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ANO 20 - EDIÇÃO 171 - R$ 9,90

Fernando di Primio, um empreendedor amante de revistas

Carl Bernstein, ícone do jornalismo investigativo

José Luiz Prévidi e a profissão que não existe mais

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ALMANAQUE DITO POR AÍ

As gafes da Folha de S. Paulo costumam ser muito criticadas, primeiro, porque algumas são mesmo estrondosas e, segundo, pelo rigor na apuração e na checagem que a Folha costuma ostentar. Mas seu concorrente, O Estado de S. Paulo, também comete suas barbaridades. Em janeiro deste ano, o site do Estadão ilustrou texto sobre os três anos da tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, com uma foto da banda Kiss. Depois a foto foi retirada, mas o estrago estava feito, com muitas críticas e compartilhamentos. Questionado pelo Portal Imprensa, o jornal afirmou que a gafe ocorrera em razão de “um problema técnico com relação ao cache”. Arrã. E emendou de maneira ainda mais desastrada: “Estamos cuidando para que esse tipo de problema não aconteça novamente.” Alguns comentários também

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Problema no cachê

foram muito, digamos, tolinhos, sem falar nos tradicionais erros de português: “Que coisa horrenda hein. Muito nada haver a imagem, o que a banda Kiss teve com o acidente ocorrido?”

“Imprensa não é propaganda. Se um jornalista faz propaganda do governo, não tenho o menor pudor corporativo: debocho dele.” Diogo Mainardi

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PETER PARKER Enquanto não está se balançando entre arranha-céus pendurado em uma teia como Homem-Aranha, ou às voltas com problemas existenciais, Peter Parker (na foto, Tobey Maguire) ganha a vida como fotógrafo free-lancer do Clarim Diário, jornal do irascível J. Jonah Jameson, que, por sinal, odeia o aracnídeo. Antes de salvar a cidade de um poderoso vilão, Parker encontra tempo para escolher um ângulo estratégico, afixar a câmera com uma teia e programá-la no automático. Depois, ainda tem de enfrentar o mau humor e a sovinice de Jameson.

“Se o jornalismo é bom, é controverso por natureza.” Julian Assange

“Sem publicidade não há espírito público, e sem espírito público não há nação que não decaia.” Benjamin Disraeli (1804-1881)

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MIX A Netflix anunciou a produção de seu primeiro longa-metragem brasileiro, O Matador, que terá como tema central as desventuras de um cangaceiro do sertão pernambucano na cidade grande. As filmagens começam ainda no mês de agosto e não tem previsão de lançamento. Marcelo Galvão, produtor de Colegas (2012), assinará a criação e a produção do filme, cujo elenco inclui nomes como Diogo Morgado, Marat Descartes, Nill Marcondes, Deto Montenegro, Maria de Medeiros e Etienne Chicot.

Série brasileira

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Já a primeira série brasileira da Netflix, 3% – thriller ambientado o Brasil em futuro pré-apocalíptico em que para ser aceito na sociedade há um processo seletivo muito competitivo. A série começou a ser gravada em março. A primeira temporada terá sete episódios e deverá estrear em âmbito mundial no final deste ano. No elenco, João Miguel, Bianca Comparato, Zezé Motta, Nicolau Breyner, Mel Fronckowiak, entre outros. O roteiro é de Pedro Aguilera e, a direção, de Cesar Charlone.

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Roberto Castro/Rio 16

Longa brasileiro

Recorde olímpico . A festa de abertura do evento deu à Globo a média de 30 pontos percentuais na apuração feita pelo Kantar Ibope em São Paulo, maior mercado do País e termômetro da preferência nacional devido à diversidade da população. Tal índice não era atingido havia duas décadas, desde a Olimpíada de Atlanta. Essa pontuação corresponde a 8,7 milhões de telespectadores somente naquele Estado. A audiência estimada pelo Comitê

Olímpico Internacional era de três bilhões de pessoas ao redor do planeta. Outras três emissoras abertas transmitiram o evento: o SBT obteve 9 pontos em São Paulo, a Record conseguiu 7 e, a Band, 3. Na Olimpíada anterior, Londres 2012, a Record teve exclusividade e chegou até a bater a Globo em vários momentos. Desta vez, quem não gosta de esportes tem preferido o SBT, em horários de programação normal.

Robôs no Post

Antiblock

A cobertura da Olimpíada do Rio pelo americano The Washington Post inclui uma novidade tecnológica. Um software desenvolvido pelo próprio jornal é capaz de produzir, de forma automática e autônoma, diversos tipos de notícias. O “Heliograf ” consegue redigir frases de alguma complexidade, observando as regras gramaticais e de construção de um texto jornalístico. Com isso, os profissionais ficam liberados para escrever matérias mais profundas e interessantes, em vez de textos repetitivos sobre resultados de provas, por exemplo.

Alguns veículos fecham o acesso de quem usa bloqueador de propagandas. O Time. com preferiu o bom humor. Ao se deparar com um bloqueador, o site exibe, em lugar dos banners, um aviso: “Sem anúncios? Entendemos. Saiba como a Time poderia ficar sem eles…” e convida o leitor a “quebrar” o site, Quem segue em frente vê uma página toda “desmontada” e a mensagem: “O bom jornalismo tem um grande valor e isso custa dinheiro. Uma das principais maneiras de cobrir nossos custos é através de publicidade.” Depois, o site volta ao normal e permite o acesso.


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A chegada do Intercept

Jornalista Go São muitos os acidentes atribuídos à desatenção de pessoas concentradas em jogar Pokémon Go. Os repórteres nem sempre se limitam a retratar a febre global de caça aos monstrinhos virtuais (a palavra Pokémon vem de Pocket Monsters, “monstros de bolso” em inglês). Muitos profissionais aproveitam as horas de folga para brincar. Por insistência dos filhos, é claro. Um jornalista americano – que não foi identificado – caçava Pokémons com seu smartphone quando le-

vou uma enquadrada do porta-voz do Departamento de Estado, John Kirby, que fazia um briefing sobre os esforços da coligação contra o Estado Islâmico. Kirby interrompeu a fala, olhou para ele e perguntou: “Está jogando Pokémon Go?” O jornalista respondeu: “Só estava observando o jogo”. No final, Kirby dirigiu-se a ele de novo: “Apanhou algum?” Diante da resposta, “Não, a rede aqui não é muito boa”, Kirby deu a estocada final: “Peço desculpa por isso.”

Vejinha se renova

Prévidi, 13 anos

A Veja São Paulo chegou às bancas com novidades na edição de 6 de agosto, que trazia na capa o inevitável tema Pokémon Go. Além de um novo projeto gráfico, incluindo o aumento no corpo das letras, o que facilitou a leitura, a Vejinha acrescentou algumas seções e reformulou outras. Também foram ampliados os espaços destinados à publicidade. O site da publicação alinhou-se editorial e graficamente à revista impressa. A Veja Rio deverá passar por processo semelhante em breve.

O Blog do Prévidi, do jornalista José Luiz Prévidi, ex-editor de Press & Advertising, completou 13 anos de existência justamente em 13 de agosto. Prévidi publica diariamente notícias, na maioria relacionada à mídia gaúcha, além de assuntos variados, sempre com boa dose de irreverência, o que faz com que se envolva em seguidas polêmicas, mas conta com bom número de seguidores fiéis e uma rede de colaboradores informais e “em off ”. Confere lá: previdi. blogspot.com.br/

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O site de notícias independente The Intercept terá em breve sua versão brasileira. O anúncio foi feito no início de agosto por Glenn Greenwald, um dos editores do projeto, ao lado de Laura Poitras e Jeremy Scahill. O Intercept foi criado e financiado pelo fundador do site de vendas eBay, Pierre Omidyar. Seguindo seu modelo, no Brasil terá a participação de jornalistas free-lancers que produzirão principalmente matérias de política, economia, cultura e questões sociais.

O que fazer com a EBC O Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional debate eventuais mudanças na Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, um dos órgãos mais solidamente aparelhados pelo governo do PT, e cujo mix inclui a TV Brasil, que gasta milhões e não é vista por ninguém. O presidente em exercício Michel Temer havia nomeado o jornalista Laerte Rímoli para o lugar de Ricardo Melo, colocado na função por Dilma Rousseff poucos dias antes de ser afastada da Presidência. Como a lei prevê mandato de quatro anos, Melo conseguiu voltar ao cargo com uma liminar obtida no STF. O atual governo deve tentar acabar com a EBC, ou ao menos reduzi-la a sua irrelevância.

