As Faces de Um Rio

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índice Rio das velhas 09

baixo velhas 02

Rio das velhas 20

bacia do rio paraúna 04

Minas gerias 22

santo hipólito 08

Cordel pela natureza 34

lassance 10

azo de almirante 36

morro da garça 14

projeto manuelzão 40

barra do guacuí 16

as minas de joão guimarães rosa 44

navegação ria abaixo 20

Ângela Maria da Silva

João Guimarães Rosa

Alunos do Colégio Cavalieri João Guimarães Rosa Equipe do projeto

Heloísa Maria Murgel Starling

Eugênio Goulart Eugênio Goulart Eugênio Goulart Eugênio Goulart Eugênio Goulart Eugênio Goulart

amant-ty-kir 22 Gildes Bezerra

canoeiros 24 Edson Penha

estoriinha 26

João Guimarães Rosa

pescaria 32

João Guimarães Rosa

ária 34

João Guimarães Rosa

alongo-me 35

João Guimarães Rosa

aquário 36

João Guimarães Rosa

domínios de natureza do brasil 40 Aziz Ab’Saber

assentamento 42 Chico Buarque

adeus, rio das velhas, adeus 44 Tasso Alvarenga


médio velhas 02 jaguara 04

Eugênio Goulart

jequitibá 06 Eugênio Goulart

alto velhas 02 vila rica 04

Eugênio Goulart

galgando montanhas 06 Eugênio Goulart

jaboticatubas 10

glaura e acuruí 08

serra do cipó 12

rio acima 10

Eugênio Goulart Eugênio Goulart

a terceira margem do rio 14 Caetano Veloso

dias de curvelo 16

Eugênio Goulart Eugênio Goulart

sabará 12

Eugênio Goulart

Bruno Fonseca

santa luzia 14

Gustavo Guimarães

e agora velhas? 18

João Guimarães Rosa

o riachinho sirimim 20

a voz do rio 24 a terceira margem do rio 26 pé no chão 34 Xavier Bartaburu

nossa senhora das águas 36 João Evangelista Rodrigues

ripuária 42

João Guimarães Rosa

Eugênio Goulart

Almira de Jesus Lima

João Guimarães Rosa

recados do sirimim 26 João Guimarães Rosa

chuá chuá 32

Dilza Lopes de Oliveira

lugar do sertão 34

Conceição Clemente de Miranda

o retorno ao lugar onde deixei 36 minha infância Nuno Manna

paisagem do capibaribe 42 João Cabral de Melo Neto

eu, alice possível 46 Letícia Malloy



Rio das velhas Histórico de ocupação A riqueza geológica existente na bacia do rio das Velhas criou diferentes possibilidades para apropriação desse espaço, uma vez que essa região era rica em ouro e outros minerais. Esses minerais foram os principais responsáveis pelo processo de degradação que se instalou na região, apesar de outros fatores tais como a atividade agropecuária e o processo de urbanização terem influenciado em grande escala nesse processo. O ciclo da mineração do ouro que havia iniciado no século XVII, permitiu o crescimento e surgimento de cidades onde era possível a extração de minerais e pedra preciosas, principalmente, no alto e médio rio das Velhas, concentrando-se nas cidades de Ouro Preto, Caeté, Raposos, Sabará e Santa Luzia. Com a corrida do ouro por volta 1760 essa exploração atingiu seu apogeu, decaindo com passar dos anos e iniciando após esse período o processo de industrialização do minério de ferro. A região que mais sofreu intervenções foi a região do alto rio das Velhas com a exploração mineraria, expressiva atividade econômica da bacia. É no alto rio das Velhas que também se concentra o maior contingente populacional, com destaque para a região metropolitana de Belo Horizonte. O processo de acumulação de capital que ocorreu na bacia, gerado à partir das riquezas minerais, possibilitou o processo de industrialização, acompanhado do processo de urbanização, que se iniciou com a transferência da capital do estado de Minas Gerais para Belo Horizonte em 1987. Outra atividade que se desenvolveu ao longo da bacia do rio das velhas foi a agricultura, que inicialmente era destinada para a subsistência das famílias,


que compunham os pequenos aglomerados que estavam se formando na bacia. Esses aglomerados foram se formando a medida que iam sendo descobertas as minas no alto rio das Velhas. Com todo esse processo de abertura e exploração das minas, inicia se o processo das ocupações urbanas na bacia, juntamente com a descaracterização da paisagem da região. Com o passar do tempo a agricultura vai tomando forma, uma vez que a região onde se localiza a bacia do rio das Velhas apresenta uma riqueza natural vasta, propiciando o desenvolvimento de tais atividades. O crescimento da agricultura na bacia do rio das Velhas se deu de forma rápida e desorganizada, devido ao aumento populacional no percurso da bacia. Com o aumento da população, aumenta também a demanda por alimentos, fazendose necessária a expansão das áreas de cultivo para atender as demandas da população. A agricultura foi desenvolvida principalmente na média e baixa bacia, uma vez que a alta bacia não oferece características apropriadas ao desenvolvimento dessa atividade. Outra atividade também de destaque desenvolvida na bacia do rio das Velhas foi a pecuária bovina, principalmente na média e baixa bacia.

Caracterização Geral da Bacia A bacia do rio das Velhas localiza-se na região central do Estado de Minas Gerais, entre as latitudes 17°15’ S e 20º25’S e longitude 43º25’W e 44º50W e apresenta uma forma alongada na direção norte-sul do estado.


A nascente principal do rio das Velhas está localizada na Cachoeira das Andorinhas, no município de Ouro Preto, há aproximadamente 1.520m de altitude e deságua no rio São Francisco na Barra do Guaicuí, distrito de Várzea da Palma. O rio aflui para o rio São Francisco a aproximadamente 800 km A área total da bacia do rio das Velhas é de aproximadamente 29.173km2 e representa cerca de 5% da superfície total do Estado de Minas Gerais, onde estão localizados 51 municípios, sendo que desse total 14 estão parcialmente inseridos na bacia. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia – IBGE (2000), a população da bacia do rio das Velhas é de aproximadamente 4.8 milhões de habitantes, desse total, aproximadamente 89% residem em distritos e municípios integralmente inseridos em seu território. A bacia do rio das Velhas é subdividida em alto, médio e baixo curso do rio.

Alto rio das Velhas: está localizado na região denominada Quadrilátero Ferrífero, tendo como limite sul o município de Ouro Preto e norte os municípios de Belo Horizonte, Contagem e Sabará. Médio rio das Velhas: ao norte coincide com o divisor de águas do rio Paraúna, principal afluente do rio das Velhas e, a partir de sua barra segue para oeste, na mesma latitude do divisor de águas ao norte

do córrego Salobinho, continuando pela linha divisória dos municípios de Curvelo e Corinto. Baixo rio das Velhas: compreende, ao sul a linha divisória entre os municípios de Curvelo (apenas o Distrito de Thomas Gonzaga), Corinto, Monjolos, Gouveia e Presidente Kubitscheck e, ao norte, os municípios de Buenópolis, Joaquim Felício, Várzea da Palma e Pirapora.


Clima Em geral, predomina na bacia do rio das Velhas os seguintes tipos climáticos: clima quente de inverno seco (alta bacia), clima temperado de inverno seco (margem direita da média bacia) e Clima Tropical com Verão Úmido (margem esquerda da média e baixa bacia). As médias anuais de temperatura na bacia do rio das Velhas variam entre 18ºC, na região das cabeceiras, até 23ºC no extremo norte, junto à foz, onde localiza se o Rio São Francisco.

