Greve geral Estamos em greve. Na camisa, o ato enunciativo que avizinha as ações em cena com a inquietude de uma multidão, dentro e fora de campo. Uma das forças éticas de uma imagem talvez resida na habilidade em manejar um mundo performado, imaginado, desejado, em contágio direto com um mundo vivido, de onde pode advir uma potente energia política. Aqui não se trata de um realismo, simplesmente, mas de perceber como a imaginação pode ser uma força em íntima escuta de outras forças e situações, portadoras de mundos diversos, levados ao mundo do cinema. Essa elaboração acolhedora faz da imagem uma via dupla de intercâmbios entre o que lhe concerne diretamente e o que a extravasa por completo, confrontando-a com seu próprio limite e excesso. Da camisa para a cena, seria possível dizer que as formas inventadas por Superdance, de Pedro Henrique, estão como que profundamente contagiadas pelas povoações da cidade, ao mesmo tempo em que o filme inventa, ele mesmo, uma atividade de cena singular. A cena aqui – tudo aquilo que diz dos gestos, dos corpos, das vozes, dos quadros – é, portanto, uma agência, que participa da ocupação criadora da própria cidade que toma por matéria. Perpassando essa sessão do Cine Caolho, parece haver o constante desafio posto ao cinema, sobre como se colocar em movimento com o mundo, como traçar respostas diante daquilo que pode paralisar ou restringir, diante do que cria esvaziamento ou do que estabelece fronteiras. Por vezes, lida-se com essas questões de modo mais solene. Outras vezes, de modo mais explosivo e imprevisível. E há, especialmente, uma espécie de variação nos modos de ocupar o quadro e fazê-lo se contaminar pelo que está fora dele. No filme de Raiane Ferreira, Farpa, a ocupação é constantemente aludida pela incidência de marcas. O filme aponta para um retrospecto, sem que um acontecimento precise, necessariamente, ser evidenciado pela narrativa: uma marca é índice de algo que foi. Maneja-se aqui o campo das inferências, remetendo sempre para algo não imediatamente ali, mas em algum lugar outro. Contagiado pela experiência do vestígio, o espectador estabelece uma relação com esse jogo de pistas e com uma espécie de rastro que parece ter ficado na casa e na memória. O fora-de-campo, em alguma medida, é o próprio passado, aquilo que foi e incide no presente, segundo certa sensação de falta e vazio. Nessa convocação de algo alhures, Farpa também opera, fundamentalmente, pelo gesto do endereçamento, que já se faz sob o limite de não ser acolhido. Se o filme sugere uma ferida exposta, ele faz dessa situação um mote para elaborar o chamado. Por meio da enunciação da voz, sobretudo, mas também pelos planos marcados pela situação de um corpo só, o espectador se insere no curso de uma vida que se vê marcada pela sensação de despovoamento. O envio se faz aqui já sob o risco do fracasso e da ausência de resposta. Há algo como um destinatário em suspenso. A ligação que se tenta é marcada pela espera, o gesto que se elabora é uma tentativa de interlocução, diante do corte, da interrupção. Com Vs.ex.sra. Tristeza, de Clébson Oscar e Wilken Misael, nos deparamos com um quadro ocupado pela cadência do dueto. Aqui estamos no decorrer de um encontro. É o momento de se pensar a composição a dois, a possibilidade de existir
em companhia de um outro, nem que seja para dançar por um momento. Talvez estejamos, muito intimamente, acompanhando justo a busca pelas cadências. No desafio de estar a dois, é preciso compreender esses ajustes entre os corpos, essas articulações entre os tempos de cada um. De alguma maneira, o próprio filme vai pesquisando o seu tempo. Elaborar uma cadência tem a ver também com adotar intervalos, que operam aqui segundo duas maneiras, pelo menos. Primeiro, há a interrupção mesma de uma conversa: como percebemos ao longo da narrativa, nossa experiência junto à cena é marcada por um gesto que intercala tempos, faz uma pausa em um momento, para depois retomar de onde se parou. E é também o recurso do intervalo que faz surgir a palavra escrita, sendo visualizada nas telas que interrompem o fluxo das imagens. Pois escrever é também um gesto constantemente interrompido, que pode ser marcado pelo ir e vir, como nos indica a enunciação da voz, na pista que oferece sobre algo da própria vida de um personagem, dos seus modos de engajamento com o mundo. E se chegamos a essas vidas durante a espessura desse contato fugidio, parece que nos situamos num pequeno instante de virada, esse encontro pontual, mas propício para retomadas e para novas energias. A existência desse dueto torna-se, para os dois personagens, uma possibilidade de contraponto a uma difícil relação com a cidade, vista em quadro de modo mais distante e amplo, recortada para fazer ver seus prédios altos, sua dimensão de bloco de concreto. Ao mesmo tempo, o horizonte do mar permite a emergência de canto, assobio e dança, que se faz apesar do pouco espaço. Talvez seja possível aprender com o filme que um movimento pode acontecer apesar desses espaços exíguos, em que dois corpos inauguram combinações de gestos um com o outro. Em Muros, de Pedro Palácio e Sunny Maia, nos defrontamos com uma experiência radical que parece assolar nosso presente: a imposição de fronteiras e separações chegou mesmo a se instalar entre uma universidade e o seu entorno. Um muro é a interdição de trocas, é a imposição de uma zona opaca e inibidora de qualquer relação de vizinhança. A universidade, o filme nos faz saber, vira as costas para sujeitos que habitam um espaço contíguo e nega a eles a própria