REVISTA DA ALERJ Ano II - Número 02 - Março de 2008
Paz à brasileira Nossa missão no Haiti
nes te n úm ero REVISTA DA ALERJ Ano II - Número 02 - Março de 2008
Paz à brasileira Nossa missão no Haiti
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MEMÓRIA
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ENTREVISTA
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FUTURO
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MÍDIA
Paz à brasileira O Haiti foi o primeiro lugar no mundo em que os escravos se levantaram contra seus senhores – e ganharam –, em 1792. Doze anos depois, libertou-se de séculos de imperialismo colonial, mas teve que enfrentar a influência norte-americana e uma sucessão de golpes militares e regimes autoritários. Atualmente, vive sua primeira experiência democrática. A Missão de Paz da ONU interveio no país pela primeira vez em 1991, e as tropas brasileiras chegaram na ilha em março de 2004. A RA viajou ao Haiti com o contingente do Rio, que dá continuidade à missão, e constatou que, apesar da miséria, o país está relativamente pacificado, em grande parte graças ao trabalho dos brasileiros.
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Ruínas de uma época importante para a história do Rio e do Brasil
Restaurar casarões transforma Carlos Lessa em “barão do Rosário”
Maior investimento privado no País, siderúrgica da CSA agita a economia no estado
As razões que tornam o ombudsman um ser indesejável nas Redações
OPINIÃO / MAURÍCIO SANTORO PESQUISA / À FLOR DA TERRA PANORAMA
Páginas 14 a 23 REVISTA DA ALERJ
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A CPI do Grampo será fundamental aos “ rumos das discussões sobre propostas para alterar a legislação vigente ”
Marcelo Itagiba
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
Livros
Presidente Jorge Picciani
Gostaria de parabenizá-los pela excelente reportagem sobre o programa de publicações que nossa instituição desenvolve no Brasil, em parceria com a Topbooks Editora, e agradecer essa oportunidade de divulgação do programa. Leônidas Zelmanovitz
1ª Vice-presidente Coronel Jairo 2º Vice-presidente Gilberto Palmares 3º Vice-presidente Pedro Fernandes Neto 4º Vice-presidente Gerson Bergher 1ª Secretária Graça Matos 2º Secretário Zito 3º Secretário Dica 4ª Secretário Fabio Silva 1a Suplente Renata do Posto 2 o Suplente Armando José 3º Suplente Pedro Augusto 4º Suplente Edino Fonseca
Liberty Fund, Indianápolis, EUA
Grampo
REVISTA da Alerj Ano II - Nº 2 março de 2008 Publicação trimestral do Departamento de Comunicação Social da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
Jornalista responsável Fernanda Pedrosa (MT-13511) Coordenação: Geiza Rocha Reportagem: Everton Silvalima, Luciana Ferreira e Fernanda Porto Fotografia: Rafael Wallace Diagramação: SMPG/Daniel Tiriba Telefones: (21) 2588-1383/1627 Fax: (21) 2588-1404 Rua Primeiro de Março s/nº sala 406 CEP-20010-090 – Rio de Janeiro/RJ Email: dcs@alerj.rj.gov.br www.alerj.rj.gov.br Impressão: WalPrint Tiragem: 3 mil exemplares
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CARTAS
REVISTA DA ALERJ
Quero, primeiramente, parabenizar o Departamento de Comunicação Social da Alerj pela excelente qualidade jornalística do diversificado, inteligente e atraente conteúdo da edição inaugural da REVISTA DA ALERJ. E aproveito para, sendo a interceptação telefônica tema de reportagem da primeira edição, informar que, no dia 19 de dezembro de 2007, foi instalada na Câmara Federal a CPI do Grampo, requerida por mim, após reunir, em apenas dois dias, 191 assinaturas. Naquela mesma data, os membros da comissão decidiram, por unanimidade, que eu deveria presidi-la. O trabalho não se restringe a apurar a suspeita de que ministros do Supremo Tribunal Federal teriam sido vítimas de interceptações telefônicas clandestinas. A CPI do Grampo, ao seu final, em 120 dias, terá sido fundamental também aos rumos das discussões sobre as propostas que estão sendo debatidas na Câmara Federal, com
o objetivo de promover alterações na legislação vigente. (...) Marcelo Itagiba Deputado federal (PMDB-RJ)
Paraíba Parabéns pelo belo número da RA, em especial pela matéria sobre o rio Paraíba do Sul, o rio mais explorado do Brasil. Apenas alguns reparos: o autor da matéria deu pouca ênfase às intervenções humanas no rio (...). O caso de Itaocara é sério, mas mais sério ainda é o da usina hidrelétrica, que já tem licença ambiental para ser construída em Simplício, entre os municípios fluminenses de Três Rios e Sapucaia. (...) Procurem saber mais sobre Simplício, que, segundo um professor da UFRJ, vai fazer cair de cerca de 400 metros cúbicos para 60 metros cúbicos a vazão do rio na foz. Carlos Sá Editor do jornal S. João da Barra
Saudades Preciosos amigos da Alerj, agradeço o envio freqüente do boletim e, agora, da REVISTA DA ALERJ, que ficou ótima. As informações que vocês me enviam, além de matarem a saudade do Rio, me ajudam no fortalecimento intelectual, na prática da cidadania diariamente e me tornam mais útil às outras pessoas, pois compartilho as informações. Acir da Cruz Camargo Ponta Grossa (PR)
Ed it o ri al
Jorge Picciani
Tempos de esperança
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chamado “jeitinho brasileiro”, muitas vezes citado de forma pejorativa, tem sido uma arma poderosa no combate à violência no Haiti, o país mais pobre das Américas. Com atuação contundente, mas também com ações sociais, militares brasileiros, engajado na missão de paz da ONU desde 2004, conseguiu pacificar as áreas sob seu comando – uma vitória que ainda buscamos nas favelas do Rio. Recentemente, as Forças Armadas enviaram para lá mais 1.200 soldados que servem no Rio de Janeiro. A REVISTA DA ALERJ acompanhou esses militares, que deixaram suas famílias em busca de estabilidade, salários em dólar e um pouco de ação. Mais do que ascensão na carreira, o soldado brasileiro parece buscar no Haiti uma identidade não reconhecida em um Brasil desconfiado das suas instituições, ainda traumatizado pela ditadura militar. Em outra reportagem, a RA mostra os bons ares que a construção da siderúrgica da CSA está trazendo para a região do Distrito Industrial de Santa Cruz. Maior empreendimento privado da década no País, a CSA vai elevar em nada menos de 40% as exportações brasileiras de aço, quando iniciar sua operação, em 2009. Mas os benefícios econômicos do projeto podem ser sentidos desde já. E a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro teve um papel decisivo na sua viabilização.
Em 2007, tivemos um ano extremamente proveitoso, em que aprovamos leis importantes remetidas pelo governador. Com isso, ajudamos a reajustar as contas do estado e proporcionar contrapartida a grandes empreendimentos governamentais e privados, como, por exemplo, o Complexo Petroquímico (Comperj), a Michelin e a Companhia Siderúrgica do Atlântico (CSA). No caso da CSA, aprovamos a sua instalação em menos de 72 horas, e o assunto foi amplamente debatido na Casa. Além disso, a Alerj aprovou, nos últimos três anos, mais de 30 leis que transformaram o Rio de Janeiro num dos estados mais agressivos em termos de legislação tributária. A disposição demonstrada pelo Poder Legislativo nos dá a certeza de que o Rio de Janeiro está na rota certa para superar seus desafios, crescer e se transformar em um estado melhor para toda a população. Vivemos tempos de esperança. Os investimentos que estão sendo consolidados nos pólos petroquímico de Itaboraí, gás-químico de Duque de Caxias e siderúrgico de Santa Cruz reforçam a importância de se criarem agora as melhores condições para o crescimento. O desafio, para nós, legisladores, é anteciparmo-nos aos possíveis problemas e agir, garantindo que o desenvolvimento chegue para todos.
