CARTA ABERTA Não olho para o passado com tristeza, saudade ou melancolia. Não uso aquele discurso “no meu tempo era melhor!” Como historiador, no entanto, aprendi que olhar para o que já aconteceu é fundamental para o entendimento do presente e, quem sabe, apontar perspectivas para o futuro. O passado já foi, não será mudado. Eu sei disso. Mas as marcas que ele deixa na terra, na pele, no ar, estão aí para quem tem coragem de vê-las. Como digo no texto de abertura da entrevista com Sidnei Corocine, psicólogo e ex-diretor do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima (antigamente chamado de Manicômio Judiciário de Franco da Rocha), eu nunca esqueci Sansão. Como estaria ele hoje depois da entrevista que fiz há quase 23 anos? De certa forma, essa edição de Portrait Fanzine virou um especial sobre a Loucura. Não. Mais do que isso, de verdade, é sim uma análise sobre como o Estado e a sociedade dita “normal” abandonam aqueles que são diferentes. O ensaio fotográfico sobre o Manicômio foi resgatado depois de mais de duas décadas. Foi um trabalho doloroso de rever e atualizar e que abocanha quase dois terços da sua revista. Como resistir é preciso, a PF 15 apresenta também uma das mulheres que venceu a Forja de Campeões em fevereiro passado, um dos mais tradicionais torneios de boxe amador do mundo. Patrícia é uma lutadora em todos os sentidos da vida e serve de exemplo para outras meninas apontando que qualquer espaço é um espaço para todos, inclusive o boxe, predominantemente masculino. Para concluir, nesse número, uma retomada de uma crônica, escrita para o site Área Restritiva, sobre o papel de um técnico na vida de um menino que quer fazer esporte. E tem ainda a estreia de Vinícius Caldeira, que será o cronista da última página, meu ex-aluno. Importante lembrar que essa edição foi produzida antes da crise do coronavírus. Embarquemos.
SUMÁRIO
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PROJETO Alexandre da Costa
SANSÃO Preso desde que cometeu seu único assalto, Ernesto Tomazelli Filho vive há 31 anos no Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha texto e fotos: ALE DA COSTA
“Boemia, aqui me tens de regresso...”
O sucesso de Nelson Gonçalves é entoado com alegria. Afinal, havia parado de chover em Franco da Rocha, a 50 quilômetros da cidade de São Paulo, e Ernesto Tomazelli Filho, o Sansão, poderia passear pelos pátios do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, o antigo Manicômio Judiciário. Desde 28 de julho de 1966, esse é o passatempo predileto dele, que aos 54 anos, é o paciente mais antigo da casa de saúde. No total, são 570 homens e mulheres, detentos inclusive, que dividem 415 leitos, o que obriga muitos a dormir em colchonetes no chão. A fama de depósito de assassinos cruéis cai por terra quando se cruzam os portões que separam o mundo sadio do doente. Há presos que cometeram delitos leves, como furtos, e graves, como tráfico de drogas. Segundo a diretoria da instituição, o número de crimes cruéis gira em torno de 35%. Há também casos surpreendentes como o de Francisco de Assis, o Noia, como é conhecido no hospital, que se auto-internou ao prever que “faria mal” à sua sobrinha. Faz sete meses que ele bateu na porta do Mani-
cômio, de onde espera sair um dia contando uma história diferente da vivida por Sansão. Filho de imigrantes italianos, Sansão nasceu na Mooca - cidade de São Paulo. Cedo, perdeu o pai, vítima de tuberculose. A mãe, dona Assunta, não pôde cuidar do filho como queria. Tinha problemas mentais e muitas vezes foi internada no Hospital do Juqueri para tratamento. “Minha mãe me deu o apelido de Sansão por causa de umas histórias que falavam de pilares derrubados”, conta, com dificuldades para se lembrar da infância. Estudou sete anos, mas não conseguiu sair da segunda série do primário. Logo começou a trabalhar. Foi catador de papel, funcionário de uma fábrica de rádios e servente de pedreiro. No entanto, não estava satisfeito com a vida. Era o início da década de 60 e, em sua cabeça, uma voz o incomodava. “Ela pedia para roubar e matar. Me deixava confuso e aí, como eu era malandro, fui assaltar uma loja em Santo Amaro”, recorda ele. Aos 21 anos, Sansão praticou seu primeiro e último crime fora das grades. Capturado pela polícia, foi parar na Casa de Detenção de São Paulo. “Ele tinha 1,66 de altura e 66 quilos. Era atarracado e mal-encarado. Sansão causava
o condenado 4
publicado originalmente na REVISTA JĂ em outubro de 1997
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um certo medo nos policiais e esse temor gerou muita violência”, conta Sidnei Corocine, psicólogo e antigo diretor do Hospital. Como o próprio Sansão confessa, sua passagem pela Detenção teve sessões de eletrochoque, pau-de-arara e muitas “borrachadas” e fizeram com que se tornasse uma pessoa violenta e imprevisível. Em três anos no Carandiru, foi recolhido à cela forte e à solitária várias vezes. Os motivos: brigou com outros presos, tentou fugir, ateou fogo no colchão, jogou um prato no rosto de um funcionário, lançou fezes no pátio... A cada novo delito, mais eletrochoques, pau-de-arara e borrachadas. E foram tantas sessões que ele começou a apresentar sinais de debilidade mental. “O que aconteceu com Sansão é o melhor exemplo de como um sistema penitenciário viciado acaba com qualquer possibilidade de regeneração. O abuso de autoridade e medicação transformaram um réu primário em um condenado à prisão perpétua”, denuncia Sidnei. Àquela altura, a voz que atormentava Sansão estava mais presente do que nunca. Continuava mandando e o rapaz, sem oferecer re-
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sistência, obedecia. A transferência para o Manicômio Judiciário não tardou. Sua conduta considerada má na Detenção, conforme seu prontuário, piorou. “Era muita injeção. Não dava para aguentar. Batia a cabeça na parede para tentar diminuir a dor”. Com quatro meses de Manicômio tentou fugir. Levou um tiro na perna direita e fraturou o perônio. “Eu corria mais que eles”, diverte-se. Em um de seus muitos depoimentos, Sansão relatou o tormento que a voz lhe causava: “Ela diz que sou Deus e que meu fim será triste porque o espírito de uma múmia que está encarnado em mim também teve um fim triste”. Sua doença: esquizofrenia paranoide. Os anos passavam e o isolamento atrás das grades do Manicômio era cada vez mais frequente. Em mais um surto de agressividade matou um colega de cela a pontapés e cabeçadas. Foi declarado detento de alta periculosidade. O ladrão de um assalto se tornara uma animal irracional. Trancafiado em sua cela, continuou a receber o tratamento “sossega-leão” Sansão já não esboçava nenhuma emoção, apenas perambulava de um lado para o outro