Geologia A bacia do rio das Velhas encontra se localizada no Bloco Brasília, sendo que os complexos gnáissicos-granitóides, de médio grau metamórfico constituem a maior área do embasamento que ainda está exposta, principalmente nas regiões centro-sul (Complexos Barbacena, Mantiqueira, Campos Gerais, Bação, Belo Horizonte, Gouveia e Ressaquinha), meio-leste (Complexos Gouveia e Gunhães) e norte-nordeste (Complexo Porteirinha) do Estado de Minas Gerais. Afloram na bacia, ao sul, os Complexos Bação e Belo Horizonte e, na borda centro-leste, o Complexo Gouveia. Associados a alguns destes complexos gnáissico-granitóides, são encontradas as seqüências metavulcanosedimentares Pium-i, Fortaleza de Minas e rio das Velhas, que se caracterizam tipicamente como Greenstone-Belts.


O Supergrupo Minas apresenta-se extensamente exposto no Quadrilátero Ferrífero, representando uma cobertura posterior ao supergrupo rio das Velhas. Dados geocronológicos recentes indicam que na porção médio - inferior deste Supergrupo (Grupos Caraça e Itabira) depositou-se no limiar do Arqueano com Paleoproterozóico.

Recursos Minerais A exploração dos recursos minerais existentes na bacia do rio das Velhas teve um papel importante na ocupação e desenvolvimento da bacia, principalmente no alto rio das velhas, quando descobriram a existência de ouro e outros minerais preciosos na região. Os principais recursos minerais encontrados na bacia do rio das Velhas são ferro, manganês, ouro, alumínio, urânio, mercúrio, chumbo, zinco, cobre, calcário, mármore, dolomito, quartzo, filito, caulim e argila, tendo eles muita importância para o desenvolvimento econômico na bacia. O ouro foi encontrado na alta bacia do rio das Velhas no final do século XVII, fazendo com que a mineração se tornasse a primeira atividade econômica da bacia com de Minas Gerais, já o minério de ferro foi encontrado, principalmente, na região do quadrilátero ferrífero que apesar da sua disponibilidade em grande escala tinha pouca visibilidade durante o período da mineração do ouro e outras pedras preciosas. Outro mineral encontrado na bacia e o que calcário localizado, principalmente, na região entre Lagoa Santa e Sete Lagoas.


A região de Pirapora e Várzea da Palma tornaram se um importante pólo de fabricação de ligas metálicas, onde utiliza se o quartzo no processo de fabricação, uma vez que o silício e produzido a partir de ligas de quartzo. O diamante atraiu muitos viajantes estrangeiros para a bacia do rio das Velhas durante o século XX, principalmente, para a região de Datas onde se deu a origem dos diamantes. Registros de diamantes podem ser encontrados no rio Cipó e ate mesmo no rio das Velhas. Na bacia também tiveram materiais que foram importantes para o desenvolvimento da bacia como e o caso dos materiais utilizados na construção civil, com areia, cascalho, argila, brita sendo que alguns deles eram explorados em grandes escala sobretudo na região metropolitana.

Pedologia A formação dos solos está relacionada a vários fatores, tais como clima, tempo, material parental e outros. Todos os solos têm sua origem através do processo de intemperização das rochas superficiais ou localizadas a pequenas profundidades, as características das rochas que mais influência na formação dos solos é a composição mineralógica, a resistência mecânica e a textura. As sete classes de solos predominantes na bacia do rio das Velhas são as seguintes:


1 - Latossolo Vermelho-Amarelo: são solos não hidromórficos, com horizonte A fraco a moderado e B latossólico, e que apresenta grande parte de suas características similares ao Latossolo Amarelo e Latossolo Vermelho Escuro. Ocorrem em regiões de relevo plano ou suavimente ondulado, no extremo sul e nos vales encaixados associados a afloramentos de rochas a noroeste da bacia, sendo a maior parte desse tipo de solo identificado nas regiões noroeste e norte da Região Metropolitana de Belo Horizonte. 2 - Latossolo Vermelho – Escuro: são solos profundos, originados de diversos tipos de rocha e uma atração pelo magneto fraca ou inexistente, ocorrem principalmente na porção norte e noroeste da bacia, áreas de superfície de aplainamento entre afloramentos de rochas e os solos litólicos. 3 – Cambissolos: são solos rasos ou pouco profundos, de textura franco-arenosa ou mais fina. As propriedades físicas e químicas desses solos são bastante heterogêneas podendo ser eutróficos, distróficos e álicos e apresenta argila de baixa ou alta atividade, sendo essa a classe de solo que mais ocorre na bacia, que se estende desde o extremo sul até a região nordeste da bacia.

4 - Podzólicos Vermelho – Amarelo: são solos bem drenados, profundos, com perfis bem diferenciados e apresenta textura que varia de argilosa média a moderada, ocorrem nas porções restritas na região central. 5 – Litossolos: são poucos evoluídos, rasos, pedregosos, podendo apresentar horizontes do tipo C, R e A, R, sua ocorrência é pouco expressiva e limita-se a regiões restritas no noroeste e centro da bacia. 6 - Areias Quartzosas: são solos de textura argilosa, quartzosos, excessivamente bem drenados com a ausência de minerais primários, são encontrados no limite oeste de bacia e em áreas de relevo plano a suave ondulado. 7 – Aluviais: são solos rasos e pouco evoluídos, formados pela deposição aluvial recente, seguido por camadas estratificadas, sem relação pedológica entre eles, apresenta também variações quanto à granulometria, composição química e mineralógica. Corresponde a menor classe mapeada, localizandose no extremo norte próxima à confluência do rio das Velhas com o São Francisco. As demais áreas onde ocorrem esses solos são pequenas porções localizadas ao longo dos rios e várzeas ou terraços formados por sedimentos recentes ou sub-recentes.


Geomorfologia As formas de relevo da bacia podem ser agrupadas em três categorias: Áreas ou formas aplainadas: essas áreas quando localizadas sobre planaltos, são constituídas de superfícies aplainadas ou onduladas, ocorrem também no interior de amplas depressões, são antigas superfícies de aplainamento delimitadas por escapamentos. Áreas dissecadas: são encontradas em compartimentos intermediários dos planaltos, no interior das depressões

e em maciços antigos, atualmente as formas que caracterizam essas áreas estão interligadas às condições climáticas. Formas cársticas: advém das rochas calcárias, apresenta uma morfologia própria resultante de processos de decomposição e de reações químicas dos elementos existentes nesse tipo de relevo.

As unidades geomorfologicas da bacia hidrográfica do rio das Velhas são as seguintes: 1 - Planalto do São Francisco: são grandes blocos individualizados pela drenagem, constituídas por rochas do grupo Bambuí, subordinadas por rochas do supergrupo espinhaço, ocorre na borda norte da bacia e em alguns pontos da parte central.

3 - Serra do Espinhaço: conjunto de Serras escarpadas resultantes da dissecação fluvial nas rochas do supergrupo espinhaço, ocorre na porção leste da bacia e estende-se desde a proximidade do Quadrilátero Ferrífero até o nordeste da bacia.

