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REVISTA DA ALERJ Ano II - Número 03 - Junho de 2008

Entre a dor e a esperança Histórias de mulheres e crianças que romperam o ciclo da violência familiar



nes te n úm ero

REVISTA DA ALERJ Ano II - Número 03 - Junho de 2008

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COMPORTAMENTO

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ENTREVISTA

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ENSAIO

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MÍDIA

Entre a dor e a esperança

A China se prepara para as olimpíadas educando o povo

Nullutpat. Duisis endions equatet, quat. Im ipit vent nullaor at del dolore faccum vel el

Entre a dor e a esperança Um endereço secreto, na Baixada Fluminense, recebe vítimas de violência doméstica encaminhadas pelas delegacias e centros especializados no atendimento à mulher. O local lembra uma caixa forte, cercada de muros altos e instransponíveis, sem nenhuma menção externa ao que ocorre em seu interior. É a Casa Abrigo Lar da Mulher, que em um ano de existência hospedou 246 mulheres e 406 crianças ameaçadas de morte por seus próprios maridos e pais. Ao serem escaladas para viver o dia-a-dia do local, as repórteres da RA perceberam, porém, um clima surpreendentemente leve para um espaço que abriga histórias tão dramáticas. Sinal de que lá também se pode encontrar a esperança.

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Nelson Sargento completa 84 anos e lança um novo CD

Imagens do bondinho do Pão de Açúcar nos seus 95 anos

O que esperar da nova TV digital, já em operação

OPINIÃO / MARCELO PAIXÃO TRADIÇÃO / CULTURA E RESISTÊNCIA PANORAMA

Páginas 14 a 21 REVISTA DA ALERJ

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Gostaria de parabenizar a iniciativa da RA “pela brilhante idéia refletida na escolha do papel certificado para utilização na revista ”

Marcelo Abreu Mansur

Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

Haiti

Presidente Jorge Picciani 1ª Vice-presidente Coronel Jairo 2º Vice-presidente Gilberto Palmares 3º Vice-presidente Pedro Fernandes 4º Vice-presidente Gerson Bergher 1ª Secretária Graça Matos 2º Secretário Zito 3º Secretário Dica 4ª Secretário Fabio Silva 1a Suplente 2 o Suplente Armando José 3º Suplente Pedro Augusto 4º Suplente Edino Fonseca

REVISTA da Alerj Ano II - Nº 3 junho de 2008 Publicação trimestral da Diretoria Geral de Comunicação Social da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

Jornalista responsável Fernanda Pedrosa (MT-13511) Coordenação: Beth Esteves e Everton Silvalima Reportagem: Fernanda Porto, Luciana Ferreira e Marcela Maciel Fotografia: Rafael Wallace Diagramação: SMPG/Daniel Tiriba Telefones: (21) 2588-1383/1627 Fax: (21) 2588-1404 Rua Primeiro de Março s/nº sala 406 CEP-20010-090 – Rio de Janeiro/RJ Email: dcs@alerj.rj.gov.br www.alerj.rj.gov.br Impressão: WalPrint Tiragem: 3 mil exemplares

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CARTAS

REVISTA DA ALERJ

Felicitações pela qualidade gráfica, pela correção dos textos e pelos conteúdos da RA. Merece especial elogio a matéria "A Guerra do Brasil", veiculada na edição de março de 2008. A reportagem nos permite a percepção exata da importância da incumbência atribuída ao Exército Brasileiro – bem como entender as dificuldades e sacrifícios pessoais experimentados por nossos militares. O jornalista responsável conseguiu transmitir um retrato representativo da tropa brasileira, sua dedicação, disposição para o trabalho e capacidade de, mediante pequenos atos, fazer diferença ante um quadro de miséria quase absoluta. O verossímil relato nos transporta, por momentos, ao Campo Charlie e ao Haiti e provoca, em cada leitor, sentimentos de responsabilidade, humanidade e solidariedade. Parabéns ao Exército e à Força Aérea pelo compromisso demonstrado no desempenho de um encargo que poderia ser encarado, apenas, como uma missão a mais. Parabéns aos jornalistas e à REVISTA DA ALERJ pela eleição do tema e pela profundidade e seriedade de sua abordagem. Flávio Bolsonaro Deputado estadual (PP), Rio de Janeiro

Meio ambiente Venho agradecer por proporcionar a este Poder Legislativo receber a inovadora REVISTA DA ALERJ, que logo em sua primeira edição já

demonstra ser um veículo de comunicação muito bem elaborado, com reportagens interessantes e extremamente atuais sobre a realidade do nosso estado e que em muito tem contribuído para manter bem informados os representantes desta Casa de Leis. Gostaria de parabenizar a iniciativa da RA pela preocupação com o meio ambiente e pela brilhante idéia refletida na escolha do papel certificado para utilização na revista, o que demonstra seu constante zelo e responsabilidade nas discussões das questões sociais relevantes para o nosso estado. Marcelo Abreu Mansur Presidente da Câmara Municipal de Macuco (RJ)

Pretos Novos Venho manifestar a minha enorme satisfação quando, em uma visita ao Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, recebi das mãos da sra. Merced Guimarães um exemplar desta revista, que continha justamente uma pesquisa a respeito do Cemitério dos Pretos Novos, encontrado no quintal da casa desta senhora, excelente reportagem, assim como todas as outras, que li com atenção e interesse. (...) Aproveito para também parabenizá-los pela excelente reportagem "Ruínas do império" e pela escolha dos colaboradores. Francisca Rosa Neves Paschoal Batista, por e-mail


Ed it o rial

Jorge Picciani

Ao abrigo da violência

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pesar do aumento da participação da mulher no mercado de trabalho, em postos antes ocupados exclusivamente pelos homens, as desigualdades de oportunidades e de tratamento entre os gêneros masculino e feminino ainda persistem em nosso País. O caminho percorrido pelas mulheres, que é lembrado internacionalmente todo dia 8 de março, e a história de lutas e vitórias que gerações imprimiram ao longo de muitos anos parecem inexistir, quando tomamos conhecimento dos números que revelam a proporção dos casos de violência doméstica e familiar, praticada contra mulheres e crianças justamente por aqueles que deveriam protegê-las. Os registros de agressões contra mulheres tornaram-se mais realistas a partir da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida com Lei Maria da Penha, em homenagem a uma corajosa cearense que lutou 20 anos para ver seu marido e agressor

condenado. Só no Estado do Rio de Janeiro, em 2007, mais de 39 mil mulheres sofreram algum tipo de violência e 17,2% delas apontaram seus companheiros como autores das agressões. No mesmo ano, a Central de Atendimento à Mulher teve o número de chamadas triplicado em relação a 2006. Um pouco dessa realidade está descrita nas páginas centrais desta edição da REVISTA DA ALERJ, que entrou no mundo das mulheres e crianças refugiadas na Casa Abrigo Lar da Mulher – instituição governamental que pertence ao Rio Solidário, onde as mulheres vítimas da violência doméstica encontram apoio, proteção e oportunidade de refazer suas vidas longe das agressões sofridas diariamente. Em outra reportagem, a RA mostra o exemplo da China, que faz campanha para reeducar a população, com o objetivo principal de abocanhar uma boa parcela dos recursos gerados pelo setor do turismo no mundo. Coisa que o Estado do Rio de Janeiro também está aprendendo a fazer – e, para isso, não faltam atrações turísticas, como o bondinho do Pão de Açúcar, que ganha nova versão nos seus 95 anos, e o Quilombo São José, uma comunidade descendente de escravos, em Valença, que preserva tradições há 150 anos.

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Mudança de hábitos COMPORTAMENTO

Leo Pinheiro AFP/Liu Jin

De olho nos recursos gerados pelo turismo, Governo chinês faz campanha de reeducação da população para os Jogos Olímpicos de Pequim

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conomia galopante, crescimento recorde da indústria automobilística, independência do Tibete e, principalmente, Jogos Olímpicos de Pequim. O mundo nunca observou a República Popular da China com tanta atenção como agora. Na mesma proporção, os chineses querem abrir os olhos para o mundo ocidental. Trocadilho à parte, é claro que o Governo chinês não iria perder a oportunidade de divulgar o país para os outros quatro bilhões e meio de habitantes do globo. Um dos últimos países regidos pelo comunismo, a China quer capitalizar, ao máximo, recursos financeiros através do turismo internacional. Os chineses acreditam que, nos primeiros anos subseqüentes aos Jogos Olímpicos, podem se tornar o destino mais procurado por turistas do mundo todo. Segundo a Organi6

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Cartazes educativos estão espalhados por toda a capital chinesa

zação Mundial do Turismo (OMT), graças aos eventos preparativos para os Jogos e a inauguração de novas arenas esportivas, o país recebeu 46 milhões de visitantes no ano passado, ou seja, 5,8% do total de turistas de todo o planeta em 2007. Deste modo, alcançou a quarta colocação no ranking mundial de visitação. O fato, amplamente divulgado pela imprensa estatal e comemorado pelos governantes, ainda não é suficiente para que o Departamento

de Turismo Chinês se dê por satisfeito. A meta é que, já em 2008, a terra do dragão se torne o terceiro país mais visitado do mundo, posição ocupada atualmente pelos Estados Unidos, que está atrás apenas de França e Espanha. Baseados no cálculo de crescimento anual de sua indústria turística, o Governo chinês e a OMT projetam que, em 2015, a China alcançará o seu objetivo e passará a liderar o setor de turismo receptivo. Outra projeção


AFP/Teh Eng Koon

dos órgãos estatais chineses é de que o refluxo turístico crescerá na mesma proporção: a partir do ano de 2020, o gigante asiático será o maior exportador de turistas para o resto do mundo. É fácil imaginar o volume desse tráfego de pessoas, quando lembramos que a população chinesa beira 1,5 bilhão de habitantes. No entanto, para que os turismos ativo e receptivo da China alcancem a liderança mundial o país precisa investir no setor mais deficitário de seu governo: a educação. Imagem ruim no exterior O assunto, repetitivamente discutido em países em desenvolvimento como o Brasil, é prioritário para o atual Governo chinês, que, consciente da imagem ruim que o seu povo tem no exterior, está praticando campanhas de cidadania com a população de suas principais capitais. A intenção do Governo é ocidentalizar o povo chinês, para que, à vista dos outros povos, o seu comportamento seja mais bem aceito e até admirado. A reeducação, ou simplesmente o primeiro aprendizado de hábitos considerados essenciais em nossa sociedade, está sendo realizada com interferência direta dos órgãos públicos daquele país. Práticas freqüentes, como cuspir e jogar guimbas de cigarro no chão, falar em voz alta e não respeitar filas, estão sendo coibidas através de cursos de boas maneiras, pesadas multas, aplicadas com rigor pela polícia local, e campanhas publicitárias que lembram a toda hora que

