande Sertão Veredas de João Guimarães Rosa. Nessa entrevista especial do Portrait Fanzine trataremos da realidade pela qual passa a mulher brasileira. Se nos aprofundarmos mais, negros, pobres, aqueles que vivem na favela também englobam esse “genocídio” silencioso que passa bem longe dos grandes poderes de mídia do país. Os números de 2017 são claros e assustadores: 5.672 mulheres foram mortas, 6,1% a mais que ano anterior; 60 mil mulheres foram estupradas; 80% das vítimas femininas de agressão conheciam seus algozes. Ao todo, 16 milhões de vítimas por ano (o que dá uma média absurda de 30 por minuto). 12
Há algo de muito errado no “reino brasileiro”. As conquistas das mulheres existem. Tímidas, no entanto, por mais que elas lutem. Por exemplo, o Congresso Nacional tem recorde de participação feminina. Em contrapartida, a “casa” de deputados e senadores nunca foi tão conservadora. Isso significa que assuntos polêmicos e que não podem mais ser ignorados, como o aborto, passam longe da pauta dos nobres políticos. Bobagens como “a culpa é sempre da vítima!”, “usando essa roupa, ela queria o quê?” se estabelecem como verdades e discursos oficiais, inclusive, do alto escalão que manda nesse país. O que resta para a mulher brasileira? Ivani F. de Oliveira é psicóloga, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Mestra em psicologia social na PUC-SP; pesquisadora do NUPRAD (Núcleo de pesquisas práticas discursivas cotidiano); Direitos, riscos e saúde na PUC de São Paulo; tem experiência de atendimento em grupo de mulheres; desenvolve estudos sobre constru-
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ção identitária e relações raciais brasileiras. Atua com atendimento psicológico clínico no município de Santo André. É militante da organização negra KILOMBAGEM. Assim como Gustavo Lima, nas páginas anteriores, Ivani não mede palavras, não “alivia” e deixa explícito que há sim um problema gigantesco (um de vários que se interligam) no país dos Bolsonaros. Confira a entrevista exclusiva:
PF: Como lidar com essa ambiguidade? Nunca na história brasileira tantas mulheres fizeram parte do Congresso Nacional. No entanto, nunca uma ala conservadora radical se mostrou tão marcante, tão presente, ao ponto de assuntos como o aborto não serem levados em conta nas principais pautas... Como se posicionar nesse cenário? IO: É necessário darmos visibilidade às importantes lutas e pautas das mulheres no Brasil, no mundo, dentro e fora da política. Reunir pesquisas e informações acerca da violência contra a mulher, entender que o abortamento é um problema de saúde pública que gera morte de mulheres. Logo, sua resolução deve se dar a partir de políticas públicas. E isso é uma responsabilidade governamental.
ARQUIVO PESSOAL
Portrait Fanzine: O que é ser mulher hoje nesse Brasil de Bolsonaro??? Ivani F. de Oliveira: Ser mulher no Brasil hoje é ter os direitos objetivos e subjetivos ameaçados por um governo fundamentado numa lógica de dominação masculina, branca, heteronormativa e misógina que busca uma hegemonia de fala e que intensificou a condição de submissão das mulheres ao silenciamento produzido pelo machismo. Ser mulher num PF: São 5.672 mulheres mortas em 2017, país violento e desigual gera muito sofrimento. 6.1% a mais que no ano anterior. Por que essa
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A psicóloga Ivani F. De Oliveira: “Ser mulher no Brasil hoje é ter os direitos objetivos e subjetivos ameaçados por um governo fundamentado numa lógica de dominação masculina, branca, heteronormativa e misógina...”