2 - Depressão do São Francisco: extensas áreas aplainadas e dissecadas elaboradas por processos erosivos, ocorrem na RMBH até o norte da bacia, localiza-se a oeste do espinhaço e a norte do Quadrilátero Ferrífero e circundada a leste e a norte do planalto do São Francisco.

4 - Quadrilátero Ferrífero: Unidade morfoestrutural apresentando relevo acidentado, com serras e inúmeras gargantas. Ocorre no extremo sul da bacia, entre os planaltos dissecados no centro sul e do leste de Minas Gerais e das escarpas da Serra do Espinhaço.


Vegetação Na bacia do rio das Velhas restam poucas áreas de vegetação nativa, principalmente no médio e baixo curso, onde grande parte dessa vegetação foi suprimida, dando lugar a outras atividades, principalmente à atividade agropecuária. As matas ciliares vêm sendo cada vez mais reduzidas, aumentando assim o assoreamento dos corpos de água, prejudicando todo o bioma existente na bacia. De forma geral, o modelo de desenvolvimento humano implantado na bacia vem cada vez mais degradando o ecossistema da bacia e reduzindo a sua biodiversidade.

Fauna A bacia do rio das Velhas apresenta uma fauna diversificada, pelo fato de estar localizado num estado que apresenta vários biomas, e por estar numa posição estratégica dentro do estado o que confere certa vantagem quando à biodiversidade da fauna na bacia. A fauna na bacia atualmente encontra se bastante reduzida, graças às intervenções no meio ambiente causadas pelo modelo de desenvolvimento humano, que vem degradando cada vez mais os habitats existentes na bacia.




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Rio das Velhas Ă‚ngela Maria da Silva


Caudaloso E sem tréguas Desce léguas e léguas Sem ouro Sem bateria Sem lavanderia na areia Se escondeu atrás da serra Trem achou Outro dia na paciência Barco do século passado Pôs carão para fora

Prefeito pensou que fosse navio do ouro Assombrou a população O Borba nem ligou Lá no toco, Num perau profundo Urubu carrancudo Espera passar o

morto

O morto-vivo não pára de passar Só urubu carrancudo não vê. Olegário Alfredo


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MINAS


MINAS GERAIS João Guimarães Rosa Minas é uma montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região - que se escala. Atrás de muralhas, através de desfiladeiros - passa um, passa dois, passa quatro, passa três - por caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade.


Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suiça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heróica Provincia, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranqüiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-Ia? MINAS: patriazinha. Minas - a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas - a gente não sabe. Sei, um pouco, seu fades, a natureza física - muros montes e ultramontes, vales escorregados, os andantes belos rios, as linhas de cumeeiras, a aeroplanície ou cimos profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos - a teoria dessa paisagem. Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes, que de algumas já roubaram. Maria da Fé, Serro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Corações do Rio Verde, São João del-Rei, Mar de Espanha, Tremedal, Coromandel, Grão Mogol, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa Esperança ... Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto. Soubesse-a, mais. Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixad’água, o coração branco, di fluente, multivertente, que desprende e deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias - o São Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, os afluentes para o Paraíba, e ainda, - e que, desde a meninice de seus olhosd’água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida. Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas. A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, das com arcas mineradoras, toda na extensão da chamada Zona Mineralógica, a de montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras de córregos que dão ainda lembrança da formosa mulher subterrânea que era a Mãe do Ouro,deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à porta


dessas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o trabeculado de morros, sob picos e atalaias, aos dias longos em nevoeiro e friagem, ao sopro de tramontanas hostis ou ante afantasmagoria alva da corrubiana nas faces de soalheiro ou noruega, num âmbito que bem congrui com o peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias, procissões, oratórios, pelourinhos, ladeiras, jacarandás, chafarizes realengos, irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica, musas entrevistas, estagnadas ausências, músicas de flautas, poesias do reesvaziado - donde de tudo surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do mais longe, quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo nostalgir-se, a melancolia que coerce, que vem de níveis profundos. Essa - tradicional, pessimista ainda talvez, às vezes casmurra, ascética, reconcentrada, professa em sedições - a Minas geratriz, a do ouro, que evoca e informa, e que lhe tinge o nome; a primeira a povoar-se e a ter nacional e universal presença, surgida dos arraiais de acampar dos bandeirantes e dos armados de fixação do .reinol, em capitania e província que, de golpe, no Setecentos, se proveu de gente vinda em multidão de todas as regiões vivas do país, mas que, por conta do ouro e dos diamantes, por prolongado tempo se ligou diretamente à Metrópole de além-mar, como que através de especial tubulatura, fluindo apartada do Brasil restante. Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de numerosissimos judeus manipuladores de ouro, de africanos das estirpes mais finas, negros reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro mineirão, mineiro


da gema, com seus males e bens. Sua feição pensativa e parca, a seriedade e interiorização que a montanha induz - compartimentadora, distanciadora, isolante, dificultosa. Seu gosto do dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e cautela - de vez que de Portugal vinham para ali chusmas de policiais, agentes secretos, burocratas, tributeiros, tropas e escoltas, beleguins, fiscais e espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar, intrigar, punir, taxar, achar sonegações, desleixos, contrabandos ou extravios do ouro e diamantes, e que intimavam sombriamente o poder do Estado, o permanente perigo, àquela gente vigiadíssima, que cedo teve de aprender a esconder-se. Sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes, entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e polidos. Sua carta de menos. Seu fio de barba. Sua arte de firmeza. Mas esse mineiro se estendeu de lá, no alargado, porque o chão de Minas é mais, expõe maior salto de contrastes. É a Mata, cismontana, molhada ainda de marinhos ventos, agrícola ou madeireira, espessamente fértil. É o Sul, cafeeiro, assentado na terra-roxa de declives ou em colinas que européias se arrumam, quem sabe uma das mais tranqüilas jurisdições da felicidade neste mundo. É o Triângulo, saliente avançado, reforte, franco. É o Oeste, calado e curto nos modos, mas fazendeiro e político, abastado de habilidades. É o Norte, sertanejo, quente, pastoril, um tanto baiano em trechos, ora nordestino na intratabilidade da caatinga, e recebendo em si o Polígono das Secas. É o Centro


corográfico, do vale do rio das Velhas, calcário, ameno, claro, aberto à alegria de todas as vozes novas. É o Noroeste, dos chapadões, dos camposgerais que se emendam com os de Goiás e da Bahia esquerda, e vão até ao Piauí e ao Maranhão ondeantes. Se são tantas Minas, porém, e contudo uma, será o que a determina, então, apenas uma atmosfera, sendo o mineiro o homem em estado minasgerais? Nós, os indígenas, nem sempre o percebemos. Acostumaram-nos, entretanto, a um vivo rol de atributos, de qualidades, mais ou menos específicas, sejam as de: acanhado, afável, amante da liberdade, idem da ordem, anti-romântico, benevolente, bondoso, comedido, canhestro, cumpridor, cordato, desconfiado, disciplinado, discreto, escrupuloso, econômico, engraçado, equilibrado, fiel, fleumático, grato, hospitaleiro, harmonioso, honrado, inteligente, irônico, justo, leal, lento, morigerado, meditativo, modesto, moroso, obstinado, oportunidade (dotado do senso da), otário, prudente, paciente, plástico, pachorrento, probo, precavido, pãoduro, perseverante, perspicaz, quieto, recatado, respeitador, rotineiro, roceiro, secretivo, simplôrio, sisudo, sensato, sem nenhuma pressa, sagaz, sonso, sôbrio, trabalhador, tribal, taciturno, tímido, utilitário, virtuoso. Sendo assim o mineiro há. Essa raça ou variedade, que, faz já bem tempo, acharam que existia. Se o confirmo, é sem quebra de pejo, pois de mim, sei, compareço, ante quase tudo, como espécime negativo. Reconheço, porém, a aura da montanha, e os patamares da montanha, de onde o mineiro enxerga. Porque, antes de mais, o mineiro é muito espectador. O mineiro é velhíssimo,