Práticas como jogar lixo e cuspir no chão são reprimidas

estas atitudes não são toleradas por outros povos. A preocupação dos organizadores do evento é tão grande que eles estão ensinando e fiscalizando os gritos de incentivo dos torcedores. Até agora cerca de 20 saudações foram aprovadas pelas autoridades. Isto mesmo: os adultos chineses voltaram às salas de aula para aprender a ter um comportamento civilizado durante e depois das Olimpíadas. Os ensinamentos vão desde o momento adequado para bater palmas a não falar palavrões contra os competidores adversários e nem mesmo para incentivar os atletas compatriotas. No curso, os alunos – todos voluntários – estão sendo estimulados a se comportar

de forma polida não só durante os eventos, mas também antes e depois das competições. Eles aprendem, por exemplo, a recolher as embalagens de comida e latas de refrigerante consumidos durante as disputas, e a não furar filas no acesso às arenas esportivas. "É civilizado fazer fila, é glorioso ser educado" O hábito de fazer fila é considerado pelos chineses quase um esporte nacional, pois, até pouco tempo atrás, parecia impossível adquirir um produto ou serviço na capital, Pequim, sem ser ultrapassado pelos mais “espertinhos”. Em cinemas, lanchonetes, ou até mesmo em bancos as pessoas não REVISTA DA ALERJ

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AFP

respeitavam a ordem de chegada ou de idade. Idosos e mulheres grávidas historicamente nunca tiveram a preferência para viajar sentados em ônibus ou vagões de trem e metrô, por exemplo. Por isso, cerca de seis meses antes da cerimônia de abertura dos Jogos, foi lançada a campanha do Dia Nacional da Fila. De lá para cá, no dia 11 de cada mês, forçastarefa formam filas em todo o país. Cartazes espalham a idéia pelas cidades e bandeirinhas voluntários ensinam a lição. Dirigentes do Comitê Olímpico Chinês explicam que o dia 11 não foi escolhido aleatoriamente: a data é simbólica porque o número lembra duas pessoas formando uma fila, uma atrás da outra. Eles esperam, no dia 8 de agosto, ver seus compatriotas formando fila para a abertura das Olimpíadas. Todas as decisões governamentais em ocidentalizar os modos dos cidadãos estão sendo bem recebidas pelos próprios chineses, que consideram o evento um momento importante para reforçar a posição da China como um dos países mais importantes no cenário internacional. Choque cultural e multas Entretanto, nenhuma campanha foi considerada tão polêmica quanto a da brigada anti-cuspe. O Governo destacou policiais especialmente para corrigir este costume dos cidadãos. A controvérsia se deve porque o hábito, que é considerado falta de educação e até de higiene em nossa sociedade, tem fundamentações filosóficas para 8

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Policiais foram especialmente destacados para compor a brigada anti-cuspe, encarregada de corrigir o mau costume o povo asiático. Para os chineses, não se deve manter dentro das pessoas nada que as incomode, e tudo que as atrapalhe deve ser expelido do corpo antes que chegue à alma. – Achei curioso, mas não condenável. É uma questão cultural, o problema é que, se deixar, eles cospem nos pés da gente – admite o diretor de cinema taiwanês Hsu Chien, de 39 anos, que mora no Brasil desde os três. Filho de chinês, ele já tinha ouvido falar do costume. Mesmo assim, estranhou a prática, quando viajou à China em julho de 2007. Chien conta que seus pais nunca o preveniram sobre a atitude dos chineses e que a ausência das filas o incomodou mais do que qualquer outra coisa. No entanto, o cineasta destaca que, apesar do choque cultural, voltaria ao país, e acredita que estes problemas serão corrigidos rapidamente. – Devido ao regime totalitário do Governo chinês, lá as leis são respeitadas, enquanto que, no Brasil, as pessoas confundem liberdade de

expressão com o não cumprimento das normas – compara. Na China, quem for pego por policiais cuspindo nas ruas será obrigado a pagar uma multa de 50 yuans, que é o equivalente a cerca de R$ 11. A quantia que, à primeira vista, parece módica para os padrões brasileiros, representa muito para os chineses, já que é suficiente para pagar cinco ou seis meses de gás de cozinha, 40 latas de refrigerante ou 50 passagens de ônibus. O diretor do Escritório de Assuntos Civis de Pequim, Zhang Huiguang, confia que a medida terá total eficácia, pois o povo chinês também é tradicionalmente conhecido como avarento. A iniciativa de multar os transgressores surgiu após praticamente um ano inteiro de apelos do Governo chinês aos seus cidadãos. Zhang garante que o Governo não deseja criar uma indústria de multas, para simplesmente arrecadar dinheiro fácil da população. Aumentar a consciência do povo, rumo a um comportamento civilizado de


AFP/Don Emmert

padrão global, é o maior objetivo da nova lei, segundo ele. Se para a população em geral a nova regra soa como radical, a situação é mais controversa ainda para profissionais do setor turístico. Na cidade de Xangai, o maior centro financeiro do país, os taxistas deverão usar cuspideiras para controlar o hábito, deles e dos passageiros, de abaixar as janelas dos carros para cuspir em vias públicas. Os motoristas deverão, a partir dos Jogos Olímpicos, fixar um saco no banco do carona. Os sacos especiais serão distribuídos para 45 mil táxis pelo Comitê Sanitário Patriota de Xangai, na tentativa de restringir as cusparadas. E não é apenas o novo artefato que passará a fazer parte da rotina dos taxistas. Como eles literalmente carregam os turistas China adentro, um pacote de regras foi imposto a esses profissionais. A partir de agora, eles estão proibidos de bocejar ou comer enquanto levam passageiros. Esta decisão também foi muito contestada por representantes dos motoristas de táxi. Como nas principais capitais brasileiras, os taxistas de Xangai trabalham cerca de 12 horas por dia, uma carga horária considerada pesada tanto lá quanto aqui. O diferencial é que na China o salário gira em torno de R$ 400 por mês. Segundo artigos publicados nos jornais Beijing News e China Daily, dois dos mais importantes veículos de comunicação do país, os órgãos responsáveis ainda não definiram o tipo de punição ou multa que recairá sobre os taxistas que infringirem as novas

O jogador de basquete Yao Ming, ícone máximo do esporte na China, e outros cidadãos modelos aderiram à campanha regras. Ainda de acordo com a imprensa local, trata-se da última medida dentro de uma campanha durante a qual as autoridades tentaram, sem sucesso, impedir os taxistas das principais cidades de fumar dentro dos veículos. O hábito, que atrai adeptos entre os clientes chineses, enjoa muitos usuários estrangeiros. Os motoristas rebatem afirmando que os passageiros têm a opção de mudar de veículo caso se incomodem com o fumo ou com as cusparadas dos motoristas. Este é mais um choque cultural entre ocidentais e orientais, que parecem desconhecer o lema “o cliente tem sempre razão”. Para mediar estas batalhas culturais, o Governo conta com

a massificação da publicidade da etiqueta ocidental e também com o apoio dos cidadãos modelos, como é o caso de Yao Ming, jogador da liga americana profissional de basquete e ícone máximo do esporte nacional. Radicado há quase uma década no ocidente, Ming concorda com as novas políticas educacional e legislativa da China. Apesar de tantas questões a serem colocadas em prática em tão pouco tempo, o Governo chinês está confiante de que, a partir de Pequim 2008, com a união do povo, da mídia, dos ídolos e do Governo, a situação terá melhorado muito e a China brevemente servirá de exemplo de educação para o resto do mundo. REVISTA DA ALERJ

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e nt re vi sta nelson sargento

Novo CD na estrada? Sim, mas eu passei seis anos sem gravar. Na verdade, não tenho preocupação de estar fazendo samba ou escrevendo. Apenas vou fazendo as coisas. E costumo dizer que inspiração não é banana. É um negócio que ninguém explicou até hoje. Ninguém sabe de onde vem... Por que levou tanto tempo sem fazer um disco? As multinacionais hoje trabalham da seguinte maneira: você faz o disco e leva para eles editarem, leva o trabalho pronto. Mas a Evonete nunca pensou em trabalhar assim. Daí, estamos com o incentivo da Lei Rouanet e o patrocínio da Natura. O CD sai pelo selo Olho do Tempo, do Agenor de Oliveira, meu amigo e parceiro musical. São 14 músicas inéditas e regravações, como Falso amor sincero. Tem também parcerias com Vagner Tiso, com o compadre já falecido Carlos Souza, o Marreta da Mangueira, com Agenor e Mauricio Tapajós, por exemplo. Versátil tem mais novidades? Tem. Há cerca de 30 anos tive 10

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“O samba é tão forte que até deturpado tem valor”

À

Tânia M alheiros

s vésperas de completar 84 anos, o compositor e cantor carioca Nelson Sargento está às voltas com os preparativos para o lançamento de Versátil, seu sexto CD solo. A festa de lançamento, que certamente vai movimentar o circuito do samba, está prevista para acontecer no dia 22 de julho, no Canecão. Será também a comemoração do aniversário de um dos mais legítimos representantes da cultura popular brasileira, nascido no dia 25 de julho de 1924, mangueirense apaixonado pela verde-e-rosa e por Evonete Belizário Mattos, sua produtora e empresária, com quem está casado há 20 anos. Quem achar que ele se ocupa apenas do CD está muito enganado. Nelson Sargento também está escrevendo mais um livro abordando temas muito presentes nas letras de músicas brasileiras, como telefone, chuva e cigarro. O bom humor e as mais variadas aptidões fazem dele um artista multimídia. Filho de criação do compositor Alfredo Português, com quem deu os primeiros passos no samba, parceiro de Cartola, ele atuou em 14 filmes, entre eles, O primeiro dia, de Walter Salles, Orfeu do Carnaval, de Cacá Diegues, e Nelson Sargento na Mangueira, de Estevão Pantoja, premiado com o Kikito no Festival de Gramado, e na minissérie Presença de Anita, da TV Globo. Autor do livro Pensamentos e de mais de 400 sambas, este leonino que nasceu no Salgueiro está toda quinta-feira, às 17h, na Rádio Roquette-Pinto, com o programa "Eles têm história para contar". E mais: já começou a escrever um monólogo para ser encenado e um musical no estilo de opereta. Em seu apartamento em Copacabana, enquanto saboreava o almoço preparado por Evonete e falava sobre suas diversas atividades, ele não parou de fazer piadas como: "A lagosta é um camarão metido a importante, e o sarapatel é o primo pobre do angu à baiana".

um parceiro, conhecido como Marinho da Chuva. Fiz uma música com ele naquela época e deixei pra lá. Revendo aqui e ali, encontrei a música. Chamava-se Tempos idos, mas anos depois o

Cartola fez um samba e deu esse mesmo título. Então, trocamos a nossa para Ídolos e astros. Marinho morreu faz 15 anos. Gravei a música também para registro dos filhos dele.


