tr3sdoi2 #03

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no3

literatura, HQ, design, humor

marca

negra

ago_2017



c

inco anos após a publicação do número 2 da tr3sdoi2, está saindo o número 3. Que isso não se repita. Mas foi por uma questão de prioridades. Foram cinco anos envolvido com Música. Nesse meio tempo fiz novas amizades virtuais, desfiz muitas amizades reais, ganhei alguns cabelos brancos pelo corpo, perdi outros tantos na cabeça, morei em mais de dez endereços diferentes, enfim, um envelhecimento movimentado. Valeu a pena a demora. Hoje já conheço muita gente foda na escrita. E graças ao Facebook que estais no céu, santificado, etc, etc, etc... Vamos a eles. Marcelo Mirisola, incomodando sempre muita gente, e, por isso mesmo, muito bem-vindo a essas páginas. O amazonense Diego Moraes, visceral como convém. Juliana Frank, roteirista e escritora, à procura de chances rasas em feiras cheias. Mário Bortolotto, diretor teatral e lenda que, enfim, comprovei ser verídica. Rogério Skylab, que conheço da TV, e da fama de avicida. E Alfredo Al­­ buqerque (sim, eu sei, editor autorreferente. Azar), fechando a parte literária. Nos quadrinhos, Montt (preciso dar um Google para saber mais dele), Celso Singo e Osvaldo, e o muito bom Vuillemin (resgatados das páginas da minha coleção incompleta da revista Animal). Na capa, nossa musa cult Geyse Arruda, grafitada.


Escritos

Marcelo Mirisola

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Juliana Frank

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Diego Moraes

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Meu coração é um bar vazio tocando Belchior Presnto Mário Bortolotto Conto

Rogério Skylab

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A plataforma estava tomada de pessoas... Alfredo Albuqerque

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Suíte em sol maior HQ

Vuillemin

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Grrande garrgalhada Celso Singo / Osvaldo

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A turma da Mônica Montt

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Seus problemas acabaram Artigo

Alfredo Albuqerque

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A Terceira Onda Relato

Saci Pererê

Paulinhagata (Parte 3)

Email tr3sdoi2@gmail.com Facebook www.facebook.com/groups/tr3sdoi2/ Editor Alfredo Albuqerque Garota da capa Geyse Arruda

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ESCRITOS

MARCELO MIRISOLA

D

e repente, uma mulherada barulhenta apareceu no bar; como se aquilo ali fosse um ex-salão de beleza, elas falavam de futebol, jogavam sinuca e coçavam o saco umas das outras. Na mesa imediatamente ao meu lado, duas delas se atracavam com um sujeito que parecia um duende de franjinha verde. Pedi a conta, dobrei a esquina e fiquei com vontade de desejar pêsames pro primeiro poste que apareceu na minha frente. Antes disso falei com ele: “O amigo de todo dia” – eu disse pro poste: – “é a namorada que mija com a gente na rua”. O puto não respondeu, insisti e desconfio que ele não havia lido Tanto Faz, porque ficou ali parado na minha frente, como se não tivesse compreendido nada, como um morto, como se ele fosse um poste e eu um bêbado chato com saudades dos amigos que sumiram para sempre. ____

N

ão me interessa saber o que os escritores pensam, o remédio que eles tomam, a campanha em que estão engajados, os livros que leram e qual é a porra do método que eles usam para seduzir seus leitores, não me interessa saber para quem eles estão dando nem eventualmente quem está sendo comido por eles. Desejo que os gatos deles virem espetinho no Largo da Batata, e que enfiem 3