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Ruínas do império me m óri a No Centro do Rio, pouco resta dos prédios que testemunharam a época de D. João VI
Texto Celso de Castro Barbosa Fotos Dilmar Cavalher
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io, verão de 1808. Afora o calor de catedrais, agravado pela ausência absoluta de condições mínimas de salubridade, a vidinha pacata da cidade segue sem maiores sobressaltos. Mas há grandes novidades à vista. Mudanças que vão interferir diretamente, para o bem e para o mal, no destino de seus cerca de 60 mil moradores. E do Brasil inteiro. Junto com as águas de março, o Rio, que desde sempre sofre com o déficit habitacional, também é brindado naquele verão inesquecível com outro temporal: desaba sobre seu território uma população extra de, no mínimo, 11 mil pessoas. Os historiadores, naturalmente, discordam sobre o número exato de “forasteiros”. Mas todos concordam que, em versão extremamente simplificada, a culpa pelo imbróglio é de Napoleão, em guerra contra a Inglaterra que, por sua vez, não dá ponto sem nó. Pioneiros do capitalismo como o reconhecemos, os ingleses garantem seus 6
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Paço Imperial: erguido antes de 1808, é um dos poucos imóveis que sobreviveram sem, no entanto, manter a arquitetura original interesses maiores fornecendo a infra-estrutura para a fuga de D. João VI e sua trupe, então cada vez mais ao alcance dos franceses, para o Brasil. A convivência entre os que aqui viviam e os que chegaram –
não poderia ser diferente – nada tem de pacífica. Pudera. – Os habitantes da cidade ficaram possessos, pois da noite para o dia, sem qualquer negociação, se viram obrigados a doar suas casas, em cujas portas
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O País só passa a contar com um serviço de proteção ao patrimônio histórico e cultural em 1937 Canagé Vilhena
passaram a ler as iniciais PR, que indicavam “propriedade do príncipe regente”. Eram os novos endereços da elite portuguesa – ensina o professor de história e escritor Rubim Aquino. Como não havia casa para todos, prevaleceu a máxima de que “manda quem pode e obedece quem tem juízo”. E de uma hora para outra, os “ajuizados” foram simplesmente postos no olho da rua. Despejados. E sem direito a reclamação ou indenização. Afinal, era preciso acomodar a nobreza e a burocracia que gravitavam em torno do príncipe regente. Piadista e dono de uma capacidade infinita de rir da própria desgraça, o povo logo traduziu o PR para “Ponha-se na Rua” e “Prédio Roubado”. O arquiteto Canagé Vilhena, 66 anos, curioso e apaixonado pela cidade, estima que na região delimitada pela Praça XV, Lapa, Praça Mauá e rua Uruguaiana, houvesse, em condições satisfatórias de habitação, cerca de 150 imóveis. Era pouco, mas, considerando que um terço da população era composto de escravos, portanto sem residência, e um número considerável de moradores se espalhava por fazendas nas zonas Sul e Norte e no recém-desbravado bairro de São Cristóvão, é possível afirmar
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que pouco se avançou, de lá pra cá, em termos de redução de carência habitacional. Assessor da presidência do Conselho Regional de Arquitetura, Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ), Vilhena reconhece que o valor daquelas construções é muito mais histórico que arquitetônico, embora não despreze a criatividade que enxerga nas construções, na maioria de apenas um pavimento, pintadas em suas fachadas com cores vivas, em contraste com os tons pastéis europeus. Muito já se falou da falta de memória como um mal incurável do Brasil. Descartando a sobrevivência do Paço Imperial e de pouquíssimas outras construções que podemos contar nos dedos de uma das mãos, erguidas antes ou logo depois da chegada da família real, o fato de terem restado menos de dez prédios daquele período é prova definitiva de que o mal realmente é grave. – Para se ter uma idéia, o País só passa a contar com um serviço de proteção ao patrimônio histórico e cultural no primeiro governo Vargas, em 1937, quando foi criado o Sphan, rebatizado anos depois como Iphan. Passou de serviço a instituto. Foi um começo promissor, pois Getúlio delegou a ação a Gustavo Capanema, assessorado
Aparências: Crea vê perigo dentro do casarão ao lado do Convento do Carmo (alto) e da lanchonete na rua do Rosário, apesar das fachadas em ordem REVISTA DA ALERJ
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Fachada e um estacionamento: foi tudo o que restou da residência, na esquina das ruas do Riachuelo com Inválidos, onde viveu o visconde de São Lourenço, ministro de D. João VI por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade e Lúcio Costa – explica Vilhena. Para o arquiteto, há uma explicação objetiva para tanta demolição e ruína: especulação imobiliária. – Copacabana, por exemplo, foi construída três vezes no século passado. O mesmo espaço físico foi abaixo duas vezes num período relativamente curto. Mas, de volta ao século XVIII, dos pouquíssimos prédios que restaram do período – cerca de dez –, pelos menos sete estão literalmente caindo aos pedaços, muito provavelmente por interesses inconfessáveis de seus proprietários e pela paralisia dos que deveriam zelar por sua preservação, sem distinção de nível de governo. Além do descuido com o patrimônio, há o risco que os imóveis representam para a população, pois podem desabar a qualquer momento. 8
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Da casa de três pavimentos, uma das primeiras com essa característica erguidas na cidade, onde viveu o visconde de São Lourenço, senador e ministro da Fazenda de D. João VI, restou apenas a fachada. Restou é força de expressão, pois ameaça vir abaixo num piscar de olhos. O imóvel resistiu bravamente até os anos 1980, não por cuidados eventuais dos responsáveis pela preservação, mas porque serviu de abrigo, na verdade como um cortiço, a dezenas de famílias. Mas um incêndio, que poupou apenas a fachada, transformou o simpático exemplar do século XVIII, na esquina das ruas do Riachuelo com Inválidos, num melancólico estacionamento. Houvesse um ranking dos bens históricos mais abandonados, o palacete do visconde seria forte concorrente ao primeiro lugar. – Este imóvel está de pé por
milagre – lamenta Vilhena. Ele alerta que pedestres e carros do estacionamento podem ser atingidos a qualquer momento, pois dos escombros fazem parte pedras monolíticas praticamente soltas capazes de matar uma pessoa. Em reportagem da Folha de S. Paulo de outubro de 2007, o grave problema foi apontado, houve manifestação dos órgãos competentes com promessas de soluções, mas três meses depois da denúncia do jornal a situação era rigorosamente a mesma. Outro imóvel daquela época que vive de fachada no Centro do Rio, também condenado pelo Crea-RJ, é endereço de uma lanchonete na esquina das ruas do Rosário e Quitanda. Situação diferente mas igualmente grave atinge um casarão vizinho ao convento do Carmo, endereço muito apreciado por dona Ma-
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Da noite para o dia, várias casas passaram a ser os novos endereços da elite portuguesa
”
Rubim Aquino
ria, a louca, hoje propriedade da Universidade Cândido Mendes. Ali, a fachada foi preservada, mas, de acordo com o Conselho Regional de Arquitetura, houve deslocamentos no revestimento do prédio. Ruínas de um tempo importante da história do Rio e do Brasil também podem ser vistas na rua do Rosário, 76, onde a casa só conseguiu manter de original a fachada, e na casa e ponto de comércio do século XVIII, que só manteve de pé a fachada, na rua Sete de Setembro, 97. Os problemas não param por aí e se estendem ao casarão da rua do Riachuelo, 195, e à casa da rua do Rosário, 97. Sabe-se lá até quando o que restou disso tudo permanecerá de pé. A depender da movimentação dos responsáveis pela preservação, o futuro não é promissor porque não existe uma ação concreta, apenas medidas pontuais, como incentivos fiscais e isenções de impostos aos proprietários que zelarem pela proteção dos imóveis. Todos estão localizados em valorizados pontos comerciais. De volta, mais uma vez, a março de 1808, um clima de absoluta animosidade contaminou as relações dos que chegaram com os que aqui viviam e que, de uma hora para outra, se tornaram
Rua do Rosário, 97: história e desprezo pelo patrimônio arquitetônico convivem pacificamente no coração do Centro sem-teto. Muito provavelmente por isso, a família real, hospedada no Paço, então residência oficial do vice-rei, procurou rapidamente se afastar da vizinhança e do ambiente hostil do Centro. D. João permitiu a aproximação de um rico comerciante, Antônio Elias, que fez fortuna com o tráfico ilegal de escravos. Na verdade, o príncipe regente estava de olho na mais imponente e luxuosa residência de que se tinha notícia na cidade: a mansão da Quinta da Boa Vista. Não há registro do que o comerciante levou em troca, mas
o fato é que ele cedeu a casa a D. João, que lá viveu até voltar de vez para Portugal. Estes anos talvez tenham sido os de maior glória da Quinta. Transformada em Museu Nacional depois da Proclamação da Independência, a situação da Boa Vista, 200 anos depois, também é um exemplo cruel desse incurável mal brasileiro conhecido como falta de memória. Segundo o Iphan, a recuperação da Quinta da Boa Vista faz parte de um projeto maior que prevê a preservação de todo o Centro do Rio de Janeiro. É esperar para ver. REVISTA DA ALERJ
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e nt re vista carlos lessa
Por que o Rio não sobreviveria sem o Centro? Houve um momento em que fui coordenador do Plano Estratégico da cidade, na primeira gestão de César Maia. Era uma iniciativa conjunta da prefeitura com a Associação Comercial e a Federação das Indústrias. Toquei o diagnóstico e fiz a primeira projeção de projetos para a cidade. Ficou claro que, para o Rio, o Centro é vital. Se há cidade no mundo para a qual o Centro é vital é o Rio de Janeiro. Do ponto de vista de organização espacial é uma cidade linear. Ou seja, os bairros da zona Sul se encadeiam e chegam ao Centro. Do Centro sai uma fileira de bairros, pela linha do fundo da baía, que é o eixo da Leopoldina. E sai outro conjunto de bairros que é o eixo pela Central do Brasil. O Rio é como se fosse um corredor: se o Centro acabar, o Rio se esfacela. Desaparece o ponto para onde convergem os cariocas das zonas Norte, Sul e do subúrbio. É o ponto de encontro de todo o Rio. Qual seria, na sua opinião, o epicentro da cidade? Eu diria que o epicentro do Rio deveria ser a região da Cinelândia, o palco iluminado do Rio de Janeiro. 10
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“O Centro é o ponto de encontro de todo o Rio”
E C elso
de
Castro Barbosa
le conta que passou a vida resumindo o próprio nome. Tenta escapar da pergunta, hesita em recitá-lo inteiro, mas acaba concordando. É Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa. Ou Carlos Lessa. Ou simplesmente Lessa. Ou, melhor ainda: o barão do Rosário. Faz jus ao título desde que recuperou e rejuvenesceu um dos mais belos resquícios do Rio colonial – a rua do Rosário –, onde se tornou proprietário de imóveis que abrigaram um prostíbulo, no século XX, e o primeiro espaço do Banco do Brasil, que serviu de tesouraria do império. Doutor em Economia, Lessa já comandou a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde foi reitor, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do qual foi o primeiro presidente da era Lula, entre outros cargos importantes. Mas é ali, num pequeno trecho da rua do Rosário, no Centro histórico do Rio de Janeiro, que este carioca de 71 anos reina absoluto. Apaixonado pela cidade, não vacila quando afirma que o Centro é a salvação do Rio.
Tenho um sonho de que a Cinelândia seja o maior esplendor da América do Sul. É maravilhoso, porque é a maior mistureba que você possa imaginar. Demonstra o que é ser brasileiro. Tem a Biblioteca Nacional, tem a cópia da Ópera de Paris, que é o Theatro Municipal, tem talvez o único art déco redondo do mundo, o edifício Odeon. Tem o Passeio Público, que é o principal parque urbano feito na América do Sul antes de D. João VI, tem os arcos do aqueduto, que é uma obra gigantesca, tem a Lapa, que é uma coisa inacreditável. Tudo isso em menos de dois quilômetros quadrados. É um palco aberto a todas as influências.