Fotos Rafael Wallace

Seria uma espécie de preconceito? Não e sim. É uma forma de separar: poeta é poeta e sambista é sambista. Mas ocorre que o sambista é poeta, porque ele tem a capacidade de contar uma história com 12, 15 frases. E o poeta, se escrever o mesmo assunto, vai escrever dez laudas... Você está escrevendo um novo livro? Sim. É um livro falando da grande filosofia que existe nas letras dos sambas. Mas eu prefiro não falar por enquanto, pois ainda está em construção. Eu falo de coisas que estão na vida popular: cigarro, cachorro, chuva e por aí... Sobre o tema chuva não está pronto, mas já está pronto o tema telefone na música popular. Temos o telefone na música de Donga, Noel Rosa, Antonio Maria, por exemplo.

Expectativa em cima do disco? É meu sexto CD individual. O primeiro, Flores em vida, saiu em 2000 pelo selo MEC. Sei que nada é fácil. Até artistas famosos estão saindo com o disco debaixo do braço. Até mesmo a consagrada Beth Carvalho faz isso. Então, a minha expectativa é essa, a de fazer lançamentos em diversos estados. Eu gostaria muito de fazer lançamentos em Uberlândia, Belo Horizonte, Curitiba, Brasília, por exemplo, pois são lugares por onde eu tenho passado com boa aceitação. Vamos tentar outros lugares também.

Como você começou a fazer poesia? Foi mesmo com o samba? Essas coisas acontecem simultaneamente. Normalmente o escritor não vira compositor, mas em geral o compositor pode virar escritor. A não ser o caso do Vinícius de Moraes, que era poeta e se juntou com um músico, o Tom Jobim. Mas, mesmo assim, Vinicius fazia música também. O sambista não deixa de ser um poeta, mas nem sempre é assim considerado por alguns literatos, porque o samba não tem métrica e a poesia tem métrica, quadra, soneto, etc.

E como as artes plásticas surgiram na sua vida? Eu era pintor de parede. Um dia, coloquei um pouco de massa num pedaço de madeira e passei uma tinta. Eu trabalhava perto da casa do jornalista Sérgio Cabral e pensei assim: vou mostrar isso ao Sérgio. E ele, generoso, disse que estava muito bom, e que eu devia fazer mais. Foi aí que eu parti para a pintura primitiva, a Naïf mesmo. Meu primeiro quadro foi comprado pelo Paulinho da Viola. Como você concilia a vida hoje com as artes plásticas? No momento as artes plásticas estão paradas. Eu tenho material REVISTA DA ALERJ

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Tenho um medo tremendo de ser ingrato com as pessoas. Costumo dizer a meus filhos: é preciso muita fé interior para não deixar que o cotidiano nos embruteça

guardado. Ainda dá para levar três ou quatro quadros para cada show que eu faço. Dei uma parada por causa do CD e do livro, mas eu não tenho pressa. Fazendo tantas coisas boas, sem ter uma gravadora, você se sente injustiçado? Não. Depois de um certo tempo a gente começa a analisar tudo profundamente e chega à conclusão que a injustiça, a ingratidão, o desprezo fazem parte do ser humano. É importante que se aprenda a conviver com isso. É preciso que a pessoa não se sinta desprezada. Não adianta guardar esse tipo de mágoa. Mas tenho um medo tremendo de ser ingrato com as pessoas. Costumo dizer a meus filhos: é preciso muita fé interior para não deixar que o cotidiano nos embruteça. Ingratidão à parte, é possível fazer um balanço do samba hoje? Há uma diferença entre o samba amador e aquele que é feito nas escolas de samba, o samba profissional. Da década de 20 até 50, o compositor de escola de samba não pensava em ser profissional, em procurar gravar. Tentaram fazer isso o Geraldo Pereira e o Zé Com Fome, 12

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enquanto o Mano Décio da Viola procurou o rádio. Porém, quando as escolas ascenderam, o compositor amador deixou de existir. Ele começou a querer ganhar dinheiro; saiu do amadorismo para o profissionalismo. Hoje o mercado é totalmente diferente e muito competitivo, as multinacionais não pegam mais artistas para gravar e saímos para o independente, com o CD debaixo do braço, pois é a única maneira de sobreviver. O que acha da rapaziada cantando samba de raiz? É bom para o samba, mas é muito bom para eles, que já estão abrindo caminho para a música. Quanto à qualidade, eu digo assim: vão estudar! Quando alguém começa a ganhar dinheiro com a música, passa a ser profissional. Hoje, um percussionista de um instrumento só não tem emprego e, por melhor que ele seja, tem que tocar no mínimo quatro instrumentos de percussão. Além disso, eu acho que o samba é bom para essa garotada porque na juventude a música faz bem e pode tirar os jovens dos caminhos tortos da vida.

O que você acha da mistura do samba com rock, hip-hop e funk? O samba é uma música tão forte que até deturpada ela tem valor. E, na ânsia de abafar o samba tradicional, criaram até sobrenomes: samba-rock, samba de pagode, de quadra, pop, etc., mas não há como se livrar da palavra samba. Então a coisa chegou num ponto que acabou surgindo a denominação do samba antigo, o samba de raiz, que é o samba de Ismael, Cartola, Carlos Cachaça, Silas de Oliveira, entre outros.


Outra coisa que costumo dizer a meus filhos é o seguinte: se a vaidade soubesse quantos adeptos tem, um dia ela viria a ser vaidosa também

a responsabilidade de colocar o carnaval na rua. Hoje as escolas não conseguem mais viver sem patrocínio, e se têm patrocínio não podem perder. Acho que o décimo lugar dado à Mangueira foi como castigo. Mesmo assim vocês podem crer que no ano que vem a Mangueira terá a mesma quantidade de componentes ou mais. Sou oriundo do Salgueiro, mas respeito muito a Mangueira. Para se ter uma idéia dessa paixão, o resultado do meu exame de sangue é sempre o mesmo: meu sangue é verde e rosa.

O que você achou do tombamento do samba? O samba agora tem Carteira de Identidade e CPF, e o sambista tem liberdade. Segundo a sua célebre frase, “o samba agoniza mas não morre”? No sentido comercial, o samba depende de investimento. Quando um sambista de uma gravadora vende um milhão de cópias, podemos ter a idéia de que o samba está bem, mas não é bem assim. E os outros três ou quatro artistas contratados?

Penso, então, que o samba só vai estar bem se tivermos no mínimo dez sambistas vendendo um milhão de cópias ou 500 mil cópias. Aí vamos ver que está num ponto legal. Como você analisa os problemas recentes da Mangueira com a polícia? São fases de administração. Uma escola de samba não vive sem dinheiro. Tem gente que acha que a escola tem a obrigação de fazer política social, mas isso é uma questão da comunidade. Os dirigentes das escolas têm

Como você se define? Eu recebi umas lições de Alfredo Português, meu pai adotivo. Uma delas dizia assim: "Não faça nada que possa fazer você se arrepender depois". Quando a gente tem 20, 25 anos, não liga muito pra isso e faz uma porção de coisas que podem levar ao arrependimento. Mas uma coisa eu acho: se fez não se arrependa. Outra coisa que costumo dizer a meus filhos é o seguinte: se a vaidade soubesse quantos adeptos tem, um dia ela viria a ser vaidosa também. Planos para o futuro? Tentar aprimorar as coisas que sei fazer. Se eu puder fazer isso, vai ser muito bom. REVISTA DA ALERJ

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cas a abrig o

T exto Celina Côrtes Fotos Daniela Conti

Rompendo o ciclo da violência

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ra setembro de 2007. C.A. chegou do trabalho no início da noite, pôs os quatro filhos para dormir e deu uma corrida no bar para comprar cigarro. Quando voltava para casa, acabou esbarrando com seu ex-companheiro. – Ele quis saber onde eu estava e respondi que não devia satisfações da minha vida – lembra C., balconista carioca de 33 anos, cujas lágrimas secaram “por falta de hidratação”. Foi o suficiente para levar um empurrão do sujeito que, ato contínuo, passou a chutá-la na perna. Sem perceber que sua tíbia acabara de ser fraturada, C. levantou e correu sem olhar para trás. Foi a conta para escapar ilesa dos dois tiros que ele deu em sua direção. Conseguiu chegar ao hospital e, depois de medicada, foi fazer o terceiro boletim de ocorrência (BO) na delegacia mais próxima. Não era a primeira vez que ela sofria violência de seu ex-companheiro. O traficante foi preso por causa das agressões contra a mulher e, pouco depois, solto pelo juiz. – Ele ficou violento depois que virou traficante. Quando foi solto, descobriu meu endereço, entrou lá em casa, rasgou minhas roupas e quebrou tudo. A sorte é que eu não estava, mas fiquei em pânico quando soube — lembra C., que depois do episódio fez o quarto BO e até hoje tem a perna inchada, após dois meses de gesso. 14