as respectivas depressãozinhas no meio do rabo. Sintoma não tem nada a ver com obra & qualidade nem faz diferença numa sociedade onde todos - repito: todos - são doentes, paranóicos, viciados e psicopatas. Odeio essa racinha, com exceção dos meus amigos(as) escritores(as) que, antes de serem escritores, são meus amigos. Odeio escritores e artistas em geral. Vocês já pararam para pensar que os chapeiros e os frentistas cumprem suas rotinas sem afetação? eles não precisam anunciar a toda hora que são chapeiros, frentistas e pessoas aparentemente banais. Alguém se interessa pelo antidepressivo que a empacotadora das Lojas Americanas faz uso? Então desconfie toda vez que aquele “artista” se queixar da vidinha miserável em público; a obra dele com certeza é menor que o sintoma, não valorize a doencinha nem dê comida aos macacos. Arte não transforma nem melhora o caráter de ninguém, não qualifica ninguém a ser melhor do que a média, que só faz ruminar com elegância e discrição. O “artista” apenas rumina diferente da média, mas rumina, e, além disso, relincha e zurra mais alto que o recomendável, e vacila como todo o resto. ____ Para que servem os livros? --- Para mantermos distância dos escritores. E a morte? --- Para aproximá-los da gente. Sim, de fato os editores estão certos: escritor bom é escritor morto. 13 4


V

izinha fumando na escada, porta do apartamento dela aberta. – Tá tudo certo? - pergunto. – Tudo. Devo ter feito a pergunta e olhado com uma cara de quem não estava entendendo nada, então ela se antecipou: – É que meu filho está em casa, vim fumar aqui.

Na minha época as prioridades eram os cigarros e as trepadas dos adultos. Crianças iam pros mocózinhos delas, dormiam cedo e sonhavam com o dia em que fumariam seus cigarrinhos em paz, e ponto final. Apesar da babaquice, a vizinha tinha uns pernões bonitos. Então lhe disse: – Quer ir fumar lá em casa? Era o mínimo que o garoto que dormia cedo e que não se transformou num fumante, e que sonhava um dia ser adulto, o mínimo que podia ter feito consigo mesmo, uma cantada honesta, afinal de contas. Quase uma propaganda de Chanceller das antigas, mais um pouco e era jazz. 14 5


HQ

VUILLEMIN

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CONTO

ROGÉRIO SKYLAB

A

plataforma estava tomada de pessoas de toda espécie: recém-nascidos, anciões, mulheres e homens de meia-idade, adolescentes, grupos de crianças sírias, japoneses com smartphones de última geração, turistas, travestis operados, feminazis, cracudos, a dupla sertaneja Dória e Amaury, o ex jogador Neymar com suas duas pernas mecânicas, Caetano Henrique Cardoso, o Drácula, o louro José, Galvão Bueno e soldados fortemente armados. Algumas pessoas bem vestidas; outras, maltrapilhas. Permaneci arredado ao meu lugar. Impossível entender aquela algaravia, as lágrimas misturadas às gargalhadas. Mas num dado momento aumentou a tensão. E o barulho do trem, que se aproximava, me chegou aos ouvidos. Os soldados gritavam diante da multidão. Era um dia cinzento e frio. Assim que o trem parou, abriu suas portas e as pessoas entraram. Paulatinamente, a plataforma foi se esvaziando. Permaneceram apenas os empregados da estação, checando se todos haviam embarcado. Então, uma sirene soou forte e as portas se fecharam. Assim que o trem partiu, os empregados voltaram aos seus escritórios, e novamente o silêncio se estendeu ao redor. Pude então ouvir a última sirene do trem, já bem longe, como um canto que desaparece na distância.

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ESCRITOS

JULIANA FRANK

Eu sou a única pessoa que conheço que ainda recebe trotes. Passar trotes era a alegria da minha infância. Agora tô emparvalhada por ser vítima deste passatempo extravagante e obsoleto que tanto emociona. Eu adoro muito quando o desconhecido chama, já sei que vai gemer e sussurrar meu nome. Sempre a mesma cena arfante, sem grandes viradas ou surpresas. Ele nunca irá se identificar, é o dogma, por isso agradeço aqui. Obrigada por esse mínimo momento de mistério, ousadia e homenagem velada. Tô esperando aqui com ardência por mais trotes, apaixonada. ____