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CARTA AO LEITOR

Reflexões em tempos de selfie

SUMÁRIO 3

Almanaque

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Mix

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Mix

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Carta ao Leitor

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Entrevista: Fernando Di Primio

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Capa: Imagem do jornalista ao longo do tempo

Eliziário Goulart Rocha

20 Clube de Opinião: Duda Melzer 22

Grandes Nomes: Carl Bernstein

25 Opinião: José Luiz Prévidi 27 Opinião: Mario Rocha 28 Galeria: Time - Morte de Bin Laden

M

eu pai gostava de fotografar e ser fotografado, numa época em que câmeras eram caras, muitas vezes precárias, e fotografar exigia certo esforço, sem contar a burocracia e os custos de revelação e cópias. Graças a este gosto, e aos cuidados de minha mãe na preservação do arquivo, tenho hoje a possibilidade de digitalizar verdadeiras relíquias. Além disso, havia o capricho dele em anotar atrás das fotos o local, a situação, a data e o que mais considerasse relevante, em letra inteligível e bonita. Minha mãe sempre brincava que, ao contrário do que costumava acontecer, a letra bonita da casa era a do menino, e não a da menina. Detalhe curioso. Meu pai deveria se chamar Eliziário Bueno, mas, ao fazer ele próprio seus primeiros documentos “de adulto”, optou por utilizar o Rocha, sobrenome da mãe, e tirou o Bueno do pai. Segundo me explicou, não se tratava de qualquer problema em relação ao pai, ele simplesmente não gostava de Bueno, preferia Rocha, foi uma decisão puramente estética. Percebe-se pelas anotações nas fotos que na juventude ele utilizava a forma reduzida Elizio. Depois passou a ser o Eliziário e, finalmente, o Rocha. Por ele ser o Rocha, eu usei sempre o primeiro nome, até para não confundir, embora eu não seja Júnior, pois tenho o Goulart de minha mãe. A foto acima (no escritório da Otaic S.A., São Paulo, novembro de 1952) é uma de minhas prediletas, pela composição do quadro, pela luz, por todos aqueles detalhes que fazem tanta diferença. As novas gerações terão fotos assim?

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ANO 20 - EDIÇÃO 171 - R$ 9,90

Fernando di Primio, um empreendedor amante de revistas

Carl Bernstein, ícone do jornalismo investigativo

José Luiz Prévidi e a profissão que não existe mais

Esta capa foi criada pela agência Integrada.Net pelos criativos Xablo Lutz e Danielle Ribeiro

Diretora-Executiva NELCI GUADAGNIN

RUA SALDANHA MARINHO, 82 PORTO ALEGRE - RS CEP 90160-240 FONE/FAX (51) 3231 8181

Editor ELIZIÁRIO GOULART ROCHA

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Diretor-Geral JULIO RIBEIRO

Diagramação/ Arte Final ESPARTA DESIGN Imagens: Fotografia: Jefferson Bernardes/ Agência Preview Assinaturas atendimentoad@terra.com.br Impressão COMUNICAÇÃO IMPRESSA

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Comercialização PORTO ALEGRE: (51) 3231 8181 e (51) 9971 5805 com NELCI GUADAGNIN PRESS e ADVERTISING SÃO PUBLICAÇÕES MENSAIS DA ATHOS EDITORA, COM CIRCULAÇÃO NACIONAL, SOBRE OS MERCADOS DE COMUNICAÇÃO E IMPRENSA BRASILEIROS. OS ARTIGOS ASSINADOS E OPINIÕES EMITIDAS POR FONTES NÃO REPRESENTAM, NECESSARIAMENTE, O PENSAMENTO DA REVISTA.


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ENTREVISTA

ENTREVISTA FERNANDO DI PRIMIO

“A revista tem todas as vantagens dos outros meios, e poucas desvantagens” Eliziário Goulart Rocha e Julio Ribeiro Fotos: Emmanuel Denaui | Agência Preview

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ENTREVISTA Fernando Di Primio mal entrava na adolescência quando lançou seu primeiro veículo, um jornal feito no mimeógrafo da empresa do pai. Há mais de três décadas, criou aquela que se transformaria em uma das principais editoras especializadas em comunicação dirigida, a Jornal – Jornalismo Empresarial, hoje Di Primio Comunicação Corporativa. Ao longo deste tempo, produziu para os clientes centenas de publicações que somam quase duas mil edições. No final do ’80, lançou a revista própria Wonderful, que, ao longo de uma década, marcou época no jornalismo gaúcho, projeto que pretende retomar. Nesta entrevista à Press, Di Primio fala sobre seu prazer em fazer revistas, as mudanças no perfil do consumidor de notícias e o futuro do segmento. Como foi sua primeira experiência com jornais? Eu comecei fazendo um exemplar, literalmente, aos dez anos de idade. Foi algo bem vocacionado, já nasci jornalista. Com 12, 13 anos, lancei outro jornal, chamado O Furo, semanal com tiragem de uns 50 exemplares que eu fazia no mimeógrafo da construtora do meu pai. E era bem jornalístico mesmo. Eu morava no bairro Floresta, pegava um ônibus sozinho e ia para o Estádio Olímpico. Naquela época não havia estas barreiras todas de acesso aos jogadores. Eu esperava o treino acabar, invadia o gramado suplementar e entrevista o Alcindo, o Everaldo. O grande Hélio, que foi roupeiro do Grêmio a vida inteira, nos dava cobertura. O jornal trazia entrevistas, as fofocas da rua. Imagine se, ainda hoje, um menino de 12 anos te ataca na rua com jornalzinho feito por ele a R$ 1,00? Você compra, até como estímulo. Então, ao final de um dia eu vendia 50 jornais. Com 12 anos idade eu conseguia o equivalente a R$ 50 por semana. Ali eu já tinha o espírito de jornalista empreendedor. Quando, mais tarde, resolvi ser jornalista, meu pai disse que não, de jeito nenhum, que jornalista morre de fome e etc, e que seria advogado. Eu fiz uma proposta: “Se eu passar em direito na Ufrgs e também em jornalismo na PUC, você paga a PUC para mim?” Ele achou que eu nunca ia conseguir e aceitou. E eu consegui, fiz uma faculdade em quatro anos, outra em cinco, uma loucura. Inclusive fui presidente do centro acadêmico na Famecos, coisa de que me orgulho muito.

Na época, no auge da ditadura, todo mundo discutindo o 477 (decreto-lei de 26 de fevereiro de 1969 que previa a punição de professores, alunos e funcionários de universidades considerados culpados de subversão) e o 228 (de 28 de fevereiro de 1967, impondo regras à organização estudantil) e eu, talvez até por falta de preparo político, fui mais pragmático. Consegui organizar o centro acadêmico, fiz uma série de eventos e etc. E aí descobri que havia um caminho chamado jornalismo empresarial. Aos 18 anos de idade eu fiz um papel timbrado: “Fernando Di Primio Conceição, jornalismo empresarial”. E aí começou a fazer o que se chamava de “house organs”? Exato. Foi muito interessante. Meu primeiro emprego foi na assessoria de comunicação do Senac, eu trabalhava do meio-dia às 18h30 no Palácio do Comércio. Um dia vi um anúncio de jornal pedindo jornalista para a Sibisa (Sirotsky, Birman S.A., companhia financeira que faliu), que ficava na Rua Siqueira Campos, ou seja, bem perto de onde eu trabalhava. Eles queriam fazer um jornalzinho. Fui, disse que trabalhava à tarde e só poderia ficar lá de manhã, aí peguei das 8h ao meio-dia. Chegava sempre atrasado e saía sempre mais cedo para poder bater o ponto ao meio-dia no Senac, sem almoçar. Até que um dia me chamaram, elogiaram bastante o jornal que eu fazia e me isentaram de cumprir carga horária, baseados em artigo da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). No dia seguinte, vi um anúncio da Olvebra, fui lá, disse que trabalhava neste regime, prestando serviço, sem cumprir horário, e peguei o jornal deles para fazer. Em um ano, eu tinha dez jornais, todos com carteira assinada, isento do cumprimento de jornada. Mas fazia sozinho tudo isso? Sozinho, em casa, e não havia computador. E eu fazia tudo, escrevia, fazia fio com caneta de nanquim, borrava tudo, porque não sabia fazer, colava arte-final, fotolitava, fazia tudo sozinho. O segredo para conseguir pegar dez jornais era o custo, eu queria fazer, não interessava quanto eu ia ganhar. Por curiosidade, a maioria dos clientes começava era com S: eu fazia jornais para Senac, Sibisa,

Susesu, Sindicato dos Corretores de Imóveis, e aí uma coisa interessante, eu fazia o do Sindicato da Construção Civil e o do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil. Eu dizia para os clientes: faço o jornal por um salário mínimo, eles aceitavam e, com 20 e poucos anos, eu ganhava uns dez salários mínimos. Eu me dedicava àquilo de forma tão intensa que acabam me dando aumentos espontâneos. Eu fazia tudo artesanalmente, montava, até desenhava. Em que momento partiu para a criação de uma empresa? Foi em janeiro de 1982. Eu tinha um amigo, o Darcy Mano, que morava em Brasília e trabalhava no Ministério da Previdência, como assessor do Jair Soares, que vinha para disputar a primeira eleição para governador. Aí ele se mudou para cá e propôs que montássemos uma empresa. Eu entraria com meus clientes e, ele, com a estrutura e com o cliente Jair Soares. Aí começamos e um dos nossos primeiros trabalhos já foi o jornal de campanha do Jair, que teve duas ou três edições, com um milhão de exemplares. Assim criamos a Jornal Comunicações. Desenvolvemos alguns produtos bem interessantes. Em 1988 lançamos a revista Wonderful. A propósito, duas coisas que eu me esqueci de dizer: no auge da repressão, e não tendo nenhuma consciência política, eu virei de direita por não ser de esquerda (risos), e caí dentro da Coojornal. Parecia que estava em outro mundo, os caras me olhavam como quem pensava “o que este cara está fazendo aqui”, era como se eu fosse uma espécie de espião. Eles faziam coisas maravilhosas na época, como o próprio Coojornal. Eu sentava ao lado do Jorge Polydoro e da Lilian Bem David e ficava aprendendo a fazer cartola, título, olho, a usar letraset. Fazíamos coisas muito legais. Como nasceu a Wonderful? De uma frustração que eu já tinha naquela época, de fazer somente publicações para terceiros, em que se publicam coisas que não se gostaria, necessariamente de publicar, e às quais a gente se apega e de repente são descontinuadas. Costumo lembrar em conversas, palestras, que eu fazia o jornalzinho de quatro páginas da Sucesu com a mesma