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C. é uma das refugiadas na Casa Abrigo Lar da Mulher, num endereço secreto na Baixada Fluminense, que recebe vítimas de violência doméstica encaminhadas pelas delegacias, pelos 12 Centros de Referência (dois do estado e dez de municípios) e pelos seis Núcleos Integrados de Atendimento à Mulher (Niam). Também há mulheres que chegam ao local vindas de outros estados. Muitas vêm com os filhos ou, quando não dá tempo, mandam buscá-los depois, a exemplo do que ocorreu com C., que passou a morar no abrigo em fevereiro com sua escadinha de dez, nove, sete e seis anos, todos filhos do mesmo homem que quase a matou. Ela engrossa a estatística de 39.038 mulheres ameaçadas no Estado do Rio de Janeiro em 2007 (leia quadro na pág. 21) e que têm de recorrer a um esconderijo seguro para não morrer. Com capacidade para receber até 80 pessoas, entre mulheres e seus filhos, a Casa Abrigo acaba de completar um ano de existência, período em que hospedou 246 mulheres e 406 crianças na área de 1.297 metros quadrados, com dois pavimentos, 43 cômodos e nove banheiros. O imóvel, uma construção patrocinada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ficou pronto em 2004 e a inauguração ocorreu dois anos depois pela obra social Rio Solidário, cuja presidente de honra é a primeira dama do estado, Adriana Cabral. A administração envolve ainda a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, além de parcei-


ros privados, como a rede de supermercados Prezunic. O custo mensal é de aproximadamente R$ 60 mil e a metade dos recursos sai da própria obra. – A Casa Abrigo está sendo reavaliada para ser ampliada. É um projeto importante, embora não tenha visibilidade – observa Daniela Pedras, presidente do Rio Solidário, durante uma visita de avaliação ao imóvel. O local lembra uma caixa-forte, cercada de muros altos e instransponíveis, sem nenhuma menção externa ao que ocorre em seu interior. O ambiente, porém, é surpreendentemente leve para um espaço que abriga histórias tão dramáticas, que parecem saídas das crônicas de Nelson Rodrigues. Os quartos, com dois beliches cada, são ocupados por uma mulher e seus respectivos filhos, que dividem o banheiro com a vizinha mais próxima. É justamente essa convivência imposta entre desconhecidos que costuma causar atritos, até hoje sem maior gravidade. O regulamento interno reza que os quartos são arrumados pelas internas e há uma escala de tarefas domésticas onde elas se alternam. Afinal, as mulheres não estão ali como hóspedes de luxo, mas como cidadãs que precisam reconstruir suas vidas. São 16 funcionários, entre assistente social, psicóloga, seguranças e educadores, como a experiente Marta Pereira. Ela reúne as mulheres em dinâmicas de grupo semanais, onde cada uma trabalha metas de planejamento para sua vida. Como a estadia dura quatro meses, período que pode ser prorrogado nos casos mais agudos, é preciso ajudá-las a encontrar um porto seguro. Os grupos funcionam com um viés de auto-ajuda pela troca de experiência, e Marta costuma usar o desenho como forma de expressão do que se passa no interior das mulheres e de suas crianças. – Há 15 dias, uma mulher dizia que não tinha nenhum projeto de vida. Hoje ela desenhou o botão de uma flor, que definiu como seu presente, e uma flor

C. é uma das refugiadas. Escapou dos tiros que o marido, traficante, deu em sua direção

desabrochada, seu futuro. O emocional aflora nesses encontros. Elas choram muito e é comum se apoiarem dando as mãos – descreve. Na Casa Abrigo elas têm liberdade de procurar emprego para recuperar a autonomia e a autoconfiança. Quando saem, as mulheres são encaminhadas à casa de parentes distantes, até que o risco de vida seja superado. Há casos, porém, sem aparente solução. Mas a simples trégua no fogo cruzado a que estavam sujeitas pode representar um fôlego para encarar a dificuldade sob uma nova ótica.

Nos desenhos de uma mulher que dizia não ter projeto de vida, o botão da flor, seu presente, e a flor aberta, o futuro REVISTA DA ALERJ

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“Se sair daqui vai morrer” A doméstica P.R, de 31 anos, com pais falecidos e apenas um irmão de criação, foi apresentada em 2002 a um torneiro mecânico, ex-presidiário homicida que chegou à sua casa e foi ficando, porque não tinha para onde ir. P. já era mãe de um menino que não morava com ela e não demorou a aparecer o primeiro bebê da nova união. Dois anos depois veio uma menina, hoje com quatro anos, que fugiu com ela para o abrigo. – Dividíamos um cômodo mínimo com nove pessoas e um dia disse a ele que não agüentava mais ficar ali. Foi então que me ameaçou: “se sair daqui vai morrer” – conta.

P. denunciou a violência e fugiu com a filha para o abrigo

P. denunciou a ameaça na delegacia de seu bairro e em março foi encaminhada à Casa Abrigo. Talvez ela seja um dos raros casos que encontrou o algoz casualmente após se refugiar no local, quando procurava emprego nos arredores do refúgio. Ao contrário das mulheres que sofrem recaídas e acabam voltando para os homens que as ameaçam – seja por carência emocional e econômica ou pela

falsa convicção de que uma família requer a presença da figura masculina –, ela não sente mais nada por seu ex e teve forças para enfrentar a inesperada circunstância. – Senti muito medo. Fingi que tinha arranjado um trabalho, ele me pediu para voltar e felizmente acabou pegando o ônibus e indo embora para sempre – lembra P., aliviada, ainda sem perspectiva de trabalho ou de ter onde ficar.

“Bateu tão forte que desmaiei” Situação semelhante vive a maranhense M.C., de 24 anos. Ela veio para o Rio com 11 anos, acompanhando a mãe, e aos 18 engravidou do namorado. Um ano antes conheceu seu agressor, um pedreiro 15 anos mais velho. Foram dividir uma casa, como amigos, porque M. brigava muito com a mãe. Dez meses depois ela voltava a engravidar. Logo vieram as primeiras cenas de ciúme, porque o parceiro achava que não era o pai da criança. Com sete meses de gravidez, M. levou o primeiro tapa no rosto, seguido de chutes. 16

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– Ele bateu tão forte com minha cabeça na parede que desmaiei – lembra, entre lágrimas. O que mais impressiona na história de M. é a quantidade de vezes que ela fugiu para a casa da mãe e voltou para o companheiro, em meio aos três filhos que vieram a seguir. A situação se agravou depois da última gravidez daquele que seria seu primeiro menino. Desesperada com as brigas, ela decidiu dar o bebê para adoção, mas não cumpriu os trâmites legais e quase foi presa. As brigas continuaram

até M. ser ameaçada de morte pelo companheiro e fugir para o abrigo com as três filhas, de oito, quatro e três anos. – Vou todo dia à psicóloga e choro muito. Não sinto saudades dele. A menina de quatro anos lembra das agressões e não quer mais vê-lo. Mas a de três anos me enfrenta e diz que quer encontrar o pai – lamenta, conformada. Para ajudar no futuro dessas mulheres, o refúgio oferece um convênio com o Detran, onde elas ganham uma bolsa de nove meses e passam por uma capacitação,


“Fiquei psicologicamente destruída” A relação de 20 anos de R. com o companheiro eletricista, iniciada aos 19, nunca foi um mar de rosas. Seu casal de filhos – a menina hoje com 19 anos e o filho de dez – também fugiu com ela em dezembro, para passar as festas com amigos, depois de uma briga mais radical. Em janeiro os três chegaram ao abrigo. Na semana seguinte, a filha, que também sofreu agressões do pai, foi à casa onde morava a família acompanhada de uma assistente social para buscar os pertences que tinham ficado para trás. O pai reagiu incendiando as roupas e documentos da mãe. Por enquanto, R. se veste com as roupas que recebeu de doações. – Desde o início tinha pequenas

acompanhando os vários setores do estabelecimento estadual para se familiarizarem com uma atividade profissional. A costureira carioca de 39 anos R.L., por exemplo, deu muita sorte ao conseguir uma ocupação remunerada para ela e a filha, duas semanas após chegar no refúgio. Logo no início as duas foram apresentadas aos funcionários, às funções desenvolvidas no Detran e receberam apostilas. Hoje, mãe e filha trabalham no setor de emplacamento e cada uma recebe R$ 450 mensais. O problema é que elas não têm como comprovar a renda, o que dificulta as chances de alugar um imóvel.

rusgas com meu ex-companheiro e a situação só fez piorar. Ele gastava tudo que ganhava com bebida e drogas e não botava comida em casa. Passou a ameaçar meus pais, agrediu minha filha, e eu fui me anulando. Fiquei psicologicamente destruída, até tomar coragem para fugir, depois de uma briga mais grave. Agora eu e meus filhos estamos recomeçando a vida e me sinto bem, com mil planos – comemora. – Às vezes dá um pouco de medo porque não estou sozinha e tenho de alimentar duas bocas – admite. O desfecho do drama de R.– que já conseguiu trabalho e, apesar de tudo que sofreu, tem forças para encarar a vida – lamentavelmente

R. conseguiu trabalho e usa roupas que recebeu de doações ainda é uma agulha no palheiro. Serve como exemplo para que o poder público continue buscando alternativas para as tragédias domésticas que não dão mostras de diminuir.

Como acontece com muitas mulheres, M. fugiu e voltou para o companheiro várias vezes

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Com cabelos e unhas pintados de preto, C.B. se destaca entre as crianças por já ter 15 anos

Vítimas involuntárias Entre uma maioria de crianças pequenas, a paulista C.B. se destaca com seus 15 anos, cabelos e unhas negras. – Sou emo – ela se define, referindo-se à tribo que cultua o rock romântico. C.B. é depressiva, ostenta sempre uma peça preta no vestuário e gosta de tênis All Star. Já viu a mãe, bordadeira, bater no pai comerciante ao descobrir que ele era amante da melhor amiga dela. Não chegou a se surpreender, portanto, quando ambas tiveram de fugir de casa, no interior de São Paulo, por causa do ciúme “doentio” do pai. – Até de mim ele tinha ciúmes, porque pareço com minha mãe – revela. C., que está bem adaptada ao abrigo. O que a incomoda é uma maioria de colegas funkeiros na escola, opostos a tu18

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O bebê P.S., de cinco meses, chegou ao abrigo com desnutrição. Dois meses depois, engordou e já não chora como antes do o que ela acredita. Por essas e outras, não vê a hora de começar os cursos de violão e informática oferecidos pela Casa Abrigo.