De que servem explicações? Quero ser um isqueiro, uma ponte. Quero ser triste como uma ponte e fulgaz como um isqueiro, daqueles que as pessoas que não leram Freud esquecem no bolso ou vão passando para frente. É isso. Quero ser este isqueiro. A minha mãe nunca me poupou. Me disse tudo. “Charlóki, a vida é triste, o amor é uma

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invenção do demônio que anula a possibilidade de manter um ser humano à distância (ela leu Bierce), a humanidade é um desenho galhofento, o EUA é idiota, os homens confabulam e matam mulheres com revólver e as mulheres matam crápulas com veneno, pessoas agonizam o tempo todo. Não ria. Não ria disso e daquilo. Apenas ria da sua miséria. Deixe o espetáculo dos outros em paz. Não seja assim cínica e depressiva. Apenas seja de qualquer maneira. Não seja. Não se importe em existir.” - Ela me disse isso. Mas nunca me disse a verdade. Que o bom mesmo é ser um isqueiro. E passar de bolso em bolso e acender uma chama leve, uma flâmula que se apaga com um ruído ou um vento. Um objeto com pouco gás que se acaba. E depois fabricam outro. Mas eu quero ser este. Este estúpido isqueiro amarelo.

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HQ

CELSO SINGO / OSVALDO

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CONTO

ALFREDO ALBUQERQUE

sol maior

suíte em

E

le ficava lá, na sala, contido em sua grandeza paquidérmica. Apoiado em alicerces acinzentados, revestidos de grossas rugas dobradas, quase não se movia. No pequeno quarto-e-sala, sua presença prejudicava a vista da janela, dificultava o acesso à cozinha e bloqueava parcialmente a abertura da porta de entrada. Mas os rendimentos obtidos com a venda de seu esterco garantiam a mim uma subsistência estável. Além do mais, eu tinha o refúgio da suíte, de onde saía apenas para alimentá-lo, ensacar seus resíduos, preparar minha ração e ir à rua para um passeio diário, ao redor do quarteirão. Os suprimentos vinham por delivery. A espessa carcaça era coberta por uma definitiva e fina camada de terra queimada que, por sua natureza ancestral, não admitia ser removida pelas frenéticas e ensaboadas esfregações de Angélica, a diarista. Nunca soube que dormisse, embora essa seja uma conclusão rasteira, visto que

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sua presença decorativa não atraía minha atenção e, portanto, não instigava verificação. Fechado no quarto, havia coisas mais interessantes com o que me ocupar, como fazer aquarelas de paisagens impossíveis, resolver palavras cruzadas de nível avançado ou assistir incansavelmente a seriados americanos sobre famílias disfuncionais. Em um fim de tarde, no começo do inverno, me surpreendi com o som distante de música barroca vazando através das frestas. Reconheci Bach, suíte no1 em sol maior para violoncelo. Abri a porta, contornei o vulto, já semioculto na pouca luz da sala, e cheguei à janela, protegido pela cortina gasta. Vinha do andar de baixo. Fechei os olhos e permiti que uma melancolia sufocante se instalasse. Foi muito triste e muito bom. Ao final da música, o silêncio voltou invadindo, e abri os olhos. Um único raio de sol encontrara passagem por um furo na cortina e invadira minha sala. Segui a linha dourada. Iluminava um trecho de pele áspera, onde, delimitados pelo marrom de poeiras antigas, dois caminhos úmidos de lágrimas traçavam um percurso já antigo rumo ao chão. E, logo acima, cintilando na superfície de dois olhos inexpressivos, vi, pela primeira vez, aquele brilho.