é um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada natureza. É uma gente imaginosa, pois que muito resistente à monotonia. E boa - porque considera este mundo como uma faisqueira, onde todos têm lugar para garimpar. Mas nunca é inocente. O mineiro traz mais individualidade que personalidade. Acha que o importante é ser, e não parecer, não aceitando cavaleiro por argueiro nem cobrindo os fatos com aparatos. Sabe que “agitar-se não é agir”. Sente que a vida é feita de encoberto e imprevisto, por isso aceita o paradoxo; ‘é um idealista prático, otimista através do pessimismo; tem, em alta dose, o amor fati. Bem comido, secularmente, não entra caninamente em disputas. Melhor, mesmo - não disputa. Atencioso, sua filosofia é a da cordialidade universal, sincera; mas, em termos. Gregário, mas necessitando de seu tanto de solidão, e de uma área de surdina, nos contactos verdadeiramente importantes. Desconhece castas. Não tolera tiranias, sabe deslizar para fora delas. Se precisar, briga. Mas, como ouviu e não entendeu a pitonisa, teme as vitórias de Pirro. Não tem audácias visíveis. Tem a memória longa. Ele escorrega para cima. Só quer o essencial, não as cascas. Sempre freqüentado pelo enigma, retalha o enigma em pedacinhos, como quando pica seu fumo de rolo, e faz contabilidade da metafísica; gente muito apta ao reino-do-céu. Não acredita que coisa alguma se resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Principalmente, isto: o mineiro não usurpa. Até sem saber que o faz, o mineiro está sempre pegando com Deus.


Aí está Minas: a mineiridade. Mas, entretanto, cuidado. Falei em paradoxo. De Minas, tudo é possível. Viram como é de lá que mais se noticiam as coisas sensacionais ou esdrúxulas, os fenômenos? O diabo aparece, regularmente, homens ou mulheres mudam anatomicamente de sexo, ocorrem terremotos, trombas-d’água, enchentes monstras,corridas-de-terreno, enormes ravinamentos que desabam serras, aparições meteóricas, tudo o que aberra e espanta. Revejam, bem. Chamam a seu povo de “carneirada”, porque respeita por modo quase automático seus Governos, impessoalmente, e os acata; mas, por tradição, conspira com rendimento, e entra com decisivo gosto nas maiores rebeliões. Dados por rotineiros e apáticos, foram de repente à Índia, buscar o zebu, que transformaram, dele fazendo uma riqueza, e o exportam até para o estrangeiro. Tidos como retrógrados, cedo se voltaram para a instrução escolar, reformando-a da noite para o dia, revolucionariamente, e ainda agora dividindo com São Paulo o primeiro lugar nesse campo. Sedentários famosos, mas que se derramaram sempre fora de suas divisas estaduais, iniciando, muito antes do avanço atual, o povoamento do Norte do Paraná, e enchendo com suas colônias o Rio, São Paulo, Goiás e até Mato Grosso. Pacíficos por definição, tiveram em sua. Força Pública militar, prussianamente instruída e disciplinada, uma formidável tropa de choque, tropa de guerra, que deu o que respeitar-se, e com larga razão. E, de seus homens políticos, por exemplo, vêem-se atitudes por vezes menos previsíveis e desconcertantes; que não serão anômalas, senão antes marcas de sua coerência profunda - a única verdadeiramente com valibilidade e eficácia. Disse que o mineiro não crê demasiado na ação objetiva; mas, com isso, não se anula. Só que mineiro não se move de graça. Ele permanece e conserva. Ele espia, escuta, indaga, protela ou palia, se sopita, tolera, remancheia, perrengueia, sorri, escapole, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca, matuta, destorce, engambela, pauteia, se prepara. Mas, sendo a vez, sendo a hora, Minas entende, atende, toma tento, avança, peleja e faz.

Sempre assim foi. Ares e modos. Assim seja.


Só e no mais: sem ti, jamais nunca! - Minas, Minas Gerais, inconfidente, brasileira, paulista, emboaba, lírica e sábia, lendária, épica, mágica, diamantina, aurifera, ferrífera, ferrosa, fêrrica, balneária, hidromineral, jê, puri, acroá,goitacá, goianá, cafeeira, agrária, barroca, luzia, árcade, alpestre, rupestre, campestre, de el-rei, das minas, do ouro das minas, das pretas minas, negreira, mandingueira, moçambiqueira, conga, dos templos, santeira, quaresmeira, processional, granítica de ouro em ferro, siderúrgica, calcária, das pirambeiras, serrana bela, idílica, ilógica, translógica, supralógica, intemporal, interna, leiteira, do leite e da vaca, das artes de Deus, do caos claro, malasarte, conjuradora, adversa ao fácil, tijucana, januária, peluda, baeteira, tapiocana, catrumana, fabril, industriosa, industrial, fria, arcaica, mítica, ehigmática, asiática, assombrada, salubre e salutar, assobradada, municipal, municipalíssima, paroquial, marília e heliodora, de pedra-sabão, de hematita compacta, da sabedoria, de Borba Gato, Minas João-pinheira, Minas plural, dos horizontes, de terra antiga, das lapas e cavernas, da Gruta de Maquiné, do Homem de Lagoa Santa, de Vila Rica, franciscana, barranqueira, bandoleira, pecuária, retraída, canônica, sertaneja, jagunça, clássica,


mariana, clàustral, humanista, política, sigilosa, estudiosa, comum, formiga e cigarra, labirintica, pública e fechada, no alto afundada, toucinheira, metalúrgica, de liteira, mateira, missionária, benta e circuncisa, tropeira, borracheira, mangabeira, comboieira, rural, ladina, citadina, devota, cigana, amealhadora, mineral e intelectual, espiritual, arrieira, boiadeira, urucuiana, cordisburguesa, paraopebana,fluminense-das-velhas,barbacenense, leopoldinense, além-paraibana, itaguarense, curvelana, belorizontina, do ar, do lar, da saudade, doceira, do queijo, do tutu, do milho e do porco, do angu, do frango com quiabo, Minas magra, capioa, enxuta, groteira, garirnpeira, sussurrada, sibilada, Minas plenária, imo e âmago, chapadeira, veredeira, zebuzeira, burreira, bovina, vacum, forjadora, nativa, simplissima, sabida, sem desordem, sem inveja, sem realce, tempestiva, legalista, legal, governista, revoltosa, vaqueira, geralista, generalista, de não navios, de não ver navios, longe do mar, Minas sem mar, Minas em mim: Minas comigo. Minas.




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Cordel pela Natureza


Nós ainda somos crianças, mas podemos ensinar, aos que andam destruindo, toda nossa natureza, a respeitar e preservar. Vamos encontrar um jeito, com toda a certeza, de ensinar o ser humano a usar a inteligência respeitando a natureza. Não matando os animais, não queimando as florestas, não poluindo as águas. Para que envenenar? A terra mal tratada produz frutos de veneno que podem nos matar. Nós ainda somos crianças, e sabemos tudo isso.

