Formas insubordinadas e a possibilidade de respirar

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Formas insubordinadas e a possibilidade de respirar Ver é lutar, olhos abertos e espírito alerta. Marie-José Mondzain Quando o cinema nos confronta com uma liberdade tão radical das suas formas, é também, imediatamente, uma vazão livre de desejo que vem jorrar na tela. Disporse ao imprevisto das formas é uma maneira de afirmar, radicalmente, que estamos num campo aberto, em que qualquer noção normativa é explodida, em que uma frente de batalhas se abre na linguagem e em que a forma rejeita conformar-se. Estamos justo noutro ambiente, sem apaziguamentos, marcado pelo constante revolvimento das restrições e pelo alargamento dos modos pelos quais o desejo pode se expressar, pode se arremessar ao mundo, carregando o que vem do corpo e da cidade – rastro, traço, marca – para se disponibilizar a uma partilha com o outro – envio, endereçamento, convite. Se a experimentação oferece tamanha energia para a emergência do desejo, ela passa ainda a ter um vínculo direto com a própria aparição inquieta e liberadora de um sujeito que enuncia. Experimentar é, a um só tempo, inventar o próprio lugar e confrontar o outro com esse lugar. A marca que o corpo deixa no cinema, ao experimentá-lo, é a inscrição mesma do sujeito que se inventou ali – inscrição sempre elaborada, fabricada, como na vida. Fundamentalmente, a experimentação é ocupação da cidade, é tomada radical do cinema, é emergência de uma enunciação, de um rosto ou de gestos (de mãos e manuseios) de alguém. Quando o cinema nos confronta com uma liberdade tão radical das suas formas, ele nos mostra que fazer ver e enunciar são urgências que nos concernem a todos, como o próprio respirar. A boca que sopra, que beija e que articula a palavra, a mão que traça o rastro, os olhos que comem, o corpo que dança: tudo faz parte de um movimento múltiplo e intenso para afirmar um modo de existência na própria vida coletiva. Valére Novarina nos diz: “expirar e surgir são um só gesto”. A escada pode ser um marcador para uma respiração, para uma corrida, para entradas e saídas. No final da festa, depois da proximidade intensa, o espectador pode ser colocado a uma justa distância, para estar junto, mas também respeitar um momento: ficamos ali, a acompanhar a respiração, o enxugar das lágrimas, a mudança em direção ao sorriso. Dançamos com Lara e nos embrenhamos pelos corpos que se misturam. Percorremos dentro e fora, a rua e o espaço da festa, a coleta de uma pedra, rastro da rua, e a tesoura que faz o rasgo. Aqui cortar é também estilhaçar e gerar saltos, fazer intervalos no curso do tempo, introduzir uma descontinuidade. Experimentar tem a ver com o corpo na cena, com a sua performance, mas também com o próprio corpo fílmico, com o modo de apresentá-lo, de inserir nele um ritmo


singular, de torná-lo um rio caudaloso, repleto de curvas e cachoeiras. Fragmentar é um modo também de não abrir todas as portas. Interpor texturas e criar o luscofusco do olhar são dois gestos estéticos e éticos, a nos dizer também que nem tudo pode ser visto livremente, impunemente. Mas há hospitalidade também: Lara entra na festa mobilizada por um chamado, por um convite. Chamar é também produzir chamas e envolver o outro que chega para que possa encontrar companhia e acolhimento. Saímos, certamente, com glitter no corpo inteiro, atravessados pelo calor, constantemente entre a imersão e a elaboração da distância. As marcas existem, constantemente, entre corpo, filme e cidade. Esses vestígios entram como numa espécie de operação questionadora da própria demarcação dos lugares no urbano, da gestão policial da experiência coletiva. Os ruídos e a maneira mesma de se filmar num registro mais precário criam uma espécie de dupla textura, entre aquela dos muros e aquela da superfície quase tátil da imagem. Texturas da cidade, texturas da imagem. Sinfonia da cidade marcada pela proximidade com os traços. A cidade vai se tornando ruína, e as diferentes temporalidades das marcas vão coexistindo. Por vezes, é marca sobre marca, gesto que tenta apagar gesto. Ao se colocar diante dos processos do apagamento, é como se o cinema pudesse também lançar um pensamento a respeito do jogo de forças em constante trabalho aqui, entre o rastro que se expressa e se busca visível, e aquelas estratégias do poder, que querem gerar a invisibilidade. E há mesmo uma sensação de vertigem, quando acompanhamos as produções dessas marcas no alto de prédios. As imagens são feitas na própria conexão com os corpos de quem inscreve as marcas na cidade. O filme é aqui, ele mesmo, uma experiência de risco, com todos os sentidos que essa palavra carrega. É todo um conjunto de poéticas das marcas, poderíamos dizer: elas podem ser aquilo que se inscreve na pele, glitter da festa, ou na tela, transparências interpostas entre imagem e cena (Líquida, de Clara Capelo e Tuan Fernandes); aquilo que se inscreve, com o corpo, na cidade – em risco (Cada nome uma sentença, de Gabriel Silveira e Ramon Sales); aquilo que as mãos criam com cores, linhas, ossaturas e dentes, como numa gênese de processos vitais (Comer com olhos, de Daniel Chastinet), aquilo que a máquina do inconsciente inscreve na imagem e no mundo (Delirium Tremens, de Hugo Sombra); e aquilo que as mãos borram na história das imagens, criando nelas rasgos e movimentos aberrantes (Lugar Nenhum, de Wesley Guerreiro). Tomando emprestados aqui termos de Nicole Brenez, poderíamos dizer que esses filmes vêm a compor toda uma outra história do cinema, insubordinada e rebelde. Tudo se passa como se, no cinema, fosse preciso promover uma aventura do olhar. De tal modo que seria preciso incumbir o próprio olho da tarefa da devoração, para comer com olhos. Riscar a madeira quase como aqueles que já riscaram, certa vez, a própria película. Das superfícies as coisas brotam. As formas, elas de novo, vêm