violência não acaba??? Eu sei que não é uma resposta simples. Mas há culpados nisso! As leis? A falta das leis? Governo? Homem? Sociedade? A sensação que se dá é que a violência só aumenta (o que os números comprovam) ... 80% das agressões às mulheres se dão dentro do âmbito de convívio delas: maridos, ex-companheiros, vizinhos... Agredir mulher é cultural num país como o Brasil? Como se muda esse paradigma? IO: A base de constituição psíquica do Brasil é violenta, uma violência que surge no encontro e confronto entre os colonizadores, os povos originários e povos africanos pra cá trazidos e submetidos à escravidão. Falamos de um país constituído com base em desigualdades, racismo, sexismo, extermínio, genocídio e estupros recorrentes. A violência contra as mulheres foi construída social, cultural e historicamente. Para mudar esse paradigma é necessário criar e sustentar uma maior conscientização sobre a violência doméstica, capaz de mudar pensamento e comportamento de todas as pessoas, sejam elas homens autores das agressões, agentes do sistema de justiça e mulheres agredidas como testemunhas dessa agressão. Existe uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres que tem sido ignorada pelo atual ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que atualmente propõe ações que em nada contribuem para o enfrentamento da violência, apenas reforçam papéis artificiais de gênero como masculinidade dominante e feminilidade submissa que servem para reproduzir e perpetuar a violência contra mulher. PF: Sessenta mil mulheres foram estupradas em 2017, 10% a mais que no ano anterior. Hoje, as mulheres não se calam e denunciam o estuprador, mas onde se emperra na lei, no processo, no sistema já que o criminoso invariavelmente escapa da punição? IO: Entender o sistema judiciário e onde a lei emperra é uma tarefa muito complexa, entretanto, é possível verificar que mulheres
que denunciam um crime de estupro são vistas com desconfiança, um exemplo disso é o caso João de Deus e a forma como as denúncias foram confrontadas deslegitimando as vítimas. O estupro é um crime que ocorre em contextos sem testemunhas que dificultam sua comprovação. Isso pode fazer com que os criminosos escapem da punição. Falta uma compreensão de que este não é um problema restrito à uma situação entre um homem e uma mulher, mas sim, um problema da nossa sociedade que tem histórico de tolerância e permissividade em relação à violência sexual. PF: O assassinato de Marielle Franco é um símbolo representativo do quê na sociedade brasileira? IO: Marielle representa a vontade política das mulheres, das populações negras, moradoras de favelas e LGBTT que entendem que as discriminações raciais, sexuais e de classe podem ser eliminadas por meio das políticas públicas. A atuação de Marielle como parlamentar foi o motivo da sua execução e isso significa uma ameaça a todas as pessoas que buscam mudar a história desse país, que ousam sonhar com uma sociedade igualitária e justa, que ofereça igualdade de oportunidades para aquelas e aqueles que são marginalizados e oprimidos pelo estado. Ela era uma defensora dos Direitos Humanos e, consequentemente, defendia a dignidade humana. Quando Marielle foi eleita, ela fez uso do direito humano de tomar parte do governo do país por meio do voto. Quando ela foi assassinada, milhares de pessoas tiveram aviltado o seu direito de ter uma representante escolhida livremente pelo voto conforme o artigo 21 da declaração dos Direitos Humanos. Vale sempre lembrar que Marielle foi assassinada após sair de um evento chamado “ Jovens negras movendo as estruturas” e é exatamente isso que ela tem feito. Marielle está movendo as estruturas da política colonizadora brasileira que não tolera no poder alguém que não seja homem, branco, supostamente hétero e de família abastada. 15
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RUMO CERTO 18
texto e fotos: ALE DA COSTA
No final de janeiro, o Brasil recebeu na piscina do Sesi Vila Leopoldina, na cidade de São Paulo, a COPA UANA de Polo Aquático. O torneio, masculino e feminino, reuniu além do Brasil, Estados Unidos, Canadá, Argentina e Cuba. O tradicional evento classificava os campeões para o Mundial. Entre os homens, desbancando o favorito Estados Unidos, a seleção brasileira levou o título. Já as mulheres canadenses faturaram o troféu. As meninas brasileiras ficaram em terceiro lugar. André Avallone, técnico da equipe masculina, falou com o exclusividade para o Portrait Fanzine sobre a conquista.
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Portrait Fanzine: Durante a fase de classificação da Copa Uana de Polo Aquático, os Estados Unidos passaram por cima de todos os adversários. Quando a final chegou, como você trabalhou a cabeça de seus atletas para que eles não entrassem na decisão já derrotados? Como você mudou “essa chave”? André Avallone: Sabíamos e tínhamos consciência dos jogos importantes da competição. Em nosso 1º jogo contra o Canadá, sabíamos que seria difícil e era muito importante conhecermos bem o adversário, mas ao mesmo tempo tínhamos uma pressão da torcida pelo fato de jogar em casa. Conseguimos fazer um bom papel, jogamos bem, mas não fizemos absolutamente nada especial para jogar contra o Canadá.