No melhor espírito carioca, o sr. vem sendo chamado pela imprensa de grande latifundiário do Centro, o barão do Rosário. É isso mesmo? Não. A história é a seguinte. Por herança do meu bisavô, eu não era o dono, meus filhos herdaram duas pequeninas casas na rua do Rosário, duas casinhas de duas portas, uma colada na outra. Elas foram alugadas pela família a comerciantes desde o final do século XIX. Eu, inclusive, quando era rapaz, conheci lá uma companhia chamada Silvestre. Era uma importadora de bacalhau, atacadista. Esse trecho é aquele que fica entre a rua do Mercado e a rua 1º de
Fotos Rafael Wallace
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Março, nos fundos do Centro Cultural Banco do Brasil. Por acaso, esse quarteirão é o único trecho da rua do Rosário que ficou com a cara do Rio colonial. É estreitinho, ainda tem aqueles arcos antigos e os lampiões de gás. Esse lugar, para mim, sempre foi muito interessante, mas eu nada podia fazer ali porque estava em plano de desapropriação. Todas as casinhas daquele lugar iam ser demolidas para alargar a rua do Rosário. Como sua família reagiu ao abandono que marcou por muito tempo a região? Depois que o atacadista de bacalhau saiu, minha família tinha alugado aquilo para uma fábrica de gelo. Por que gelo? Porque tinha o mercado de peixe. Quando removeram o mercado, desapareceu o mercado do gelo. O inquilino entregou, fechou, e não se usou mais. O imóvel ficou lá. Recuperar
as casinhas, construções de dois, três andares, era totalmente antieconômico. Íamos gastar dinheiro para fazer uma reforma, mas em seguida viria a prefeitura e a demolição. Então aquilo foi apodrecendo, como todos os imóveis da rua. Alguns foram invadidos. A rua inteira apodrecia, aquele trecho tinha esgoto saindo por todos os lados. Uma coisa horrorosa. Como foi que esse horror se transformou numa espécie de paraíso colonial? Primeiro, o Banco do Brasil montou o centro cultural. A antiga aduana virou a Casa França-Brasil. Os Correios também montaram um centro cultural. Mas o que aconteceu de importante para mim foi o seguinte: Augusto Ivan, que é um arquiteto de muito boa qualidade, empolgado com o Centro, lança a idéia do Corredor Cultural. E a Câmara dos Vereadores aprova o
Corredor Cultural. Uma tentativa de preservar tudo que é do Rio de Janeiro e que sobrou, desde antes de D. João VI. Então, aquele pequeno quarteirão foi retirado do plano de desapropriação. E começou a surgir o barão... Na hora em que retiraram, comecei imediatamente a recuperar os predinhos. Tive que botar quase tudo abaixo, pois estava podre. As construções eram feitas com madeira, o cupim deitou e rolou porque não tinha conservação, entrava água pelo telhado. Tudo arruinado. Recuperei a fachada. Desde os tempos do português do bacalhau os dois prédios já eram interligados. Tirei o conteúdo, chamei uma arquiteta amiga, a Sonia Mota, e ela fez um projeto muito interessante. Respeitou a determinação da prefeitura, que exigiu a manutenção de toda a configuração volumétrica. Eu e ela bolamos REVISTA DA ALERJ
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Esse lugar, para mim, sempre foi muito interessante, mas eu nada podia fazer ali porque estava em plano de desapropriação e todas as casinhas iam ser demolidas para alargar a rua do Rosário
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uma estrutura com uma clarabóia. Usei inclusive o pinho de riga que sobrou e recuperei as portas. O sr. já tinha uma idéia do que pretendia fazer ali enquanto tocava a obra? Não. Mas aí surge um rapaz que vem e diz: quero fazer um sebo. Eu adoro sebo, sou chegado. O rapaz, muito dinâmico, fez um sebo chamado Al-Farabi. Hoje, além de sebo é também um mini-restaurante, onde é servido o melhor picadinho que eu já comi. Ele foi o primeiro. Mas quando eu ainda estava fazendo a reforma do AlFarabi, me foi oferecida a venda da fachada ao lado. Só tinha a fachada, o resto havia caído. Aliás, de vez em quando caía. Há vinte e tantos anos desabou, matou gente. A fachada é belíssima, uma das mais belas que sobraram no Centro do Rio. Mexe daqui, pesquisa dali, descubro que foi a primeira tesouraria de D. João VI, o primeiro Banco do Brasil. Só sobrou a fachada, o resto era um monte de entulho. Eu comprei isso de um peixeiro por uma insignificância. Quanto? Comprei por R$ 60 mil. Para você ter uma idéia, recuperar a fachada saiu mais caro que comprar todo o imóvel, que só tinha porta e janela. Os azulejos me deram 12
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um trabalho cavalar, porque eram franceses, do século XIX. A essa altura, a equipe que havia trabalhado comigo no Al-Farabi já tinha aprendido muita coisa mais. Nós desenvolvemos um conceito muito engraçado. O prédio tinha quatro andares, era um sobrado. Resolvemos então fazer uma vila colonial. Como? Abrindo lá em cima uma enorme clarabóia e fazendo mezaninos ocupando as laterais. Eu imaginava que fosse instalar diversos pequenos negócios. A pessoa entraria e esbarraria num negócio aqui, outro ali. E por que não foi adiante? O Luiz Antonio Rodrigues, o Rodrigues do restaurante Garcia & Rodrigues, no Leblon, me disse que queria instalar lá uma brasserie para fazer o melhor pão do Rio e a melhor comida do Centro da cidade. Ele alugou e está lá, desde março de 2007, a Brasserie Rosário. Ao lado havia ainda um outro imóvel invadido que funcionava como depósito clandestino de camelôs e residência de 11 pessoas. Também estava pessimamente conservado, causando inclusive problemas na obra que eu estava fazendo. Decidi comprar, mas levei um ano e meio para conseguir chegar aos donos. Quando cheguei, descobri que no local houve um prostíbulo, entre a primeira e a segunda guerras
mundiais, que pertenceu a uma empresária francesa chamada Lili. Consegui comprar, indenizei um a um todos os moradores, todos saíram em boa paz. Também reformei aquele imóvel. Sou muito amigo do pessoal da Babel Livros, especializada em livros antigos. A Babel instalou-se lá e no momento comercializa livros de arte de primeira e segunda mão e faz leilões de livros raros e objetos de arte. Deste lado da calçada são seis imóveis. Há uma loja de gravuras, quase na esquina da rua 1º de Março, que não é sua. Todo o resto já é propriedade do barão do Rosário? Quase. Tem um quinto imóvel que estava invadido por mais de 50 pessoas. Esse não consegui comprar, pertence à Beneficência Portuguesa. Consegui comprar o da esquina com a rua do Mercado. Foi uma dificuldade enorme, mas comprei o botequim da esquina que ameaçava cair, fissuras por todos os lados. Tivemos que montar uma estrutura de aço por dentro para segurar. Ali não dava para fazer aquele esquema de iluminação. Dava, sim, para fazer uma recuperação, mantendo o pé direito original, muito alto, as janelas voltadas para as ruas do Rosário e do Mercado. É muito bonito o prédio, mas estava todo podre. Foi um trabalho brutal. Para
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Quando cheguei, descobri que no local houve um prostíbulo que pertenceu a uma empresária francesa chamada Lili
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bem conservado, não está podre. Só tem algumas infiltrações.
ter uma idéia do quanto se gastou de dinheiro, são 14 janelões e sete portas, tudo de madeira. Está lá, recuperado. Como eu adoro comida portuguesa e tenho um amigo português que é um cozinheiro genial, dono de um botequim pequenininho chamado Casual, propus ao Santos, o chef Santos: “Tu não queres tocar o negócio?”. Ele topou. Marta, minha mulher, sugeriu, de brincadeira, chamar Casual Retrô. De brincadeira, porque ela imaginou que os clientes seriam os caras que sairiam do prostíbulo e iriam tomar uma no boteco. Está lá funcionando o Casual Retrô, já classificado entre os melhores restaurantes da cidade.
Sobraram o predinho, ou fachada, da Beneficência e o que toma toda a calçada do outro lado. Quais os seus planos? Quero comprar. No prédio que estava invadido houve um incêndio, um curto-circuito, e lambeu tudo. Então agora só existe uma carcaça interditada pela Defesa Civil. Felizmente o incêndio pouco ou quase nada afetou os vizinhos recuperados. Deste lado da calçada só falta ele. Do outro lado, em frente, existe um prédio enorme, fechado. Adoraria que ele estivesse aberto. Pertence à massa falida de um sujeito chamado Arthur Falk. O prédio é muito bonito, razoavelmente
O entorno dos predinhos vem se transformando em espaço aberto para a cultura popular. Que história é essa de poesia no poste? É um projeto meu com um amigo, um professor de Letras chamado Jênesis – é o único Jênesis com jota do planeta. Tem um poste lá na rua do Mercado, numa esquina bem ampla, com uma minipracinha em volta. Nós resolvemos fazer a “Poesia no poste”. Uma vez por mês a gente exalta um poeta morto. Morto, para não gerar ciumeiras. O primeiro foi Manuel Bandeira, o segundo, Gilka Machado, e a cada mês substituímos a faixa com um poema do homenageado. Parece que comprar prédios em ruínas na rua do Rosário e recuperá-los é uma fonte inesgotável de prazer. É mesmo? É. Depois que comprei o antigo prostíbulo comecei a ter uma cabeça mais de empreendedor. O espaço vai se converter no que eu vou chamar de Encantos do Rio. É um Rio encantador que tem música, poesia, comida – um Rio que tem saudade, que é pequenininho, mas é grande. A minha cabeça começou a viajar com esse troço. REVISTA DA ALERJ
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A guerra HAITI
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uando o KC decolou do Aeroporto Toussand Louverture, em Porto Príncipe, dia 7 de dezembro de 2007, os militares gaúchos se cumprimentaram e uma salva de palmas ecoou pela cabine, enquanto o Campo Charlie ia ficando cada vez mais distante. Tropas do Rio de Janeiro haviam começado a desembarcar na ilha há duas semanas e já ocupavam a totalidade da maior base militar de missões de paz no mundo, sua casa pelos próximos seis meses. Mil e duzentos homens compõem o oitavo contingente brasileiro desde que o País integrou a Minustah, sigla francesa para Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti. Eles deixaram o Brasil, esposas e filhos pequenos em busca de estabilidade, salários em dólar e um pouco de ação no país mais pobre das Américas. O Haiti libertou-se de séculos de imperialismo colonial, mas esbarrou na influência norte-americana e numa sucessão de golpes militares e regimes autoritários. Quando o Brasil chegou lá, em 2004, encontrou um cenário de verdadeira guerra civil. Milicianos partidários do presidente deposto Jean Bertrand Aristide, os chiméres, rivalizavam com o Grupo 184, braço armado dos ex-militares que queriam a reconstituição do Exército, desmantelado por Aristide em 1994. Favelas famosas, como Bel Air e Cité Soleil, eram redutos de dezenas de gangues armadas. Roubos, assaltos e seqüestros de estrangeiros eram freqüentes. Única força policial constituída, a Polícia Nacional do Haiti (PNH) era corrupta e extremamente violenta. Os primeiros contingentes brasileiros na ilha enfrentaram muitas dificuldades, e o próprio force commander (comandante-geral) da Missão, general Augusto Heleno Ribeiro, admitiu que as tropas estavam malpreparadas, conseqüência de uma inexplicável falha 14
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T exto
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Fotos Rony M altz
de interpretação da resolução das Nações Unidas para a Missão, que previa uma atuação mais incisiva. – Foi sorte não termos perdido nenhum homem – diz o general. A situação começou a se equilibrar a partir do terceiro contingente, o primeiro do Rio de Janeiro, que chegou à ilha no início de 2006. Eles ocuparam gradativamente as áreas mais críticas e lá se estabeleceram estrategicamente, empurrando a resistência armada para fora das favelas. Paralelamente, promoveram ações cívico-sociais (Acisos), como distribuição de comida e brinquedos. Inicialmente criticada por observadores internacionais, que queriam uma ação “mais contundente” (leia-se mais violenta) a tática
do Brasil deu certo, e as áreas sob o comando dos brasileiros foram pacificadas. – Nos piores bairros, onde só entrávamos em blindados e muito bem armados, hoje em dia o pessoal anda nas ruas sem colete – conta o general Soares, assistente do general Heleno no primeiro contingente e que voltou ao Haiti em agosto de 2007 – Se fizermos aqui no Rio o que estamos fazendo em Porto Príncipe, se resolve o problema da criminalidade. Dizem que não estamos preparados para isso, mas nós estamos preparados sim – contesta. – É outra realidade – argumenta Daniela Bercovitch, do Viva Rio, uma das inúmeras ONGs que realizam trabalhos humanitários no Haiti – Lá a miséria é muito maior. Diferentemente do Rio, onde o tráfico de drogas é um negócio milionário, o Haiti é rota de passagem, praticamente não há consumo porque a maior parte da população não tem dinheiro – completa Daniela. – É difícil trabalhar quando é o brasileiro que está do outro lado – concorda o capitão Vicente, que participou da intervenção no Complexo do Alemão em 2006 – Aquele que pode ser um inimigo é o próprio brasileiro, e isso gera uma situação desconfortável – avalia.