condição de interlocutores. Essa situação nos chega com o cinema, nos é enviada pelo filme. Mas, enquanto investigação cinematográfica, como se colocar diante desse desafio de tornar sensível essa interposição de limites e todas as implicações políticas que ela acarreta? Na faixa sonora, podemos ouvir as vozes dos moradores que relatam sobre a experiência gerada por uma vida diante de um muro. Simultaneamente, as imagens mostradas se originam de satélites e do rastreamento cotidiano que o Google Maps realiza das ruas das cidades. Nosso acesso a esse universo é, portanto, por um banco de dados ligado ao monitoramento do espaço urbano. E o que o Google nos dá é isto: primeiro, o sobrevoo, a vista aérea, feita por um olho sem corpo que busca esquadrinhar por completo o espaço; depois, a aproximação sem reservas, que congela instantes de um cotidiano, borrando dos sujeitos os seus rostos. Esse regime de imagem, usado aqui como uma espécie de arquivo e recurso para o campo visual do filme, tem, portanto, um duplo caráter: a despersonalização dos sujeitos e a varredura do território. O olho rastreador é justo a máquina que não
permite fora-de-campo, que pode tornar tudo imediatamente visível, num ir e vir por quadrantes de uma cidade, num rodopiar pela rua, realizável com a manipulação do mouse. Diante dessa condição das imagens empregadas, como engajar o espectador no mundo vivido e experimentado pelo outro? Como pode o filme nos enviar a própria sensação de ter uma fronteira tão radical na vida de todos os dias? Parece que uma imagem sem fora-de-campo abole, desde já, a possibilidade mesma de estabelecer uma relação mais complexa entre dentro e fora, entre o visível e o invisível, entre o quadro e seus limites. Talvez fosse preciso criar uma espécie de contracampo para esse campo visual que torna tudo esquadrinhável, trabalho de montagem capaz de produzir complicadores para essas imagens e de friccionar a possibilidade mesma de varredura do espaço. Inevitavelmente, há uma espécie de paralelo possível entre as funções dessas imagens e as dos muros enquanto tecnologias de organização do espaço e das vidas. Se um muro cria a divisão, é porque quer também melhor controlar. É na própria enunciação da fronteira que uma instância de poder vem dizer o lugar de cada um, vem estabelecer quem entra e quem sai – e cria assim um modo de gestão dos fluxos. Diante dessa dimensão disciplinadora dos muros, talvez seja sempre preciso elaborar reflexividades a respeito da natureza de controle e de gestão que as imagens podem, igualmente, trazer. Diante das fronteiras, é preciso, talvez, convocar a inquietante força das chamas. Voltemos a Superdance. O ir e vir elétrico que o filme traça entre vários regimes de mundo e de cena parece ter por princípio emblemático a dilatação que o quadro vai tendo, na medida em que ora a cena atrai o que vem de fora, ora ela nos arremessa para ir a esse exterior. Por vezes, as conversas são, abruptamente, interrompidas por algo que sonda o fora-de-campo, convocando o olhar de um personagem para esse algo a mais, mundos a mais, sempre a contagiar também a atenção dos outros e a inquietação do próprio espectador. Ao nos ensinar algo sobre a direção de um olhar, o filme parece nos dizer que, diante da natureza de esconderijo do quadro e da sua função fundamental de corte, é possível sempre sugerir frestas para um suplemento. Em outros momentos, é o mundo que rasga a cena, sem pedir licença, caindo como uma televisão que se estilhaça no chão, vinda do alto, ou um pássaro arremessado de fora, a suspender o diálogo em torno de abduções. Suspensão e atração, duas forças que parecem gerar os movimentos entre aquilo que o quadro encerra, nas suas bordas, e aquilo que a porosidade do plano permite se achegar. Esse princípio visual não se dá também sem uma meditação sobre a própria natureza do que se fala. Porque aqui estamos em um filme no qual a palavra é fundamental, nesses diálogos que transitam rapidamente entre múltiplos assuntos, sugerem acontecimentos, tocam do mais íntimo ao mais estrangeiro e fantástico dos tópicos de uma conversação. Nessa frequentação absolutamente sem hierarquia que as palavras vão traçando na cena, é como se o espectador fosse também provocado a se abrir para um livre perambular entre fios de conversas, da vida de um jabuti ao amigo desaparecido, do reality show à abdução de jumentos. Palavra e imagem exercem aqui, então, um empenho complementar na organização de forças, simultaneamente, centrípetas e centrífugas – o quadro, visual e sonoro, atrai e acolhe o que de vários mundos vem, ao mesmo tempo em
que esses mundos arrastam e transportam olhares e palavras para fora deles mesmos. Esse jogo complexo de vetores elaborado no espaço da cena acentua ainda a experiência de povoamento que parece estar no cerne de Superdance. E assim os vários assuntos e as múltiplas linhas de força tornam-se movimentos indissociáveis dessa estratégia de base, que consiste na escolha em fazer de um filme a morada de gestos e vozes singulares-plurais. Novamente, a questão é saber como enfrentar, coletivamente, os desafios do presente, as inquietudes que rondam a vida cotidiana. O olhar voltado ao fora-de-campo, ao final do filme, parece nos conduzir para muito além dali. E complicando qualquer princípio de contiguidade, a montagem nos conduzirá, ao fim, para um sofá em chamas. Incendiar o olhar e a noite talvez seja uma maneira de o cinema tornar pensável a criação de espaços outros para habitar. Com o cinema, estamos em greve, estamos em movimento. Érico Araújo Lima