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ESCRITOS

DIEGO MORAES

Meu coração é um bar vazio tocando Belchior

L

embrei-me do dia que estava fodidaço na fome e no frio em São Paulo. Havia saído de um albergue na Brigadeiro Faria Lima e fiquei perambulando pelo Centro. Atrás de comida. De dinheiro. Caminhava olhando pro chão na esperança de achar uma moeda ou que deus jogasse um pedaço de pão do céu. Não tinha mais forças nem para pedir comida nos restaurantes e na igreja da sé. Aí me escorei num batente à frente de um bar e tocou Belchior. As lágrimas escorreram e eu fiquei cantando baixinho. A música era “como 14


nossos pais”. Uma senhora sacou meu sofrimento e ofereceu um prato de sopa. Nunca vou esquecer. As lágrimas caiam no prato. Isso foi em 2003. A senhora me deu um folheto bíblico e eu fiquei tomando a sopa ao som do Belchior. Não tinha mais forças. Várias vezes tinha batido a ideia de me suicidar. Passava pelo viaduto do chá e imaginava meu corpo caindo em cima dos carros. Tinha um cara nesse bar chorando também. Não sei qual era a dele. Devia tá fodido também. Saí do bar cantando e liguei para minha mãe pedindo arrego. Queria voltar para Manaus. Estava com 55 quilos. Só pó, pele e osso. Quando o avião deu a volta no aeroporto Eduardo Gomes eu chorei tanto que tive a sensação de ter visto Deus. O tempo passou. Fui engordando. Arrumei um emprego que dava pra pagar cerveja e o aluguel de um quartinho na zona leste de Manaus. Por muito tempo botei notas de dois reais em máquinas jukebox só pra escutar o disco “alucinação”. Sonhava com meus livros. Com títulos, capas e leitores. Pode parecer banal, bobo, até patético para muitos, mas ele faz parte da construção de um sonho. Faz parte do meu amor pela literatura. Meu coração sempre foi um bar vazio tocando Belchior. Estou chorando agora. Não de tristeza. Estou chorando de agradecimento. Gratidão. Valeu por ter sido trilha sonora dos meus sonhos mais íntimos, Belchior. 15


Presunto

H

oje vi um cara morrer. Já vi muita gente morta. Já vi muita gente morrendo. É algo corriqueiro. Quem nasce e cresce na periferia, morrer é consolo. Galardão. Prêmio. Ninguém se importa. O cara com duas ou três balas na barriga e uma no ombro. Se esforçando no chão, tentando a todo custo enfiar a mão no bolso traseiro. Aí cheguei perto dele. Sangue saía pela boca. Pelo nariz. Hemorragia espocando por dentro. Abri a carteira dele. Puxei a foto de sua filha e deixei em cima do peito até os olhos vidrarem em direção ao sol. Até a pele ficar azul. Até a morte assoviar. Deixei a carteira do cara ao lado dele. A mão em cima da foto da filha. Um sorriso 3x4 angelical. Fiz o sinal da cruz. Caminhei. Dobrei várias ruas tentando me desfazer da cena. Da porra dos olhos tristes do cara que acabara de falecer deixando uma filha pequena pra ser dragada pela crueldade do mundo. Aí um sujeito me aborda: “cê pegou quanto?” “qual foi, irmão?” “cê pegou quanto do presuntão?” “peguei nada, bicho. Só tirei a foto da filha do cara da carteira e botei em cima do peito dele. A filha devia ser a coisa mais importante pra ele” “é, mas arranja um aí. 16


Só pra quebrar uma pedra. Beber uma cachaça. Tô na fissura” “bicho, não peguei nada do cara. Só puxei a porra da foto da filha. Se liga. Todo mundo viu” “eu abri a carteira dele. Só tinha cartão. Cê não pegou a grana?” “bicho, sai fora. Tô de boa. Não quero aloprar contigo” aí o cara me deixou andar um pouco e tentou botar a mão no meu bolso. O primeiro soco fechou o olho direito. O segundo deixou uns caquinhos de dentes cravados nos meus dedos. O guarda de trânsito que tava multando todo mundo do outro lado da rua saiu correndo pra cima de mim e perguntou: “é ladrão?” “acho que não. Só tava querendo dormir. Ele me disse que tava 4 dias sem dormir. Fiz um carinho nele. Acho que agora vai dormir.” O guarda riu cinicamente. Entrei no ônibus e pude escutar “ladrão de presunto do caralho!” antes de passar na borboleta.