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Missão dos soldados que embarcaram no Rio é, principalmente, de manutenção da paz
Longe de casa por seis meses A sala de embarque da Base Aérea do Galeão, na Ilha do Governador, está apinhada. Militares do Exército e da Aeronáutica, mães, pais, esposas, filhos, tios e avós, Lucília com a pequena Maria Luiza, Douglas e João dividem o salão exíguo e abafado. Malas, fuzis e capacetes azuis se espalham por toda a parte. São 8h. O cabo Gilson embarca em uma hora. O capitão Vicente também levou a esposa Elisângela e o filho Davi, mas não para se despedir: o capitão só viaja dia seis de dezembro, depois de ajudar a coordenar o embarque de todas as levas do oitavo contingente. É que Davi gosta de ver os aviões. Até o meio do dia dois Boeings 707 da Força Aérea Brasileira terão decolado para sete horas de vôo sem escalas até Porto Príncipe, capital haitiana. Quando voltarem 16
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para o Brasil trarão as tropas do Rio Grande do Sul. Oficiais convocam os soldados para a área de embarque. Comoção generalizada. Parentes entrelaçam os braços e rezam. Mães apertam a mão dos filhos. Mais contidos, os pais dão conselhos. Ter um filho servindo no Haiti é motivo de grande orgulho. Esposas e namoradas se desmancham em lágrimas. As crianças acompanham. Muitos militares também choram. Em geral, casam-se muito jovens, têm filhos cedo. Seis meses é mais tempo do que a maioria deles já passou longe de casa e o choro é mais pela saudade que pelo temor. Sabem que o risco de enfrentamentos, hoje, é reduzido. Os brasileiros ganharam fama de invulnerabilidade por não terem sofrido baixas em combate. Agora, o pior já passou e a missão do oitavo contingente é principal-
mente de manutenção da paz. Não é por medo, portanto, que o cabo Gilson está travado. Deprimido, pensa em desistir. Não suporta a idéia de se afastar da família, perder os aniversários da mulher e dos dois filhos, o Natal, o Ano Novo. Cabisbaixo, Gilson perfila-se junto aos colegas no pátio externo da base. Vicente passa cumprimentando as tropas. Comandante do oitavo contingente, o coronel Paul Cruz fala algumas palavras de incentivo. Ele embarca com esta leva. Os pelotões vão sendo chamados a seguir para a aeronave. Do lado de dentro as famílias se espremem e disparam pequenas câmeras digitais. Gilson franze a testa, aperta os lábios e marcha, pesaroso. Os últimos acenos são dirigidos através do vidro que separa a pista da sala de embarque.
“
Só o que interessa ao Brasil é um Haiti estável, próspero
”
Embaixador Paulo Cordeiro
A segunda maior ilha das Antilhas tem 76 mil quilômetros quadrados divididos entre Haiti e República Dominicana
No Campo Charlie praticamente não há dia de folga: quando não estão fazendo ronda, soldados se exercitam na academia Pelo sistema de som da cabine um oficial da Aeronáutica alerta: “Como todos sabem, a Força Aérea está com restrições orçamentárias, portanto tenham cuidado com os bancos da aeronave”. O vôo no KC137 da FAB é relativamente confortável e transcorre sem sobressaltos. Um luxo comparado com o Hércules, avião utilizado pelos primeiros contingentes, apelidado de pinga-pinga devido a sua baixa autonomia de vôo, o que chegava a dobrar o tempo de viagem. KC é a sigla internacional para designar aeronaves de carga, como o Boeing 707 brasileiro.
O espaço entre as poltronas faz inveja a qualquer avião comercial. O “serviço de bordo” não fica atrás: sobre cada assento há um kit contendo um sanduíche misto, pacote de batatas fritas, um Polenguinho, amendoins, bolo de laranja e uma maçã, além de uma caixinha de suco de caju. Os combatentes aproveitam o vôo para descansar, ler, ouvir música. O sargento André abre uma carta da namorada, que decidiu ler só após a decolagem. “Esta não é uma carta de despedida... é de saudade.” Trinta e um paraguaios que integram a delegação a convite do
Exército brasileiro vão embalados por muito chimarrão: a guapa com erva e uma garrafa térmica fazem parte do equipamento básico de todo gaúcho. Até o dia seis de dezembro de 2007, data oficial da passagem de comando, 865 combatentes do Comando Militar do Leste, 150 da Companhia de Engenharia e 200 fuzileiros navais da Marinha desembarcaram na ilha caribenha. A maioria fica instalada no cômodo Campo Charlie. Localizada em Tabarre, zona afastada do Centro de Porto Príncipe, a base dispõe de mais recursos do que a maioria dos haitianos poderia sonhar em ter: água tratada, energia elétrica 24 horas por dia, internet sem fio, academia de ginástica. Entre os contêineres italianos equipados com aparelhos de ar condicionado – intermitentemente ligados –, canteiros com plantas e jardins de flores dão um toque brasileiro ao árido projeto das Nações Unidas. Os alojamentos para quatro ou cinco pessoas podem ser decorados ao gosto dos ocupantes. Alguns têm televisores sintonizados com o Brasil – cortesia das emissoras. Periodicamente o fumacê passa borrifando repelente contra os insetos, onipresentes no Haiti. Todos os militares estão vacinados contra a febre amarela, porém contra a malária, que não tem cura, a única prevenção é não ser picado. REVISTA DA ALERJ
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Shopping de luxo para a elite, uniforme escolar impecável e esgoto a céu aberto por toda parte
Primeiras impressões O Campo Charlie recebeu autoridades locais e internacionais para o marco da chegada do oitavo contingente brasileiro ao Haiti. O coronel Paul Cruz assumiu o comando do Brabatt – Brazilian Battalion. Após breve cerimônia, os oficiais ocuparam o rancho para um coquetel. Estavam lá o embaixador do Brasil, Paulo Cordeiro, o chefe da Minustah, o tunisiano Hédi Annabi, militares graduados dos 18 países que compõem a Missão e seu comandante-geral, general Carlos Alberto dos Santos Cruz. Maior contingente na ilha, o Brasil detém o comando militar da Minustah desde a sua criação, em 2004. Os recém-chegados tiveram uma ótima primeira impressão, como tantos outros que vão preparados para ver cenas de miséria africana na América Central. Teriam que esperar um pouco mais. De fato, após a pacificação do Centro de Porto Príncipe, 18
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desembarcar no asséptico Aeroporto Toussand Louverture não é muito diferente do que no Galeão, guardadas as proporções. Jatos da American Airlines e da Planet Airways dividem a pista com caminhões de abastecimento da Texaco e veículos do Exército com a sigla das Nações Unidas. A linha Porto Príncipe-Miami é uma das mais lucrativas do mundo. Os vôos vão lotados de empresários haitianos com negócios nos EUA e mulheres de classe média com insaciável apetite de compras. Ao contrário do Rio de Janeiro, em Porto Príncipe a elite subiu o morro. Na medida em que se avança pela ladeira de Pétion Ville, o clima se torna mais ameno, as calçadas mais limpas e arborizadas, e a paisagem muda drasticamente. Ao invés de barracos de papelão e palafitas improvisadas, palácios dignos de xeiques árabes. Em vez de sujeira e poluição sonora, um horizonte de
montanhas e vista para o mar do Caribe. No Haiti, a esmagadora minoria podre de rica vê os pobres literalmente de cima. – São políticos tradicionais e uma elite empresarial que se acostumou a viver de favores do Estado, que durante o período da ditadura Duvalier recebeu uma série de monopólios e não tem interesse na transformação do país – explica o embaixador – Mas também tem uma nova elite, empreendedora – reconhece ele. É um preconceito recorrente dizer que o país não tem classe média. Tem, e ela é formada pelos 20% que estão empregados ou conseguem tirar o sustento na informalidade. Camelôs estão por toda a parte e substituem em tudo o comércio formal: vestuário, calçados, cosméticos, artigos para o lar, eletrodomésticos e eletrônicos, peças para automóveis, informática, música, jogos e filmes piratas, além, é claro, do extenso campo da culinária, de grãos e temperos nativos às mais variadas guloseimas.
O idioma que todos entendem – Todo mundo aqui é papa – comenta o sub-tenente Kaiter, ao ouvir algumas crianças se dirigindo aos militares. Ele voltava com a 1ª Cia. de Força de Paz de uma Aciso (ação cívico-social) em Cité Soleil, e os pequenos haitianos acenavam em despedida. A família é uma instituição em ruínas entre a população mais carente do Haiti, conseqüência de uma cultura em que ostentar uma barriga de grávida é motivo de orgulho – sinal de que a mulher tem marido –, mas sustentar a prole é privilégio de poucos. Muitos homens nem chegam a conhecer os filhos e o que se vê nas favelas mais pobres é uma horda de órfãos e mães solteiras. De 7,5 milhões de haitianos, 65% vivem abaixo da linha da pobreza, segundo dados da Issa – International Social Security Association. Contracepção é a última das preocupações de quem não tem o que comer hoje e não sabe se vive até amanhã. O Haiti é o país com maior índice de portadores do vírus HIV fora da África. Estima-se que mais de 5% da população esteja contaminada. A expectativa de vida era de 52 anos em 2005 – números da Unicef. Mas, neste dia, algumas centenas entre os 250 mil habitantes de Cité Soleil tiveram um pequeno alento em meio a tanta miséria. O Exército montou sob uma laje um
Ações cívico-sociais, como distribuição de comida às crianças nas favelas, são parte da rotina das tropas brasileiras grande balcão e dispôs sobre uma tábua enormes panelas de risoto e refresco de laranja. O bandejão, só para crianças, atraiu multidões, e os militares brasileiros tiveram dificuldade de controlar a enorme fila que se formou em questão de minutos. Meninos e meninas se espremiam para garantir um lugar, e quando chegava sua vez avançavam com voracidade. Alguns menores mal conseguiam equilibrar o frágil pratinho plástico; derrubavam tudo no chão, e a refeição tinha que ser reposta. – Bota um pouco menos, o prato está ficando muito pesado! – gritou um sargento. Muitos devoravam o arroz com as próprias mãos. Alguns adultos esperavam as crianças se servirem, fugiam da vista
dos militares e lhes tomavam o prato para si. A maioria, contudo, apenas fiscalizava a fila para assegurar que seus filhos seriam alimentados. Uma única refeição diária é a cota de 70% da população, segundo dados da ONU. Ao final da ação, quem recolhesse pratos, copos e talheres num grande saco de lixo recebia uma porção adicional. A rua ficou limpa como nunca. Acisos como o bandejão de Cité Soleil fazem parte da rotina diária das tropas brasileiras no Haiti, apesar de não estarem previstas na resolução da ONU. As Nações Unidas vêem os militares estritamente como força de ocupação e fazem vista grossa ao pioneirismo tupiniquim nesse tipo de ação humanitária. REVISTA DA ALERJ
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Tropa de elite Lucília prepara o almoço enquanto o marido, o cabo páraquedista Gilson Mariano dos Anjos Felippe, enfrenta uma das missões mais difíceis de sua vida: tentar controlar as crianças. São três, sem contar as sobrinhas, no terreno que divide com o irmão no tranqüilo subúrbio de Sulacap, zona Oeste do Rio. A casa modesta dá para um quintal onde João, de dois anos, brinca numa piscina de plástico. Duas da tarde. O sol forte da primavera carioca é filtrado por um abacateiro, um pé de cajá-manga e uma mangueira. Gilson já está de folga do quartel e embarca em menos de duas semanas. Pensar nos filhos faz os olhos se encherem de saudade antecipada. – Uma missão longa são 15 dias. Nunca fiquei mais que isso longe de casa. Seis meses... É como se eu estivesse dando meu primeiro salto. O primeiro salto tem mais de 20 anos. Gilson ingressou nas Forças Armadas em 1987; no ano seguinte fez o curso para cabo de Infantaria, mas a promoção só viria em 1993. Quinze anos depois, está apto a ser promovido a sargento. A viagem ao Haiti pode ajudar, já que as promoções são feitas a conta-gotas, os candidatos são muitos, e voluntários em missões internacionais têm prioridade. O treinamento, de três meses, é intenso, em turno integral. Ainda 20
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Na véspera do embarque, Gilson matriculou o filho mais velho no Colégio Militar, privilégio de quem é voluntário no Haiti assim, poucos desistem. – É uma oportunidade de dar um jeito na casa, terminar minha lage – sonha o cabo. Lucília chama para a mesa. No cardápio, arroz, feijão, frango empanado, alface, tomate e pepino. No último sábado antes de embarcar para o Haiti Gilson foi à igreja. Não é especialmente religioso, mas rezou pela mulher e os filhos. Falta um dia para a viagem e uma pendência a resolver. Gilson bota a família no Chevette e ruma à zona Norte. Vai ao Colégio Militar, na Tijuca, levar a documentação para matricular o filho mais velho na 5ª série de 2008. Douglas tem dez anos e teme a mudança, sabe que terá que estudar mais, porém não precisou passar pela rigorosa prova de admissão: a vaga no tradicional colégio tijucano é mais um privilégio dos voluntários no Haiti. Os pára-quedistas são considerados a tropa de elite do Exército.