A alegria das funcionárias é o bebê P.S., 5 meses, que chegou ao refúgio esquálido, com os ossos aparentes. A mãe, a única hóspede


‘rebelde’ no momento, que reage às normas internas e não tem maturidade para enfrentar a embrulhada em que se meteu, tinha o hábito de manter a filha no colo. Quando ela começou a sair para trabalhar a menina não parava de chorar. “Não tínhamos tempo para passar todo o tempo com o bebê no colo e foi um custo para ela se acostumar com o carrinho”, lembra uma assistente social que prefere não se identificar. Dois meses depois, P. ganhou bochechas rosadas e alguns quilinhos a mais. Já não chora sem parar, mas sua aparência ainda é a de um bebê muito pequeno para sua idade. Muitas vezes as crianças viram involuntários alvos da violência de pais e padrastos, seja por se parecerem com as mães, por não terem sido planejadas, por serem o resultado de traições conjugais ou mesmo da desconfiança da traição. Esse foi um dos problemas de M.D., professora e estudante de Direito de 41 anos. Embora não tenha filhos de sua relação com o agressor, ela começou em 2006 o namoro com o militar seis anos mais novo, reformado após a prisão por desacato — o que já indicava a instabilidade de seu temperamento. A detenção aconteceu depois que eles já estavam juntos. – Ele achava que eu dava bola para todos os homens e quando saiu da prisão passei a viver sob tortura psicológica. Me deixava trancada em casa com meu filho, de nove anos. Um domingo, ele esqueceu a porta aberta e acabei aqui, com meu filho – relata M., que tem casa alugada para quando sair, mas ainda garimpa um trabalho.

Alvos da violência de pais e padrastos, as crianças também recebem assistência médica e psicológica no Lar da Mulher Enquanto estão no abrigo, as crianças menores dispõem de amplo berçário recheado de brinquedos. As maiores são encaminhadas a uma escola próxima, mas há carência de creches para receber os bebês. As mães com baixa escolaridade também vão para o colégio. – Temos muitos gastos com remédios, principalmente com as crianças durante o inverno. Quando chegam, tanto as mulheres quanto as crianças são encaminhadas ao posto de saúde. Há casos de soropositivas, tuberculosas e portadoras de

hanseníase – explica a diretora, a psicóloga Graziele Leão, que se dedica de corpo e alma à Casa Abrigo Lar da Mulher. Os quartos e cômodos – a exemplo do confortável refeitório e cozinha contígua, da lavanderia onde todas lavam sua própria roupa – circundam um pátio interno. É no espaço, ao ar livre, que as crianças se reúnem em torno dos balanços. Os desenhos dos pequenos costumam reproduzir casas, flores e corações, gritos surdos de esperança de que a vida talvez valha a pena ser vivida. REVISTA DA ALERJ

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Delfim Vieira

“Já apanhei de desmaiar” Secretária de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, a exsenadora e ex-deputada federal Benedita da Silva está à frente de dois Centros Integrados de Atendimento à Mulher (Ciam), um deles inaugurado há um mês, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. A nova unidade, que atende uma média de 300 mulheres por mês, tem como diferencial o atendimento também ao agressor. – Fizemos uma parceria com a Prefeitura, que disponibiliza uma equipe de psicólogos e assistentes sociais para atender também aos homens. Ainda não tivemos um retorno dos resultados porque a experiência acaba de começar, mas vemos como fundamental o atendimento ao agressor, para que ele reflita sobre seus atos. A própria Lei Maria da Penha determina que seja prestada essa recuperação. É muito grande o número de mulheres que apanham e são torturadas por seus companheiros. Precisamos criar uma rede de cumplicidade para ajudá-las – argumenta a ex-governadora. 20

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Muito mais do que uma secretária diretamente ligada à violência contra a mulher, entretanto, Benedita sentiu na própria pele o drama que vivem essas mulheres. Aos sete anos, sofreu abuso sexual de um homem que morou na casa de seus pais. A violência continuou: seu primeiro casamento foi com um alcoólatra, aos 16 anos. A relação, uma sucessão de brutalidades, durou mais de dez anos e deu origem a quatro filhos – apenas dois estão vivos. Benedita buscou ajuda espiritual até que ficou viúva. – Aturei muitos anos de violência doméstica. Ele me via como um anteparo, não como mulher. Já tinha militância política e ele não suportava a idéia de que eu botasse um grão de arroz dentro de casa. Quando saía para trabalhar, voltava alcoolizado e agressivo. Já apanhei de desmaiar. Foi muito difícil, mas não posso me calar, para evitar que cenas como essas voltem a ocorrer. Por sua própria experiência, Benedita sabe que a mulher tem muita dificuldade em dar queixa do companheiro e acaba se conformando com a violência que sofre. Os

Ciams – o segundo fica no Centro da cidade – não oferecem refúgio a mulheres em situação de risco, como a Casa Abrigo, mas prestam serviços como a organização de grupos de reflexão e jurídicos. Coordenado por psicólogas e assistentes sociais, o primeiro trabalha questões emocionais, sociais e culturais, que dificultam as mulheres a sair da situação de violência. Nos grupos jurídicos, coordenados por advogadas, elas recebem informações sobre seus direitos nas áreas criminal e do Direito de Família. São preparadas e orientadas para o atendimento na Defensoria Pública e o enfrentamento das etapas processuais nos Juizados Especiais Criminais. Segundo a socióloga Valéria de Mattos, que trabalha nos Ciams, a ocorrência de agressões físicas costuma ser associada à violência de gênero. Esta última envolve diferentes formas de práticas discriminatórias contra as mulheres, desde a educação diferenciada à morte por homicídio. A origem do problema, de acordo com a socióloga, é a realidade estrutural de desigualdade entre mulheres e homens que, em situação limite, significa a sujeição à força masculina na solução de conflitos de relacionamento ou satisfação sexual dos agressores. – A violência contra a mulher ocorre tanto na rua quanto em casa. Vários estudos indicam, porém, que o grau de insegurança doméstica para a população feminina é maior. Ou seja, a porcentagem de mulheres que são atacadas por parentes conhecidos é significativamente maior do que as agredidas por estranhos, tendência que se inverte no caso masculino.


Os números da violência doméstica Em 2007, 39.038 mulheres sofreram ameaças no Estado do Rio de Janeiro, um aumento de 3,1% em relação a 2006. Divulgados em abril pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), os números revelam mais estatísticas dramáticas no universo feminino: houve um aumento de 7,7% nos casos de estupro, em relação a igual período, ou 1.376 episódios, liderados pelos municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Belford Roxo, na Baixada Fluminense. As principais vítimas foram mulheres solteiras (75,8%, entre 12 e 17 anos). Os autores, segundo 17,2% das vítimas, foram seus companheiros e, para 11,8%, os pais ou padrastos. O assassinato de mulheres também cresceu: passou de 409 para 435 em 2007. Foram 45.514 mulheres alvos de lesão corporal dolosa, 6,7% a mais que em 2006. Os registros de violência contra a mulher se aprimoraram com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006). Após um ano em vigor, é contabilizada a média de 177 inquéritos instaurados e 88 solicitações de proteção por cada uma das 386 Delegacias

C omissão

Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams) no Brasil. As demandas nas regiões Centro-Oeste (194) e Nordeste (174) lideram o alto patamar de ocorrências. O Nordeste registrou 28 medidas de proteção e o Sudeste, 66. De outubro de 2006 a maio de 2007 foram efetuadas 846 prisões em flagrante e 77 preventivas. Em 2007, a Central de Atendimento à Mulher registrou 204.978 chamados, 306% a mais que em 2006. Do total, 39% foram de São Paulo. Entre elas, 61% disseram sofrer agressões diariamente, 16% uma vez por semana e 5,3% uma vez por ano. Os companheiros respondem por 69,5% das agressões e, entre eles, 57% são usuários de drogas e álcool. Pesquisa do DataSenado, de 2007, entre 797 mulheres maiores de 16 anos de todas as capitais brasileiras, revelou que só 8% delas se sentem respeitadas, 15% já sofreram algum tipo de violência doméstica e, para 35% delas, a prática começou até os 19 anos. Os maridos e companheiros respondem por 87% das agressões, sendo 45% motivados pelo álcool e 23% por ciúmes. Dados da ONU, de novembro de 2007, informam que a

de

D efesa

dos

Direitos

violência atinge de 30% a 60% das mulheres latino-americanas. Em relatório de 2006, a ONU denunciou o tráfico de mulheres para exploração sexual e a mutilação dos órgãos genitais de 130 milhões de mulheres e meninas, sobretudo na África e no Oriente Médio. Na mesma área de abrangência, é comum o abandono e assassinato de bebês pelo simples fato de serem do sexo feminino. Em pleno século XXI, vídeos exibidos no youtube mostram líderes religiosos de países árabes defendendo as surras nas mulheres infiéis e desobedientes em nome do Corão, a bíblia dos muçulmanos. Advertem apenas que o espancamento não pode deixar marcas, quebrar os ossos ou ser praticado na frente dos filhos. O mundo ocidental também se estarreceu com a história do austríaco Josef Fritzl, de 73 anos, que durante 24 anos abusou sexualmente da filha, Elizabeth, com quem teve sete filhos. Descobriu-se que a vítima foi aprisionada pelo pai aos 18 anos e que a “segunda família” era foi mantida presa em um porão, embaixo da casa da família “oficial”.

da

Mulher

Presidente : I nês Pandeló (PT) | Vice-presidente : Beatriz Santos (PRB) | M embros efetivos : Sheila Gama (PDT), Sula do Carmo (PMDB) e Waldeth Brasiel (PL) | M embros suplentes : A parecida Gama (PMDB), Paulo M elo (PMDB), Paulo R amos (PDT) e Jodenir Soares (PT do B)

Disque SOS Mulher 0800 28 20 119 REVISTA DA ALERJ

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E n sa i o

Fotos R afael Walace T exto Jussara Câmara

O acesso ao Pão de Açúcar, um dos cartões postais mais bonitos e famosos do mundo, está sendo feito por quatro novos bondinhos, em comemoração aos seus 95 anos

Subida deslumbrante 22

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Pendurados por cabos de aço, os bondinhos do Rio estão entre os mais seguros do mundo

A

o participar, em 1908, de uma exposição na Praia Vermelha em comemoração ao centenário de abertura dos portos às nações amigas, o engenheiro Augusto Ferreira Ramos imaginou um caminho aéreo, ligando os morros que formavam uma das paisagens mais lindas do País.