Os adultos não pensam, temos que reconhecer, que o ar que respiramos, produzido pelas plantas, puro, limpo e sem mal cheiro, nos fará sobreviver. Como é gostosa a praia! Brincar na areia, respirar, o sol moderado, o ar fresquinho, a água limpa nos rios, os passarinhos nos ninhos, a mata toda a cantar. A vida é um presente, que Deus nos concedeu é só respirar, tocar e ver. As flores têm perfumes, os filhotes vão nascer , a natureza colore a o planeta não pode morrer.

vida


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Azo DE ALMIRANTE João Guimarães Rosa Longe, atrás uma de outra, passaram as mais que meia dúzia de canoas, enchusmadas e em celeuma, ao empuxo de remos, a toda a voga. O sol a tombar, o rio brilhando que qual enxada nova, destacavam-se as cabeças no resplandecer. Iam rumo ao Calcanhar, aonde se preparava alguma desordem. De um Hetério eram as canoas, que ele regia. Despropósito? O caso tem mais dúvida.


Eventos vários. Em fatal ano da graça, Hetério sobressaíra, a grande enchente de arrasar no começo de seus caminhos. Fora homem de família, merecedor de silêncio, s6 no fastio de viver, sem hálito nem bafo. O gênio é punhal de que não se vê o cabo. Não o suspeitavam inclinado ou apontado ao êxito no século. Na cheia, por chuvas e trombas, desesperara-se o povo, à estraga, em meio ao de repente mar - as águas antepassadas - por cima o Espírito Solto. Hetério teve então a suscitada. Ajuntou canoas e acudiu, valedor, dado tudo, sabendo lidar com o fato, o jeito de chefe. Ímpetos maiores nunca houve, coisa que parecia glória. Salvou, quantidade. Voltado porém da socorreria, não achou casa nem corpos das filhas e mulher, jamais, que o rio levara. Não exclamou. Não se pareceu mais com ninguém, ou ébrio por dentro, aquela novidade de caráter. Sacudia, com a cabeça, o perplexo existir, de dó sem parar, em tanta maneira. E nem a bola de bilhar tem caprichos cinemáticos. De modo ou outro, já estava ele adquirindo as boas canoas, de que precisava. Para o que de efeito. Destruíra-se a ponte da Foa, cortando a estrada, ali de movimento. Hetério despachou-se para lá, tripulantes ele e os filhos, e outros moços, e arranjaram-se ao travessio. Durado mais de ano, versaram aquilo, transpondo gente e carga, de banda para banda. Até cortejos de noivos passaram, sob baldaquim, até enterros, o bispo em pastoral, troços de soldados. Foi tudo justo. Obedeciam os outros a Hetério - o em posição personificada - o na maior, canoa barcaçosa, a caravela com caveiras. Ao certo, nada explicava, ainda que de humor benigno, homem de cabeça perpétua; cerrando bem a boca é que a gente se convence a si mesmo. Morriam-lhe os inimigos, e ele nem por isso se alegrava, ao menos. Segue-se ver o que quisesse. A ponte nova repronta, o bom ofício tocava a termo. Hetério, entretanto, se reaviara. Descobrira-se, rio acima, uma mulher milagreira jejuadora, a quem os crentes acorriam. Vieram também, para passadores, ele e os seus; todo o mundo é, de algum modo, inteligente. Travessavam, com acuração, os peregrinos da santa, aleijados, cegos, doentes de toda loucura e lepra, o rico triste e o próximo precisado.


Semi-ator, Hetério, em mãos o rosário e o remo amarelo-venado de taipoca, tivesse mudado talvez a lembrança da enchente e de sua ocasião de herói, que já era apenas virtude sem fama, um fragmento de lenda. Ao adiante, assim às-águas - outras e outras. No rio nada durava.

um dos filhos de Hetério o deixou, para namorar e se casar. Hetério, ora, em oferecido tempo, encontrou um Normão, homem apaixonado, na maior imaginação. A paisagem ali tomava mais luz: fazia-se mais espelho - a represa, lisa - que não retinha, contudo, corpos de afogadas.

Agora, ao pôr-do-sol, desciam as canoas - de enfia-a-fino, serenas, horizonteantes, cheias de rude gente à grita, impelidas no reluzente – de longe, soslonge.

E esse Normão, propício, queria reaver sua mulher, que o pai guardava prudente, de refém, na Fazendado-Calcanhar, beiradeã. Enquanto anos; e a usina deu-se por pronta. O rio não deixa paz ao canoeiro.

Ainda não.

Assim ao de longe, contra raso sol, viu-se a fila de canoas, reta rápida, remadas no brilhar, com homens com armas, de Normão, que rumavam a rixa e fogo. Hetério comandava-as, definitivo severamente decerto, sua figura apropriada, vogavante.

Seguindo-se antes outros atos. Desaparecida de lá a mulher beata, Hetério com os dele saíramse imediatamente a mascatear, revendendo aos ribeirinhos mercadorias e miudezas, em faina de ciganos regatões. Sobe e descendo, nessa cabotagem trafegaram até a águas sãofranciscas, ou abocando a outros rios, as canoas mercantes separadas ou juntas, como de estanceio chegaram ao porto de Santo Hipólito e ao Porto-dasGalinhas, abaixo de Traíras, lugares de negócio, no das Velhas, de praias amarelas, Trazia ‘ele ‘então lápis e uma grande caderneta, em que assentava e repassava difíceis contas. Os que o seguiam, pensavam na riqueza. Daí, vai, começou a construir-se barragem para enorme usina, a do Govemo, em tumulto de trabalhadores, mil, totalmente, de dezenas de engenheiros.Rearvorado, logo Hetério largouse para lá, com seu lóide de canoas. Vales, a bacia, convertiam-se em remanso de imenso lago, em que podiam navegar com favor e proveito. Empreitaramse, por fim, a contrato daqueles. Máquinas e casas, nas margens, barracões de madeira – e foi que

Certo, soube-se. Aproaram aos fundos da do-Calcanhar, numa gamboa, e atacaram, de faca em polpa. Troou, curto, o tiroteio, Normão, vencedor, raptada em paz a mulher, no ribanceiro acendeu fogueira de festa. As canoas todas entanto se perderam. Só na sua, Hetério continuou, a esporte de ir, rio abaixo, popeiro proezista, de levada, estava ferido, não a conduzia de por si, vogavagante; e seu outro filho na briga terminara, baleado. Adiante, no travessão do Fervor, itaipava perigosa, a canoa fez rombo. Ainda ele mesmo virou-a então, de boca para baixo, num completamento. Safo, escafedeu-se de espumas, braceante, alcançou o brejo da beira, onde atolado se aquietou. Acharam-no - risonho morto, muito velho, velhaco - a qualidade de sua pessoa.


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projeto manuelzão Equipe do projeto O Projeto Manuelzão completou, em 2007, uma década de existência bem vivida, com muitas realizações e boas perspectivas para o caminho a percorrer. Somos, hoje, fruto de um trabalho cotidiano intenso, agitado, quase frenético, muitas vezes conflituoso, mas sempre fértil.