como um zumbi. Não tinha nenhum cuidado com higiene, mesmo assim havia parado de comer fezes. As constantes doses de neurolépticos, sedativos e barbitúricos não lhe causavam mais dor. Para a Justiça, isso era sinal de que o detento, antes muito perigoso, estava se curando. Como recompensa, 20 anos após sua entrada no manicômio, seria decretada sua liberdade vigiada. Teria, apenas, que passar mais um ano no Hospital do Juqueri e depois poderia ser considerado curado. Os problemas, porém, recomeçaram. Como o hospital em que estava internado era próximo do Manicômio, muitas vezes fugiu para rever os amigos. Comerciantes e moradores da região começaram a reclamar dos passeios do antes perigoso bandido. Recapturado, Sansão retornou à rotina dos pesados medicamentos e das celas fortes. A voz retornou com mais intensidade: ele tinha que matar. E foi o que aconteceu: ao sair de uma temporada na solitária, matou a primeira pessoa que viu na frente. O paciente Alfredo da Mata tinha 88 anos e foi morto a cabeçadas. Era o ano de 1985. Para a Justiça, Ernesto Tomazelli Filho,
vulgo Sansão, era um homem irrecuperável. Restava-lhe apenas o Manicômio Judiciário. Hoje, Sansão tem um tratamento mais ameno. Toma calmantes para dormir porque tem um sono muito agitado. Fala pouco do passado. Lembra-se do quanto doía sua cabeça. A família não o visita há 12 anos e há cinco não tem nenhuma crise. Para Sidnei, que o acompanha nesses últimos tempos, o amigo/ paciente não tem o que esperar da vida. “Ele perdeu toda a sua identidade. Como ele mesmo afirma, sua alma está morta”. O dia ensolarado anima Sansão. Ele amarra sua caneca na velha gravata. O rosto machucado engana sua idade. Parece bem mais velho. Conta, feliz, que seu aniversário está próximo e que gostaria de ser criança novamente. “O Sidnei faz bolo e me dá presente. Todo mundo cuida de mim. Se voltasse a ser criança, eu não ia fazer mal pra ninguém. Eu tô feliz. Eu queria mais 50 anos de reclusão”. Sansão coça a cabeça, respira com dificuldade, está cansado: “Será que vivo mais 50 anos?”
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Tempo perdido Sansão cometeu um erro e por ele foi condenado por toda a vida. Eu, você, a sociedade brasileira somos os responsáveis pela história desse homem que tinha vozes na cabeça texto e fotos: ALE DA COSTA
Eu nunca esqueci Sansão. O tempo passou, minha vida seguiu não sei se pelos caminhos corretos, trabalhos foram feitos, me perdi num emaranhado desituaçõesque destroemoserhumano,masnaminhamemóriasempreesteve o mais antigo detento do então Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Em agosto de 1997, eu estava duro, sem emprego e sem fé. Tinha ainda, no entanto, corpo forte e cabeça “boa” para criar. Engoli o orgulho, peguei dinheiro emprestado com a mãe, comprei dois filmes preto e branco para a câmera fotográfica e fui pra rua. Primeiro, encontrei um circo mambembe no bairro em que moro. Fiquei um mês com eles, entrevistas, fotos e bati na porta da revista dominical JÁ do jornal Diário Popular. O editor Dario Palhares foi com a minha cara, aprovou a matéria, ganhei uma graninha, virei freelancer e assim foi por dois anos. Mais tranquilo, pude pensar e desenvolver uma reportagem mais extensa e aí surgem Sansão e o Hospital de Custódia (antigo Manicômio Judiciário de Franco da Rocha). Eu entraria na “casa dos mais cruéis assassinos do país”, eu entraria no “inferno”... quanta bobagem, quanto preconceito. Cinco minutos com o Sidnei Corocine, que havia sido diretor do lugar anos antes, desconstruíram todos os estereótipos que por
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décadas se estabeleceram na sociedade brasileira. Foi Sidnei, em setembro de 1997, que me apresentou um mundo diferente e nele havia Sansão. Quando os portões do pátio se fecharam atrás de mim, eu, uma novidade naquele lugar, me vi cercado, abraçado. Lá longe, a canção de Nelson Gonçalves, que abriria a reportagem para a revista Já, reproduzida nas páginas anteriores. Não demorou um minuto e Sansão se tornou o protagonista da minha história. Carismático, falante, ele me recebeu com um carinho que eu não imaginava ser possível naquele tão propalado “depósito de assassinos”. Eram pessoas... A reportagem foi publicada, pautamos outras mídias como o então SBT Repórter, que apelou para o sensacionalismo barato da “Casa do Inferno”, e parti para outras histórias. Como disse antes, no entanto, Sansão nunca saiu de mim... Em dezembro passado, ao pensar a nova edição de Portrait Fanzine, folheava meu portfólio e lá encontrei a foto do Sansão que está na capa deste número. Como estaria Sansão hoje? Ele se lembraria de mim? Estaria preso ainda? Viveria com uma família? Que fim teria levado o mais antigo preso da Casa de Custódia? A pesquisa começou como ocorrera 22 anos antes. Encontrei Sidnei Corocine nas redes sociais. Mandei mensagens, ele me respondeu no dia seguinte e topou participar desse resgate de uma memória doída de nossa sociedade. Antes de se despedir nesse primeiro contato de retomada, Sidnei disse: “Sansão morreu em 2000, no dia seguinte, soubemos que ele tinha HIV...” e a notícia me machucou de um jeito que não sei explicar... Sansão, como sonhava, não viveu mais 50 anos... Portrait Fanzine: O Estado brasileiro criou o Sansão? Sidnei Corocine: ... ou destruiu o Sansão porque você vai ver o histórico dele – que foi muito difícil encontrar – a história dele estava fragmentada, retalhada em diferentes locais. O melhor local que consegui informações foi na Casa de Detenção de São Paulo, por incrível que pareça. Nos órgãos de saúde, tudo fragmentado, recortado e com muitas informações desconexas. O personagem Sansão foi criado no imaginário das pessoas e a história dele é muito trágica, é muito cruel todo o caminhar dele, o fim dele no Hospital das Clínicas em Franco da Rocha (que era o Juqueri)... PF: Em nenhum momento foi amparado pelo estado...nem pôde ser tratado do vírus HIV porque não sabia e o resultado positivo saiu no dia seguinte à sua morte... Qual o papel do estado brasileiro? Desde 1963 preso... Cenário de abandono em vários governos. Ele é um reflexo da sociedade?