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ARTIGO

ALFREDO ALBUQERQUE

A Terceira

Onda

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O experimento social feito, por acaso, por um professor em sala de aula, para tentar explicar o fenĂ´meno do nazismo, e que tomou uma dimensĂŁo sinistra Cena do filme A Onda, baseado nos relatos do prof. Ron Jones.

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1967.

Em uma escola secundária americana, em Palo Alto, Califórnia, um jovem professor está dando um curso sobre a Segunda Guerra Mundial. O tema é a Alemanha nazista. No meio de uma aula um dos alunos questiona: como havia sido possível que a população alemã, quase em unanimidade, alegasse ignorar o que se passava nos campos de extermínio? Para responder à pergunta, o professor Ron Jones, um sujeito carismático, referência no colégio, decidiu simular, na prática, o processo de engajamento do povo alemão no projeto nazista. Durante uma semana, e gradativamente, estabeleceu comportamentos e posturas a ser adotados em sala de aula. Para a primeira aula definiu as palavras de ordem “Força através da disciplina” e discorreu sobre a importância da disciplina para se obter resultados desejados, dando exemplos de superação nos esportes, ciências, vida pessoal, etc. Criou regras de condutas que deveriam ser seguidas para testar cada aluno. Surpreendeu-se com o envolvimento e entrega da turma como um todo. Na segunda aula trabalhou o lema “Força através da comunidade”, onde tratou da importância do espírito de grupo para a obtenção de um sentido de pertencimento e amparo. Criou uma saudação padrão entre os alunos, um nome para o experimento e uma marca. O movimento se chamaria Terceira Onda, em alusão à melhor onda, de uma série de três, para praticantes de surf. Ron Jones era também surfista. Foi também, a partir daí, que começaram a surgir entre os alunos, 20


comportamentos de vigilância e denúncia contra aqueles que não seguiam as novas regras de maneira adequada. As palavras de ordem recitadas em uníssono em sala de aula e as saudações gestuais, com a mão direita em concha, simulando uma onda, começaram a chamar a atenção de toda a escola e, em pouquíssimo tempo, já havia cerca de 200 alunos, de diversas turmas, envolvidos com os protocolos que Símbolo da Terceira Onda, caracterizavam a Terceira Onda. feito pelos próprios alunos O lema do terceiro dia foi “Força através da ação”. Foi o dia em que se estabeleceram divisões de função dentro da organização do movimento. Foram delegadas tarefas individuais para os alunos, que incluiam recrutamentos, panfletagem, delações, doutrinação. Surpreendentemente, houve uma adesão quase unânime às regras e procedimentos autoritários do experimento, sem questionamentos, e um aumento significativo do desempenho escolar da turma. Apesar de sentir um desconforto crescente com os rumos do experimento, o Sr. Jones (era assim que ele devia ser chamado, de acordo com as regras) manteve a prática, temendo criar traumas nos alunos mais envolvidos, caso a interrompesse abruptamente. Para alguns deles, aquilo havia se trans21


formado rapidamente em sentido de vida. Assim, começou a pensar em uma estratégia para desconstruir o que havia criado e expor aos alunos a facilidade com se manipulam grandes grupos através do discurso. Escolheu como lema para o quarto dia, “Força através do orgulho”, trabalhando sentimentos como o nacionalismo e o sentido de importância e, finalmente, para o último dia, “Força através da compreensão”. Em um auditório lotado, convocado sob o pretexto de selecionar um grupo privilegiado para difundir as ideias da Terceira Onda, num engajamento oficial a um projeto de Governo, Ron Jones, enfim, projetou para os estudantes um documentário sobre as atrocidades cometidas pelo regime nazista, fazendo um paralelo entre as táticas de doutrinação nazistas e as da Terceira Onda. Terminou assim o experimento, em clima de decepção, surpresa, vergonha e algum choro. Ficou, novamente, a óbvia constatação do enorme perigo do apego a “grandes líderes”, capazes de manipular facilmente sociedades inteiras e pessoas que se consideram as mais bemintencionadas. Lição difícil de aprender, haja visto as catástrofes iminentes e em curso que testemunhamos diariamente em função, justamente, dessa idolatria. A sguir, a reprodução da fala do professor aos alunos no auditório, logo após a exibição do documentário sobre o nazismo. O texto foi extraído de artigo publicado por ele em 1972, A Terceira Onda, que pode ser encontrado integralmente na internet. Vale muito a pena, pois descreve o processo de doutrinamento e o envolvimento praticamente irrefletido da turma. 22