Foi deles que o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro pegou emprestado o lema “Missão dada, missão cumprida”, assim como um senso de orgulho que nasce de um treinamento inclemente. Foram eles que atuaram no Complexo do Alemão e no Morro da Providência, áreas mais críticas do conflito deflagrado em março de 2006, quando o roubo de dez fuzis de um quartel em São Cristóvão levou o Exército a realizar uma mega-operação nas favelas cariocas. São eles que encabeçam o contingente fluminense hoje em ação no Haiti. Por conta disso, há quem enxergue um papel a ser cumprido pelas Forças Armadas na guerra contra a criminalidade urbana. “Se deu certo lá, por que não no Rio de Janeiro?” – é a pergunta repetida feito um mantra nos círculos militares, motivada pela experiência bem sucedida nas favelas haitianas.
Um olho na ação e outro na promoção Sereno, gestos econômicos, aos 32 anos, o capitão Vicente passa a tranqüilidade dos que aparentam ter tudo sob controle, qualidade desejável para quem responde por 140 vidas sob seu comando. Entretanto, na casa onde mora, em Bangu, quem manda é a mulher. Elisângela já está escolada na rotina militar. Em 2003 foi com o marido para Boa Vista (RR), na fronteira com a Venezuela, onde após dois anos o maior inimigo a combater era o tédio. Quando voltaram veio o Davi, e a estudante de fisioterapia largou o curso para se dedicar ao bebê. A relativa estabilidade do Haiti foi determinante para que Vicente se apresentasse como voluntário, deixando sozinhos em casa a mulher e o filho com menos de dois anos. Elisângela fica apreensiva, mas sabe que a viagem vai ajudar a dar um futuro melhor para a família. – Com a rotina de atividades a gente sente menos saudades. As esposas é que têm uma carga maior, mas é uma oportunidade ímpar – diz Vicente, que está de olho na ascensão a major. Os militares de carreira são classificados segundo uma pontuação que é levada em conta na hora das promoções, e missão
internacional dá muitos pontos. De imediato, dá bom dinheiro também. Até US$ 3 mil por mês para oficiais como o capitão Vicente, cerca de US$ 1 mil para praças. O servidor militar é um dos mais mal remunerados do Estado, e o soldo adicional em dólares, pago pela ONU, é um dos principais atrativos da missão. Outro atrativo é a chance de entrar em ação. Em particular no Rio de Janeiro, onde o estereótipo, segundo Vicente, é de que “militar só vai ao quartel para comer e jogar bola”, sentir-se útil não é uma motivação que deva ser subestimada. – A gente muitas vezes passa a carreira todinha se preparando para uma guerra, vai para a reserva e nunca participou de uma operação real. Porém, há um
conflito, porque você quer estar preparado, mas ao mesmo tempo não quer entrar numa guerra – racionaliza o capitão Vicente. Do ponto de vista do Governo brasileiro, a guerra é justa. – Fala-se muito que o Brasil está no Haiti porque quer um assento no Conselho de Segurança da ONU. É muito mais do que isso. Se o mundo é um condomínio, se nós nos preocupamos com questões como mudança climática, miséria, segurança, nós temos que nos sentar nos conselhos de administração do mundo – justifica o embaixador Paulo Cordeiro, em seu gabinete com vista para boa parte de Porto Príncipe – Eu estou aqui defendendo os interesses do meu País. Só o que interessa ao Brasil é um Haiti estável, próspero.
Vicente deixou a mulher e o filho de dois anos no Rio e partiu para o Haiti, em busca de um futuro melhor para a família REVISTA DA ALERJ
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Cenário familiar é vantagem para as tropas do Brasil
A real dimensão do problema – Terrível! – é como o cabo Gilson descreve sua primeira experiência na ilha – As criancinhas nas ruas tomando banho com aquela água preta de fezes e urina que as pessoas trazem de dentro das casas e despejam no meio-fio. Eu, que procuro dar tudo para a minha família, fico muito abalado de ver isso – comenta. Cenas como a descrita por Gilson são corriqueiras nos bairros mais pobres de Porto Príncipe, como também não é incomum ver mulheres completamente nuas se enxaguando em fios de esgoto. Água tratada é uma das maiores carências na ilha: quase metade da população não tem acesso a fontes potáveis e somente 30% contam com saneamento básico – dados da Unicef até 2004. Paradoxalmente, é raríssimo ver haitianos maltrapilhos: o asseio é questão de honra. As mulheres usam vestidos coloridos e os homens camisa para dentro das 22
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calças. Durante o dia as crianças desfilam com uniformes escolares imaculadamente limpos. O Exército brasileiro passou meses só retirando montanhas de lixo e entulho das ruas. As pilhas chegavam a três metros de altura e eram usadas pelos insurgentes como trincheiras, dificultando o acesso dos blindados brasileiros. Aos poucos, crateras foram tapadas e vias pavimentadas. Poços artesianos foram cavados. As melhorias, em conjunto com as ações humanitárias, começaram a conquistar o apoio das comunidades. Capitão Nery conta que, nessa época, os militares foram aconselhados a não usar óculos escuros, para facilitar o olho-no-olho com a população. Os moradores passaram a apontar o esconderijo dos milicianos e denunciar ações criminosas. – Quando eles baixam a cabeça já sabemos que vai haver problemas – diz Nery.
Hoje, quando passam em patrulha, os militares são saudados, sobretudo pelas crianças. Mas ainda há quem os enxergue com desconfiança. – Eles não gostam da gente – afirma o coronel Paul Cruz – Nós trabalhamos para aumentar a tolerância, mas ninguém gosta de tropas estrangeiras no seu país. O capitão Vicente é otimista. – Você vê que a população aceita o brasileiro. Os americanos não tiveram tanto sucesso porque eles não têm esse lado humano que o brasileiro tem. A gente se coloca no lugar do haitiano que está naquela situação de miséria. O tráfego é uma questão à parte. As poucas vias pavimentadas são esburacadas, mas a situação já foi muito pior. Só recentemente os primeiros semáforos foram instalados. O trânsito é caótico, congestionado nas horas de maior movimento pelos onipresentes taptaps, tradicional lotação haitiana
Pára-quedistas em patrulha de rotina
Ataque em Tabarre Dia 5 de dezembro de 2007, 20h30. Um grupo da Brigada Páraquedista deixa o Campo Charlie para uma patrulha de rotina. Oito homens mais o repórter ocupam a Land Rover adaptada, com as letras UN pintadas em preto, que avança aos solavancos pelo terreno acidentado. Há apenas uma semana no Haiti, os homens estão ansiosos pela ação improvável. Pouco depois de deixar a base, a ronda passa por um cruzamento interditado por uma barricada de pneus em chamas, em frente ao comissariado de Polícia de Tabarre. Só há tempo de pular do jipe antes que pedras e garrafas comecem a voar em direção às tropas, arremessadas do cemitério vizinho. As chamas iluminam o cruzamento escuro, mas é impossível identificar os insurgentes.
Impotentes, os policiais da PNH protegem-se contra o muro da delegacia. Comandante da missão, o tenente Souza Alves distribui os homens ao longo do muro do comissariado. Metade do grupo progride flanqueando o cemitério por uma rua estreita, enquanto o restante dá cobertura. Pelo rádio, o tenente pede reforços. Dá ordens para que os policiais haitianos parem o trânsito na via principal. Os combatentes da linha de frente adentram o cemitério atrás dos insurgentes. – Eram uns quatro, que a gente encurralou. Só que eu não estou
com armamento não-letal, aí não pude dar tiro neles. Se estivesse com uma 12 com bala de borracha, teria imobilizado com tiro na perna – explicou o tenente Alves. O ataque dura cerca de 15 minutos, até que o apoio chega em dois blindados Urutus, de fabricação brasileira. Três agentes começam a tentar apagar o incêndio. Ninguém ficou ferido. Quinze suspeitos foram detidos para interrogatório. O procedimento é checar os documentos de identidade, fotografar e liberar. As informações serão investigadas pelo setor de Inteligência do Exército (G2).
pintada em cores berrantes, com mensagens evangélicas e figuras populares (como Ronaldinho Gaúcho e Bob Marley). No ar empoeirado flutuam pequenos detritos que irritam a pele. Em algumas áreas o cheiro nauseabundo lembra a Baía da Guanabara. Entre os itens básicos do equipamento militar, lenço e óculos fechados protegem contra a sujeira e a poeira. Não há o que fazer contra o calor, forte o ano inteiro, porém inclemente no verão caribenho. A farda cola na pele, a desidratação causa estafa. A rotina de atividades é intensa. – Os nossos soldados não se
chocaram demais com o que viram – confirma o embaixador Paulo Cordeiro – Um canadense que patrulha ruas largas, bem asfaltadas, não tem a mesma capacidade de atuação de um brasileiro que anda num Chapéu Mangueira – compara, referindo-se a uma favela da zona Sul do Rio. Como o tempo de adaptação é nenhum, a familiaridade com o cenário é uma vantagem das tropas brasileiras em relação aos militares de outros países. – Tem gente que nunca subiu uma favela, mas quem é do Rio já está mais acostumado, leva na boa – analisa o capitão Vicente.