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SC: Tem o abandono e a tortura. Sansão é um produto da sociedade, um estudo sobre a violência das instituições, aquilo que o social entende que deveria ser o papel dela e o papel dessa sociedade foi de destruir uma pessoa, de desconstruir, não dar nenhuma chance a ela de uma possibilidade de mudança... Se pegar o histórico dele, entrou meia-noite numa loja de brinquedos, prendeu por isso? Peguei o histórico da mãe dele, esquizofrênica, questionável, ela estava no Pinel, informações perdidas, prontuários vagos. Ela perdeu o marido, enlouqueceu, os meninos se perderam, a família não ajudava...O Sansão estava perdido, as cabeçadas que dava na parede eram tentativas de suicídio mesmo, ele queria morrer. Ele queria dar um fim... sua alma estava morta ali dentro...Seus primeiros tempos na cadeia, os três anos na Casa de Detenção foram de porrada, de tortura, arrebentam ele. Rapidamente, ele foi encaminhado para Franco da Rocha, tem que levar em conta aquela época, hoje seria normal. Naquela época, era muito raro uma pessoa ser transferida para Franco da Rocha em menos de um mês. Você pega os relatos pontuais dele, tentativa de suicídio, vai para o hospital, tenta fugir e leva um tiro, uma incoerência. Tenta se matar e depois foge? Há incoerência nisso. PF: Como você analisa a relação de Sansão com o sistema prisional? SC: Eu estava passeando com ele no bairro e o pessoal falava que o Sansão era esperto. Ele ficava trancado na cela, que era lavada uma vez por semana, aí mandavam tomar banho e ele se ensaboava e começava a correr fugindo do presídio e ninguém o pegava porque estava todo ensaboado. Sansão tinha uma percepção fora do comum. Então, você vê o quanto a instituição e sociedade lidam com a pessoa que é diferente... ele era filho de imigrantes anarquistas... tinham medo dele porque era forte... até hoje é isso. O desejo da sociedade é pegar uma pessoa com qualquer furto pequeno, prendê-la e “que morra na cadeia, que desapareça na cadeia”... PF: Cadeia dá voto. A gente conversou isso em 1997. Em 2020 está pior... um retrocesso... SC: Até ideologicamente isso está pior.. Teve estado proibindo livros. Estamos indo para a idade das trevas... PF: Na lei, o limite são 30 anos de prisão, tem assassino que sai da cadeia com 10 anos e até menos. Sansão ficou 37 anos detido... Que nível de abandono é esse? O Sansão não é uma exceção nesse sistema prisional... SC: Eu trabalho nessa estrutura ainda e vira e mexe encontro pessoas que
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estão lá, que não são elas que cometeram crime, foi outra pessoa, que o nome tá errado, mas como o indivíduo não tem qualificação, jogam ele na prisão mesmo assim. Elas não são ouvidas, são destituídas da fala, não sabem se expressar. O social está cada vez pior...Muita gente pensando em si mesma e deixando o pensar/vislumbrar que existe um outro, muito distante. Se houvesse alguém que tivesse conversado com o Sansão quando ele era adolescente... olho no olho...a gente não estaria tendo essa conversa agora. O prontuário era só isso... “Entrou e saiu..foi punido...” No prontuário do tiro na perna, você pega a sequência foi levado ao PS e tenta fugir... e nada mais.. Tenta fugir? É um absurdo que continua ainda...Não tem nexo...O absurdo continua até hoje. O PCC se criou por causa desse vácuo... jogavam as pessoas na cadeia e eles se organizaram.. “já que ninguém nos cuida, nós nos cuidamos e vamos tomar a frente” ... Se organizaram melhor que o estado... PF: Todos erramos na história de Sansão... SC: O livro Holocausto Brasileiro é impactante... a sociedade vivenciou isso e não fez nada... o que nós fizemos? Construímos um lugar violentíssimo, bárbaro e nada foi feito. Não fizemos nada... E algumas pessoas conseguiram sobreviver.. PF: Você como aluno na universidade foi educado nesse contexto de tortura, violência. De não poder se aproximar do paciente. Quando eu te encontro com o Sansão há 22 anos, a relação era outra, havia entre vocês dois uma proximidade grande. Havia por parte dos dois um carinho grande e que nada tem a ver com os estereótipos de que os manicômios são “Portões do inferno”.. “casa de loucos e assassinos cruéis”... SC: Quem me apresenta a instituição foi o Sansão. Foi ele quem melhor me acolheu lá. Já os funcionários com seus medos, suas histórias... praticamente falando pra você não trabalhar lá. Mas quando entro no pátio, Sansão vem e me abraça, foi me mostrando tudo e me senti muito bem acolhido. Ele foi a única pessoa que me acolheu, a instituição não, na verdade, ela queria me expulsar... PF: Por que escolheu trabalhar nessa área? SC: Na graduação, os professores psiquiatras, quinzenalmente, nos levavam a um hospital na Cantareira (zona norte da cidade de São Paulo). Fazíamos o trabalho em grupo, a pesquisa, a entrevista e o coitado lá internado, medicado, nem sabia em que planeta estava... um desses trabalhos, eu não esqueço. Uma menina acabou de ser internada, sentava todo