A

través da experiência desta semana passada todos nós provamos como foi viver e agir na Alemanha Nazista. Aprendemos como foi criar um ambiente social disciplinado. Construir uma sociedade especial. Jurar lealdade a essa sociedade. Colocar regras no lugar da razão. Sim, nós todos teríamos sido bons alemães. Teríamos vestido o uniforme. Teríamos virado a cabeça à medida em que amigos e vizinhos fosse amaldiçoados e depois perseguidos. Passaríamos a tranca nas portas. Trabalharíamos nas fábricas de “defesa”. Queimaríamos idéias. Sim, sabemos de um modo menor como se sente quem encontra um herói. Agarrar uma solução rápida. Sentir-se forte e no controle do destino. Nós conhecemos o medo de sermos excluídos. O prazer de fazer algo certo e receber a recompensa. Ser o número um. Estar certo. Levadas às últimas consequências, vimos e talvez sentimos aonde levam estas ações. Cada um de nós presenciou alguma coisa nesta última semana. Vimos que o fascismo não é apenas uma coisa que outras pessoas fizeram. Não. Está bem aqui. Nesta sala. Nos nossos próprios hábitos pessoais e modo de vida. Arranhe a superfície e ele aparece. Algo dentro de todos nós. Nós a carregamos como a uma doença. A crença que os seres humanos são basicamente maus e portanto incapazes de agir bem uns com os outros. Uma crença que demanda um líder forte e disciplina para preservar a ordem social. E ainda há algo mais. O ato de se desculpar. Esta é a lição final a ser experimentada. Esta última lição é 23


talvez uma da maior importância. Esta lição foi a pergunta que iniciou nosso merSim, sabemos gulho no estudo da vida nazista. Vocês se de um modo lembram da pergunta? Era a respeito da menor como perplexidade pela forma que a população se sente alemã declarava ignorância e não-envolvimento no movimento nazista. Se eu lembro quem bem da pergunta, era algo nestes termos: encontra um como pôde o soldado, o professor, condutor herói de trens, enfermeira, coletor de impostos alemão, o cidadão comum, declarar ao fim do Terceiro Reich que nada sabia do que estava acontecendo? Como podem pessoas tomar parte em algo e depois declarar ao seu fim que não estavam realmente envolvidos? O que faz com que as pessoas apaguem sua própria história? Nos próximos minutos e talvez nos próximos anos, vocês terão uma oportunidade de responder a esta questão. Se a nossa encenação da mentalidade fascista foi completa, nenhum de vocês jamais irá admitir ter estado neste encontro da Terceira Onda. Como os alemães, vocês terão dificuldade em admitir para vocês mesmos que chegaram tão longe. Não permitirão que seus amigos e pais saibam que vocês estavam dispostos a abrir mão da liberdade e poder individual pelos ditames da ordem e líderes invisíveis. Vocês não podem admitir terem sido manipulados. Serem seguidores. Ter aceitado a Terceira Onda como modo de vida. Não admitirão ter participado desta loucura. Vão manter este dia e este encontro um segredo. É um segredo que irei compartilhar com vocês.” 24