O Projeto nasceu a partir do esforço de um grupo de professores do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Estes professores empenharam-se em extrapolar o âmbito de atuação da disciplina Internato em Saúde Coletiva, conhecida como Internato Rural, do último ano do curso médico de graduação. Partiuse da premissa de que a saúde humana está íntima e inevitavelmente ligada à qualidade de vida, ou seja, a um ecossistema saudável. Neste ecossistema, a questão ambiental e social se fundem. Como local de atuação, o Projeto optou metodologicamente pela bacia hidrográfica do rio das Velhas, que compreende cinqüenta e um municípios mineiros, total ou parcialmente. Sob a perspectiva histórica, o Velhas é como a espinha dorsal de Minas Gerais, cavando oitocentos e quatro quilômetros de leito ao longo da região central de nosso Estado. A área é densamente povoada, pois em suas terras está situada a Região Metropolitana de Belo Horizonte, que agride diariamente o nosso querido rio, além de seus afluentes.

O Manuelzão não prescinde do diálogo, e realiza suas atividades sob a ótica da transdisciplinaridade, agregando biólogos, médicos, engenheiros, geólogos, geógrafos, historiadores, advogados, pedagogos e vários outros profissionais. Consolidou e continua a fomentar, ainda, parcerias com universidades, escolas de ensino fundamental e médio, órgãos e entidades governamentais e não governamentais, empresários e diversos setores da sociedade civil. A partir da articulação com os diversos atores da bacia, o Projeto Manuelzão estruturou-se e pôde desenvolver pesquisas, como as relacionadas ao biomonitoramento de nossa fauna de peixes e de pequenos invertebrados, indicadores da qualidade das águas, e aquelas relativas às técnicas de replantio de matas ciliares. Desenvolveram-se, também, programas de educação ambiental e de mobilização social. Dentre nossas vitórias, pode-se citar a formulação de nova abordagem para o tratamento. de cursos d’água, aprovada pelo Estado de Minas Gerais, por meio da qual devem ser evitadas, sempre que possível, as canalizações. Afinal, um dos lemas do Manuelzão é “o destino dos peixes anuncia o nosso”.




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A


As Minas de João Guimarães Rosa Heloisa Maria Murgel Starling Na composição do romance Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa faz o registro detalhado das ruínas, fragmentos, detritos, resíduos de tudo aquilo que o Brasil modernizado pelo desenvolvimentismo de Kubitschek não conseguiu mais aproveitar e a república descartou por improdutivo, supérfluo, inútil.


Fundar uma nação onde só parece crescer o vazio, criar formas de vida em comum, introduzir a possibilidade do convívio político a partir das margens – esta a tarefa que nos coube, habitantes nesse desvio esconso do mundo ocidental a que se deu o nome de Brasil. Tarefa não apenas nossa. Nos subúrbios latinoamericanos onde vivemos – já anotava Jorge Luis Borges, em Fragmentos de um evangelho apócrifo –, o gesto de fundação sempre traduziu o dever de inventar uma maneira própria para plantar um marco de pedra num chão onde apenas parece existir areia, deserto e aparente caos. Na literatura de interpretação do Brasil, a palavra sertão traz associado um conceito. Uma palavra torna-se conceito quando a plenitude de um contexto político e social de significado e de experiência no e para o qual essa palavra é usada pode ser nela condensado. No caso da palavra sertão, o conceito revela uma maneira peculiar de narrar o projeto sempre problemático da fundação nacional brasileira a partir dos confins, das margens em que se refletem e se cruzam as dúvidas sobre os dilemas da nossa formação histórica e social. E revela igualmente o melhor modo para entender essa figuração equívoca do Brasil, essa paradoxal metáfora de uma república construída longe da dóxa, distante daquilo que é comum: um país sem lugar, permanentemente suspenso entre universalismo e particularismo, entre cidade e interior, entre modernidade e arcaísmo, entre autonomia e dependência, entre miséria e abundância, entre república e corrupção, entre desigualdade e democracia, entre Primeiro e Quarto mundos. Conceito é o concentrado de inúmeros significados substanciais e é precisamente esse concentrado que confere ao conceito – qualquer conceito – sua múltipla carga de significação. Originariamente uma contração do aumentativo de sertão, muito utilizado na África e na América do Sul, no caso do Brasil, o termo sertão carregou consigo, desde o início, uma forte dose de ambigüidade. Durante o século XVIII, serviu para designar as terras do interior, lugar de desvio das povoações, domínio do desconhecido, área de ausência da mineração. Desde então, seu sentido encontra-se articulado por uma dupla rede de significação: de um lado, sertão indica o processo de formação de um espaço interno, a perspectiva do interior; de outro, sertão traduz a configuração de uma realidade política: a condição do desterro, a ausência de leis, a precariedade dos direitos, a inexistência da ordem. Em certa medida, a própria formação do nome do Estado brasileiro Minas


Gerais, por exemplo, é tributária dessa duplicidade de significados: Minas é a enfiada de cidades interligadas pelo caminho do ouro e dos diamantes, a região em contato constante com o mar, o mundo da ordem por onde a metrópole portuguesa se transpôs ao interior. Já os Gerais são outra coisa: a inexistência do ouro, a ausência de governo, o abismo do desconhecido, o espaço vazio, a fronteira aberta, o potencial de liberdade, o risco da barbárie. Na perspectiva do conceito, os Gerais surgem subordinados às Minas – é sua oportunidade de expansão. Já nesse caso, sertão não significa apenas um ponto extremo do mapa ou a indicação de um espaço geográfico vazio – é, ao mesmo tempo, um condicionante histórico e político de formação do mundo público e uma paisagem fadada a desaparecer.

Grande sertão: Brasil Não foram poucos os autores que se debruçaram sobre o tema. Mas foi João Guimarães Rosa e seu projeto literário – sempre pronto a apontar para as possibilidades não concretizadas em um determinado momento da realidade histórica e política brasileira, projeto capitaneado pelo livro Grande sertão: veredas – quem expandiu, pela via da imaginação literária, a profunda ambigüidade do conceito sertão. Seu projeto tinha vários objetivos. Um deles: facultar ao objeto histórico Brasil atingir sua máxima visibilidade. Em 1967, numa declaração que glosa o próprio estilo, no prefácio de seu último livro, Tutaméia, Guimarães Rosa tratou de definir esse projeto literário. E definiu sua obra não como um espelho cuja materialidade translúcida reproduz e multiplica imagens do mundo humano, mas como um vão, um tipo característico de fenda na superfície do real, que indica existir em toda realidade algo mais do que aquilo que chamamos realidade: “o livro pode valer”, afirma o prefácio de Tutaméia, “pelo muito que nele não deveu caber”. Publicado em maio de 1956, o romance Grande sertão: veredas traduz uma espécie de síntese desse projeto literário fundado no coração do mito, no impulso ficcional de inscrever no cotidiano dos homens as possibilidades ainda latentes de uma determinada realidade, convidando-os a imaginar que as coisas no mundo poderiam ser diferentes do que realmente são. Nesse convite à imaginação do possível ou, para usar os termos do próprio Guimarães Rosa, nesse esforço para extrair no horizonte do real “o que aqui se quer tirar: o leite que a vaca não prometeu”, as fronteiras do fazer literário