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mundo, bateria de perguntas dos alunos, a menina olha pra todo mundo e diz “eu achei que vocês iam me ajudar, vocês não estão me ajudando em nada”, ela se levantou e saiu... Quinze dias depois, falamos com ela novamente, mas desta vez ela aparece completamente drogada, anestesiada, sem contato algum com o mundo... foi nesse momento que comecei a me interessar... a buscar conhecimentos sobre isso. Então, por volta de 1986, entrei no Hospital Psiquiátrico do Juqueri... fiquei um ano lá, mas saio justamente porque foram dar eletrochoque nos pacientes e não concordei, pirei na coisa... e tinha o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha com uma proposta de abertura quando vou pra lá... Minha formação era pra não estar nesses lugares... PF: Sua indignação com a história de abandono de Sansão e seu completo envolvimento no tema sempre foi visível e evidente. Você nunca escondeu isso. De que forma essa sua relação com os pacientes te causou problema? SC: Até hoje isso me marca. Meu apelido é Bandidão, que é uma referência ao Sansão que dividia os funcionários entre “bandidão” (gente esperta) e “menininha”... É a insígnia dada pela sociedade a uma pessoa (como eu) que transita numa área que não deveria transitar... PF: Uma das coisas que mais me chamou a atenção quando conversamos sobre Sansão em 1997 foi que você disse que ele “virara” algo perigoso por causa de sua aparência, tinha 1,66 m e 66 quilos, era forte, “mal-encarado”. Quando preso, a sociedade reagiu dando “borrachada” nele e assim seu ciclo de quase 40 anos de prisão começou... SC: É assim que o nosso social lida com o que é diferente. Hoje você tem os moradores de rua, lá tem vários Sansões... a imagem pesa e você o julga, mesmo sem conhecer a pessoa, mesmo sem ele abrir a boca. PF: É possível existir pessoa no mundo que não seja recuperável? SC: Irrecuperável é a sociedade. O ser humano tem que se propor à recuperação. Já vi vários casos em que a pessoa conseguiu reverter, é uma proposta de cada membro da sociedade que queira mudar.. Mas se não deixa esse movimento ocorrer... Sansão conseguiria viver em sociedade.. lá na adolescência... quando ele perdeu o pai... a mãe enlouqueceu... a sociedade não o acolheu. Às onze da noite, você vê uma criança de cinco anos no farol e fica com medo dela... qual o futuro dessa criança? Ela tem cinco anos e você vira a cara pra ela... E você fala pra mim que está preocupado com a sociedade? Não está...Uma sociedade que permite isso, que permi-
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te que seu futuro viva desse jeito, ela não se propõe a não ser destruir... PF: Se o massacre do Carandiru de 1992 fosse hoje... SC: O pessoal iria adorar... muito mais pessoas aplaudiriam hoje...sem vergonha alguma. As pessoas estão se mostrando de fato. Destruíram a Casa de Detenção, mas acho que ela deveria ficar como memória, como lembrança daquilo que aconteceu... a gente destrói a memória... PF: Como evitar um novo Sansão? SC: Estrutura social... ter a família... o que é família hoje? Vínculo afetivo cada vez mais remoto e se cria a pessoa sem deixar ela criar raízes...as pessoas não tem condição de se vincular. As pessoas deveriam pensar no porque querem ter um filho... A sociedade tem que lidar com o desenvolvimento de uma criança... criança não é adulto...é um ser em desenvolvimento e ainda querem diminuir maioridade penal? Do jeito que as coisas vão, a criança que acabou de nascer vai ser presa porque “agrediu” a mãe. Onde estamos? O conhecimento não tá penetrando na cabeça das pessoas.. crianças não estão se desenvolvendo plenamente... vai se educando a pessoa sem amor... PF: Ninguém chora pelo Sansão... Não chora pelos 111... Apagar o passado beneficia a quem? SC: Parece que agora é tudo de imediato, não se resgata nada ... a terra é plana... o nazismo é comunismo...Que sociedade é essa? Não viram histó-
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ria? Você negar a história é negar sua identidade, sua condição humana... A história de Sansão não acabou? Hoje, ele estaria no que se chama de residência terapêutica... tenho um paciente estilo Sansão que tem o apelido de “bebezão” no hospital de Custódia dois... Ele é grandão, fortão, desde pequeno os pais colocavam ele como guarda da biqueira com oito anos de idade...no tráfico... ele foi preso, tomou tiro, apanhou e chegou pra gente com deficiência intelectual, pouco entendimento, só sabe usar o corpo, fala de repressão.... No hospital, ele se humaniza, pelo contato... a mãe não se importa, a avó diz que não tem como cuidar.. surgiu uma irmã.. ele foi pra residência terapêutica, o promotor não queria deixar ele sair... ele só agrediria alguém se esse alguém o agredisse... ele não é tonto...tem que deixar desenhar... ele chora... ele percebe que a mãe não o quer, não tem mais nenhuma referência familiar... é aí ele se deprime todo... esse é o novo Sansão... PF: Como você reagiu ao resultado de HIV do Sansão um dia depois de sua morte? SC: Eu achava... ele era totalmente de risco, tinha tuberculose, estava magrinho. A gente pedia para que as pessoas cuidassem dele, fizessem exame, mas não cuidavam muito. Sansão tossia muito... ele era muito arisco quanto a tomar remédio... falava em injeção, ele já ficava nervoso... Fui lá no hospital quando estava internado, ia visitá-lo... um dia antes dele morrer, eu estava lá. Ele reclamava e pedia “deixa eu voltar contigo, aqui é muito triste”.
