Aula 09 cineclube critica

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Pedagogias da transgressão “A imagem não é uma superfície neutra para ninguém, a não ser para aqueles que decidiram se manter neutros” (Serge Daney). “Eu vim de um lugar, madame, onde gente morre de fome”. Essa frase que a personagem de Maria Gladys diz em uma das cenas de Cuidado Madame (1970), de Júlio Bressane, é paradigmática do que poderíamos chamar de uma poética da não-­‐ reconciliação. A empregada doméstica tem diante de si o corpo ensanguentado de uma das patroas. E continua perfurando a barriga da madame com uma faca. Ao fundo, as formas da cidade, entremeadas pelas barras de uma grade. Essa imagem é chave para esse filme em que as tensões de classe são escancaradas de modo frontal. Somos colocados diante da radicalidade de gestos que tocam o terror nos bairros de uma burguesia carioca, nas casas das madames, nas amplas salas, nas coberturas luxuosas. E tudo também se passa com a força de uma alegria, como numa comédia musical permeada por danças da morte. Ainda assim, poética da não-­‐reconciliação. Essa forma de fabricar filmes, de fazê-­‐ los na cisão, lá onde existe uma relação incomensurável de mundos, torna o cinema o lugar de um embate irresolvível, conflito fundamental para que nos engajemos em nosso tempo histórico. Serge Daney já falava dessa dimensão da disjunção a partir do cinema de Huillet e Straub, especialmente inspirado em um dos filmes do casal, que se chama justo Não-­‐reconciliados. Na luta de classes encenada por Bressane, estamos diante de problemas históricos e sociais bem diferentes, mas ainda assim é a marca da rotura que faz do aparelho cinematográfico o propagador de uma pedagogia da transgressão. Digamos assim: o que pode o cinema nos ensinar a respeito dos modos de resistir ao intolerável? Inescapável considerar que estamos na partilha de obras em um cineclube abrigado em um espaço formativo, a pensar justo sobre as formas expressivas do cinema em sua relação com a transgressão. Cuidado Madame, Sobre o conceito de espetáculo (2013), de Luiz Rosemberg Filho, e Longa vida ao cinema cearense (2008), dos irmãos Pretti, podem, então, nos propor uma pedagogia, mas não no sentido canônico desse termo. Se o cinema nos ensina algo, é sempre por meio de intervalos entre a imagem e os corpos daqueles que veem juntos. A imagem cria relação nesse espaço indeterminável que se abre entre os sujeitos do olhar. Mais do que uma continuidade entre os projetos dos filmes e a mobilização do espectador para uma ação, a pedagogia da transgressão desses cinemas dispara itinerários singulares, travessias variadas, nas quais cada um se vê confrontado por um mundo outro que vem da imagem. O cinema como experiência de alteração, mais do que de identificação e reconhecimento. Uma criança lê um texto, ela gagueja diante de algumas palavras difíceis, aquelas que não reconhece de imediato, vindas de um escrito que não a pertence. Essa experiência de despossessão liga a palavra menos a uma dimensão significante do que a um sentimento de enfrentamento. Há algo na voz da garota que parece


progressivamente se contagiar por um modo de provocação. O espetáculo tão combatido por Luiz Rosemberg nesse curta-­‐metragem é colocado em questão, sobretudo, pelo dizível, mas esse dizível não se resume ao significado das palavras – ele se ampara, de modo muito forte, na tonalidade, no ritmo, e mesmo no gaguejar, das vozes que enunciam. Sobre o conceito de espetáculo é um filme bastante exemplar da poética desse cineasta que, desde aos anos 1960, coloca-­‐se na linha de frente do confronto. Filme falado, que também é incrustado pela prática das colagens tão cara ao cinema de Rosemberg, especialmente quando se evidencia o manejo de imagens de arquivo a criar efeitos de estranhamento. Pedagogia rosemberguiana: se o cinema pode ensinar algo a respeito do intolerável do espetáculo, isso precisa se dar pela recusa de que o filme mesmo se materialize segundo um registro espetacular. Daí porque é tão importante o empenho quase artesanal da imagem. O fazer cinema tem, então, um princípio ético bastante imbuído das formas caseiras, da operação manual e do gesto de um operário da imagem. O jogo decisivo desses embates passa também pela elegia à investigação de outras formas de cinema. É como se a transgressão precisasse estar também na capacidade de cindir um jeito de fazer a imagem, de desapropriá-­‐la dos poderes e de proclamar a liberdade da perambulação do cinema pelas ruas. Longa vida ao cinema cearense, visto em conjunto com esses filmes de Bressane e Rosemberg, parece ressoar ainda mais a proclamação radical de outro espírito de mundo e de arte. Da crítica ao espetáculo, parece ser possível desdobrar uma espécie de entusiasmo irônico que deseja abrir novos possíveis para a relação entre corpos, câmeras e cidade. Se existe um mundo de personagens Miquei e de roteiros cinematográficos avaliados segundo o peso físico, há também a afirmação de outros caminhos, rumo a um cinema perigoso, divino e maravilhoso. Esse curta de agitação, se pudermos dizer assim, parece nos deixar tomados por uma vibração muito intensa que engaja o corpo em uma crença nas forças do mundo. O fundamental aqui é essa experiência de acompanhar uma caminhada pelas ruas escuras da cidade, quando todos já estão livres de máscaras, e os pontos de vista entre campo e antecampo se alteram em um só fluxo da deriva. Essas forças da cidade são a tônica de Cuidado Madame. Se o filme se dedica bastante aos interiores das casas da burguesia, ele tem também uma potência constituinte quando acompanha suas personagens em meio às ruas e se deixa tomar pelo extravasamento do filme com um fora dele, com as intensidades de um povoamento por contrabando. Atravessado pelas formas da vida social, o filme de Bressane guarda, ainda nesses momentos de deambulação, a possibilidade de um tempo livre e de um passeio desinteressado por parte das trabalhadoras. É como se fosse possível reencontrar um laço entre o corpo e a experiência urbana, esse corpo liberto das amarras da dominação, que exerceu uma vingança alegre de classe e pode agora afirmar um outro tempo, mais cadenciado pelo desejo e pelo livre fazer. A não-­‐reconciliação, método de fabricar a obra, afirma a impossibilidade de apaziguar as relações de dominação e abre a fresta para que os corpos restituam para si, e por meio de suas próprias posturas, a capacidade de habitar a cidade.


Nessas imagens que tomam posição diante do mundo e confrontam modos de organização e de gestão das vidas, a pedagogia da transgressão é também lugar do incomensurável e do aberto. Cada estratégia, nas suas singularidades e intermitências, está sempre submetida ao jogo da relação: é quando uma imagem se devolve ao olhar do outro que ela também inventa suas próprias condições de contágio. Irreparável disjunção dos sujeitos do olhar: uma imagem nos demanda uma posição, mas também inventamos nosso lugar de espectador junto com ela, a cada encontro. Longa vida aos cinemas e aos modos de ver em transgressão. Por Érico Araújo Lima


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