Crianças saúdam o socorro que vem de longe REVISTA DA ALERJ
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FU TU RO
F rancisco L uiz Noel
A nova revolução industrial Em Santa Cruz, maior obra no país esquenta economia e faz região sonhar de novo
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udo é grande no empreendimento que agita o Distrito Industrial de Santa Cruz, na zona Oeste carioca, desde o ano passado. A começar pelo nome: ThyssenKrupp CSA Companhia Siderúrgica. Maior investimento privado da década no País – R$ 7,7 bilhões –, a obra movimenta um formigueiro humano de 13 mil trabalhadores. A concentração de bate-estacas e outros equipamentos é descomunal, assim como o volume de cimento, vergalhão e areia. Só as estacas do colosso, enfileiradas, cobririam os 1,3 mil quilômetros entre o Rio e Brasília. Quando iniciar suas fornadas de aço, em 2009, a CSA vai elevar em nada menos de 40% as exportações brasileiras da commodity. Na região e em municípios vizinhos, como Itaguaí, a corrida por oportunidades de emprego e negócio é proporcional ao porte da siderúrgica, erguida em área de nove milhões de metros entre o canal de São Francisco e o rio Guandu. Ao lado da indústria, que vai fabricar cinco milhões de toneladas anuais de placas, a CSA constrói um porto na Baía de Sepetiba, para o embarque do produto e a chegada de carvão mineral. 24
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A empresa é sociedade da alemã ThyssenKrupp Steel – potência mundial do aço, dona de 90% do complexo siderúrgico – e da Vale, que fornecerá o minério de ferro. Com a primeira placa prevista para março do ano que vem, a CSA vai empregar 5,5 mil pessoas. “Será o marco da transformação do Rio no maior pólo siderúrgico da América Latina”, aposta o presidente da Agência de Fomento do Estado (Investe Rio), Maurício Chacur. Seu entusiasmo é embalado também pelos planos de empresas como a vizinha Gerdau, que pretende fazer mais uma fábrica em Santa Cruz. Do outro lado do rio da Guarda, em Itaguaí, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) estuda desengavetar o projeto de uma usina. E no Médio Paraíba, a Votorantim amplia a Siderúrgica Barra Mansa e planeja construir outra. Se tudo sair do papel, a produção fluminense de aço saltará de 7,3 milhões para 22 milhões de toneladas por ano, gerando 30 mil empregos. Como a CSA, os projetos da Gerdau e da CSN têm como trunfo as águas de Sepetiba – saída privilegiada para o mundo em tempos de aumento da procura global por aço, aquecida por países como a China. À lista de esperanças de desenvolvimento local, o empresário Eike Batista acrescentou mais uma: um porto alternativo ao de Itaguaí, onde reinam a Vale e a CSN. Para o Porto do Sudeste, como foi batizado o empreendimento, a LLX Logística, de Eike, comprou a
Fotos Rafael Wallace
Ponte da CSA sobre o Canal de São Francisco vai melhorar o tráfego no distrito industrial
pedreira que abriga uma das últimas grandes áreas de Itaguaí com frente para o mar. Perto, mas devidamente isolado, está o maior passivo ambiental da região – o lago de rejeitos da extinta Ingá Mercantil. Os impactos da construção da CSA sobre o mercado de trabalho ultrapassam as fronteiras da região e irradia-se até a Baixada Fluminense. No caso da construção civil, a obra abre chances de melhoria salarial para profissionais com alta qualificação e é tábua de salvação para uma infinidade de outras profissões – pedreiros, armadores, eletricistas, carpinteiros, bombeiros e soldadores, sem contar serventes e demais ajudantes. Juntam-se a eles, no gigantesco canteiro da siderúrgica, uma cadeia de prestadores dos variados serviços de apoio indispensáveis a projetos de grande porte. Aos trabalhadores da região devem se unir, no desfecho da obra, chineses da estatal Citic, fabricante da unidade de coque da siderúrgica. A empresa da China planeja enviar 600 técnicos a Santa Cruz, para montagem dos equipamentos e treinamento dos brasileiros – serviços incluídos no pacote fechado da coqueria, de R$ 765 milhões. A CSA descarta uma invasão chinesa, adiantando que eles chegarão e voltarão aos poucos, em grupos. Por ora, não passam de dez no canteiro, mas sua vinda continua cercada por polêmica com sindi-
catos do Rio de Janeiro. Em compensação, por R$ 277 milhões, a fluminense MPE vai montar o alto forno, fabricado em Taiwan. Mesmo em obras, a siderúrgica já contratou 300 trabalhadores para a atividade industrial. De operadores a engenheiros, passando por níveis intermediários, eles recebem capacitação com direito a treinamento na sede mundial da ThyssenKrupp, em Duisburg, na Renânia do Norte-Vestfália, Oeste da Alemanha. Em turmas, mais de 100 contratados já foram despachados à matriz, para conhecer os processos tecnológicos e a cultura organizacional da empresa. Quando a CSA entrar em atividade, o grupo terá papel de vanguarda, ocupando a linha de frente da produção. Para que não faltem técnicos no mercado, a CSA firmou parceria com a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) para a formação de 1,5 mil profissionais no Serviço Nacional da Indústria (Senai), nos bairros cariocas de Paciência e Benfica. Uma parte deles será contratada; a outra, alistada no cadastro de reserva. Com a Prefeitura de Itaguaí, a siderúrgica comprometeu-se a construir uma escola técnica, onde o Senai também poderá formar profissionais. Além das ações para expandir o mercado de trabalho, a CSA promete apoiar o reaparelhamento do Hospital Estadual Pedro II, em Santa Cruz, e reforçar unidades do Corpo de Bombeiros na região. REVISTA DA ALERJ
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Negócios em alta A siderúrgica é o epicentro de um vendaval econômico que se espraia por todos os lados. “A CSA já não é promessa, mas realidade. Estamos nos estruturando com a confiança de que o público da companhia vai nos dar retorno”, confia em Itaguaí o empresário Joselito Macedo Lima, um dos que investem pesado em expansão. Há seis anos à frente de um restaurante que só faz crescer na rodovia Rio-Santos, Joselito conta não só com o aumento da clientela, mas, sobretudo, com a qualidade do poder aquisitivo dos profissionais mais graduados. O empresário pensou grande. Em outubro, abriu uma churrascaria vip com 300 lugares, conversível à noite em pizzaria. “Já temos várias pessoas da CSA que almoçam conosco”, empolga-se. Para que os oito quilômetros entre o restaurante e a siderúrgica não desanimem a clientela, ele comprou duas vans, que rodam desde fevereiro com os novos clientes. “Buscamos para o almoço e levamos, sem nenhum custo”, propagandeia, com planos de duplicar a churrascaria e a frota, de olho nos outros empreendimentos siderúrgicos. O complexo gastronômico do empresário comporta 1,7 mil talheres, servido por 197 empregados. O otimismo estende-se a médios e pequenos empresários. Em Santa Cruz, Alberi da Silva Filho é só animação em sua locadora de automóveis, que transporta traba26
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Na churrascaria nova, o empresário Joselito aposta alto e oferece até transporte à clientela lhadores dentro e fora do canteiro da CSA. Aos 25 veículos antes da obra, usados em serviços para outras indústrias do distrito, Alberi e os sócios incorporaram mais 20. São carros de passeio para o transporte executivo e kombis para deslocar turmas de operários entre os fronts da construção. “Estamos compran-
do dois carros por mês, á vista, com o pé no chão”, festeja. “De 15 motoristas, passamos para 30.” No efeito em cascata desatado pela injeção de dinheiro na economia, o mercado informal não fica de fora. O crescimento da freguesia faz a festa do vendedor de caldo de cana Cláudio
O padeiro Wagner produz em dobro desde que passou a fornecer para empreiteiras
Cristiano Leitão, que todos os dias estaciona uma velha Kombi com moenda, canas e salgados num dos acessos da CSA – ponto de onde tira o sustento da família há seis anos. A moagem de cana pulou de duas dúzias diárias para cinco dúzias, em dias de muito calor. Entusiasmado, o vendedor diversificou a oferta dos salgadinhos e passou a vender broas e bolos assados pela mulher. “Tem dia que eu volto para casa com a Kombi vazia”, comemora. Na avenida João XXIII, onde a CSA ergueu uma ponte de entrada e iniciou a construção de outra, comerciantes como o padeiro Wagner Ramos Alves sorriem de orelha a orelha. O movimento da padaria dobrou, com o fornecimento de pãezinhos de 50 gramas a quatro empreiteiras da obra, para o café-da-manhã e o lanche dos peões. “Atendemos a quatro firmas. São mais de 1,5 mil pães por dia, sem contar o queijo e a mortadela”, diz, eufórico. Wagner resume a reversão de ânimo que a chegada da CSA operou entre a população local: “Muita gente dizia, antes, que queria ir embora; agora, todo mundo quer morar em Santa Cruz”. A oferta de moradias está longe de corresponder à revolução industrial que a CSA e os outros empreendimentos prometem para a região. Numa das mais de 15 imobiliárias de Itaguaí, a corretora Maria Regina de Souza testemunha a escassez de imóveis no município e na zona Oeste. Na falta de casas, a inflação no mercado de imóveis oscila entre 30% e 40%. “A procura é grande, mas a oferta
Maria Regina enfrenta a escassez de imóveis : "Precisamos de condomínios com edifícios, mas coisa boa"
A obra valoriza o ponto de Cristiano e joga para o alto a venda de salgadinhos e caldo de cana é pouquíssima”, garante ela. “Uma casa de dois quartos, banheiro e lavabo, alugada antes por R$ 600 ou R$ 700, está saindo por até R$ 1 mil.” Muitos pedidos de imóveis partem de prestadoras de serviços à CSA, para o alojamento de empregados. “O que aparece sai logo”, diz a corretora. Para venda, lamenta Maria Regina, também faltam residências para todos os bolsos. “A demanda vai desde a casa popular, de R$ 40 a R$ 60 mil, até a
de classe média, de R$ 250 mil”. Nesse padrão, a maior carência é de apartamentos: “Muitas pessoas têm medo de morar em casa. Precisamos de condomínios com edifícios, mas coisa boa”. Para fazer frente ao entra-e-sai na imobiliária, Maria Regina iniciou 2008 com dois empregados novos. “Minha filha e eu não dávamos conta”, diz. Outros três auxiliares, que prestam atendimento eventual, passaram a ser chamados com freqüência. REVISTA DA ALERJ
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Futuro de desafios
Alcemar: salário com carteira assinada em vez de biscates
Vestindo o macacão Alcemar Francisco de Souza, 49 anos, de Itaguaí, é um dos muitos que sobreviviam de biscates antes de ser recrutado para ajudar a pôr de pé a siderúrgica. “Fazia um bico aqui e outro ali. Dava até para ganhar mais, mas passava até um mês parado”, conta, contente com a carteira assinada em novembro e o salário de R$ 1 mil. Com renda certa todo mês, operários como Alcemar transmitem os efeitos econômicos da obra ao comércio local. “Deu para comprar um televisor novo, roupas e sapato para o garoto”, orgulha-se o eletricista. “A mulher comprou até aquele negócio de fazer chapinha no cabelo.” Aos milhares, jovens como Rodrigo de Souza Castro, 27 anos, estão fazendo de tudo para vestir também o macacão da companhia. Aluno do Centro Universitário da Zona Oeste (Uezo), mantida pelo estado em Campo Grande, Rodrigo pensava estudar química, mas embicou para o mundo do aço quando viu os primeiros 28
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movimentos da CSA na região. “Estou entrando de cabeça”, diz ele, que cursa o quarto período de tecnologia em produção siderúrgica e estuda em casa quatro horas por dia. Seu currículo é um dos muitos na pilha recebida pela CSA. Antenado com os planos de outras empresas, Rodrigo também despachou seu histórico para a Gerdau e a CSN. A busca de formação não se restringe a quem começa a vida profissional. Aos 31 anos, Aurilece dos Santos não vê a hora de terminar, no fim do ano, o curso de logística iniciado em 2007 numa universidade particular de Campo Grande. Empregada na área operacional de uma transportadora em Itaguaí, Aurilece pretende ascender na carreira. “O diploma vai me abrir portas. A gente sempre quer entrar numa empresa maior e ter novos horizontes”, sonha. Sua vantagem sobre os mais jovens, confia, é a experiência adquirida no trabalho.
