Cineclube01 texto crítico

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CINEMA DE TRANSGRESSÃO Trilogia do Terror, de Ozualdo Candeias, Luís Sérgio Person, José Mojica Marins Blábláblá, de Andrea Tonacci Filme Selvagem, de Pedro Diógenes por João Toledo O "Cinema Marginal", tal como hoje é conhecido, nunca se estabeleceu concretamente como um "movimento" de cinema, nunca como uma corrente de pressupostos estéticos e um ideário acordado por seus membros de carteirinha. Talvez seja justamente esse seu sucesso; o desgoverno, a falta de pressupostos, a liberdade na busca por uma expressão singular - que acabava atravessada por questões de natureza estético-narrativa com muitos pontos de contato, quase como resultado de um espírito de época. Isso significa que qualquer aproximação conceitual entre filmes de diretores distintos se torna, nesse contexto, uma possível armadilha, um terreno pantanoso onde facilmente podemos nos afundar em um pesadelo de simplificações. Dito isso, é possível reconhecer que o horror tem papel significativo no cinema brasileiro, em particular no Cinema de Invenção. Nada mais apropriado: o horror historicamente aflorou em contextos de tirania ou decadência moral, política, social, religiosa etc. E aqui chamo de horror não apenas obras que aderem com gosto aos pressupostos de gênero, mas também às obras governadas por um desamparo e assombradas pela opressão, seja ela qual for. Nesse sentido, é possível perceber que o Cinema Marginal de alguma maneira ecoa no cinema contemporâneo principalmente no sentimento de exasperação e no gesto (aqui metafórico) de tirar os esqueletos do armário. De escancarar o horror cotidiano, percebido nas contradições mais grotescas de nossas experiências sociais. Nesse sentido, o horror está muito menos no cemitério e na assombração, e muito mais no shopping e nos homens de bem, que em geral só querem silenciar as contradições para viver a fantasia do apaziguamento, a máscara da conformidade. Nas obras organizadas dentro da sessão do curso "Cinema de Transgressão", podemos avaliar o horror em sua mais terrível (no bom sentido) abrangência. Candeias, com sua aguçada sensibilidade interiorana, se debruça sobre a realidade rural em suas diferentes matizes culturais. O diretor se reafirma nesse episódio como grande subvertedor da ordem estabelecida das coisas. Ele não está disposto a obedecer a pressupostos narrativos, não adere a preconceitos quando observa com frontalidade e naturalidade os rituais de catimbó, e ainda constrói o portal do inferno de sua fábula faustiana como um antro delirante de transgressão. Figuras andróginas, transgênero, se deleitam no espaço misterioso da caverna com seios à mostra. Seu líder é uma espécie de astro pop que inspira intervenções psicodélicas na trilha sonora. E Jesus surge como um velho mendigo moralista que chega para estragar a festa e, em tom extremamente caricato, se dirige a Deus dizendo que é preciso começar "tudo de novo". No meio desse absurdo conto de escracho cristão, o maior horror talvez esteja na figura do homem - que está sempre disposto a empunhar sua arma e violar uma donzela - e na figura da família cristã, já que é a própria mãe quem deseja desencalhar a filha. Person também avalia o estado dos homens apaziguados do interior, que pregam a paz e temem a tudo o que pode colocar em risco o estado "natural" das coisas. Diante da morte recente do revolucionário Che Guevara, Person transforma a ameaça fantasma em guerrilheiros que se escondem nos bosques e se