Foi fundada, então, a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar, em 1910, com um capital inicial de 360 contos de réis. O primeiro bondinho começou a circular em 27 de outubro de 1912. Este que foi o primeiro instalado no Brasil e o terceiro no mundo é considerado um dos mais seguros pelas entidades internacionais

Antônio Lourenço trabalha há 47 anos no Pão de Açúcar

de teleféricos de passageiros. Há quase um século ele circula sem ter registrado nenhum acidente com vítimas. Nos primeiros anos de funcionamento, os bondinhos tinham dois cabos de tração na parte de cima. O capixaba Antônio Lourenço Rodrigues, 67 anos, que trabalha desde os 20 na área de manutenção do bondinho, conta que ele e mais um funcionário chegaram a viajar na parte externa, sem estarem presos a nada, a fim de apertar peças de lubrificação lá existentes. “Hoje tudo é automático”, complementa. Brasileiros e portugueses trabalharam juntos utilizando equipamentos e materiais alemães para fazer o primeiro bondinho de madeira, com capacidade para 24 passageiros. Inicialmente eles tinham bancos, mas a viagem era rápida e as pessoas ficavam de joelhos para ver a vista, então, tiraram os bancos. Hoje cada bondinho tem capacidade para 75 passageiros. Funcionário mais antigo do bondinho, Antônio teve a oportunidade de acompanhar, lá de REVISTA DA ALERJ

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Indescritível e emocionante são alguns dos adjetivos usados pelos turistas para definir o passeio cima, a construção do Aterro do Flamengo, no início da década de 60, que deixou o Rio de Janeiro ainda mais bonito. “Indescritível”, “maravilhoso” e “emocionante” são alguns dos adjetivos ditos pelos turistas para definir suas emoções com o passeio. “Eles ficam tão encantados com tudo que não reclamam de nada, pelo contrário, fazem questão de cumprimentar os funcionários”, explica Antônio, que conheceu as atrizes Gina Lollobrigida e Sarita Montiel, em visitas ao Pão de Açúcar. A subida dos 575 metros iniciais até o Morro da Urca foi feita em 1912. Já o segundo trecho do teleférico, até o Pão de Açúcar, com extensão de 750 metros, começou a funcionar em 18 de janeiro de 1913. No dia da inauguração, 577 convidados – mulheres de vestidos compridos e chapéus e homens de 24

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terno e colete – tiveram o privilégio de embarcar nos dois únicos bondinhos, conduzidos por cabineiros em sofisticados uniformes. No início da década de 70, a linha aérea foi duplicada, passando a ser servida em cada trecho por dois bondinhos mais modernos, feitos com equipamentos italianos, que aumentaram em dez vezes a capacidade de acesso do público. Para instalar a nova linha, foi preciso o desmonte de três grandes blocos de pedra do alto do Pão de Açúcar. A obra durou dois anos para ser concluída e foi inaugurada em 29 de outubro de 1972. Desde então, até 2007, os atuais bondinhos transportaram cerca de 24 milhões de turistas. Hoje eles conduzem 1.360 pessoas por hora, e em dias calmos são feitas mais de 50 viagens. Em feriados e dias bonitos o movimento do-

bra. Nesse mesmo período, cerca de 1,23 milhão de viagens foram realizadas por um dos bondinhos, o que equivale a quase 1,6 bilhão de metros percorridos, o que dá aproximadamente 37 voltas ao redor da Terra. Entre as personalidades que já visitaram o Pão de Açúcar estão Einstein, em 1925; os presidentes dos Estados Unidos, John Kennedy, e da Polônia, Lech Walesa; o cantor Sting e o ator Robert de Niro. Uma homenagem especial foi feita a Ayrton Senna: seu carro da Fórmula 1 foi pendurado nos cabos do bondinho. A filmagem de 007 contra o Foguete da Morte, mais uma das aventuras de James Bond, serviu para projetar o nome do Brasil no exterior. Roger Moore, no papel principal, passou por apuros no Pão de Açúcar, ao enfrentar seu arquiinimigo Dentes


de Aço sobre um dos cabos. Porém, uma das cenas mais eletrizantes da história do bondinho do Pão de Açúcar não está nos filmes de ficção: foi a caminhada do alemão Steven Mc Peak sobre os cabos, do Morro da Urca ao Pão de Açúcar, em 1977, se equilibrando apenas com uma vara, que Antônio ajudou a emendar e que está exposta até hoje no local. O bondinho também foi palco de períodos de revitalização cultural nas décadas de 70 e 80, quando milhares de pessoas passaram a freqüentar shows e festas na chamada Concha Verde, o anfiteatro do Morro da Urca. Lá foram realizados shows musicais que lançaram grandes talentos da música brasileira, além de badalados bailes carnavalescos, como o famoso Sugar Loaf Carnival Ball. Atualmente, no Morro da Urca existe o Espaço Baía de Guanabara, composto de três restaurantes climatizados, bar tropical, palco para shows e uma área para eventos de pequeno e médio portes. Os novos bondinhos foram construídos por suíços e têm o mesmo formato dos antigos, mas com traços mais modernos, e possuem vidro fumê anti-reflexo, que possibilita uma visualização mais nítida da paisagem. Para apreciar de cima a beleza da cidade é preciso apenas pegar o teleférico. Muito diferente de 1890, quando o fotógrafo Marc Ferrez, o primeiro a retratar a paisagem vista do Pão de Açúcar, teve que escalar o morro com mais de cem quilos de equipamento. Em três minutos, numa velocidade de 31 km/h chega-se perto do céu.

A subida de 575 metros até o Morro da Urca foi feita em 1912 e o trecho até o Pão de Açúcar, com 750 metros, em 1913

Os bondinhos conduzem 1.360 pessoas por hora e fazem 50 viagens diárias. Em feriados e dias bonitos o movimento dobra REVISTA DA ALERJ

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mídia

L eo Pinheiro

TV digital, realidade ou sonho?

Emissoras do Rio recebem canais para transmitir no sistema digital, mas os telespectadores ainda não sabem o que esperar da nova tecnologia

Q

ue o Rio de Janeiro é a capital da cultura e da comunicação do Brasil todo mundo sabe. Com a chegada da tevê digital aos lares brasileiros no final de 2007, o estado não poderia esperar muito tempo para testar a nova tecnologia. Então, depois de começar a ser transmitida em caráter experimental desde abril, pela Rede Globo, a tevê digital está sendo lançada oficialmente este mês por sete emissoras – Globo, SBT, Record, TV Bandeirantes, CNT, Rede TV e TV Brasil – em caráter "definitivo". Inicialmente foram agraciados com a nova tecnologia 17 municípios fluminenses: Rio, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica e Tanguá. Nada mais justo estas cidades receberem as transmissões no novo padrão antes de outras importantes capitais – como Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza e Salvador, as próximas a aderir à nova tecnologia –, uma vez que o sistema de interatividade nacional foi desenvolvido no estado em parceria entre a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e convidados da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). 26

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O sistema será responsável por diversas qualidades associadas à tevê digital, como a interação em tempo real com os programas de televisão, gravação dos mesmos e possibilidade de compras on-line de produtos anunciados na telinha. No entanto, as transmissões digitais foram inauguradas no estado ainda sem oferta da multiprogramação e tampouco do seu maior diferencial em relação às transmissões analógicas atuais: a interatividade. Se a qualidade de imagem e som consideravelmente superiores arrebata o espectador, os consumidores já se ressentem das promessas não cumpridas pelo Governo federal, emissoras e fabricantes de televisores.


Erro histórico A questão da televisão digital começou a ser debatida publicamente pelo então ministro das Comunicações, Miro Teixeira, em 2002. Na época especulava-se sobre qual o melhor padrão de difusão a ser adotado no Brasil: o norte-americano, o europeu ou o japonês. Este último acabou sendo o escolhido, mas somente em parte. A tecnologia indicada como definitiva pode ser chamada de nipobrasileira, ou seja, o Sistema Brasileiro de Tevê Digital Terrestre (SBTVD-T) é baseado no modelo asiático, porém com adaptações feitas por especialistas das universidades brasileiras. “A demora na escolha do padrão de transmissão digital fez com que o Brasil perdesse o bonde da tecnologia e agora tenha que correr atrás do prejuízo”, afirma Felipe Gitirana, perito técnico em telecomunicações, com especialização em tele-transmissão digital pela UFRJ. Ele antecipa que os primeiros conversores e televisores digitais que chegaram ao mercado não possuem o SBTVD-T, resumindo a prometida revolução digital somente à qualidade de som e imagem. É bem verdade que este benefício, aguardado ansiosamente pelo público, já é um diferencial e tanto para os usuários da tevê aberta, que poderão ver e ouvir as novas transmissões em som estéreo 5.1, como nos DVDs assistidos em home theaters e com uma imagem até 33 vezes mais nítida do que a atual. “Dará para ver, por exemplo, uma espinha no rosto de um ator de novela ou apresentador de telejornal”, assegura Gitirana. Representantes do Ministério das Comunicações, contudo, prevêem que as novas propriedades, como o uso do controle remoto para escolher os ângulos de um lance de uma partida de futebol ou para obter mais informações relativas ao local de compra, preço e especificações técnicas de um produto exibido numa telenovela, por exemplo, estejam no ar já em 2009. Outra hipótese é a de o telespectador responder a testes oferecidos na tevê. Se ele estiver assistindo a um programa sobre saúde, por exemplo, poderá responder às perguntas que mostrarão se ele está tendo os devidos cuidados e onde pode melhorar.