Livro lançado em 2005 e que analisa a história de Sansão no contexto das instituições de saúde e segurança
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Memórias aprisionadas Fotografias guardadas há 22 anos contam histórias esquecidas atrás das grades do antigo Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, município do estado de São Paulo
fotos: ALE DA COSTA
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Sobre sonhos e pesadelos O papel de um treinador na vida dos jovens atletas
texto: ALE DA COSTA
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Como compromisso de carreira, toda oportunidade que tivesse, fotografaria jogos e eventos da base do esporte olímpico brasileiro. Assim tem sido com a Liga de Desenvolvimento do Basquete desde 2018, em suas edições que acontecem na cidade de São Paulo. Trabalhei em N jogos, mas além de fotografar, pude também analisar os trabalhos dos clubes, ver, por exemplo, como os treinadores agiam com seus atletas. Todos de um jeito ou outro ficavam loucos da vida quando algo errado acontecia na quadra. Era até engraçado. Na hora do tempo, no entanto, todos os técnicos que pude fotografar de perto eram mais fraternais, nenhum “carregava demais na tinta” ou “perdia a linha”. Mas qual o jeito certo de fazer esse trabalho com jovens? Gritar? Oprimir (talvez não seja o verbo)? Ser paizão? Ser grosso? Meu sonho de sempre era ser jogador de futebol. Eu sonhava realmente que era bom o suficiente para jogar no meu Flamengo e ser da Seleção Brasileira. Meu ídolo Zico moldou toda a minha infância. Eu acreditava sim que poderia ser o melhor do mundo como o Galinho do Mengão era na época. Meu primeiro brinquedo foi uma bola, minha primeira palavra foi bola, minha primeira andada, corrida e queda foi atrás de uma bola. Era meu mundo. Em 1982, tinha sete anos, no bairro em que morava nasceu um time de futebol de salão, a Blindex. Hoje o esporte mudou muito, até o nome (Futsal), no entanto, para mim essa equipe poderia abrir as portas do verdadeiro futebol, aquele do campo, da chuteira. Nesse período, ainda havia uma relação pai e filho aqui em casa e o meu acendia ainda mais meu sonho dizendo que realmente eu jogava muito bem. Quando o Flamengo conquistou o título mundial em 1981, disse pra ele no carro (íamos para o parque jogar bola) que seria campeão do mundo igual ao Zico e ele disse “sim, com certeza!” A Blindex montou todas as categorias do futsal, do fraldinha até os juvenis. Era uma quinta-feira, eu fui. Meu pai ficou na arquibancada e o que aconteceu depois ainda mora na minha memória, num lugar bacana. Entrei na quadra e fui direto para a trave porque nela havia rede
e eu nunca tinha jogado futebol com redes que balançavam. Mexi nela e me vi em segundos fazendo gols que balançariam essas redes. Foi emocionante. Os garotos foram divididos por idade. Eu era muito moleque e muito ingênuo. Os técnicos chamavam os meninos pelo ano: 71, 72, 73 e isso me pareceu tão confuso que quando chamaram 75 (o meu), meu pai me alertou de onde estava. O treinador seria o Carlão, um sujeito grandão, troncudo, que me pareceu um tipo paizão que sorria pouco. Acho que nunca o vi sorrir. Hoje não passo do 1,70, porém, naquele período eu era o mais alto e forte da turma. Como tudo começava do zero no time, fui colocado na defesa como fixo. Mesmo assim, ousado e “se achando”, tudo que era treino de coletivo, fazia gols adoidado. Na minha cabecinha de vento, meus gols concorriam com o craque Casagrande que no Corinthians de 1982 era o grande artilheiro. Eu contabilizava os gols de treinos também e no final da temporada eu tinha 30 e o Casão 28. Hahah, eu era um craque. O que importava, porém, é que eu amava jogar futebol, amava demais. Poderia passar o dia inteiro jogando... mesmo com um probleminha no joelho que já aparecera em 1982. Meu time foi um sucesso nessa temporada. Chegamos na final do principal campeonato da categoria fraldinha de São Paulo. Fui titular o ano todo. Fui feliz pakas. Carlão nos treinava com paciência, não lembro de verdade dele ter perdido a calma ou dele ter sido grosso. Mais para o fim do ano, ele começou a me chamar de lado dizendo que o moleque tal estava treinando mais do que eu e que poderia pegar meu lugar no time. Mas eu era tão feliz ali que nunca vi nenhuma ameaça. Eu continuava jogando e isso que importava. O ano acabou. Fiquei muito doente em dezembro e quase não participei da confraternização da equipe. Os melhores de todas as categorias ganhariam troféus. Todo mundo ganharia a velha medalhinha de honra ao mérito se não levasse os prêmios mais bacanas. Mesmo com febre alta, enchi meu pai para ir na festa. Quando fui chamado, não ganhei troféu. Se eu não fosse tão bobo (ok, era só uma 23
criança), teria percebido que algo estava errado do gol contra. Olha, se o cara pudesse, ele teria e que eu não era tão bom assim. me batido. Meu corpo todo tremendo, um medo que eu nunca antes havia sentido. Será que eu Ok. era tão ruim antes e nunca havia percebido? Poxa, eu competia com o Casagrande do Corin Rumo à próxima temporada. thians nos meus sonhos. Tudo mudara com esse novo técnico e agora até gol contra eu fazia... e O sucesso da Blindex chamou a aten- nesse dia como qualquer criança de oito anos ção de outros clubes. Um deles, o Juventus da que perde seu brinquedo favorito, chorei soziMooca, achou que seria bacana juntar as duas nho no vestiário até não ter mais lágrimas. equipes. Fazer os garotos deles jogarem tam- Aquilo que poderia fazer um dia inteiro, bém pra Blindex. Alguém da diretoria do nosso agora me deixava doente e incapaz. Eu não contime achou que isso ia ser legal... Pra quem? Pra seguia pensar dentro da quadra. Meus passes mim, com certeza, não. No início de 1983, no