ESCRITOS

MÁRIO BORTOLOTTO

A

í eu tô no bar. E tem uma maluca. Sempre tem uma maluca. Garota bacana e gente boa, mas maluca. A ponto de ficar perdendo o tempo dela (é que ela ainda tem muito tempo) atazanando a vida de um perdido como eu. Ela é uma garota bonita. E jovem. Um pouco excessiva, mas gente boa. Deve ter uma pá de caras loucos pra ficar com ela. E eu sou só um cara velho e desesperançado. Mas sabe-se lá o pq, ela encana comigo. Eu realmente não entendo. Eu só quero beber o meu chopp sossegado e ir dormir na minha casa, sozinho. Eu já tive meus “anos de furacão”. E é foda de eu conseguir fazer ela entender isso e entrar no táxi e ir embora sozinha. Mas consigo. Eu sou um bosta. Na minha idade não preciso mais provar nada pra ninguém, nem bancar o fodão. Sou só um sujeito que gosta de ficar na minha, chamar um uber (acho uber uma invenção muito foda) no meio da madruga e ir pra casa, na maioria das vezes, sozinho. Entro no táxi e o cara pergunta se eu quero mudar de estação. Tá na 89 que é bem razoável. Digo pra ele: “Deixa aí. Eu tenho minha própria música”. E ligo o meu mp3 e me isolo do mundo. E tá tocando essa música. A guitarra dessa música, porra! 14 Bis. “E os meus amigos, dispersos pelo mundo / a gente não se encontra mais / pra cantar aquelas canções que disparavam nosso coração”. Abro um sorriso bobo no meio da minha cara cansada. Lembro de todos os meus amigos que não 25


vejo há muito tempo. Eu sinto saudades, obviamente. Mas também sinto uma felicidade esquisita pq acho que todos eles estão bem “dispersos pelo mundo”. O taxista olha pelo retrovisor, não entende nada. Ele não sabe de porra nenhuma. Mas deve ser um cara bacana. Pelo menos tava na 89. A vida é foda! Que todos os meus amigos e amigas dispersos pelo mundo estejam bem pra caralho. Acho que vou sentir saudades disso tudo qualquer hora dessas.

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HQ

MONTT

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RELATO

SACI PERERÊ

paulinhagata

(parte 3)

26 Jun 2010 Pisada na bola Passados alguns dias do cano, recebi, no meio da tarde, o telefonema da senhorita Paulinha, se derretendo em desculpas pela desfeita e pronta a se render às minhas exigências. Informei que não iria buscá-la. Se ela quisesse, que viesse me encontrar. Eu estaria em casa, situação explicada pela falta do carro, que estava na oficina. Prontamente a oferta foi aceita e ela veio voan­ do ao meu ninho. Nesse ínterim recebi a informação de que o carro estava pronto, e fui buscá-lo. Mas deixei a empregada incumbida de receber a visita com castanhas-do-pará e o notebook conectado à internet sob a mesa. Ao voltar, lá estava ela, sentadinha, com olhos cintilantes e riso traquino. Diante da situação ímpar foi inevitável não notá-la dada e relaxada. Aproveitei para colo30


car algumas questões e cobrar profissionalismo nas nossas empreitadas. A cerimônia foi coroada com a entrega do cacto, muito embora eu tenha dito que o cartão ficaria para o momento oportuno. Como havíamos combinado no primeiro encontro, eu a levaria a um cabeleireiro para que fosse avaliado o estado assustador dos seus cabelos, além de outra avaliação a ser feita numa clínica de estética e beleza, dado o estado de “lixa” da pele que reveste o seu rosto. No percurso que levava ao motel, passei no salão, onde ela recebeu orientações e marcou para o dia seguinte ir cortar. Devido ao avançado da hora, também a esteticista ficou para o dia seguinte. Trocamos algumas idéias e, ao passarmos pela frente da universidade onde diz que estuda, ela pediu pra descer sob argumento de que tinha aula e tal. Dali sumiu com o cactus na mão dizendo que me ligaria depois da aula, se desse, e confirmando o encontro para o dia seguinte, às 5 da tarde. Dessa vez ela apareceu, mas desapareceu... E o suposto telefonema depois da aula não aconteceu. Muito obrigado, (continua...) 31


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