Desafios nas áreas de habitação, transporte e urbanização foram apontados por CPI da Assembléia Legislativa em agosto. A comissão estudou carências da região e do entorno dos pólos gás-químico, em Duque de Caxias, e petroquímico, em Itaboraí. Na Investe Rio, Mauricio Chacur afirma que o estado montou grupo de trabalho para estudar o crescimento planejado na zona Oeste e municípios vizinhos. Do Governo federal, uma iniciativa é a duplicação dos 26 quilômetros da Rio-Santos entre Santa Cruz e Itacuruçá, em Mangaratiba. Grandes construtores também engatilham projetos residenciais na região, como um mega condomínio na Reta de Piranema, em Itaguaí. O secretário municipal de Indústria, Turismo e Esportes de Itaguaí, Alexandre Valle, garante que a prefeitura prepara o município para converter em vantagens a vizinhança com a CSA. “Ela nos traz benefícios porque usa a nossa mão-de-obra. Nossas empresas estão mais do que aptas a prestar serviços lá dentro. Isso gera empregos e acende a nossa economia”, afirma. Na parceria com a companhia, a prefeitura doou o terreno para a siderúrgica levantar a escola técnica. Desde os anos 1980, os itaguaienses sonham com dias melhores e recebem gente de fora à procura de eldorados – entre eles, um pólo petroquímico e, depois, uma Zona de Processamento de Exportação (ZPE), que morreram no papel. Com a CSA, a região está sonhando outra vez.
Rafael Wallace
opinião
M aurício Santoro
O Parlamento do Mercosul
E
m 2007 começou a funcionar o Parlamento do Mercosul. Sediada em Montevidéu, a instituição cria perspectivas para o aprofundamento da participação do Poder Legislativo no processo de integração da América do Sul, despertando expectativas de aproximação dos debates sobre relações internacionais com o cotidiano da população do bloco. O passo é fundamental para a formulação de políticas públicas na região. Uma das fragilidades estruturais do Mercosul é a concentração das decisões cruciais no Poder Executivo dos países da região. O Tratado de Assunção (1991), que criou o bloco, estabeleceu Comissão Parlamentar Conjunta, que no entanto dispôs de poucas atribuições. Uma década e meia depois, tornou-se imperativo mudar o quadro. Os primeiros anos do século XXI foram de redespertar da inquietação entre deputados e senadores dos países do Mercosul, mobilizações que culminaram nas propostas de criação do Parlamento do bloco. A instituição nasceu com poucos poderes – ela não pode, ao menos por enquanto, legislar e controlar o orçamento do bloco. Sua principal atribuição é a fiscalização das decisões das autoridades do Poder Executivo, podendo também solicitar pareceres ao Tribunal Permanente de Revisão, a corte consultiva do Mercosul. Apesar dessas tímidas capacidades, há excelentes possibilidades de que o Parlamento venha a se tornar essencial nos debates sobre políticas públicas do bloco, pois será um fórum onde cada parlamentar
representará não o seu país, mas a população que vive no Mercosul. É preciso um olhar que escape das fronteiras, para lidar com os desafios que são transnacionais, como as migrações e a busca de planejamento para o desenvolvimento da região. Isso significa a ampliação do diálogo entre governos subnacionais – de estados, províncias e municípios – que lidam com problemas semelhantes, a exemplo dos encontros recentes dos governadores do Nordeste brasileiro com os do Noroeste argentino, ou dos debates do fórum das mercocidades. A primeira leva de mercoparlamentares (mandato 2007/2010) foi indicada pelos congressos de cada país. A próxima será eleita diretamente, embora a fórmula exata ainda esteja em discussão. Debate-se, por exemplo, a aplicação de uma lista nacional, em vez da atual forma de eleição por estados. Também se estabeleceu promissora cooperação com a União Européia. Espera-se que o Parlamento do Mercosul contribua para a consolidação e o aprofundamento da democracia na América do Sul. Ele tem instrumentos para aumentar a participação da sociedade nas decisões políticas, como o poder de convocar audiências públicas com autoridades e a responsabilidade de preparar relatórios sobre a situação dos direitos humanos no bloco. São ferramentas que melhoram o acesso à informação e a transparência das negociações diplomáticas no Mercosul – fundamentais para superar os impasses do bloco. Maurício Santoro é jornalista e cientista político, professor de pós-graduação em relações internacionais da Universidade Cândido Mendes.
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O livro traça o perfil de um Rio colonial que, no século XVIII, decidiu transferir o Mercado de Negros para uma região então fora dos limites da cidade
pe s qu isa
F ernanda Porto
Trágicos vestígios do regime escravocrata Casa centenária na Gamboa foi construída sobre o Cemitério dos Pretos Novos
A
empresária Ana Maria Merced Guimarães ainda traz na memória a lembrança do diálogo travado com o pedreiro José naquela manhã de janeiro de 1996. – A senhora terá que vir até sua casa, dona Merced. Seu terreno está cheio de ossos, acho que são de cachorro – lembra, rindo. A princípio, só ocorreu a ela que aquilo poderia vir a ser um empecilho para a realização da reforma que daria mais um pavimento a sua casa centenária, situada no número 36 da rua Pedro Ernesto, na Gamboa, Zona Portuária do Rio. – Estávamos na casa há seis anos e ela trazia alguns problemas, por ser muito antiga, datada de 1866, e por estar construída sobre solo pouco firme – explica. Mas a descoberta dos ossos, feita durante o reforço nas fundações da casa, logo tomou outra proporção. Ao chegar em casa, Merced viu que se tratavam de ossos humanos e, temendo que fossem resquícios de uma chacina, chamou a polícia. No entanto, não demorou até que Merced, seu marido Petrúcio e suas três filhas percebessem que estavam diante da comprovação de um cemitério escravo, cujas histórias já tinham ouvido, mas que, até então, 30
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ninguém sabia precisar a localização. Diante dos trágicos vestígios do regime escravagista que vigorou por mais de cem anos no Brasil – e cuja abolição completará 120 anos no próximo 13 de maio –, a reforma deixou de ser prioridade e a família deu início a uma busca por especialistas que pudessem analisar os fragmentos encontrados. – Por dois anos, dividimos nossa casa com arqueólogos enviados pela Prefeitura do Rio e pelo Centro José Bonifácio – lembra ela, que teve que abandonar a casa por mais três anos por medo de desmoronamento. Em 2001, após o recolhimento do último dos 5.563 fragmentos localizados na área da obra, e da confirmação de que a área abrigou um cemitério destinado aos chamados pretos novos – mortos ainda nos navios, após entrarem na Baía de Guanabara, ou já em terra, em decorrência de doenças contraídas durante a viagem da África para o Brasil – o grupo de pesquisadores foi embora, carregando o correspondente a 28 esqueletos para o Instituto de Arqueologia do Brasil (IAB). Foi neste período que Merced foi contatada pelo então estudante de história Julio César Medeiros da Silva Pereira, que decidiu abordar o assunto em sua monografia de graduação. A parceria e o interesse de ambos pelo assunto rendeu frutos. Em maio de 2005, Merced e Petrúcio inauguraram, em uma casa vizinha à sua, no número 34 da rua Pedro Ernesto, o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), com o intuito
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Não queremos que esta descoberta seja reduzida a um episódio isolado Merced Guimarães
”
de oferecer um local para pesquisa do tema, além de um espaço destinado à exposição de alguns ossos e objetos que não haviam sido encaminhados para o IAB e de obras de artistas negros contemporâneos. – Não queremos que esta descoberta seja reduzida a um episódio isolado – afirma Merced, que em setembro de 2007 promoveu no instituto uma noite de autógrafos da dissertação “À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro”, escrita pelo agora mestre em História Social Julio César e publicada pela editora Garamond Universitária. – A escolha do tema se baseou no meu interesse pela história das massas, das multidões, daqueles que não têm nome, que são invisíveis historicamente – defende o pesquisador. A publicação da tese de Julio César foi a recompensa pelo primeiro lugar no Concurso de Monografias Arquivo da Cidade. O prêmio, de nome Professor Afonso Carlos Marques dos Santos, é concedido pela Prefeitura do Rio de Janeiro em reconhecimento ao melhor trabalho sobre a cidade. Dividido em quatro capítulos, o livro traça o perfil de um Rio colonial que, no século XVIII, decidiu transferir o Mercado de Negros para uma região então fora dos limites da cidade, por não tolerar mais que escravos em estado lastimável transitassem por suas principais ruas. Segundo documentos pesquisados, por volta de 1769, o mercado e o cemitério destinado aos pretos novos (que então se localizava no largo da igreja de Santa Rita) foram transferidos para a região situada entre a Prainha e a Gamboa. Em sua pesquisa, o autor se ateve particularmente às razões que levaram a Igreja a não ter oferecido enterros dignos a esses africanos recém-chegados, uma vez que eles eram batizados e obrigados a abdicar de suas crenças – tidas como pagãs – ainda em solo africano. Uma das conclusões a que chegou foi de que esses homens não tinham tido tempo de se filiarem às irmandades negras, que arrecadavam recursos e garantiam aos compatriotas enterros em condições mais dignas, quando os senhores não o
faziam. Como resultado, os corpos eram despejados em uma área de estimados 110 metros quadrados, onde eram cremados ou enterrados à flor da terra, sendo constantemente expostos após as chuvas. Como o cemitério ficava ao lado do mercado, os escravos podiam ver a forma descuidada como seus pares eram enterrados, o que era motivo de grande angústia para eles, que acreditavam que corpos insepultos levavam azar à comunidade. Debruçado sobre o livro de óbitos da Freguesia de Santa Rita, onde estão registrados os nomes dos navios, os portos de origem e as idades dos escravos novos enterrados entre 1824 e 1830, o historiador descobriu que 6.119 corpos foram sepultados no campo santo durante seus últimos seis anos. Os registros analisados também informam que os negros, vindos em grande parte de Angola, Moçambique e Congo, morriam em sua maioria por doenças contraídas nas embarcações, como varíola, anemia e escorbuto, além dos males causados por maus tratos. O último sepultamento no Cemitério dos Pretos Novos foi realizado em 4 de março de 1830, em parte como resposta ao clamor higienista que crescia na cidade e, mais provavelmente, em razão do prazo estabelecido pela Inglaterra para que o tráfico fosse extinto. REVISTA DA ALERJ
