CINE CAOLHO 05.06

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Greve geral Estamos em greve. Na camisa, o ato enunciativo que avizinha as ações em cena com a inquietude de uma multidão, dentro e fora de campo. Uma das forças éticas de uma imagem talvez resida na habilidade em manejar um mundo performado, imaginado, desejado, em contágio direto com um mundo vivido, de onde pode advir uma potente energia política. Aqui não se trata de um realismo, simplesmente, mas de perceber como a imaginação pode ser uma força em íntima escuta de outras forças e situações, portadoras de mundos diversos, levados ao mundo do cinema. Essa elaboração acolhedora faz da imagem uma via dupla de intercâmbios entre o que lhe concerne diretamente e o que a extravasa por completo, confrontando-a com seu próprio limite e excesso. Da camisa para a cena, seria possível dizer que as formas inventadas por Superdance, de Pedro Henrique, estão como que profundamente contagiadas pelas povoações da cidade, ao mesmo tempo em que o filme inventa, ele mesmo, uma atividade de cena singular. A cena aqui – tudo aquilo que diz dos gestos, dos corpos, das vozes, dos quadros – é, portanto, uma agência, que participa da ocupação criadora da própria cidade que toma por matéria. Perpassando essa sessão do Cine Caolho, parece haver o constante desafio posto ao cinema, sobre como se colocar em movimento com o mundo, como traçar respostas diante daquilo que pode paralisar ou restringir, diante do que cria esvaziamento ou do que estabelece fronteiras. Por vezes, lida-se com essas questões de modo mais solene. Outras vezes, de modo mais explosivo e imprevisível. E há, especialmente, uma espécie de variação nos modos de ocupar o quadro e fazê-lo se contaminar pelo que está fora dele. No filme de Raiane Ferreira, Farpa, a ocupação é constantemente aludida pela incidência de marcas. O filme aponta para um retrospecto, sem que um acontecimento precise, necessariamente, ser evidenciado pela narrativa: uma marca é índice de algo que foi. Maneja-se aqui o campo das inferências, remetendo sempre para algo não imediatamente ali, mas em algum lugar outro. Contagiado pela experiência do vestígio, o espectador estabelece uma relação com esse jogo de pistas e com uma espécie de rastro que parece ter ficado na casa e na memória. O fora-de-campo, em alguma medida, é o próprio passado, aquilo que foi e incide no presente, segundo certa sensação de falta e vazio. Nessa convocação de algo alhures, Farpa também opera, fundamentalmente, pelo gesto do endereçamento, que já se faz sob o limite de não ser acolhido. Se o filme sugere uma ferida exposta, ele faz dessa situação um mote para elaborar o chamado. Por meio da enunciação da voz, sobretudo, mas também pelos planos marcados pela situação de um corpo só, o espectador se insere no curso de uma vida que se vê marcada pela sensação de despovoamento. O envio se faz aqui já sob o risco do fracasso e da ausência de resposta. Há algo como um destinatário em suspenso. A ligação que se tenta é marcada pela espera, o gesto que se elabora é uma tentativa de interlocução, diante do corte, da interrupção. Com Vs.ex.sra. Tristeza, de Clébson Oscar e Wilken Misael, nos deparamos com um quadro ocupado pela cadência do dueto. Aqui estamos no decorrer de um encontro. É o momento de se pensar a composição a dois, a possibilidade de existir


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