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ENTREVISTA Diminuiu muito o número de anunciantes das revistas segmentadas. Naquela época havia centenas de anunciantes locais, médios, que não existem mais. Hoje em dia são todos nacionais, e aí não conhecem o produto. O grande nó ainda é o anunciante? Obviamente, todo produto tem de ser viabilizado, e hoje isso é mais difícil. Antigamente, e isso é importante para que as novas gerações tenham uma ideia de como as coisas funcionavam, a gente chegava para trabalhar e tinha uma mesa vazia, apenas com uma máquina de escrever e um telefone. Não se tinha internet, celular, nada de recursos. O que se podia fazer era bater alguma coisa na máquina ou telefonar. Eu pensava que se ligasse para 80 pessoas, fizesse 80 propostas, era provável que eu fechasse oito.

dedicação, a mesma vontade com que fazia uma revista de 80 páginas. Uma coisa interessante: desde os primeiros boletins que eu fiz eu coloquei um número escondido na quarta capa, um número de série, e com isso eu consigo saber hoje que já fiz em torno de 1.950 edições, da concepção à impressão. Isso dá praticamente uma por semana durante 40 anos. Só da revista da AGAS eu fiz 263 edições. Era jornal, e virou revista quando, pela primeira vez, recebemos um anúncio colorido. Eram quatro folhas de fotolito, nem se sabia como lidar com isso. De lá para cá tivemos uma trajetória fantástica, com muitos prêmios, inclusive. Em 1988, partimos para a ideia da revista própria que pudesse falar de qualquer assunto e que ninguém fosse nos tirar. A Wonderful foi um acontecimento no Rio Grande do Sul, a primeira revista temática do País. Era feita de fora para dentro. Não tínhamos estrutura, nem computador na época, nem projeto gráfico, nada. Simplesmente desenvolvíamos edições com temas como amor, sexo, poder, dinheiro, entre outros, e encomendávamos material para alguns dos nossos principais jornalistas e escri-

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tores, que mandavam os textos, e os principais diretores de arte das agências de propaganda de todo o Brasil, que faziam a diagramação, todos sem cobrar nada. Isso que a Press/Advertising começou a fazer, de entregar a capa para as agências, a Wonderful já fazia na época, nós entregávamos a revista inteira para os caras. Então, tínhamos nomes como Newton Bento, Telmo Lanes, Giba Lajes, Sérgio Milano e outros grandes designers. E os que escreviam, como Martha Medeiros, José Antônio Pinheiro Machado, Renata Leiria, Ricardo Freire, Tetê Pacheco, o Beto Callage, o Marcelo Pires, Toninho Neto, um timaço. Todos começando, cheios de vontade, e fazendo uma revista livre. Mandavam o que eles queriam e eu publicava. Aliás, eu, o Rommel Simões, um baita cara, que era o editor-executivo e depois a Cláudia Aragón, que tava começando, e que assumiu como editora assistente. Era uma revista fantástica, ganhou o Prêmio Colunistas, o veículo do ano, circulou de 1988 a 1998, no contrafluxo de tudo que se possa imaginar, pois a inflação de 80% comia todo o dinheiro das bancas.

Mas havia 80 pessoas para as quais ligar, hoje não há. Eu chegava de manhã, passava uma lista para a secretária e vendia anúncios por telefone. E também cansei de encontrar em eventos presidentes e diretores de empresas. Certa vez, em uma feira mundial de supermercados, em Chicago, fomos fazer um passeio de barco no Lago Michigan, oferecido pela Coca-Cola, estava um frio terrível, e saímos para o deck para fumar. Havia um cara ao meu lado, perguntei o que fazia e ele respondeu: “Sou presidente da Kolynos.” E eu disse que era editor da AGAS. Havia certa relação de intimidade. E o cara fechava na hora. Hoje há mil planos de marketing. Alguém disse: “é claro que melhoramos muito, mas também podemos estar perdendo muitas oportunidades”. Se eu chegar aqui com uma mala com barras de ouro e te oferecer por R$ 10 mil, você vai dizer: “Não posso comprar, não está no meu budget. Desculpe-me, mas tem de passar por um comitê...”. Ou se chega cedo demais, quando o planejamento ainda não está em discussão, ou tarde demais, quando o orçamento já está todo comprometido. É. Algumas empresas têm uma postura muito fria, o e-mail de resposta é sempre um mesmo, independente-


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mente da época: “Agradecemos, mas nosso planejamento está fechado, vamos aguardar o ano que vem.” Como eu guardo os e-mails, outro dia me responderam da mesma forma e mandei para eles o e-mail do ano passado. Certamente perdi um anunciante. Mas tem de haver flexibilidade para aproveitar as oportunidades. Meu trabalho ao longo de minha trajetória busca criatividade, idéias, invento capas falsas, edições excepcionais, e isso, colocado para o cliente adequado, pode trazer um baita retorno. As mídias tradicionais sofreram muito o impacto da internet, mas a revista resiste como impresso, por uma série de características próprias. Primeiro, ela se alinha em uma corrente nova que está surgindo em Londres, o slow journalism. A internet nos trouxe

muitas fantasias, informações falsas, muita porcaria, superficialidade, efemeridade. Já o jornal, passei a vida fazendo jornal, adoro jornal, mas não sinto mais falta, jornal não tem mais sentido. Primeiro, porque ficou fora de timing, você recebe a notícia pela internet, ou por rádio e TV, o jornal não te dá mais a notícia. Dizia-se que o jornal daria a opinião, analisaria os fatos, daria conteúdo que a notícia rápida não dá. Ok, durante muitos anos esse foi o espírito que norteou o jornal. Só que hoje ninguém tem mais tempo para ler uma edição dominical da Folha de S. Paulo com mais de 300 páginas. As pessoas não querem mais saber tantos detalhes, e mesmo quem quer não tem mais tempo. O terceiro motivo é a logística que o jornal exige. O custo de levar um jornal de Porto Alegre a Uruguaiana é imenso, vai de caminhão, chega muitas horas depois, e mesmo de avião lavaria bastante tempo.

Talvez haja espaço para microjornais, como os jornais de bairro. A comunicação dirigida, segmentada, algo em que acreditei a vida inteira e sempre fui vilipendiado. Diziam “lá vem você com seus jornaizinhos”. Outro dia um cliente disse que não anunciaria na Press porque o CPM é muito alto. Ainda tem cliente se baseando em “custo por mil” nos dias de hoje... Pois é. Quem quer falar com os jornalistas do Rio Grande do Sul, com o pessoal da comunicação, anuncia na Press, não precisa anunciar na Zero Hora ou no Correio do Povo. Uma campanha institucional de veículo de comunicação, uma campanha de uma agência de propaganda, anuncia na Advertising. É nicho. Passei a vida inteira fazendo isso. Diziam “hoje em dia é aldeia global, é McLuhan, você fala uma coisa e todo

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mundo escuta”. Eu respondia sugerindo que a pessoa fosse às quatro da manhã para a sacada de seu prédio com um megafone e desse a notícia assim: “Atenção vizinhos e condôminos, o condomínio baixou”. A notícia é maravilhosa, mas a pessoa seria apedrejada. Não adianta gritar uma notícia para todo mundo na mesma hora sem saber se todos estão dispostos a ouvir, mesmo que seja a melhor notícia do mundo. Eu apostei em comunicação segmentada, dirigida, em nicho. E forcei grandes pilares como juventude, eu fazia a revista da rádio Atlântida, a revista da STB, chamada 180º; alimentação, abastecimento, AGAS, ABAV, Estilo Zaffari; e informática. A revista permanece porque ela... Posso estar falando em causa própria, mas é que sou apaixonado pelo meio revista. Ela tem todas as vantagens dos outros meios, e poucas desvantagens. Ela tem a portabilidade do jornal, a cumplicidade do rádio, ela tem a imagem, sem a efemeridade da televisão. E uma revista não é perecível. Um mercado que está crescendo é o do livro. Em meio a esta loucura total que é a

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internet, as pessoas estão refluindo, lendo mais livros. O livro sobreviveu a tudo, é o pilar da comunicação. E a revista é um livro ágil, renovado. Um jornal do dia anterior não serve, mas uma revista de dez anos atrás pode ser lida. A juventude hoje faz seu playlist e ouve cada vez menos rádio. Vai para o YouTube e a Netflix e cada vez vê menos televisão. Jornal nem pensar. E aí a revista pode ser um negócio legal para eles. É óbvio que ela tem de ser boa, bem feita, e precisa ter nicho. A tecnologia facilitou bastante a produção de uma revista, mas os custos de impressão e distribuição cresceram terrivelmente. Em determinado momento experimentamos uma supressão de custo muito grande que foi o fim do fotolito, da seleção de cores. Na época gastávamos 150 dólares por página de fotolito e seleção de cores. O fotolito era quase o mesmo preço da gráfica. Hoje temos alguns ganhos. Para a produção de uma foto de capa se pagava R$ 1,5 mil, R$ 2 mil. Hoje podemos usar bancos de imagens, e mesmo as produzidas aqui tem custo mais acessível.