aqui ser manuseadas, mas também ganham aparição quase instantânea. Combustão espontânea dos traços do desenho. Além dos traços, há todo um conjunto heterogêneo de materiais que são articulados, animados. A animação, posta em lugar tão singular, é também uma espécie de animismo, uma tarefa de observar a vida que surge nos objetos, sugerida pelo movimento livre deles, pelo modo como passam a se agigantar e a preencher uma tela. Os mundos físicos que o cinema cria, cadenciados ainda mais por uma atmosfera sonora, parecem reconduzir o espectador às possibilidades mágicas da imagem. Noutra articulação de imagens incrustadas pelos ruídos do mundo, os jogos de luzes e de sombras elaboram uma atmosfera de mistérios e de intermitência. Seria possível fazer a imagem pegar delírio? Estamos diante de inscrições feitas em muros mais uma vez, que agora se articulam com a possibilidade de uma fábula fantástica das luzes. Quando os arquivos de outro filme são convocados, é como se novas camadas, extraterrenas, pudessem ser adicionadas à experimentação junto ao chão da cidade. A experimentação vem permitir que o cinema sofra visitações de outros mundos e de outras forças, a penetrar portas que se abrem sozinhas. Nesse instante, ao quadro revirado, o olho precisa responder, se deslocando, se pondo em vertigem. Da rua para a casa, somos convidados a pensar o próprio lugar do espectador, que medita sobre as imagens do mundo, jogando com elas, trabalhando em uma remixagem do visível. Esse sujeito que olha transforma-se também num operador do desvio, criando figuras marcadas pela multiplicação, pela alteração das velocidades, pela inversão, pela fragmentação. O espectador transforma-se em montador e recombina uma história do cinema de terror, como nas operações de found footage levadas adiante por um Ken Jacobs, a se apropriar de arquivos e reelaborar as experiências das imagens feitas pelos outros. Se Tom, Tom, the Piper’s Son, de Jacobs, estuda visualmente as formas de um filme mudo dos primeiros cinemas, aqui parece haver um misterioso encontro entre cineastas distantes, nesse confronto com o gesto de retirar imagens de lugares outros e de desenvolver um estudo delas, em lugar nenhum – um videoclipe de Pink Floyd revisitado, uma cena clássica de O Iluminado posta em outras cores e em múltiplas telas. Ausência de lugar, potência de criação de um mundo. O trabalho experimental aqui parece inserir uma pequena pane no sistema, ele vem subverter e suspender o zapping visual em benefício do gesto do curto-circuito, das imagens que são colocadas de ponta-cabeça, do anticlímax final, após créditos. Tarefa crítica de algo como um dia na vida do espectador. Uma dimensão poética e política do cinema talvez consista nisso: revirar as imagens, para fazer delas um novo uso. Estar com esses filmes parece nos demandar mesmo o desafio de manter o mistério que suas operações carregam, para não necessariamente decifrá-las e, mais ainda, para abraçar a liberdade dada a cada espectador para percorrer


itinerários próprios. Caberia aqui sustentar uma energia, essa da multiplicação de possíveis para a fabricação e para que o outro também dispare criações próprias. Essa política contida na estética é uma política do convite e do chamado às potências de todos e de cada um. É uma lição que percorre a história do cinema, e que valeria aqui lembrar, sobretudo, no cinema da realizadora Vivienne Dick, da cena No Wave, em filmes como Guerrillère Talks (1978) e Beauty Becomes the Beast (1979), que poderiam conversar, especialmente, com Líquida. Chego a esses filmes conduzido pelo olhar atento e pela pesquisa singular de Helena Lessa, que nos ensina o seguinte: a noção de uma estética punk pode ser um atravessador de tempos, sem estar circunscrita a um contexto específico e sendo tomada muito mais como uma energia, a nos provocar para outros possíveis no fazer artístico. De um modo deliberadamente livre, é como se pudéssemos considerar que Yasujiro Ozu, Maya Deren ou Pedro Costa, por maneiras muito singulares e distintas, se investem desse gesto punk, capaz de manter uma vivacidade e uma inquietação com as formas. No cinema e na música de vários tempos, uma força punk abre para os variados desejos da experimentação. Na sessão que hoje acolhe nosso corpo, pode-se experimentar com as cores, com os movimentos, com a matéria luminosa, com as intensidades do olhar, com a pele. E uma questão central é que essa experiência vivida na imagem pode multiplicar gestos, abrir mais disposição para respirar e surgir – insurgir. A experimentação das formas gera desejo de produzir visível e coragem para percorrer florestas misteriosas. Talvez estejamos aqui diante de uma lição fundamental da aventura do olhar que esses filmes disparam, com suas formas insubordinadas: quando o cinema se faz com liberdade, ele é, sobretudo, um agente disseminador, um ser capaz de engajar o outro a também experimentar(-se) com a imagem. Por Érico Araújo Lima


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