Nesse cenário, a tevê digital cumprirá mais uma função, contribuindo para a educação dos espectadores. Porém, por se tratar de algo completamente novo, até mesmo os especialistas não sabem ainda até onde chegarão as novas prerrogativas da tevê digital brasileira em curto prazo. Antes mesmo de a verdadeira revolução da interatividade na tevê acontecer, já se estabeleceu um consenso: a grande ferramenta da nova era da televisão brasileira será mesmo o controle remoto. “Ele funcionará como um mouse, que há anos colocou todas as informações do mundo a um clique dos usuários”, profetiza Gitirana. O ministro das Comunicações, Hélio Costa, anunciou que, para estender os benefícios a uma parcela significativa da população, o Governo federal pretende oferecer linhas de financiamento mais vantajosas que a do comércio. O ministro também garantiu que os conversores já estariam sendo comercializados abaixo de R$ 180, o que igualmente está longe de acontecer. Os modelos mais básicos são vendidos atualmente por cerca de R$ 500, podendo chegar a R$ 2 mil. Para aplacar os questionamentos da mídia e dos consumidores, Costa ratifica que as pendências serão resolvidas entre o final deste ano e o primeiro semestre de 2009, quando a televisão digital chegará às demais capitais do País. Até junho de 2016, o sistema analógico será desativado. REVISTA DA ALERJ

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Entenda a tevê digital

O que é tevê digital? É a difusão da programação de tevê com som e imagem de alta definição, o que elimina sombras e interferências metereológicas que ocorrem nas transmissões de sistema analógico das tevês abertas atuais.

Quais as outras vantagens da tevê digital? Além da imagem e som de maior qualidade, as principais novidades são a mobilidade (possibilidade de assistir televisão em aparelhos móveis e notebooks em qualquer lugar, como estradas, túneis ou metrô); portabilidade (recepção nítida através de aparelhos portáteis, como celulares, por exemplo); multiprogramação (transmissão de mais de uma atração simultaneamente ou mesmo ângulos de câmeras diferentes de um mesmo programa por parte das emissoras), e a interatividade dos telespectadores com a programação (possibilidade que o público terá, através do controle remoto, de gravar ou escolher a programação dentro de uma mesma emissora; acessar mais informações sobre o conteúdo dos programas e produtos anunciados; efetuar compras em tempo real e responder a enquetes sem ter que usar outro suporte, como internet ou telefone). Inicialmente a transmissão digital em todo o Brasil oferecerá apenas a transmissão em alta definição, mobilidade, portabilidade e possibilidade de gravação dos programas. A multiprogramação e a interatividade chegarão aos telespectadores gradativamente.

Quanto vai custar a TV digital? Nada. A recepção é gratuita. Porém, para assistir as imagens em alta definição é necessário ter um conversor digital ou um televisor com essa tecnologia. O preço do conversor varia entre R$ 500 e R$ 2 mil. A partir deste valor já podem ser encontrados televisores Full HD (Alta Definição Total).

É necessário comprar imediatamente um aparelho novo para acessar a tevê digital? Não. Basta que o televisor tenha entradas de áudio e vídeo, para que se possa instalar o conversor. Porém, o máximo de resolução que se poderá atingir será de 1.280 x 720, dependendo da qualidade e da idade do aparelho. Para se tirar o melhor proveito da alta definição oferecida pela TV digital, é necessário ter uma televisão com tecnologia Full HD. Especialistas acreditam que os novos aparelhos cairão de preço até 50% já no primeiro ano de funcionamento da tevê digital no Brasil.

O que é Full HD? A tecnologia Full HD ou Alta Definição Total, em nosso idioma, é o máximo em linhas de resolução que se pode encontrar no mercado – 1.920 x 1.080 –, tornando a visualização das imagens muito mais nítida que nos atuais 640 x 480. Equipamentos digitais importados funcionarão no Brasil? Não. Como o padrão de tevê digital adotado será exclusivo do Brasil, os televisores conversores e celulares comprados no exterior não funcionarão por aqui, a não ser que sejam fabricados de acordo com as especificações brasileiras.

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Usuários de tevê por assinatura e antenas parabólicas receberão o sinal digital? Não. Porque são transmitidos por meios diferentes: este novo padrão é transmitido por radiofreqüência, enquanto os outros trafegam por cabos ou satélites. Todavia, as empresas de tevê por assinatura já anunciaram que levarão aos seus assinantes as transmissões em alta definição dos canais abertos, através de decodificadores.

Posso optar por continuar a usar televisores analógicos? Sim. De acordo com o Decreto 5.280 de 29 de junho de 2006, a transmissão analógica só deve deixar de existir em 29 de junho de 2016. Até lá, os telespectadores poderão continuar assistindo à tevê analógica e migrarem gradativamente para o novo sistema.


op iniã o

M arcelo Paixão

A cor dos deputados

L

evantamento recente sobre o perfil dos deputados federais brasileiros, feito pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, constatou que, dos 513 parlamentares eleitos em 2006, apenas 46 foram identificados como pretos e pardos. Em termos relativos, o peso dos dois contingentes correspondia a 8,9% do total de deputados federais eleitos em 2006. No mesmo ano, o total de pretos e pardos era de 49,5% da população brasileira. Já os deputados federais identificados como brancos no levantamento corresponderam a 86,9%, os amarelos a 0,8% e os não classificados a 3,3%. Nenhum deputado federal foi identificado como indígena. Comparando-se a proporção relativa entre eleitos nas cinco grandes regiões geográficas do Brasil com o peso relativo na população em 2006, a pesquisa encontrou o seguinte cenário: na região Norte, pretos e pardos formavam 75,4% da população e 7,7% do total de deputados federais eleitos; no Nordeste, formavam 70,4% da população e apenas 5,3% dos deputados; no Sudeste, 40,2% da população e 12,8% dos parlamentares eleitos; na região Sul, pretos e pardos correspondiam a 19,7% da população e 5,2% dos deputados; e no Centro-Oeste, eram 56,2% da população e 14,6% dos deputados federais eleitos. Chama atenção a evidente desproporção existente entre o peso de pretos e pardos na população total e sua correspondente em termos dos deputados

federais eleitos em 2006. No caso das regiões Norte e Nordeste tal discrepância destaca-se ainda mais, não deixando de ser curioso que o peso relativo de pretos e pardos que foram eleitos deputados federais nestas áreas seja pouco superior ao mesmo peso verificado na região Sul e razoavelmente inferior ao observado na região Sudeste. Outro grupo que está nitidamente sub-representado na Câmara dos Deputados é o de mulheres. No somatório, as mulheres corresponderam a 8,8% do total de deputados federais eleitos em 2006 – curiosamente, quase a mesma proporção encontrada para os pretos e pardos que também eram parlamentares naquela Casa. Quanto ao perfil instrucional dos deputados federais, o maior percentual de deputados federais com nível superior era o dos identificados como brancos: 83,6%. O número de parlamentares com nível superior correspondia, ainda, a 54,5% entre os identificados como pretos; a 71,4% entre os identificados como pardos; e 75% entre os identificados como amarelos. No cômputo geral, oito em cada dez parlamentares brasileiros possuem o ensino superior completo e 7,4% possuem ao menos o ensino superior incompleto. Assim, comparando-se esses dados com o percentual de deputados federais brancos –86,9% – e do sexo masculino – 91,2% – parece que se chega, enfim, ao perfil padrão de um parlamentar brasileiro no período contemporâneo. Professor do Instituto de Economia da UFRJ, coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais.

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Tr a d ição T exto F ernanda Porto Fotos Zô G uimarães

Cultura e resistência Comunidade quilombola em Valença, no Sul do estado, conserva há mais de 150 anos os hábitos de seus antepassados

C

ercada por imagens de Santa Luzia, Santo Expedito, Santa Bárbara, São Gonçalo, Santa Edwiges e de Nossa Senhora Aparecida, numa sala simples em que os santos se misturam a duendes e a uma espécie de quadro-espelho da bebida Martini, sob o teto de sapê, aguardo constrangida a vinda de Terezinha Fernandes Azedias. Um mal-entendido fez com que nossa presença no Quilombo São José não estivesse sendo esperada, o que pareceu não fazer a menor diferença quando mãe Tetê, como é conhecida, se sentou à minha frente. – Moro aqui com dez pessoas, mas sempre há espaço pra mais. Agora, por exemplo, estou com nove netos, quatro de passagem. Aqui tem sempre alguém de passagem – diz ela, enquanto enxota de forma bem-humorada os netos e sobrinhos que ocupam o sofá, assistindo hipnotizados o desenho animado “Três espiãs demais”. – 30

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Acho que este é o preferido deles – ri, enquanto nos oferece doce de mamão com paçoca. Mãe, ou tia, Tetê, de 63 anos, é a líder religiosa da comunidade de 20 casas localizada a 12 quilômetros do distrito de Santa Isabel, em Valença, na região Sul do estado do Rio. Sua influência sobre as mais de 150 pessoas que lá vivem sugere um modelo de comunidade matriarcal, reproduzido há décadas, como muitos dos hábitos locais. Cozinha-se no fogão a lenha e, embora a eletricidade tenha chegado por lá há quatro anos, hábitos que remontam à época da escravidão, como o ferro a brasa e os candeeiros, não foram abandonados. As casas são de adobe (tijolo de barro) ou pau-a-pique, com cobertura de sapê. – No inverno esquenta e no verão refresca, parece coisa feita pra pobre mesmo – diz Tetê. Com hábitos praticamente intocados há mais de 150 anos, quando seus antepassados foram levados

para trabalhar na fazenda cafeeira São José, logo após desembarcarem no Brasil, o grupo é composto, sete gerações depois, por membros da mesma família, que mantém a agricultura de subsistência como principal fonte alimentar e a sabedoria das ervas medicinais, o artesanato, o calango, o jongo, o terço de São Gonçalo, a ciência das benzeduras e a Umbanda como meios de perpetuação de sua identidade. – As coisas foram criadas e aprendidas aqui. Nunca tivemos orientação de ninguém de fora – explica Tetê, que herdou o posto de mãe-de-santo de sua mãe, Zeferina, fundadora do centro da comunidade, que tem como guias São Jorge Guerreiro (Oxum) e o Caboclo Rompe Mato. A descoberta do direito à terra Agricultores desde os tempos do regime escravocrata, que em 2008 completa 120 anos de extinção no País, os moradores


As coisas foram criadas e aprendidas aqui. Nunca tivemos orientação de ninguém de fora Dona Tetê

da comunidade permaneceram, mesmo após a abolição da escravatura, trabalhando com os fazendeiros, dividindo as plantações ou criações de gado e fazendo empreitada para o rocio dos campos, muitas vezes em condições ingratas. O conceito de reivindicação trabalhista viria apenas nos anos 50, pelas mãos de um jovem de 14 anos. – Nós fazíamos empreitada, fechando um preço que nunca era o bastante, sempre acabava antes do final do trabalho. Um dia eu fui até o fazendeiro que tinha nos contratado e falei que não íamos continuar. Ele ficou surpreso, mas aceitou aumentar o valor. Meu pai ficou muito zangado comigo, porque ele sempre criticou minha inquietação, mas depois desse dia eu conquiste algum respeito – lembra Antônio do Nascimento Fernandes, 62 anos, irmão de Tetê.