Também não precisamos mais receber material pelos Correios, uma foto de alta qualidade vem por meio digital. O processo de mandar para a gráfica, mesmo na era digital, tinha de gravar CD, hoje vai via FTP. O processo foi muito agilizado. Por tudo que aprendi neste negócio, é preciso ter qualidade, mas isso não basta. Passei 26 anos fazendo a revista AGAS, perguntavam-me “como vai tua revistinha” e eu dizia “revistinha é uma ova”. De modo geral, as pessoas não têm percepção de qualidade. Eu fiz capas maravilhosas, capa em relevo seco, branca, de cabeça para baixo, criava umas coisas malucas, com dedicação, emoção, e as pessoas não tem essa percepção. Tem uma coisa vital neste processo, a distribuição. É a velha máxima da comunicação: a mensagem tem que chegar ao receptor. Por isso tem a revista Freeway, que é distribuída no pedágio, a Estilo Zaffari, distribuída onde as pessoas passam, o jornal Metro, que é bem distribuído nas sinaleiras, grandes publicações distribuídas no metrô no mundo inteiro. Fazer a revista chegar pode ser o mais caro, mas é o que justifica o meio de comunicação, principalmente a revista.


ENTREVISTA Qual é o próximo passo? Sobre a tecnologia tem uma frase maravilhosa, não recordo de quem, “nós queríamos carros voadores e eles nos deram 140 caracteres” (a frase é do empresário americano Peter Thiel, mas ele estava parafraseando o ex-astronauta Edwin “Buzz” Aldrin, o segundo homem a pisar na Lua, em 1969, que disse: “Eles me prometeram colônias em Marte, em vez disso eu tenho Facebook.”). Nossa geração cresceu com expectativa de carros voadores, e de chegar em casa com a comida pronta, e a porta se abrir sozinha, o que em alguns casos já acontece, e aí o que eles nos dão é o Twitter. Acho que é tudo muito cíclico, a Humanidade se repete, se nova. A gente tem a pretensão de achar que é muito melhor do que os romanos, os gregos, e os caras eram bambambãs. Uma coisa muito interessante é o seguinte: hoje, as novas gerações estão tendo muita dificuldade de falar e escrever, porque estão muito condicionadas a teclar. Ficam teclando o tempo todo nas redes sociais, no Whatsapp, na maioria das vezes nem têm mais tempo para falar, e quando pegam um telefone para falar é uma dificuldade. O novo profissional tem muita dificuldade neste sentido. Por mais que o cara vá estudar não sei aonde e volte cheio de terminologias, o que continua valendo é a qualidade, a qualidade do texto, a seriedade da informação, checar a notícia, fazer bem feito, se dedicar. Mas o potencial leitor não está na mesma situação? Há uma geração caminhando para isso. A situação terá de ser revista. O caminho é justamente trabalhar em cima disso, e aí vem o slow journalism, dando de novo a chance de uma coisa bem feita, agradável visualmente, é questão de conciliar, pegar o que tem de bom no virtual, e oferecer matérias bacanas, investigativas, diferentes, que atraiam a leitura. A nossa geração não sabe mais pregar um prego, serrar madeira, os nossos pais faziam isso todo dia. Fomos perdendo o trabalho manual. Nossos avós construíam suas casas, agora só sentamos à frente de um computador, tem gente que não sabe sequer trocar uma lâmpada. Estamos perdendo tudo isso. O que continua valendo é a qualidade.

Mas o que é qualidade jornalística para a atual geração? Nossos conceitos não são de dinossauros tentando sobreviver em uma era pós-dinossauros? Obviamente, não somos melhores do que ninguém, não temos o condão ou a graça divina de acharmos que o mundo não muda, a fila não anda e as coisas não se renovam. Eu tive a experiência fantástica de conviver com minha avó, que morreu aos 99 anos. Na grande maioria das vezes, quem chega a essa idade, vira sábio, com conselhos, dicas. O que eu sei é que nossa experiência de vida tem de ser prevalente sobre os modismos. Qualidade é sim um bom texto, uma boa informação, criatividade de pauta. Eu faço revista com o prazer de fazer bem feita. Isso também ajuda a formar o leitor. Não devemos simplificar, ser engolidos por esta onda de efemeridade. Evolução é continuar trabalhando com criatividade, com valorização das coisas bem feitas. De mau jornalismo estamos cheios. Todo mundo tem blog, todo mundo tem Facebook, e 90% é lixo. A revista é um veículo que tende a ter ainda uma vida muito longa. O que você está lendo? Eu leio muitas revistas, até por força do ofício, leio Exame, Vip, Playboy e etc. E guarda estas revistas? Tenho armários lotados de revistas. Só dos meus quase dois mil títulos produzidos, tenho de 20 a 30 exemplares de cada, só aí são 60 mil. Isso das suas, mas guarda revistas antigas em geral? Tudo, minha casa é um emaranhado de coisas. Eu também leio os livros do Airton Ortiz sobre Paris e Nova York, adoro viajar, e estou lendo um livro grosso, não lembro o nome, ele conta a história de Paris (Paris: biografia de uma cidade, de Colin Jones), leio mais nesta área. Tem alguma revista da qual você gostaria de ter sido o publisher? Teve uma revista da qual eu participei fazendo a parte de montagem e a comercialização de anúncios, e o André Moralles era o diretor de conteúdo. Há alguns anos, fizemos umas quatro edições, chamava-se Tempo e era a revista

da Sky. Uma revista absolutamente brilhante, de ler se atirando ao chão. O visual, a abordagem, entrevistas com pessoas maravilhosas, orgulho-me de ter participado do processo, embora não tenha sido o editor principal. Até hoje não vi nada parecido. Mas é claro, tem revistas com um peso bem grande, como a Playboy, que acho muito interessante, a Vogue. A Tempo tinha 200 páginas, e já havia chegado a 200 mil exemplares, cresciam os assinantes da Sky, ficou muito cara e descontinuaram. E a Realidade? Acho que todo editor de revistas rende homenagens a ela. Essa era maravilhosa, foi um marco na minha vida. E recentemente foi inaugurada uma exposição das capas da Revista do Globo, que era um produto brilhante, com nossos maiores nomes. Foi a grande precursora. Depois tivemos a experiência da Wonderful, uma revista que marcou época e fez coisas maravilhosas. Já a Realidade, ela é a modernidade que eu prego hoje, a revista de grandes reportagens. Algum tipo de publicação ou segmento em que você não atuou ainda e ainda de fazê-lo? Estou muito vocacionado agora para trabalhar em projetos especiais de livros. Estou resgatando alguns temas, tenho projetos pessoais, corporativos, quero ir por este caminho de livros especiais, virar um contador de histórias, o que eu fui a vida inteira de uma forma mais rápida, nas revistas. Estou fazendo um para o final do ano sobre os 65 anos dos supermercados no Rio Grande do Sul, a questão do abastecimento, a grande revolução que o auto-serviço trouxe para nossa vida. Outros dois ou três segmentos estão caindo de maduro. E estou trabalhando muito forte em cima de guias de turismo, um veículo impresso que ainda cresce, porque as pessoas estão perdendo a paciência de sair de casa com tablet e outros equipamentos. Lancei O melhor de Gramado, O Melhor de Porto Alegre. E tenho um desejo velado, um sonho que estou mais perto do que nunca de materializar, que é relançar a Wonderful. Ela era um teatro. Eu oferecia o palco e cada um vinha e apresentava o que tinha de melhor. Ela segue atual.