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Mídia
L uciana F erreira
Ombudsman na imprensa, esse indesejável Aquele que deveria ser o representante do cidadão nas Redações é alvo de desconfiança, preconceito e receio de jornais e jornalistas
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pesar de o termo ombudsman ter surgido há quase 200 anos, a função desta figura ainda não é clara para muita gente. O desconhecimento ocorre, particularmente, no caso do ombudsman de imprensa. A palavra sueca ombudsman significa algo como “representante do cidadão”. O ombudsman de imprensa, portanto, seria o representante do leitor. Acusada com freqüência de ser um disfarce para a velha ouvidoria, uma versão menor do serviço de atendimento ao consumidor ou mera estratégia de marketing para aplacar a irritação do leitor com os erros de seu jornal diário, a função, tão rara, merece um olhar menos desconfiado. No Brasil, colunas de ombudsmans são publicadas somente nos jornais Folha de S. Paulo e O Povo, do Ceará, e em blogs dos portais IG e UOL. Alguns jornais, como O Dia e Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, já tiveram o cargo, mas desistiram de mantê-lo. Outros jornais de grande circulação, como O Globo, também do Rio, e O Estado de S. Paulo, optaram por não contratar um profissional para esta função. Afinal, o que faz um ombudsman? E por que existem tão poucos na imprensa brasileira? O ombudsman da Folha de S. Paulo, Mário Magalhães, destaca duas funções principais em seu trabalho. Segundo ele, o ombudsman “é o ouvidor do 32
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jornal, intermediando a relação entre os leitores e a Redação. Ele cobra da Redação esclarecimentos, checagens, providências e correções. É também um crítico do jornalismo. Analisa o desempenho do jornal e do jornalismo em geral, nas críticas diárias e na coluna dominical”. Magalhães esclarece, ainda, que o ombudsman não é parte da Redação. “Se fosse, avaliaria o seu próprio trabalho, perdendo a independência indispensável ao exercício do cargo”, explica. Uma leitura superficial das últimas colunas publicadas pelos ombudsmans da Folha, de O Povo e dos portais IG e UOL, é suficiente para constatar que estes profissionais com olhar apurado ultrapassam – e muito – a função de representar o leitor. Em suas colunas, eles comparam as manchetes de seus veículos com as dos concorrentes; questionam a freqüência de erros de tradução; lamentam a redação de matérias que subscrevem avaliações do governo ou de instituições oficiais; condenam a publicação de imagens apelativas; cobram uma variedade maior de fontes; criticam a falta da versão do “outro lado”; alertam os jornalistas sobre boas histórias desperdiçadas com coberturas burocráticas; exigem da Redação que os erros sejam corrigidos com mais rapidez; e, mais de uma vez, apontam
falhas graves de apuração. Como se pode intuir, o relacionamento do ombudsman com a Redação não é dos mais tranqüilos. Autor do livro O ombudsman e o leitor, o jornalista Jairo Faria Mendes demonstra o nível a que pode chegar um conflito na Redação. “A ombudsman Adísia Sá, do O Povo, recebeu diversas ameaças de morte. Com a ajuda de um bina, registrou-se que as ligações vinham da própria Redação do jornal. Esta mesma profissional chegou a sofrer um atentado, tendo seu carro danificado por ácido. Nesse mesmo jornal o ombudsman Lira Neto sofreu várias pressões de seus colegas de Redação e foi alvo de um abaixo-assinado”, exemplifica Mendes. Outra hipótese para a escassez de ombudsmans na imprensa diz respeito à disposição do veículo de comunicação de reconhecer suas falhas e implementar mudanças profundas a partir das críticas. A independência é um fator essencial no exercício da profissão de ombudsman. O modelo de contratação do profissional é semelhante: ele assume um mandato de um ano, que pode ser renovado por mais um ou dois, não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem garantia de esta-
bilidade no veículo de seis meses até um ano depois de deixar a função. O ombudsman, portanto, tem a liberdade de publicar qualquer crítica que considerar pertinente, goste seu empregador ou não. Para o jornalista Bernardo Ajzenberg, ombudsman da Folha de S. Paulo de 2001 a 2004, a independência é um dos principais motivos da resistência dos jornais em designar um profissional para o cargo. “É muito difícil para os meios de comunicação assumir essa responsabilidade de estar sujeito a uma exposição tão aberta, e esse risco pouquíssimos veículos assumem, não só no Brasil mas no mundo inteiro”, explicou Ajzenberg, em entrevista a estudantes de jornalismo da Faculdade Fizo, de Osasco. Ele aponta, ainda, uma outra explicação possível para o reduzido número de ombudsmans na imprensa: trata-se de uma profissão muito recente. Em 1922 o jornal japonês Asahi Shimbun criou um comitê para receber e investigar reclamações dos leitores, mas o modelo da função, como é hoje, só apareceu em 1967, no jornal The Louisville Times, do estado americano de Kentucky. No Brasil – primeiro país da América Latina a instituir a função – Caio Túlio Costa foi o pioneiro da profissão, em 1989, na Folha de S. Paulo. Uma última hipótese, bem mais prosaica mas não menos importante, é citada por Mário Magalhães: é caro manter um ombudsman. Magalhães lembra, ainda, que as hipóteses não são excludentes. Teríamos também, como razão para a escassez desses profissionais, a desconfiança dos jornalistas, avessos à crítica; o preconceito dos comandos de Redações, que não querem ter sua capacidade questionada, e o receio dos veículos de comunicação em expor seus erros, sem nenhum poder de veto. O aumento do número de ombudsmans, portanto, depende de como a própria imprensa quer se pensar no futuro. De preferência, mais responsável, ética, transparente e democrática. REVISTA DA ALERJ
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Rafael Wallace
pa n orama Homenagem a Heloneida
Reabilitando D. JoĂŁo VI Rafael Wallace
Se depender de homenagens, a biografia da jornalista, escritora e ex-deputada Heloneida Studart, que morreu no dia 3 de dezembro de 2007, em decorrĂŞncia de parada cardĂaca, nĂŁo serĂĄ esquecida. O Hospital da Mulher, em SĂŁo JoĂŁo de Meriti, e o Centro Cultural da Alerj receberam o nome da ex-parlamentar. A deputada Cidinha Campos (PDT) manifestou a intenção de encenar, em 2008, uma peça teatral escrita por Heloneida em apenas dez dias, pouco antes de morrer. A ComissĂŁo de Defesa da Mulher da Alerj tambĂŠm homenageou a ex-parlamentar com a entrega de menção honrosa a sua famĂlia, durante a quinta edição do Diploma Mulher-CidadĂŁ Leonilda de Figueiredo Daltro, que premia pessoas de diferentes ĂĄreas de atuação que tenham contribuĂdo na defesa dos direitos da mulher e nas questĂľes de gĂŞnero. Heloneida exercia na Alerj os cargos de diretora cultural e de presidente do FĂłrum Permanente de Desenvolvimento EstratĂŠgico do Estado Jornalista Roberto Marinho.
Um fato histĂłrico que desenvolveu o Brasil de tal maneira que, desde aquela ĂŠpoca, nunca se viu um conjunto de açþes tĂŁo empreendedoras. Para recuperar a memĂłria desse perĂodo da HistĂłria do Brasil, a AssemblĂŠia Legislativa do Rio promoveu, entre alunos de escolas pĂşblicas do todo o estado, o Concurso de Monografias sobre os 200 anos da chegada de D. JoĂŁo VI e da famĂlia real portuguesa ao Brasil. Os estudantes Matheus Duarte da Silva, de 17 anos, Djalma dos Santos Lima, 18, e Natalia Xavier Dantas, 13, tiraram o primeiro, segundo e terceiro lugares, respectivamente. A aluna Eda Caroline Nogueira Macieira, 20, recebeu Menção Honrosa. A solenidade de entrega dos prĂŞmios ocorreu no dia 12 de março, no PlenĂĄrio Barbosa Lima Sobrinho, dentro da semana comemorativa do bicentenĂĄrio – de 7 a 14 de março. Criado atravĂŠs do projeto de resolução 975/05, do deputado Luiz Paulo (PSDB), o concurso recebeu 83 trabalhos. "D. JoĂŁo VI ĂŠ uma figura polĂtica da maior importância na constituição do nosso PaĂs", afirma o tucano.
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Prestação de Contas
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Portas abertas ao povo 2AFAEL 7ALLACE
Fazer um convite Ă participação popular no Parlamento e prestar contas das realizaçþes de 2007. Este foi o objetivo da edição especial do Jornal da Alerj intitulada "Portas abertas ao povo", produzida pelo Departamento de Comunicação Social da Casa e encartada nos jornais O Dia e Meia Hora, em 17 de fevereiro. AlĂŠm de informaçþes sobre a intensa produção legislativa – que resultou na apresentação de 1.232 projetos de lei e na aprovação de 167 leis de autoria do Poder Legislativo e de 54 mensagens do Poder Executivo – o encarte apresentou o resultado das ComissĂľes Parlamentares de InquĂŠrito e dos debates promovidos em 2007 pela Casa. TambĂŠm mereceram destaque as centrais telefĂ´nicas 0800 e os canais de contato disponĂveis para que o cidadĂŁo possa acompanhar a atuação dos deputados, que incluem o site www.alerj.rj.gov.br, a TV Alerj e os quiosques multimĂdia.
!SSEMBLĂ?IA ,EGISLATIVA DO %STADO DO 2IO DE *ANEIRO ď Ź 0RESTAÂ ĂŽO DE #ONTAS
A AssemblĂŠia Legislativa presta contas do trabalho realizado em 2007 e convoca os cidadĂŁos a participar do processo legislativo e a fiscalizar seus deputados
Produtividade traduzida em nĂşmeros pĂĄginas 4 e 5
Alerj devolve R$ 10 milhĂľes ao Governo
Leis que surgem de sugestþes da população
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AssemblĂŠia busca Como fiscalizar o trabalho do seu se aproximar deputado estadual do interior pĂĄgina 8
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