Dentro do nosso planejamento, tínhamos que ganhar um jogo na fase de classificação, contra a Argentina, classificar em 3º e disputar a vaga do mundial contra os mesmos canadenses. No 2º jogo contra os EUA, tínhamos consciência que seria um jogo muito duro. A equipe americana vinha se preparando bastante para essa competição, afinal o Mundial é muito importante para a preparação para o pan-americano, que dá a vaga olímpica. No jogo contra os norte-americanos, confesso que o plano era jogar melhor, mas foi muito difícil e perdemos o controle do jogo. Contra a Argentina, estávamos ali no primeiro jogo decisivo. Tínhamos analisado bastante a equipe deles e corrigido muitos erros nos nossos jogos. Em nossa pre21
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paração não conseguimos fazer nenhum jogo treino e isso fez muita falta para pegar o ritmo. Ganhamos muito bem contra a Argentina, com uma excelente apresentação dos nossos jogadores. Chegamos a abrir 7 a 0. Depois, administramos bem! Na decisão da vaga contra o Canadá, tivemos problemas com os raios e a forte chuva. Portanto, só fomos jogar no sábado às oito da manhã. Para muitos, seria muito difícil jogar nesse horário, mas por sorte, em toda a nossa preparação treinamos nesse horário, devido ao sol forte, optamos por não ter muito desgaste com o calor durante o treinamento. Entramos muito focados nesse jogo e sabíamos, com muita clareza, as jogadas e pontos fortes do Canadá. Nossa defesa encaixou muito bem, nossos jogadores foram incríveis e conseguimos vencer o Canadá de uma forma como nunca vencemos antes. Vamos lá para a pergunta...o que eu fiz para mudar a cabeça dos atletas???? Absolutamente nada... apenas jogar sem pressão!!! A pressão era dos americanos...a nossa??? Era divertir o público!!! A torcida, com certeza foi fundamental para venceremos os americanos!!! Taticamente, tivemos boas decisões
PF: Como você analisa seu trabalho nesses meses com a seleção? Dois títulos e pode-se pensar que a seleção finalmente encontrou uma cara, um jeito de jogar? AV: Acredito que não só eu, mas todos que estão envolvidos com a seleção, desde o presidente Miguel, aos patrocinadores, a diretoria, a comissão técnica em geral deram o máximo...todos deixaram de lado muitas PF: Qual a importância desse título além, é claro, coisas e por amor ao Polo Aquático se doaram. Quanto ao Brasil achar uma “cara”...acredito que estão no cada classificação para o mundial? AV: Este título foi superimportante para valoriza- minho certo!!! O brasileiro é muito inteligente, rápido rem todos os atletas. Eles merecem isso, por todo para improvisar e muito rápido fisicamente...acredito sacrifício que fazem diariamente! Os clubes me- que a parte emocional vai ser um grande diferencial receram esse resultado. O Brasil vem enfrentando do estilo brasileiro de jogar! Nesses dois títulos que a umas das maiores crises financeira, política e social seleção brasileira conquistou, conseguimos implantar da história e quando vencemos algo, nos fortale- um estilo de jogo que poderá enfrentar muitas outras ce, nos faz acreditar que podemos e conseguimos!!! seleções, agora é preciso dar sequência nesse trabalho.
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Duelo de gigantes Conheça o sumô, o mais tradicional esporte do Japão, terra da próxima Olimpíada texto e fotos: ALE DA COSTA
À primeira vista, dois gigantes com mais de 150 quilos se agarrando num ringue, quase pelados, pode parecer estranho. Até engraçado mesmo. Mas não tente fazer piada sobre o sumô para um japonês porque vai dar briga na certa. Esquisitices à parte, o mais tradicional e popular esporte nipônico tem seu charme e já encanta até brasileiros. O esporte é inspirado na briga dos ursos e há registros históricos de combates que apontam para mais de dois mil anos. No início, os confrontos eram religiosos e dedicados aos deuses. Os eventos aconteciam junto com danças sa24
gradas e apresentações teatrais. No periodo Nara, o sumô foi introduzido nas cerimônias imperiais. E até um festival anual foi criado justamente para que os melhores sumotoris do período se enfrentassem. Sob o patrocínio do império, as regras se desenvolveram até ser o que é hoje. Por isso, o lutador de sumô tem um status no Japão comparado a uma estrela de cinema e, algumas vezes, até mesmo de ministros. O Yokozuna, o mais alto degrau que um atleta pode alcançar na categoria, por exemplo, acaba se tornando uma espécie de divindade. Chegar perto de um, para um japonês,