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REPORTAGEM DE CAPA

Imagem desfocada As diferentes épocas e suas peculiaridades alteram a percepção do público em relação ao trabalho dos jornalistas

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Mstyslav Chernov

Heroico e necessário: : : repórter fotográfico documenta conflito na Praça da Independência, em Kiev, capital da Ucrânia, em 18 de fevereiro de 2014

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Marjory Collins/ Biblioteca do Congresso EUA

REPORTAGEM DE CAPA

Velhos tempos: redação do New York Times, em 1942, quando havia pausa para se informar, fazer contatos ou simplesmente pensar sobre a pauta

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lente através da qual o público molda a imagem da imprensa e de seus profissionais costuma ser trocada de acordo com as características de cada tempo. O advento das redes sociais criou condições que, num primeiro momento, mostraram-se desfavoráveis a quem lida com informação de modo profissional. Primeiro, porque todo e qualquer usuário de internet pode ser agente, fonte e alvo de notícia, tudo ao mesmo tempo, e em tempo real. Ainda que notícias divulgadas por uma pessoa qualquer não possam ser consideradas confiáveis, uma vez que tal pessoa não tem o preparo técnico, quem sabe o discernimento, a isenção e, sobretudo, a responsabilidade em relação àquilo que publica, para a maioria, pouco preocupada com veracidade, ética e precisão, tais relatos acabam servindo como fonte de informação. Segundo, porque nas redes sociais, em especial o Facebook, fatos verdadeiros e fakes se misturam aleatoria-

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mente na timeline. Antigamente, repórteres novatos costumavam receber do primeiro editor o alerta clássico: “Cuidado, o papel aceita tudo.” A frase nunca foi tão sábia e o alerta se torna ainda mais crucial quando se trata de informação online, seja em rede social, seja em blog ou site que, afinal, qualquer um pode ter e ali despejar o que bem entender. Para piorar o panorama, além dos, digamos, leigos, tem muita gente que se diz jornalista – ou por ter cursado a faculdade, o que não garante profissionalismo e competência a ninguém, ou simplesmente porque se considera e ponto. O jornalista profissional sério, aquele que de fato sabe o que faz, o que escreve e diz, e segue no melhor sentido o melhor dos manuais do melhor jornalismo, sente-se, e de fato está, perdido e meio ao fogo cruzado dos franco-atiradores verbais, protegidos em suas casamatas atrás do teclado. Às idiossincrasias do mundo virtual, no Brasil dos últimos anos somou-se o

desgaste provocado pela inédita polarização política entre os pró e os anti-PT. Enquanto as duas hordas se digladiavam sem trégua, sobrava para os jornalistas, o jornalismo e os veículos de comunicação. Para fanáticos de qualquer seita, só existe uma verdade: a sua. Portanto, quem não reproduzisse na íntegra o pensamento dos combatentes ideológicos, passou a ser rotulado e execrado, principalmente, diga-se, pelas tropas petistas. Os blogueiros de aluguel e os jornalistas bem intencionados, mas despreparados, e quem sabe alguns realmente mal-intencionados, engrossaram o caldo desestabilizador da profissão, justamente num momento em que ela já se vê diante de um ponto de inflexão. O próprio futuro do jornalismo está em xeque, então, a imagem que ele projeta de si mesmo é o de menos, diriam alguns. Ao contrário, quem lida com mercadoria tão instável quanto a informação precisa, antes de tudo, garantir uma imagem respeitável. O jornalista sempre foi visto de ma-


radíssima analogia: o cão morder o homem não é notícia, mas, o homem morder o cão, sim. Ouve-se muito a acusação de que “só publicam coisas ruins, com tanta coisa boa acontecendo”. De fato, já foi verdade, em especial por parte dos “tabloides” – expressão que no Rio Grande do Sul às vezes confunde, considerando-se que só temos jornais neste formato –, e seus repórteres abutres, sempre atrás da informação mais carniça que pudessem encontrar. Mas também sempre tivemos a imprensa séria. O público, que se queixa do fato de se destacar mais o lado ruim da sociedade, faz o mesmo ao tomar o mau jornalista como exemplo da profissão. Seja como for, hoje em dia já não é bem assim, os veículos se preocupam, e muito – por vezes até demais –, com o politicamente correto e dão espaços generosos também para notícias “do bem”. Pessoas guiadas pela razão e pelo bom senso, e dotadas de um mínimo de estofo cultural, sabem

distinguir sem problemas o jornalismo profissional sério e bem feito, do não muito sério, malfeito ou mesmo mal-intencionado. A questão é determinar até que ponto a turma da corneta, desocupados, irresponsáveis e seguidores de seitas conseguem, com sua grita histérica, fazer colar na profissão como um todo os rótulos destinados a desqualificar quem não participa da marcha arcaica. É preciso reconhecer, no entanto, que, para cada jornalista com J maiúsculo existe uma miríade de amadores, picaretas, vendidos, analfabetos funcionais e congêneres, todos devidamente diplomados e ajudando a denegrir a profissão. As facilidades do mundo online ajudam na montagem de farsas totalmente absurdas que soem verossímeis, embaralhando ainda mais a cena jornalística. O filme Special Correspondents, lançado há poucos meses pela Netflix, brinca com esta possibilidade. Descontando-se os aceitáveis exageros, afinal, mais do que

Divulgação CNN

neira ambígua: ora imprescindível, ora beirando o inútil; às vezes confiável, às vezes suspeito; em tantas situações herói, ocasionalmente vilão. O problema é que ninguém gosta de receber más notícias. Tornou-se célebre a sentença “matem o mensageiro”. O gesto de culpar o portador pela mensagem negativa é atribuído primeiramente ao rei Dario III, Pérsia, que, derrotado por Alexandre, o Grande, não gostou de receber de Charidemos relatos sobre o resultado de suas próprias mancadas estratégicas e mandou matá-lo. Consta que Gengis Khan também cultivava o hábito de eliminar os portadores de notícias, ainda que elas não fossem ruins, mas porque não queria se espalhassem. Isso vale para os jornalistas: muitos os odeiam não por serem difusores de más notícias, mas por divulgarem o que não gostariam de ver divulgado, uma realidade muito presente no Brasil da Lava Jato. Ocorre que dar más notícias é usual na profissão, conforme lembra a sur-

Novos tempos: CNN Center, sede mundial do canal por assinatura, principal estúdio da rede e das afiliadas do grupo Time Warner, em Atlanta

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Divulgação Netflix

REPORTAGEM DE CAPA

Os farsantes: Ricky Gervais e Eric Bana em cena de Special Correspondents, lançado recentemente pela Netflix, que diverte, mas também serve de alerta

ficção, trata-se de uma comédia, à sua maneira o filme lança uma reflexão sobre o tema. O repórter de rádio Frank Bonneville (Eric Bana) e o técnico de som Ian Finch (Ricky Gervais), escalados para cobrir uma fictícia guerra civil no Equador, depois de perderem os passaportes e o dinheiro para a viagem, entrincheiram-se em um apartamento próximo e dali transmitem “ao vivo do Equador”, com direito a sonoplastia e todos os requintes que a tecnologia oferece a partir de equipamentos amadores e portáteis. Paremos por aqui, sem spoiler. Além dos picaretas, há ainda os que seguem fórmulas consagradas, modelos-padrão para atingir o sucesso e ganhar muito dinheiro (veja alguns exemplos na página ao lado), não que isso seja errado, reconhecimento e progresso financeiro podem e devem ser metas de qualquer profissional em qualquer área. Melhor seria, no entanto, que todos trilhassem este caminho pura e simplesmente fazendo bem feito, com

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Tornou-se impossível falar sobre jornalismo sem utilizar a expressão “curador de notícias” para definir o que, possivelmente, seja a nova imagem que o jornalista deverá consolidar nos próximos anos

talento, esforço e dedicação aquilo que se propôs a fazer para ganhar a vida. Tornou-se impossível falar sobre o tema sem utilizar a expressão “curador de notícias” para definir o que possivelmente seja a nova imagem que o jornalista deverá consolidar. Muitos torcem o nariz para este “modismo”, mas, palavreado à parte, redesenhar-se como aquilo que, na realidade, sempre foi, pode ser o único caminho. Com tanta informação circulando o tempo todo, o público precisará cada vez mais, embora, infelizmente, a maioria ainda não se dê conta disso, de alguém com cultura, conhecimento, ferramentas técnicas e profissionalismo para separar o joio do trigo e, ao contrário da velha anedota, publicar o trigo. Em tese, não há muito que mudar. O jornalista só tem de seguir sendo o que sempre foi, fazer o que sempre fez e do modo que sempre fez, quem sabe apenas tendo de empacotar tudo isso e vender em um formato que pareça mais palatável a olhos contemporâneos.


ESCOLHA SEU TIPO E FAÇA SUCESSO: Às vezes é só uma questão de vestir o figurino adequado

O herói de guerra – O sonho de

muitos jornalistas é cobrir uma guerra. Estar no campo de batalha de modo voluntário revela coragem e desprendimento. O risco de ser ferido, ou mesmo morto, é compensado pela possibilidade de virar herói. Alguns, sem cacife para ir tão longe, aventuram-se em batalha urbanas em favelas, por exemplo, na busca da mesma glória. Quase sempre se arriscam muito mais do que aconselham as autoridades, o bom senso e a chefia de redação. Entre os profissionais sérios, há muitos irresponsáveis e sensacionalistas.