recuperam um ponto essencial da articulação entre história, política e ficção; e recuperam-no poeticamente, vale dizer, retomando o princípio que orientava a tarefa do poeta grego arcaico: conferir fama imortal às palavras e às façanhas humanas, transmitindo-a de geração a geração e obtendo para isso, tal como ocorria com os adivinhos e com os profetas, acesso às partes do tempo inacessíveis aos demais homens – o que existiu no passado, o que ainda não chegou a existir. Emerso desse território característico onde literatura, política e história encontram suas raízes comuns, Grande sertão: veredas também pode ser entendido, entre várias outras possibilidades de leitura, como a extraordinária tentativa de iluminar uma visão do Brasil e convertêla em palavras, por meio da contemplação de um mundo arcaico, longínquo, fechado sobre si mesmo, supostamente imóvel e mítico – o sertão. Como conseqüência, o núcleo central do romance consegue realizar um duplo trabalho de articulação entre a imaginação literária e a imaginação histórica e política brasileira: por um lado, busca recriar, literariamente, os pontos de tensão e de ancoragem entre uma configuração histórica muito bem determinada – as relações sociais e de poder estabelecidas ao longo dos primeiros cinqüenta anos da história republicana do país – e os projetos de modernização e de consolidação política da nação brasileira. Por outro lado, contudo, Grande sertão:veredas também trata de refletir sobre as condições de transformação dessa nação – isto é, dessa comunidade territorial, lingüística, étnica ou religiosa – numa república. Mais incisivo do que isso, talvez, em Grande sertão: veredas o acento republicano insiste em sublinhar tanto a natureza


política dessa comunidade e de sua vida pública quanto a necessidade de agregar seus membros à condição própria de cidadãos, tendo em vista o bem, os direitos e os interesses comuns – e, nesse caso, o acento republicano da obra nos remete, no fundamental, à sua significação de coisa pública, de esfera dos interesses comuns, do bem comum.

Brasil de mil-e-tantas misérias Quando Guimarães Rosa publicou Grande sertão: veredas, em maio de 1956, Juscelino Kubitschek, recém-empossado na Presidência da República, tratava de oferecer concretude ao seu próprio projeto político para o país: inventar cidades voltadas para o futuro, capazes de representar um esforço de afirmação da nacionalidade, um desejo de integração do interior ao centro, do Brasil ao mundo, da tradição ao moderno. Evidentemente, a tradução mais completa desse projeto é Brasília. A capital inaugurada em 21 de abril de 1960 era parte de um programa ainda maior: JK sonhava construir, no país, as bases de uma sociedade mais avançada, comprometida com um amplo programa modernizador e, portanto, disposta a produzir os mecanismos de integração dos brasileiros ao mundo moderno – embora também seja possível dizer, quarenta e dois anos passados, que Brasília manteve seus palácios, como queriam Kubitschek e Niemeyer, “suspensos, leves e brancos, nas noites sem fim do Planalto”, mas tornou o poder mais asséptico, mais isolado, mais arrogante, transformou-se numa cidade onde os governantes do país correm o risco de perder o contato com sua população e passam a viver num mundo tecido da própria alienação.


Para revestir o sonho de Kubitschek de solidez, o ano de 1956 marcou, também, o lançamento do mais ambicioso programa de modernização já apresentado ao país – o Programa de metas. O conteúdo mais característico desse programa vinha da crença inabalável de Kubitschek na fórmula quase mágica do desenvolvimentismo como principal derivação da normativa modernista. Com sua fórmula, JK acreditava-se capaz de fazer brotar no Brasil e, no cenário latino-americano, uma sociedade industrial, urbana, enraizada na promessa de uma cidade perfeitamente moderna. Não ficou na intenção. O termo desenvolvimento traduz o esforço de superação da dualidade básica da economia brasileira. Na prática, isso significava dizer pelo menos três coisas sobre o Brasil: em primeiro lugar, as relações de produção, incrustadas na estrutura da sociedade e da economia dos países latino-americanos, conduziram o país a uma dualidade básica, defasada e dependente com as sociedades mais avançadas; em segundo lugar, essa dualidade podia ser definida em termos de pólos – tradicional/moderno e centro/periferia; em terceiro, essa era uma dualidade que se devia resolver pela via da industrialização e da urbanização. Nos termos definidos pelo projeto de Kubitschek, no Programa de metas, desenvolvimento era entendido, sem dúvida, como industrialização; mas era, também, muito mais do que isso: significava o mecanismo mediante o qual o Brasil iria realizar sua revolução capitalista. Por essa razão, no contexto de realização da passagem de uma sociedade tradicional como a brasileira para uma sociedade moderna, o projeto desenvolvimentista de JK também elegeu um personagem importante para a construção do pressuposto de que a dualidade seria superada pela industrialização: os camponeses. Em torno da definição de um mundo rural sempre apresentado como tradicional e, portanto, pré-capitalista, as condições de transição dessa sociedade só poderiam ser garantidas de duas maneiras: de um lado, pelo deslocamento de populações da área rural; de outro, por benefícios do desenvolvimento capazes de absorver essas populações na cidade – parteira e inventora de uma sociedade moderna. Havia quem pensasse diferente. Ainda em 1956, a narrativa literária de Guimarães Rosa tratou de introduzir uma dúvida radical sobre os procedimentos e os rumos desse moderno ambíguo, capaz de produzir um mecanismo profundamente perverso no interior do qual o fortalecimento das


cidades desagregava o sertão e seu universo de continuadas deformações sem, contudo, substituí-lo por uma expansão do ideal de cidadania. Talvez ele tenha ido um pouco mais longe. Na composição do romance, Guimarães Rosa faz o registro detalhado das ruínas, fragmentos, detritos, resíduos de tudo aquilo que o Brasil modernizado pelo desenvolvimentismo de Kubitschek não conseguiu mais aproveitar e a república descartou por improdutivo, supérfluo, inútil: a massa compacta de vaqueiros, tropeiros, jagunços, garimpeiros, romeiros, roceiros, caipiras, prostitutas, índios, velhos, mendigos, loucos, doentes, aleijados, idiotas – uma gente que não vai a parte alguma, ninguém os reivindica, não são ninguém. Apenas uma multidão de depauperados e miseráveis deslocando-se, sem parar, saindo do sertão, no rumo das grandes cidades, que simbolizam sua última chance de escape de um mundo de necessidades e carências absurdas – para descobrirem, ao fim e ao cabo, a completa inutilidade desse deslocamento. Contudo, a narrativa de Grande sertão: veredas não fez somente o inventário do que a república definiu como farrapo e lixo e tornou-se, portanto, incompatível com os procedimentos da modernização brasileira; ela usou desse material aparentemente inútil para indicar que ocorreu uma ruptura no mundo público capaz de transformar o sertão em uma condição particular de desterro – condição esta produzida pela república brasileira no interior do próprio país. Mais do que isso. A permanência dessa nova e absurda modalidade de desterro conformou o trágico destino dos brasileiros párias – uma gente anônima e insignificante, simples e obscura, movimentandose, precariamente, no vazio da nação, à mercê de uma república que não os reivindica nunca. E que ainda hoje continua se equilibrando nos subúrbios do moderno, sem acesso aos bens, às leis, a um catálogo mínimo de direitos, ao mundo político da república: E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares, mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo se quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que bebiam as cachaças inteirinhas da Januária. E pegavam as mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha mais ruas, nem roupinha de meninos,