en- eram ridículos, minhas ações estúpidas e tudo tanto, eu ainda pensava que era o Zico e jogaria que vinha do banco eram mais críticas, xingano pré-mirim. Técnico novo. Um homem alto, mentos, palavrões. Eu era um lixo pra ele. Eu careca, magro pra danar e que por mais que eu me sentia uma bosta. tente não consigo lembrar seu nome. O Carlão Eu só tinha oito anos e não amava mais o seria uma espécie de auxiliar. No meu primeiro futebol. Não tinha mais sonhos... contato com esse treinador novo, nada demais. Na rodada seguinte, o moleque do outro Ele até fez piada e fomos treinar, jogar. As coi- time foi até a lateral e chutou a bola despretensas corriam como deveriam. Até que comecei siosamente. Eu, perdido no mundo da lua, esa me cansar – cansado demais - no jogo, como tava na área do lado do meu goleiro (fazendo nunca acontecera antes. E isso fazia eu não pen- o quê, imbecil?)... A bola veio forte, bateu na sar direito. Resultado: passei a errar coisas es- minha canela e entrou no gol do meu time. Dois túpidas como um passe de um metro pro colega gols contra em dois jogos seguidos. Uma verdo lado. Ok, errar todo mundo erra, o ponto é gonha gigantesca me consumia. Meu treinador que eu tinha oito anos de idade e quando errei olhava pra mim como que dizendo: seu bosta, pela primeira vez, levei do meu técnico novo não vai mais jogar aqui... Dessa vez, ele não disuma bronca sonora, gigante, pra todo mundo se nada. Me tirou do time. Na rodada seguinte, ouvir, que lembro que só olhei pro meu pai na havia dez camisas para o jogo. Treze moleques. arquibancada e ele meio que virou o rosto, tal- Pela primeira vez, não vesti o uniforme. Menvez de vergonha. Eu achei que ia chorar e devo ti pro meu pai dizendo que estava machucado. ter chorado mesmo. Ele aceitou isso como verdade e fomos embora. Era um cansaço que começava a me do- Nos jogos na escola, meu medo da bola, minar nos treinos e jogos. E os erros se repetiam meu medo de jogar, também se manifestou. e os xingamentos, gritos e broncas só aumen- Meus colegas não me escolhiam mais. Eu que tavam. Eu perdia meu espaço na equipe. Se o fazia os times antes, agora não era chamado por treinador estivesse do meu lado treinando, cor- ninguém. Naquele ano, quando começou um rigindo meus erros, me ajudando, mas não... Só campeonato importante, não fui relacionado. havia a crítica nefasta. Eu lembro de verdade de Eu nem tinha nove anos e estava acabado para me sentir encolhendo cada vez mais e de não o meu sonho. Não sei se isso é justo. Perambulei mais querer jogar futebol. Aquilo que eu amava ainda pelo Vila Maria e Goodyear. Mas nunca tanto se tornava algo tão doloroso e difícil por mais fui o mesmo do primeiro ano: o menino causa de um homem. Mas tudo pode piorar. Saí que amava o jogo de bola e que se emocionava do banco, entrei no jogo difícil, fui recuar a bola com o balançar das redes. Nesse período, minha para o goleiro, exagerei na força e acabei fazen- família ficou sócia do Corinthians e descobri o 24
vôlei, o basquete, a natação, o judô. Me identifiquei com eles e fui bem na medida do possível. Fui um bom levantador do time de vôlei da escola e se existisse líbero na época teria chamado a atenção. Futebol nunca mais, nem em times, nem na escola. O técnico que matou meu sonho (me desculpe, mesmo eu sendo ruim, ele deveria ter cuidado de mim) nunca mais vi. Não sei que fim levou. Mas, de verdade, todas as vezes em que penso em futebol, eu lembro daquele cara no banco gritando comigo o quanto eu era ruim, o quanto eu não prestava, o quanto eu era incom-
petente... Eu só tinha oito anos.... Fotografar o LDB me permitiu refletir. Será que o treinador bom é aquele que xinga? Não vi nenhum fazendo isso no LDB. O treinador bom de um time bom tem que agir como??? Será que algum dos meninos do LDB se arrependeu de estar lá jogando? Acho que não... Meu treinador do futebol de salão não me treinou, não me formou, não me deu a base... De verdade, a única coisa que ele fez foi deixar claro pra mim “a bosta que eu era pro futebol”... Esses garotos, o futuro do basquete brasileiro, parecem estar em melhores mãos.... Que bom!
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Na luta contra o machismo Patrícia Chaves venceu a Forja de Campeões 2020 e trabalha duro para uma maior participação da mulher no boxe brasileiro texto e fotos: ALE DA COSTA
Desde 2018 no Esporte Clube Pinheiros, a Forja de Campeões, mais tradicional torneio do boxe amador brasileiro em sua 79ª edição, tem a sua grande noite de final depois de nove rodadas no começo de fevereiro. Pelo segundo ano consecutivo, as mulheres marcam presença em seis decisões. Numa delas, Patrícia Chaves representa o projeto Projeto Luva Azul na categoria 64 quilos. Sua adversária, Evelyn Tavares da Equipe Amees é mais alta. Encontrar a distância certa de sua oponente é o primeiro problema de Patrícia, além do natural nervosismo de uma luta pelo título: “O psicológico pré-luta é bem complicado, e por conta do peso imaginei ser uma adversária mais alta, o que foi de fato, e até achar a distância foi um desafio e tanto. Claro que o medo surge, mas quando subi no ringue, a certeza que eu daria o meu melhor, fez todo o temor desaparecer”. A luta foi “pegada”. Tanto Patrícia quanto Evelyn desferiram duros golpes durante boa parte dos três rounds (que no boxe amador tem duração de dois minutos). No entanto, a lutadora do Luva Azul passa a ser mais contundente, ataca mais, machuca mais. No último assalto, Patrícia consegue sua vitória por nocaute técnico. Festa geral. Assim conheci essa 26
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As fotos dessa entrevista são da luta final da Forja de Campeões, categoria de 64 quilos, entre Patrícia Chaves e Evelyn Tavares.