O salvador da pátria – A exem-

plo dos que encaram um conflito armado, o salvador da pátria também busca consagração pelo heroísmo, mas em cenário (nem sempre) desarmado. Quer ser reconhecido como o cara que denunciou uma rede de corrupção no governo, desvios de verbas públicas que deixaram milhões de pessoas à míngua, ou uma trama de espionagem internacional de grandes potências contra seus vizinhos menores. Embora este papel da imprensa seja de fato fundamental, muitas vezes o mais importante para o salvador da pátria não são os resultados da reportagem, mas sua própria notoriedade.

O politicamente correto – De-

fende sempre os interesses das minorias, mesmo quando são maiorias. Adora expressões como “afrodescendente”, “comunidade” ou “melhor idade”. Briga pelos direitos das crianças, das mulheres, dos gays e dos animais, não necessariamente nesta ordem. É a favor de todos os programas sociais e acha que o os empresários são todos ladrões e devem mesmo falir, embora não explique de onde sairá depois o dinheiro para sustentar os

programas sociais. Abomina o Trump, evidentemente. Aliás, tem se dedicado bastante a abominar o Trump, pois anda meio atordoado, sem saber como se posicionar em relação às questões brasileiras. Como ser politicamente correto em relação ao politicamente incorreto, ou incorreto em relação ao correto... ah, morte ao Trump!

O politicamente incorreto

– Faz questão de atacar tudo que aluda à esquerda, aos sindicatos e aos programas sociais. Defende os interesses dos patrões e os direitos dos ricos. Para ele, comunidade continua sendo favela e Maluf e Zé Dirceu merecem uma segunda chance, assim mesmo, colocando os dois nas mesmas condições, para revolta do companheiro do parágrafo acima. Acha que está na hora de as pessoas cuidarem mais dos filhos e menos dos cachorros, que dizer yoga com “ô” em vez de “ó” é coisa de veado e, claro, apoia o Trump.

O maldito fake – Inimigo figadal

da mídia, adora palavras como “imaginário”, “imagético” ou “midiático”. Questiona todas as formas de poder, os poderosos, o capitalismo, os partidos, os patrões, os formadores de opinião, a Globo e a CBF. Não perde os jogos de seu time, mas sempre consciente do uso do futebol como instrumento de manipulação das massas e etc. Odeia empresários, menos os que o acolhem com a segurança de um contracheque. A mídia tradicional o enoja, e costuma deixar isto bem claro em seu espaço num tradicional veículo nojento. Considera-se o último baluarte da opinião, o único resquício de um jornalismo contestador capaz de mudar o mundo, se não fosse tão solitário em sua cruzada contra a grande imprensa e o poder manipulador do dinheiro. Costuma ser bem pago para odiar o dinheiro.

O que só diz o que as pessoas querem “ouvir” – Tipo infalível

para fazer sucesso, só escreve sobre temas acerca dos quais não paire qualquer dúvida. Foge da polêmica, exceto quando há uma clara posição da maioria. Descreve os amores, temores e alegrias do cidadão comum, aliás, adora o termo cidadão comum. Para ele, a pieguice é uma arte. “Se ser piegas é ser humano, romântico, solidário, então sou piegas”, costuma afirmar, com toda a pieguice que a frase exige. Trata-se do modelo predileto dos patrões da mídia, porque leva o leitor a se identificar com suas ideias. Escreve sempre pensando em como se identificar mais. Suas verdadeiras ideias, caso tenha alguma, não importam. Ao final de cada texto, o leitor suspira e pensa: “Incrível como ele é bom, pensa exatamente como eu”. Seus livros são best-sellers garantidos.

O falso polemista – Parente pró-

ximo do tipo acima, tenta renegar as origens levantando falsas polêmicas. Nenhuma, digamos, capaz de causar polêmica. Costuma bancar o zangado diante das indignidades da espécie.

O cronista fofo – Só trata de temas como família, amor, solidariedade, relacionamentos, criação dos filhos, carinho com os animais. Confessa falar com as plantas, chora de saudade, emociona-se com facilidade e tem o coração eternamente partido. Tem em comum com “o que só diz o que as pessoas querem ouvir” a frase sobre a pieguice, com leves alterações. Choca-se com a frieza do mundo diante do sofrimento alheio e arranca lágrimas dos leitores depois de despejar as suas próprias sobre o teclado.

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Marcos Nagelstein/Agência Preview

CLUBE DE OPINIÃO

Encontro com Duda Melzer Duda Melzer, presidente e chairman do Grupo RBS, foi sabatinado pelos integrantes do Clube de Opinião de Porto Alegre, em encontro realizado em 21 de junho, no Plaza São Rafael. Ao longo de duas horas de uma conversa que contou a participação de 20 jornalistas, Duda respondeu com simpatia, e sem qualquer restrição às perguntas, sobre sua carreira e sua trajetória pessoal até chegar ao posto que ocupa hoje. Confira algumas de suas opiniões: Sonho de guri – Duda afirmou que seu maior sonho sempre foi, um dia, trabalhar na RBS, sonho alimentado no convívio com o avô, Maurício Sirotsky Sobrinho, fundador da empresa, com quem aprendeu os princípios que norteiam as ações da RBS. Antes de ocupar um cargo na empresa, montou seu próprio negócio (franquias da Swet Swet Way), estudou fora do País e iniciou uma carreira no exterior. A primeira proposta de trabalho da RBS só veio quando ele tinha 30 anos e trabalhava em Nova York, e ele a recusou. “A proposta era para um cargo com escopo muito reduzido e me causou uma reversão de expectativas”, admitiu. Só

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dois anos depois foi desafiado a assumir a direção do escritório paulista do grupo. Aceitou o cargo e teve de provar, a partir dele, que era capaz de voos mais altos dentro da companhia. Operação em SC – De acordo com Duda, a empresa vinha sendo assediada havia mais de dois anos por dois investidores. Em 2016, eles fizeram uma proposta “irrecusável” e aí houve consenso na família de que o negócio deveria ser feito. “Vamos concentrar todos os nossos esforços e investimentos em comunicação no RS, voltando às nossas origens e fortalecendo ainda mais nossas posições”, disse. Venda para a Globo – O executivo foi enfático a respeito dos boatos de que a RBS TV estaria sendo vendida para a Globo: “Quem fala uma coisa dessas não conhece sequer a legislação brasileira, que impediria esse tipo de transação. A RBS RS não está à venda e não será vendida para a Globo ou qualquer outro investidor. Esse é um negócio da família

e vai continuar sendo”, garantiu. Crise na mídia – Questionado sobre o destino dos veículos de mídia impressa, especialmente de Zero Hora, Duda afirmou que “nunca se leu tanto ZH como hoje”. “Antes se lia ZH todos os dias, agora se lê ZH o dia todo”, comparou. Ele também disse que a empresa não está no negócio de papel, e sim no de produção de conteúdo relevante, portanto, se o mercado apontar para o fim do impresso, não haverá razão para não mudar. Operação Zelotes – Sabendo que se tratava de um questionamento óbvio, Duda se antecipou: “Podem me perguntar o que quiserem, inclusive sobre a Zelotes”. Ele disse, no entanto, que não há muito a declarar sobre a operação da PF: “O que sei é praticamente o que sai na imprensa, pois eu não estava na direção da empresa na ocasião. Se estamos lá, deve ter uma razão para isso, mas eu estou tranquilo de que as coisas vão se esclarecer”.


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Washington Post

CARL BERNSTEIN 22 | Press 171


GRANDES NOMES

O homem que ajudou a derrubar um presidente (2) Não, o título não está errado, é o mesmo da edição anterior, quando publicamos o perfil de Bob Woodward, pois as biografias de ambos se misturam de modo inescapável desde o início dos anos 1970, quando, a serviço do Washington Post, protagonizaram a mais emblemática reportagem investigativa da história, sobre o Caso Watergate, que levou à renúncia do presidente americano Richard Nixon. Bernstein tinha 28 anos quando encarou uma empreitada pesada e se saiu melhor do que a encomenda. Depois, com o parceiro de redação, escreveu o livro Todos os Homens do Presidente, que virou filme (All the President's Men, 1976) produzido pela Warner e dirigido pelo cultuado Alan J. Pakula (1928-1998), no qual foi interpretado pelo ótimo Dustin Hoffman. O filme, por sinal, contribuiu de modo decisivo na construção da lenda – merecidíssima – em torno dos repórteres do Post. O feito de Bernstein em dupla com Woodward merece ser sempre destacado, não apenas por eles terem executado a reportagem de modo exemplar, ao ir às ruas, ouvir as pessoas, unir as pontas soltas do caso, buscar sempre a grande informação escondida no detalhe, checar exaustivamente cada item, mesclar ousadia com responsabilidade e, sobretudo, enxergar a floresta, e não apenas a árvore. Aquele trabalho merece ser lembrado também pelo atual momento de poucos investimentos em jornalismo qualificado, de curto prazo para apurações, de excesso de pautas irrelevantes, de departamentos jurídicos comandando as ações da redação, da falta de iniciativa de repórteres que não se desgrudam da cadeira e se submetem cada vez mais às limitações impostas pelo sistema e por uma sociedade de informações pasteurizadas. Bernstein tornou-se ícone sendo apenas jornalista de verdade.