A primeira imposição do grupo, tida como marco, acabou forjando no menino Antônio um contestador da situação em que viviam seus parentes e amigos. Após o episódio, Antônio – mais conhecido por Toninho – comunicou ao pai que iria tentar uma vida melhor fora dali. Recebeu, em resposta, uma mala vermelha de presente, comprada com o dinheiro que finalmente sobrara depois do fim de uma empreitada. – Eu fui criado junto ao meu avô, a pedido dele. E, dele, ouvi muitas histórias e lembranças sobre o nosso passado, o que criou uma revolta em mim. E ele me dizia que eu devia sair daqui, que bicho da goiaba vira goiaba também – lembra Toninho, que só após alguns anos trabalhando em um barracão em Realengo entendeu o que o avô queria dizer. – Percebi que ele estava me dizendo que teria mais chances de ajudar minha família de fora do quilombo, onde teria mais resistência para lutar por nós – explica. Em 1994 , após a venda da fazenda, a situação começou a piorar para a comunidade. As promessas de doação das terras, feitas pelos antigos herdeiros, foram desconsideradas, e parcerias no plantio foram interrompidas. Em 1998, Toninho tomou conhecimento, através de um especialista do Iperj, do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, que reconheceu o direito à propriedade definitiva das terras aos povos

remanescentes do regime escravocrata. Seguindo o conselho do avô, Toninho batalhou pelo reconhecimento da comunidade, o que aconteceu em 5 de abril de 1999, abrindo espaço para a titulação de suas terras, cujo desfecho ainda é aguardado com ansiedade. Quando tomou conhecimento de que havia respaldo legal para a posse das terras, Toninho já estava envolvido na luta pelos direitos dos negros da região. A convite do então prefeito de Valença, ele havia desempenhado, entre 1994 e 1996, o cargo de subprefeito de Santa Isabel, depois do que se elegeu vereador. – O primeiro vereador negro da história de um município de maioria negra – ressalta ele. Foi na política que Toninho teve a chance de trazer as primeiras melhorias para a colônia, como um veículo para o transporte da professora que dá aula na escola municipal localizada dentro do quilombo e das crianças que, tendo concluído a quinta série do ensino fundamental, precisam ir a Valença para continuar os estudos. – Sentimos um enorme orgulho de ter um número altíssimo de jovens que concluíram o segundo grau, o que era impossível na minha geração. Só lamento que eles não possam usar este conhecimento aqui – comenta, referindo-se ao grande número de jovens que não conseguem voltar das cidades, onde trabalham em fábricas, casas de família ou construções. REVISTA DA ALERJ

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O Quilombo São José é uma referência no jongo, dança de roda da qual participam homens e mulheres, que era dançada pelos escravos e foi transmitida a seus descendentes Orgulho e reverência No quilombo São José, o orgulho que os adultos têm dos jovens só rivaliza com o respeito e a reverência destes em relação aos mais velhos, o que fica claro na natural perpetuação de velhos hábitos e costumes que hoje dividem espaço com a televisão e o rádio, sem nunca serem ameaçados por estes. E foi ao perceber isso que Toninho viu a saída para o preconceito e para a vergonha aos quais seus parentes eram submetidos. – Teve uma hora em que percebi que, além do preconceito dos outros, tínhamos que enfrentar nossa vergonha por sermos negros, que já fez com que nós nem saíssemos em grupo para fazer compras na cidade – lembra Toninho. Em 1997, Toninho decidiu que a reconstrução da igreja da comunidade, que havia caído, seria o ponto de partida para uma mudança na postura passiva do grupo. E, no ano seguinte, junto à inauguração da igreja de São José Operário – que traz as figuras de São José e de Jesus Cristo negros pintadas 32

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no altar – foi realizada a primeira grande comemoração do 13 de maio no quilombo, em que pessoas de fora participaram pela primeira vez daquela que era uma das maiores celebrações da comunidade. – Sempre fizemos a festa. Era, para nós, há décadas, a celebração de um dos nossos maiores dias santos, o dia de São Benedito, ou pai Benedito, na Umbanda – informa, didaticamente. Já na primeira festa, a presença de turistas causou mudanças na vida dos moradores do Quilombo. “Além de termos percebido que a festa poderia ser uma fonte de renda para a comunidade, vimos pessoas de fora nos dizendo que éramos importantes, que não tínhamos do que nos envergonhar, porque nossa história tinha valor. Isso foi o mais bonito – conta Toninho, emocionado. A festa chamou a atenção de entusiastas do tema, como o músico e produtor cultural Marcos André, que, de tão encantado pela comunidade e por sua causa, escreveu e organizou o livro-CD Jongo do Quilombo São

Cozinha-se em fogão a lenha e usa-se ferro a brasa José, lançado em 2004 pela ONG Associação Brasil Mestiço, em parceria com o Sesc-Rio. Salvos pelo jongo Descobertos histórica e politicamente, restava aos agora qui-


O jongo é a forma que encontramos de manter viva a memória de um povo sofrido, mas forte Toninho

lombolas capitalizar sua riqueza cultural para conquistar, enfim, a independência. – Trabalho com comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas há 15 anos. O Quilombo São José é algo único no Brasil – garante Marcos André. – Esta é a comunidade que, por nunca ter deixado seu local de origem, que é isolado, manteve mais intacta a cultura dos povos banto, originários da região do Congo e Angola. O Quilombo São José é um fenômeno – exalta o músico, que há sete anos é parceiro da comunidade na realização das festas e na luta pela aquisição dos 285 hectares reivindicados pelos moradores junto ao Incra. Com o tempo, o quilombo tornou-se uma referência no jongo. Através da dança, o grupo participou de encontros de jongueiros por todo o estado e o País. – O jongo esteve no Theatro Municipal do Rio antes do samba! – vibra Toninho, orgulhoso do espaço alcançado pela dança ensinada de pai para filho como um ritual de perpetuação de sua história. – O jongo já foi a forma encontrada pelos escravos de avisar sobre um plano de fuga ou simplesmente para esquecer a tristeza da vida sofrida. Hoje é a forma que encontramos de manter viva a memória de um povo sofrido, mas forte – diz Toninho. Para enquadrar o grupo de dan-

ça nas manifestações de outros lugares Toninho passou a denominar jongo o ritual anteriormente chamado de dança do tambu, em referência ao nome do maior dos dois tambores que, junto ao candongueiro, ditam o ritmo da dança de umbigada. Através da festa do 13 de maio, que, com sua missa ecumênica, a dança do calango, a feijoada e o jongo já atraiu três mil pessoas ao quilombo, os remanescentes dos tempos de exploração pretendem ver, enfim, o sonho de seus ancestrais realizado. – A festa está fazendo com que os donos da fazenda percebam a

importância da comunidade e já cogitem conversar com o Incra sobre a venda das terras, o que faria do nosso quilombo o primeiro do País a receber o direito a terras particulares – frisa Marcos André. – Trabalhamos por muitos anos para enriquecer os fazendeiros, não quero morrer sem antes saber que minha família terá a dignidade que não tivemos – resigna-se o emblemático benzedeiro tio Mané, 88 anos, um pouco antes de se juntar às crianças na roda de jongo. Mané é tio de Tetê e Toninho e neto temporão do primeiro membro da família a chegar na fazenda, há 150 anos.

Nas casas de pau-a-pique com cobertura de sapê, sempre cheias de crianças, a eletricidade chegou há apenas quatro anos REVISTA DA ALERJ

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Reprodução

pa n or ama Brizola nas entrelinhas

Reprodução

Um dos mais importantes líderes nacionalistas do País, o gaúcho Leonel de Moura Brizola, ex-governador dos estados do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, ganhou uma biografia para marcar a passagem dos quatro anos de sua morte. Foi lançado na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, no último dia 26 de maio, o livro A força do povo: Brizola e o Rio de Janeiro, organizado pela historiadora Marieta de Moraes Ferreira. A publicação deve-se a uma parceria feita pelo Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense, da Alerj, e o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDoc), da Fundação Getúlio Vargas. “Tivemos o intuito de retratar Brizola a partir de sua trajetória no Rio, desde as eleições para deputado federal até o seu retorno com a anistia e a candidatura a governador fluminense em 82”, explica Marieta. Para o presidente da Casa, deputado Jorge Picciani (PMDB), faltava uma publicação significativa que fizesse jus à importância do ex-governador para a política brasileira. “Ele foi o político com a maior carga popular do País e, por isso, tem sido tão homenageado por este Parlamento, que já lhe dedicou uma exposição e várias homenagens”, frisou. Quem quiser receber o livro gratuitamente basta solicitar pelos telefones (21) 2588-1480 e 2588-1536.

Novas imagens O acervo histórico sobre o Palácio Tiradentes ficará ainda mais rico em breve. A Assembléia Legislativa do Rio vai receber, do Centro de Documentação e Informação do Arquivo da Câmara Federal, a reprodução de um filme que mostra a inauguração do Palácio, em 1926. Construído para ser sede do Congresso Nacional, o Palácio refletia o novo padrão urbano que o Rio de Janeiro pretendia adotar na época – capital de uma nação civilizada, moderna e cosmopolita, distante das antigas vilas coloniais. Entre as curiosidades reveladas pelo filme, a Chapelaria na entrada do Palácio e a Sala do Café, atual sala da Secretaria da Mesa Diretora, onde os deputados se reuniam informalmente para discutir proposições e debater temas políticos. A restauração e divulgação do documentário fazem parte de um projeto da Câmara Federal de preservação e valorização da memória nacional. Outros 500 filmes do acervo devem passar pelo mesmo processo e poderão servir como fontes de informação para escolas, cineastas e pesquisadores.

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