reúnem na madrugada para tramar coisas terríveis - a ameaça à paz é respondida a tiros, e o filme se encerra com uma bala na cara do espectador (sujeito passivo, que nesse momento é instado a se mover). Mojica, como de costume, nos arremessa para dentro do pesadelo anunciado de seu protagonista e nos torna cúmplices de uma terrível e incontornável angústia. O caráter político do horror se insere insidiosamente nesses filmes, visto que além da delicada situação política em que o país se encontrava, sob um regime autoritário, também se trata de um longa de encomenda. Essa característica do filme encomendado - "uma fita de mercado, para o grande público", como diriam os produtores - talvez torna ainda mais especial o aspecto rude do horror que vemos aqui - destituído de um tom fantasioso mais sofisticado em seus deslumbres visuais. O filme, em todos os episódios, mesmo o de Mojica, se mantém fortemente colado a uma experiência visual próxima do realismo: o horror não é tanto de outro mundo, sempre está muito próximo de nós. Em seguida, em Blábláblá, Tonacci nos mostra uma sofisticadíssima operação de transmissão de um discurso político - uma epopéia sobre a solidão do autocrata, do herdeiro mais legítimo do absolutismo, capaz de dissolver todos os dilemas da nação, de encerrar todas as contradições, de impor à força os princípios que regem e elevam a nação. Aos poucos no entanto, em meio a interferências cômicas e imagens que revelam as contradições evidentes daquele que busca segurança através da violência, o patético regente vai sendo tomado por um estado de paranoia e angústia diante da dissolução do todo, da glória e da ruína total, da mais absoluta solidão do poder - pois para o dono do mundo, estar mais perto de Deus é estar mais distante do homem. Por último, Pedro Diógenes atualiza o clássico texto de Oscar Wilde, revelando mais uma vez a natureza cíclica dos horrores autoritários impostos a sociedades que começam a ansiar por maiores liberdades e direitos mais abrangentes - há sempre uma força contrária desejando refrear esses desejos libertários, e há sempre uma massa amorfa disposta a corroborar com alguma estupidez autoritária em nome de uma noção "sagrada" da moral social. O texto de Wilde (escrito por ele antes de ser condenado a 2 anos de prisão por atos homossexuais), reivindica a importância da liberdade absoluta do artista. Se o cinema age como prática civilizatória, embutido de ideologias e carregado de regras de conduta estética e moral, um filme de natureza verdadeiramente selvagem atenderia aos anseios de qualquer artista do cinema, pois se trata de uma prática livre de governos, de pressupostos a serem cegamente seguidos. Há um gesto interessante no Filme Selvagem: na medida em que ele confronta o cinema de mercado e sua tendência a conformar sensibilidades, o gesto de esgarçar as imagens, quase despedaçando-as, ao mesmo tempo que cria um ruído, um incômodo, e parece oferecer uma versão grotesca do efeito 3D, o filme sugere uma realidade social disforme, uma massa de sensibilidades despedaçadas, atendendo aos chamados luminosos da igreja do capital (o shopping). No filme inteiro, as imagens das figuras anônimas que caminham como zumbis se confundem aos anúncios perfeitos, em uma fusão que torna indiscernível o consumidor do objeto de consumo. No entanto, ao contrário do tom político do Cinema Marginal, que no geral oferece uma liberdade de perspectiva, o filme de Pedro Diógenes nos oferece uma discurso contrário ao poder mas que em sua forma remonta às práticas do poder. Trata-se, na maior parte, de um discurso autoritário, que deseja impor sua visão. Ele disputa a violência simbólica da sedução do mercado, com a violência intolerante que separa brutalmente o artista puro do comerciante.


Nesse sentido, o filme ganha mais potência quando silencia seu discurso autoritário e remonta ao que de melhor o Cinema Marginal nos oferece em seu aspecto político: sua capacidade de ridicularizar o poder pelo simples gesto de revelar seu absurdo. Em Filme Selvagem esse aspecto do escracho é retomado no final: o grotesco é ressaltado pela manipulação das cores, pelo exagero dos gestos, e uma pronunciada ironia é sublinhada pela música melódica e pela fofice no desvario de consumo da jovem menina. É ridiculamente cômico - sem deixar de ser absurdo - e, assim como os outros filme da sessão, remete à máxima do herói primeiro dos marginais, o bandido da luz vermelha: "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha; avacalha e se esculhamba!". Todos os filmes da sessão operam com um certo terrorismo simbólico ao poder instituído, arrebentando - cada um à sua forma - pressupostos, preconceitos, valores, símbolos. Todos em busca de uma potência, de uma singularidade, de um posicionamento. Em busca de tudo, menos plenitude.


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