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história é bastante conhecida, a própria Press já a abordou em algumas oportunidades, inclusive na edição passada, quando a seção Grandes Nomes publicou o perfil de Bob Woodward. No entanto, o bom jornalismo recomenda que sempre se contextualize os fatos, não dá para simplesmente partir do princípio de que o leitor já sabe, ou de que se lembrará da história em detalhes. Portanto, vamos lá: em 16 de junho de 1972, a sede do Partido Democrata, instalada no complexo de edifícios Watergate, em Washington, foi arrombada. Considerado um simples caso de roubo, o episódio foi noticiado pela imprensa sem grande destaque, e teria caído no esquecimento, não fossem a saudável desconfiança e a preciosa persistência de dois repórteres do Post, Carl Bernstein e seu parceiro Bob Woodward. Eles acharam que havia algo ali que não fechava e foram à luta. Em certo momento, a dona do Post, a lendária Katharina Graham, questionou o não menos célebre editor-chefe Ben Bradlee: “Se a história é tão boa, por que ninguém mais está cobrindo?”. Bernstein fez o óbvio bem feito, o que nem sempre é fácil. No entanto, é preciso registrar que o passo decisivo, que deixou claro que havia algo grande acontecendo e deflagrou uma investigação mais ampla, foi dado por Woodward. Eles haviam descoberto que um dos arrombadores da sede democrata tinha no bolso um papel em que aparecia o nome Howard Hunt e o termo “W. House”. Woodward ligou para a Casa Branca e pediu para falar com Hunt. Era um chute, mas deu certo. A telefonista transferiu a

ligação, ninguém atendeu no ramal, ela retornou e disse: “Talvez ele esteja na sala do sr. Colson”. Tratava-se de Charles Colson, assessor especial de Nixon. Dias depois, o repórter conseguiu falar com Hunt e foi direto: “Como o seu nome foi parar numa anotação encontrada com os arrombadores do Edifício Watergate?”. Hunt ficou uns instantes em silêncio, suspirou e finalmente disse: “Meu Deus...” O resto é história. Carl Bernstein nasceu em Washington, em 14 de fevereiro de 1944, filho de Sylvia Walker e Alfred Bernstein. Estudou na Montgomery Blair High School, em Silver Spring, no Estado do Maryland, onde colaborava como uma espécie de gerente de circulação do jornal da instituição. Tomou gosto pelo meio e, aos 16 anos, foi trabalhar no Washington Star como “copy boy”, um cargo típico de novatos na imprensa americana da época, e que implicava, entre outras tarefas, transcrever anotações dos repórteres. Bernstein saiu-se bem e poderia ter sido promovido, mas, embora tenha frequentado a Universidade Maryland, na qual atuava como repórter do diário da entidade, não pretendia ir até o fim, e o Star exigia – ainda que não oficialmente – diploma de curso superior para escrever no jornal. Sem poder crescer no Star, em 1965 Bernstein foi para o Elizabeth Daily, da cidade de mesmo nome, em Nova Jersey (circulou de 1960 a 1992), desta vez como repórter em tempo integral. Não demorou a mostrar a que viera, ganhando o prêmio anual da associação de imprensa daquele Estado na categoria reportagem investigativa. Já no ano seguinte estava no Washington

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Post, onde se revelaria um repórter eclético, cobrindo as mais variadas pautas locais. Além de ser bom na reportagem investigativa, logo se destacou também pela qualidade do texto, sendo considerado um estilista das palavras, um dos melhores do tradicional e conceituado Post. Depois de seis anos no jornal, em junho de 1972, foi destacado para cobrir, juntamente com Woodward, que chegara à casa havia poucos meses, um caso de arrombamento. Para a imprensa em geral, ficou nisso, para eles, deu no que deu. A grande reportagem investigativa do Caso Watergate, talvez a maior e melhor de todos os tempos, imortalizou Bernstein e seu parceiro, ainda mais depois que eles contaram em livro a história que derrubou Dick Vigarista da presidência, e o livro virou filme, uma obra-prima do cinema que ganhou quatro Oscar. Fiel ao estilo que o consagrou, Bernstein seguiu trabalhando com o abuso de poder como um dos temas centrais. Escreveu meia dúzia de livros, sendo o mais recente a biografia de Hillary Clinton. A fama, evidentemente, abriu-lhe as portas do mundo de palestras, artigos, entrevistas – agora no papel de entrevistado. Em 1977, cinco anos depois do início do Caso Watergate, e três após a renúncia de Nixon, Bernstein saiu do Post e durante um ano investigou as relações secretas da CIA com os veículos de comunicação durante a Guerra Fria, o que resultou em uma ampla reportagem publicada pela revista Rolling Stone. De 1980 a 1984, trabalhou na ABC News, onde acusou o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, de ter enganado seu gabinete sobre as verdadeiras intenções ao determinar a invasão do Líbano. Sharon alegava querer apenas estabelecer uma zona de segurança na fronteira, enquanto sua intenção real ela expulsar os palestinos do Líbano. Em 1986, Bernstein escreveu um livro no qual revelou que seus pais haviam sido membros do Partido Comunista. A despeito de o FBI ter vigiado a família por 30 anos, nem mesmo o voraz e sinistro J. Edgar Roover havia conseguido provar algo. Na década seguinte, foi cobrir para a Time a invasão do Iraque, de onde acabou sendo expulso e levado para o Egito. Em 1992, escreveu uma reportagem sobre a aliança entre o presidente Ronald Reagan e o papa João Paulo II, e mais tarde um livro em que ressaltou a importância do pontífice para a derrocada do comunismo na Europa. Atualmente, é comentarista político da CNN e professor visitante da Stony Brook University, de Nova York. Bernstein foi casado com uma repórter do Post, Carol Honsa, com a escritora Nora Ephron e, desde 2003, está casado com a ex-modelo Christine Kuehbeck. Durante o casamento com Nora, teve um caso rumoroso com Margaret Jay, filha do primeiro-ministro britânico James Callaghan e mulher de Peter Jay, embaixador nos Estados Unidos. Depois de pedir o divórcio, Nora contou a história em livro que deu origem ao filme A Difícil Arte de Amar (Heartburn, 1986), com Jack Nicholson e Meryl Streep. Nos anos 1980, Bernstein namorou Bianca Jagger, Martha Stewart e Elizabeth Taylor, entre outras. Tem dois filhos, Max e Jacob, ambos com Nora Ephron.

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Quando o jornalista é notícia: na redação, durante as apurações do Caso Watergate; com Woodward em entrevista à TV; e saboreando a fama justamente adquirira com a grande reportagem


OPINIÃO

Uma profissão que não existe mais

R

alei muito. Entrei na Famecos-PUC no segundo semestre de 1975. Me formei em julho de 1980, com uma parada inútil em 1977, quando passei num concurso do Banco do Brasil e fui mandado para Palmeira das Missões. Voltei para Porto Alegre no início de 1978 para continuar a Famecos e a Filosofia na UFRGS. Em maio consegui uma vaga de repórter no Diário de Notícias, com carteira assinada, mesmo que o Sindicato dos Jornalistas não permitisse que estudante de jornalismo trabalhasse. Tinha que me virar, porque estava acostumado com o bom salário do Banco e no Diarinho ganhava um pouco mais do piso. Fazia todos os frees que apareciam, acumulei o jornal com a reportagem na Rádio Farroupilha. Fui até redator em uma agência de propaganda. Em março de 80 fui ser repórter de política da Zero Hora e o Sindicato continuava fazendo de tudo para que eu não trabalhasse, mesmo que me formasse em julho daquele ano. Passei alguns anos, dia após dia, cursando duas faculdades, dois empregos e os frees. Meus dias começavam às 7 horas e encerravam às 23 horas. Negócio de índio. Tinha realizado um sonho quando o meu registro na carteira do trabalho, assinado pelo Celito De Grandi, dizia: Jornalista Profissional Diplomado. Uau!! Até 1981, com todas as atividades, ganhava o suficiente para as festas. Até que

fui ser CC na Assembleia, quando Aldo Pinto foi eleito presidente. Uma aliviada legal, porque era uma grana boa. Até que dois anos depois resolvi ir para o Rio, trabalhar no Governo Brizola. Voltei em 85. Vou resumir mais: a partir daí, fiz oito jornais segmentados, seis eventos, três campanhas eleitorais, tudo relacionado ao Jornalismo. E fui supervisor de Comunicação da Assembleia, onde recebia o maior salário da minha vida. Tudo no século passado.

Claro, tenho vergonha de dizer que sou jornalista. Me nego a ser confundido com esses picaretas e escroques que dominam a minha antiga profissão.