é algo tão importante como ter um filho, sem exageros. As regras do sumô são simples e, talvez, isso tenha de certa forma facilitado sua penetração junto ao povo japonês. Num ringue, dois atletas sem enfrentam sob os olhares atentos do Gyoji, o juiz do evento. Antes do efetivo início do combate, há todo um processo ritualístico. Os sumotoris bebem o chikaramizu (água comum, que eles acreditam ser fonte restauradora de força), jogam sal diante de si, no dohyo (círculo de 4,55 de diâmetro) para purificá-lo), e, agachando-se, batem as palmas da mão e esticam os braços para os lados, com as palmas voltadas para cima e para baixo, pedindo a proteção do céu e da terra. Depois desse ritual, os dois lutadores ficam agachados, de joelhos abertos, procurando maior equilíbrio. Os dois colocam os punhos no chão e estão prontos para o tachi-ai (a saída). Socos, pontapés, puxões de cabelo e mordidas são proibidos. As rasteiras e os empurrões são os principais movimentos, muito parecidos com os golpes aplicados pelo judô. A luta é simples e não dura mais que trinta segundos. Ganha aquele que fizer com que o oponente toque qualquer parte do corpo no chão ou saia do dohyo. Não há contagem de pontos e nem regulamentos complexos. Os lutadores usam apenas uma faixa de pano amarrada na cintura (o mawashi). O uniforme, inclusive, ganhou no Brasil o infeliz apelido de fio-dental. Pode-se achar que quanto mais pesado for o atleta, já houve lutadores com mais de 250 quilos, mais fácil fica para o sumotori. Não é verdade. Os grandes lutadores pesam em média 160 quilos e são capazes de derrotar muitos gigantes apenas com a forma como pegam no mawashi. Aquela máxima de que quanto maior, maior é o tombo, se emprega aqui. Os campeonatos profissionais no Japão começaram em 1927. São seis etapas realizados por ano, sempre nos meses ímpares. Atualmente há cerca de 800 sumotoris nos mais variados rankings da entidade, do Jonokuchi (pri-
publicado na revista SUPERINTERESSANTE em janeiro de 2003
meira categoria por que passa um lutador) até o Yokozuna. Cinco yokozunas entraram para a história do esporte pela quantidade de conquistas nos torneios disputados. Takanohana Koji ainda disputa os campeonatos e já levou 22 taças. Nas disuptas que acontecem em Tóquio, os troféus são entregues pelo primeiro-ministro japonês e em ocasiões muito especiais até pelo Imperador. Nos anos 80, Chiyonofuji Mitsugu conquistou 31 campeonatos. Kitanoumi Toshimitsu foi o grande nome dos anos 70 e comecinho dos 80 com 24 conquistas. Mas o maior conquistador de títulos do sumô profissional foi Taiho Koki. Uma lenda nos mais tradicional esporte japonês que faturou o campeonato por 32 vezes durante os anos 60. Quem só vê as lutas das grandes estrelas do sumô pela TV, não imagina o quanto a vida deles pode ser desgastante e difícil. Independente do ranking em que se encontre, às seis da manhã, o sumotori já está no dohyo (arena) se aquecendo para a rotina de treinamentos. Abdominais, flexões de braço e exercícios típicos do sumô, além de incontáveis lutas. Depois de quatro horas de empurra, estica e puxa, o lutador está pronto para o almoço. Os mais graduados tomam banho e comem antes dos demais. A comida, que é preparada pelos próprios atletas, é uma atração à parte. O chankonabe é o prato principal e consiste num ensopado que mistura legumes, verduras e carne com osso e macarrão, numa combinação perfeita para se repor as energias. Na média, um sumotori consome cerca de 16 mil calorias por dia. Para se ter uma ideia do quanto é isso, um homem comum leva sete dias para chegar a essa marca. Durante a tarde, os atletas aproveitam para relaxar. Colocam o sono em dia, passeiam, fazem musculação e massagem além de ajeitar o penteado (o chonmage). Essa rotina é diária e as folgas ficam por conta do humor do dono do rea. Às vésperas de uma competição, podem ter um dia de descanso por semana. E nada mais.
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antes de ir...
“Para retomar a rotina é difícil... precisa trabalhar isso na cabeça... é difícil sair... O que faltou? Ali, naquele momento na escola, faltou amor, Deus... Perdão eu dou para os pais que não foram culpados. Quem sou eu pra não perdoar, eles não tem culpa.. é uma pena, eles serão vistos como pais de assassinos para sempre...” SANDRA REGINA LEMOS
Na manhã de 13 de março de 2019, Guilherme Taucci Monteiro e Luiz Henrique de Castro, mataram sete pessoas na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, região metropolitana de São Paulo. Pouco antes, a dupla – ex-alunos do colégio – havia matado o proprietário de uma loja, tio de um dos assassinos. Com a chegada da polícia, um dos atiradores matou o colega e se suicidou em seguida.Sandra Regina Lemos é mãe do sobrevivente do massacre João Vitor de 18 anos. Foi ele quem andou por 400 metros com uma machadinha no ombro até o hospital.