lutadora. Pelas redes sociais, conversamos, e a vencedora da Forja de Campeões topou dar seu depoimento sobre sua vida de atleta para essa edição de Portrait Fanzine. Nossas conversas se deram por whattsapp e revelaram as dificuldades que a mulher encontra num universo predominantemente masculino: Portrait Fanzine: Ser mulher e boxeadora num país como o Brasil... você sofre preconceito por sua escolha de ser boxeadora? O machismo da sociedade brasileira te incomoda? 28
Patrícia Chaves: Nosso país é muito conservador e ainda fortemente machista, ser mulher em qualquer uma das áreas é um desafio, no esporte é um desafio ainda maior porque somos poucas. Não só por falta de oportunidades, mas também porque às vezes nós mesmas criamos uma limitação, achamos que não somos capazes de lutar como os meninos, de ser tão boa quanto eles. É uma falha nossa, mas aqui no Brasil encontramos muita dificuldade, uma discrepância gigantesca entre o tratamento masculino e feminino, principalmente no boxe. Eu tenho sentido muito isso... não só como atleta, mas como administradora de projeto também... vi que há uma diferença muito grande. Estamos lutando para que isso mude e que todas sejamos tratadas com igualdade e respeito... essa é nossa luta, minha crença e eu corro atrás disso. Eu vejo cada dia mais o quanto nós, mulheres, estamos percebendo que podemos fazer o que desejamos, que embora exista uma grande rivalidade entre nós mesmas - o que acaba atrasando - fazendo com que andemos em passo da tartaruga, vejo sim uma evolução muito grande se compararmos com anos atrás. Quando de fato percebermos que não somos rivais umas das outras, que nós conseguimos trabalhar em conjunto, aí ninguém segura a mulherada, a gente vai longe... Sobre o machismo teve um episódio muito chato no próprio Forja. Eu estava com meu grupo, cerca de 15 pessoas, somente eu de mulher, uma figura renomada no mundo do boxe cumprimentou um por um e nem sequer me dirigiu o olhar, simplesmente fingiu que eu não estava ali, no momento senti a força do desprezo por simplesmente ser mulher em um universo tão masculino. Aqueles que estavam comigo perceberam e nada fizeram por achar a cena comum, tanto que os comentários foram unânimes assim que o homem se retirou. Para eles foi algo corriqueiro e, em mim, causou grande impacto.
ajudar na administração do projeto, fui me envolvendo, comecei a acompanhar os atletas nas lutas e aí, surgiu aquela vontade de subir no ringue e calhou com as inscrições para a Forja. Fomos escrever nossos atletas e por que não, né? Vou tentar, pensei, embora esteja com 34 anos, indo pros 35, sendo master já, mas resolvi encarar esse desafio pra lutar e aí fui. PF: Como vou trabalhou sua cabeça para estar bem e concentrada na luta final? Sua adversária, mais alta, impôs dificuldades, mas você sempre esteve um passo à frente no combate. Como você se preparou para essa final? PC: A parte psicológica pra qualquer modalidade esportiva é o que mais impacta. Às vezes, você tá preparado fisicamente, você tem a técnica bem afinada, mas se seu psicológico não estiver alinhado com tudo isso, você não consegue chegar lá e fazer seu melhor. Então, tem que trabalhar muito sua parte psicológica e pra nós, mulheres, o fato de ser mulher num universo totalmente masculino, universo que tem bastante resistência deles mesmos em aceitar o público feminino, isso pesa bastante, eu senti muito isso, tanto na parte administrativa, de correr atrás para os meninos de alguns eventos, quanto como atleta para participar, uma dificuldade, uma resistência muito grande. Por conta do peso (categoria 64 quilos), imaginei ser uma adversária mais alta, o que foi de fato, e até achar a distância foi um desafio e tanto. Claro que o medo surgiu, mas quando subi no ringue, a certeza que eu daria o meu melhor, fez todo o temor desaparecer
PF: O que te encanta no boxe? PC: O boxe tem todo seu gingado, lembra um pouco uma dança, lembra um pouco de street dance que é muito legal. Eu gosto muito de dançar. Os golpes em si... um esporte que proporciona trabalhar todos os grupos musculares, aumenta muito sua concentraPF: Como o boxe surgiu na sua vida? Por que o ção, aumenta muito sua atenção, isso é encantador no boxe? Como você descobriu o projeto Luva Azul? boxe. Fora a tradição. Isso tudo me ajudou a continuPC: Eu sou casada com um guarda municipal há 18 ar, a perseverar até chegar no campeonato. anos. Hoje, ele está no Comando Geral aqui em Itapevi (estado de São Paulo), eu também fui guarda PF: Como você analisa o empoderamento feminino municipal por um tempo e hoje trabalho como con- na sociedade brasileira do século XXI a partir do sultora, uma colaboradora nessa instituição em nossa seu trabalho no projeto Luva Azul? cidade. Conheci o boxe quando malhava. O pessoal PC: Eu fui a única mulher do projeto a se inscrever na do projeto Luva Azul utilizava o espaço da acade- Forja de Campeões. Esse universo totalmente mascumia, eu comecei a visualizar a aula, gostei da parte lino assusta muito as atletas. Hoje, temos seis meniaeróbica, da parte que eles trabalham cardiovascu- nas que treinam aqui com a gente, mas nenhuma delar. Eu comecei em abril do ano passado, mas nunca las se sentiu confortável, confiante, para se inscrever passou pela minha cabeça competir. A ideia era só a na competição. Eu dei o pontapé inicial e servi como parte fitness mesmo, ganhar condicionamento, mo- uma referência pra elas, para mostrar que todas nós vimentação, mas com o passar do tempo, comecei a podemos. 29
PF: Como foi sua rotina de preparação para a Forja de Campeões? PC: Eu treinava de duas a três vezes por semana, mas quando fiz a inscrição no Forja, aumentamos esses treinos pra cinco vezes por semana, isso em novembro. Em dezembro e janeiro, passamos para todos os dias, às vezes, eu descansava só no domingo. Acrescentei treino de corrida, meta de cinco quilômetros por dia, corrida pra ter fôlego, aguentar os rounds, fez uma baita diferença, me ajudou muito na hora das explosões, me ajudou muito a conseguir ficar lá os dois minutos golpeando o tempo todo ... e logicamente, a gente foi afinando as técnicas de boxe, escola de combate. Comecei a fazer os sparrings também. No começo foi com meus colegas de treino, com o professor do projeto, em algumas academias 30
locais, com umas meninas. Tem uma baita diferença de lutar com um rapaz e uma moça, em volume de golpes, no pushing, dá uma diferença bem grande. PF: Esporte amador/olímpico no Brasil enfrenta muitos problemas históricos, desde patrocínio até a total invisibilidade do grande público. O que você pensa sobre o “país do futebol” abandonar os outros esportes? PC: Falar de esporte no Brasil é falar de futebol... as pessoas associam o esporte no país única e exclusivamente ao futebol, às vezes, por falta de conhecimento mesmo porque hoje nas escolas o que você tem? O vôlei, o futebol, a queimada, não tem incentivo e nem apresentação para as crianças dos outros esportes que existem. Isso você vai adquirindo ao longo da sua vida quando você vai crescendo... por sermos ca-
uma profissão? PC: A Olimpíada gera benefícios, claro... seja na melhoria urbana, na mobilidade, na quantidade de empregos pra região. Mas, como o Rio de Janeiro tem uma segregação econômica muito grande, ao longo prazo pouco pode favorecer, é preciso trabalhar outras políticas públicas. Quando nós, brasileiros, entendermos que uma base deve ser construída a partir da educação e do esporte com certeza nos tornaremos cidadãos melhores. Isso dialoga com o momento em que escolhemos nossos representantes tanto nas esferas municipais, estaduais, federais... quando a gente PF: Nas portas de uma nova Olimpíada (nota da re- entender que a promoção do esporte, lazer e a cultura dação: essa entrevista foi feita antes do adiamento constrói... isso sim transforma... e teremos uma sociedos Jogos Olímpicos de Tóquio), qual o legado dos dade melhor com indivíduos capazes de pensar por si, Jogos Olímpicos do Rio para seu esporte? Houve de refletir melhor, isso vai contribuir de forma gratifialgum? Melhorou? Ser boxeador no Brasil pode ser cante, de forma plena para toda população. pitalistas, os empresários visam o lucro. Por exemplo, fazer um evento de boxe, você consegue atingir um x de pessoas, agora se for comparar com uma pelada de futebol que você pode encher um estádio, o lucro é muito maior. É difícil trabalhar isso no empreendedorismo, o incentivo ao esporte quando as próprias pessoas não se interessam. Precisa começar a mudar essas políticas, tem um incentivo no Rio de Janeiro que é o jui-jitsu nas escolas. A inclusão nas escolas dessas modalidades pode transformar o país em todas as modalidades esportivas, não só no futebol.