Neste século ajudei a criar esta revista. E comecei a viajar com a internet. Pouco antes de sair da Press comecei o site/blog do Prévidi. Publiquei 12 livros. Até que em 2009 aquele sósia do João Plenário (um político corrupto, personagem da Praça é Nossa) decidiu que o diploma de jornalista não valia mais nada. Lembram? “Por 8 votos a 1, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram na sessão desta quarta-feira (17) que

José Luiz Prévidi

o diploma de jornalismo não é obrigatório para exercer a profissão. Votaram contra a exigência do diploma o relator Gilmar Mendes e os ministros Carmem Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Celso de Mello. Marco Aurélio defendeu a necessidade de curso superior em jornalismo para o exercício da profissão. Os ministros Joaquim Barbosa e Carlos Alberto Menezes Direito não estavam presentes na sessão.” Pô, a profissão estava regulamentada desde 1969! E aí aparece um bustrica, que se acha um deus, e decide que qualquer um pode ser jornalista. Há pouco tempo publiquei no Blog do Prévidi um post com o título “A Atividade mais desrespeitada. Já foi uma profissão muito digna”. E contei uma historinha: No ano passado, assisti a uma conversa entre três pessoas que estavam próximas a mim em um evento. Uma delas era uma guria de pouco mais de 20 anos, vestida de forma despojada, puxando para piriguete. Eu ali, escutando o papinho deles. Ela era uma figura. Falava daquele jeito usual, comendo uma das consoantes finais do gerúndio – "caminhano", ganhano", "vendeno". Lá pelas tantas ela se exibe: – Vocês sabiam que sou jornalista? Ééééé!! Jornalista profissional! E os dois babaquaras ficaram olhando, admirados. Não sabiam que qualquer imbecil, escroque, analfabeto pode requerer o registro de jornalista, praticamente sem burocracia. Com base na decisão do STF, do Gilmar Mendes,

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OPINIÃO basta apresentar na Delegacia Regional do Trabalho o RG, CPF, PIS, carteira de trabalho e comprovante de endereço. Fiquei quatro anos numa faculdade paga (PUC – Famecos) e até hoje tem gente que gasta tempo e dinheiro com "estudo". Quem não é do meio pode achar que é mentira, mas a partir deste dia conheci dezenas e dezenas de “jornalistas Gilmar Mendes” ou “jornalistas João Plenário”. Gente que consegue o registro de jornalista, mesmo sendo semi-analfabeto, achacador, escroque, todo tipo de gentalha. E bandidos! O pior ainda não é isso. Quando essa gente decidiu pelo fim da obrigatoriedade do diploma, todos os que tinham cargos diretivos nos meios de comunicação, por exemplo, garantiram que não contratariam ninguém sem diploma. O tempo demonstrou que a maioria desses chefes e chefetes não valiam nada! Hoje, contratam qualquer um,

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como “estagiário”, pagando menos do que salário mínimo.

Para que servem as entidades que representavam os jornalistas, como sindicatos e federações? Já deveriam ter sido extintos, porque não representam nada. Aí, eu pergunto: vocês acreditam que eu, aos 62 anos, 38 anos vivendo como Jornalista Profissional Diplomado posso me equiparar a este bando de picaretas que tomaram conta da profissão? Eu, fora! Hoje, quando me perguntam se estou aposentado, respondo que “não”. – Tenho que faturar para viver.

– Qual a sua profissão? – Blogueiro. Claro, tenho vergonha de dizer que sou jornalista. Me nego a ser confundido com esses picaretas e escroques que dominam a minha antiga profissão. Ah, sim, Blogueiro e Escritor. Fui jornalista. – Mas estas não são profissões – me contestam. – E quem é que disse que jornalista, hoje, é profissão? Pra encerrar, mesmo: Para que servem as entidades que representavam os jornalistas, como sindicatos e federações? Já deveriam ter sido extintos, porque não representam nada. Tanto é que um “dirigente” de uma dessas federações adora aparecer nos noticiários da Globo, de terno e gravata, para dizer amém ao que os “poderosos da mídia” mandam ele falar. Um bonequinho de ventríloquo, com pouco cabelo.

* José Luiz Prévidi é blogueiro.


OPINIÃO

Jornalismo de água e fel

É

de um primarismo atroz a tentativa de reduzir a discussão sobre a legitimidade da detenção de Matheus de Vasconcellos Chaparini, meu ex-aluno de jornalismo na UFRGS, graduado em 2012, à determinação sobre se ele se apresentou ou não como jornalista aos policiais e se ele produziu ou não, de imediato, um relato para alguma plataforma midiática. Trilham o bom caminho o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul e a Associação Riograndense de Imprensa por notas públicas, painel, jornal Versão dos Jornalistas e outras ações. O mesmo vale para o conjunto dos professores de jornalismo da Fabico (que assinaram moção de iniciativa do colega Luiz Artur Ferraretto), para a Famecos (ao promover um ato alusivo em seu auditório) e todas as demais manifestações de repúdio à coerção sofrida pelo profissional por parte de entidades ou em caráter individual. Também li que Matheus seria um ativista vinculado a coletivos, grupos de pressão, organizações partidárias e por aí vai. Ora, senhores e senhoras, o jornalismo é, sempre, um processo de construção de mensagens a partir da seleção, hierarquização e apresentação à audiência do que foi recolhido pelo repórter e editado por ele ou por mais alguém. Assim, a notícia enquanto produto final,

As empresas de comunicação estão descobrindo, algumas tarde demais, que, se a sociedade é um edifício, então não podem se dedicar apenas aos moradores da cobertura.

por mais isenta e imparcial que busque ser, embute juízos de valor que começam na escolha da pauta, avançam pela seleção das fontes, incluem o tempo disponibilizado para apuração e finalização, encerrando-se com a alocação de espaço maior ou menor para veiculação. Há empresas jornalísticas que respeitam seus públicos – as tais audiências – e refugam propostas no sentido de que “o bom conteúdo é aquele que não incomoda”. Também há as que estão descobrindo – algumas tarde demais – que, se a sociedade é um edifício, então não podem se dedicar apenas aos moradores da cobertura. Em todos os andares sempre houve opinião, mas os de

Mario Rocha

baixo não tinham canais para expressá-las. Agora têm. Jornalismo não é “ouvir os dois lados” e produzir água – insípida, inodora, incolor. Isto é tarefa para o DMAE, em Porto Alegre. Jornalismo é publicar, de forma ética e responsável, o que tem gosto de fel no paladar dos omissos, dos incompetentes e dos corruptos. É, também, assumir os próprios erros com o mesmo destaque e arcar, humildemente, com as reparações legais decorrentes da incúria profissional. Vivo citando um jornalista estadunidense chamado Davis “Buzz” Meritt. Ele escreveu livro garantindo que não nos basta apenas contar as histórias. Precisamos ser “participantes justos” do que estamos narrando. Quero ler e ouvir jornalistas que não têm medo de escolher um lado após apresentar a todos de forma equilibrada e profissional. Seguirei com eles, mesmo discordando, porque quem pensa como eu só pode me dar a satisfação da boa companhia – um lago sereno com um belo poente. Eu quero corredeiras e cachoeiras. Enquanto for jornalista.

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GALERIA

O

saudita Osama Bin Laden, líder da organização terrorista Al Qaeda, responsável, entre tantos atos de barbárie mundo afora, pelo ataque às Torres Gêmeas de Nova York, em 11 de setembro de 2001, foi abatido dez anos depois, em 1º de maio de 2011, em uma ação da força militar americana JSOC (Joint Special Operations Command, ou Comando de Operações Especiais Conjuntas), em seu esconderijo na cidade de Abbottabad, no Paquistão. Segundo o governo dos Estados Unidos, o corpo foi sepultado no mar da Arábia, “tendo sido respeitados os ritos islâmicos”. Sepultá-lo em terra equivaleria a criar um ponto de peregrinação para fanáticos muçulmanos sempre dispostos a reverenciar criminosos. Na edição especial de maio de 2011, a revista Time fez o que a maioria das publicações hoje em dia, pressionadas pelo politicamente correto e pelo medo de represálias dos extremistas, jamais faria: estampou na capa simplesmente o rosto hediondo do psicopata com um X vermelho em cima, a clássica representação do que foi excluído, descartado, eliminado. Mais simples e direto, impossível. Mais informativo e icônico, impossível. Cirúrgico como a ação da JSOC. A ideia não era original, mas ninguém pode ser condenado por copiar a si mesmo. A Time já havia feito capas semelhantes, na verdade, iguais, trocando apenas o personagem. O primeiro a receber esta, digamos, justa homenagem, foi Adolf Hitler, contemplado na capa de 7 de maio de 1945 – ele morrera em 30 de abril. O segundo foi Saddam Husseim, que foi deposto em 9 de abril de 2003 e ganhou a capa emblemática da Time na edição de 21 daquele mês – ele seria executado em 30 de dezembro de 2006. Ao contrário dos demais, que dispensam apresentações, o outro

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Mais simples e direto, impossível. Mais informativo e icônico, impossível.

homenageado com a mesma capa, na edição de 19 de junho de 2006, foi Abu Musab al-Zarqawi, autoproclamado líder da Al Qaeda no Iraque, morto no dia 7 daquele mês. Por que não repetir

uma ideia simples, direta, sem medo de retaliações ou julgamentos morais? Eram todos figuras abjetas, bandidos do mais elevado grau, é disso que se trata. Assim a Time tratou.


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