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PF: O que te orgulha como boxeadora??? PC: Eu tenho me tornado uma referência na sociedade em que vivo, no meio da minha família e amigos. Através da luta do campeonato e eu sendo campeã, eles puderam ver que a mulher, mesmo com toda dificuldade e limitações, pode sim praticar uma modalidade esportiva, pode ser competitiva, pode ir além do que ela imagina. Tenho grande orgulho disso. PF: O que você pensa para sua carreira depois dessa vitória? PC: Eu continuo treinando com afinco pra participar de novos torneios, alcançar novos projetos e desafios nessa nobre arte. Estou encantada, eu gosto muito, quero me aplicar e produzir cada vez mais, vou fazer um curso em março de arbitragem, depois, de treinador de boxe. Quero me aprimorar cada vez mais pra melhorar a sociedade, trazer igualdade em todos os aspectos, etnias, gêneros e eu estou me aprimorando pra fazer diferença no mundo do boxe. Não paro de estudar, estudo enfermagem, termino no final do ano,
e já vou iniciar uma faculdade de educação física, uma nova graduação, pra agregar ainda mais no esporte aqui da cidade. PF: Só na edição passada, as mulheres entraram na Forja de Campeões, um dos torneios mais tradicionais de boxe no mundo. Por que você acha que isso demorou tanto pra acontecer? As mulheres chegaram pra ficar de vez no boxe?? PC: Eu pude observar que a minha inclusão no projeto, a minha participação no boxe, na Forja, ter trazido essa medalha pra casa, trouxe esperança mesmo para as mulheres verem que todas nós podemos. Recebi inúmeras mensagens, várias pessoas foram procurar o projeto para se inscrever, e eu digo que 70% das pessoas que se inscreveram são mulheres. Quando há uma divulgação positiva, essa imagem da mulher, do empoderamento feminino traz pra outras essa esperança , traz a visão de que “EU TAMBÉM POSSO”, pra mim, tem sido muito gratificante. Todas nós, mulheres, podemos... independente da idade, desde que a gente acredite...
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antes de ir... IGUAIS OPOSTOS texto: VINÍCIUS CALDEIRA
Andando pela rua, acompanhado de um colega de trabalho, desses que a convivência transforma em amigo, notei como, diferente do que o mundo hoje está fazendo, estava convivendo com alguém extremamente oposto a mim. Eu, um homem de esquerda, ele de direita, andávamos lado a lado escolhendo, talvez para evitar conflitos, ignorar nossas diferenças. Refletindo assim, comecei a dar atenção ao que pensava sobre as pequenas coisas que apareciam em nosso caminho até o restaurante, onde iríamos almoçar, e me pôr a comparar as prováveis diferenças entre nossos pensamentos. A primeira coisa que cruzou nosso caminho foi um homem sentado na calçada usando roupas que poderiam ser usadas como pano de chão. Para mim, alguém que teve tudo roubado pelo mundo, de quem foi cobrado que jogasse o jogo sem ter sido ensinado por ninguém e então punido por ter descumprido alguma regra que desconhecia. Para meu amigo, acho eu, era alguém que não se esforçou o bastante ou que desperdiçou chances, vítima de si mesmo, não do sistema, que talvez ele chame de VAGABUNDO. À frente, vimos um policial enquadrando um menino, negro e assustado estava o jovem, eu vi a situação como opressiva e violenta, não há nada que me convença de que sua cor não tenha influenciado o policial a pará-lo e revistá-lo, o Estado oprimindo os que mais deviam ser protegidos por ele. Para meu amigo, que devia pensar que eu sou um DEFENSOR DE BANDIDO, aquilo era só a segurança sendo feita e que se o menino nada devia, seria liberado, que o policial cumpria seu trabalho independentemente de como isto era feito. Chegando ao restaurante, vimos uma criança vendendo balas e chocolates aos carros parados no farol. Aos meus olhos, uma criança sofrendo na pele o capitalismo selvagem, tendo de vender a infância para conseguir comer. Para meu colega, essa visão pode ser algo bom, afinal a criança estaria, teoricamente, empreendendo e lutando por seu sustento, na visão dele e de sua meritocracia, o infante seria recompensado pelo sistema por ter se esforçado. Então entramos, nos sentamos, comemos e rimos juntos de diversos assuntos, todavia algo me tomou o pensamento, nós estávamos fazendo o que os partidos políticos fazem. Ignorando ideologias, comendo a mesma comida, é claro que para os partidos, a comida é a propina, a corrupção que vem sem escolher ideologia. Nós éramos naquele instante, a metáfora perfeita da política brasileira, iguais na barriga cheia e ignorando o que pensamos e defendemos para facilitar as coisas.