nem casas. Era preciso de poder mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os moradores iam achar grotas e fundos para se esconderem – Deus me diga? Ao constatar a ausência de esperança de incorporação política na concretização do destino dessa gente, o projeto literário de Guimarães Rosa, de certo modo, explorou a suposição de que o processo de modernização da nossa sociedade, iniciado ainda no final do século XIX, é inexorável, mas seu resultado enquanto modo específico de fazer a experiência da vida política é fortemente ambíguo: “Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos”, afirmava o capiau José de Tal, também conhecido como Zé Centeralfe. E insistia: “Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei”. Zé Centeralfe é personagem do conto “Fatalidade”, publicado em Primeiras estórias, um livro que parece ter sido organizado em torno do aparecimento de sinais expressos de enfrentamento do sertão com as experiências de despersonalização civil e de ordenação abstrata provocadas pelo processo de urbanização. Perante a lei que falta, lei excessivamente remota, postada além do alcance das vistas de Zé Centeralfe e sua gente – e, simultaneamente, também postada além dos olhos de nossa sociabilidade urbana –, é forçoso reconhecer que todos fazem o que podem e fazem a lei como podem. Por conseqüência, insistiria Guimarães Rosa, ordem e transgressão, lícitos e ilícitos se confundem no mesmo fundo arcaico de violência e força prepotente, na mesma ocupação desordenada de espaço urbano e rural, na mesma desigualdade social ancestral que costuma ser atenuada ou adocicada, ilusoriamente, com formas modernas, na aparência, harmônicas, de mando e de obediência. Ao contrário do que supunham os procedimentos da modernização brasileira, na opinião de Guimarães Rosa não havia nada de previsível na entrada do pária no mundo da cidade transformando-se, enfim, num cidadão. Mais do que isso, talvez, existem alguns desdobramentos importantes para a constatação de Zé Centeralfe sobre a extrema dificuldade encontrada pela república no Brasil em submeter toda a sociedade ao fundamento da lei republicana, vale dizer, ao estabelecimento, por consentimento comum, de uma vontade não arbitrária que se aplica a todos os brasileiros e, nessa aplicação, os torna completamente livres. De fato, com essa constatação, Guimarães Rosa, por um lado, tratou de orientar, no interior de seu projeto literário, o deslocamento do tema das virtudes essenciais da vida cívica, tema muito forte em Grande


sertão: veredas e recorrente no argumento de personagens como Medeiro Vaz ou Joca Ramiro, para o reconhecimento da necessidade da lei como fundamento moderno da idéia de república. Por outro lado, porém, ao constatar qual é a lei que falta e quais são as possibilidades de contenção de uma força que nenhuma norma parece limitar, Guimarães Rosa também atualizou literariamente a figura fundadora do desterrado – e fez isso talvez para tentar compreender por que razão a nacionalidade da idéia de pátria, para o caso brasileiro, em geral só pode ser caracterizada pela incompletude, pela não-pertinência, pela carência. Dito de outro modo: no Brasil – esse “outro Ocidente” –, o contexto republicano da idéia de pátria é sempre estranho à sua possibilidade de realização histórica. Ao mergulhar no fundo do Brasil, no instante da queda, para escutar seu lamento, Guimarães Rosa encontrou catrumanos – moradores do Brasil, um “país de mil-e-tantas-misérias”, como ele mesmo dizia. Talvez concordasse em também chamá-los por párias: perderam de alguma forma, nesse vaivém entre uma identidade coletiva de exilados nos subúrbios da modernidade e uma ausência de identidade, as qualidades que poderiam vinculá-los ao mundo de seus semelhantes e se encontraram, portanto, reduzidos à nudez abstrata de sua humanidade. No sertão, completaria talvez ainda Guimarães Rosa, a república esqueceu-se de realizar seu ideal plebeísta, esqueceu-se do desejo muito humano e essencialmente político de estender a todos os seus membros a oportunidade do exercício da cidadania.


Sertão: o sem-lugar Terra de párias e de desterrados, por maior que seja, sertão é o que não se vê. Ou, no argumento do próprio Guimarães Rosa: “Sertão é o sem-lugar que dobra sempre mais para adiante, territórios”. De fato, sertão é dobra: nem um nem outro, mas o que se dá entre; não vai a lugar nenhum, refazse sempre no meio do caminho. Logo no início da narrativa de Grande sertão: veredas, o jagunço Riobaldo Tatarana afirma convicto: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristojesus, arredado do arrocho de autoridade”. Um mundo onde todas as coisas ainda estão por fazer, e seu avesso, o lugar do desterro de Zé Centeralfe e de sua gente, a terra onde os catrumanos vivem sua ruína, a república em que uma grande oportunidade se perdeu irremediavelmente. Um “sem-lugar” – à-topos; sertão é, também, a evocação de uma utopia. Nem só sonho nem apenas irrealidade ou fantasia, a utopia tem provavelmente o estatuto de ficção e aponta para aquilo que Walter Benjamin dizia estar entre o gesto de euforia do vencedor e o lamento do vencido: o que poderia ter ocorrido, o que ainda não chegou a existir. Projeção renitente de um entendimento preciso sobre a virtude política da esperança – definida, nesse caso, como a tensão para algo que ainda não aconteceu, algo que permanece na categoria do ainda não consciente –, a utopia só pode existir de fato como proposta na imaginação dos homens e tem a delicada função de fazer estalar os limites da realidade, atualizando, a cada momento, a busca insofrida da felicidade humana.


Tal como acontece com as utopias, as histórias de Guimarães Rosa são também, já dizia Riobaldo Tatarana, histórias de impossíveis, cenas de resistência e de contestação, bruscas irrupções de isonomia política, aparições imprevistas da liberdade – são histórias de amor e de guerra, de Diadorim e de Paredão. Desse ponto de vista, são peças míticas: funcionam, na realidade, como palavras que nomeiam a origem. Mas transitam também e simultaneamente na história, no arquétipo, na lenda. Por essa razão, servem, além disso, de alimento para a imaginação política, são histórias que permitem ainda uma vez criar e recriar – num Brasil hipnotizado pelo desejo de modernização, onde levas de migrantes da zona rural formaram, a duras penas e a um preço pessoal altíssimo, uma população predominantemente urbana e irremediavelmente moderna – o sentido e o significado da idéia de sertão. Nesse caso, cabe arriscar. Quem sabe, então, dentro do projeto literário de Guimarães Rosa talvez sobreviva, ainda hoje, uma proposta arrojada para se pensar o país. Uma proposta que se desdobra estrategicamente na linguagem, lugar em que se resolvem os grandes conteúdos de sua obra, segue para além da lógica habitual e produz o encontro entre a imaginação literária brasileira e uma pátria de formato político invariavelmente instável e incerto, onde os ideais normativos da república ainda estão sempre por fazer-se e a modernidade parece surgir da tensão sem resolução entre o mais moderno, o mais arcaico e seus destroços. É bem verdade que se trata de uma proposta literária para um país encharcado de ficção: nesse enredo problemático chamado Brasil, algo permanece sem lugar, à-topos, exilado numa encruzilhada diabólica e, exatamente por isso, contendo todos os lugares, todas as ausências, tudo aquilo que ainda pode vir a ser. Como uma dobra: o fundo arcaico do mundo rural projetado sobre uma sociedade primitiva que vive longe do espaço urbano e o que é aparentemente seu avesso, uma cidade brasileira qualquer e todas as outras cidades do país, a que se deixou perder de seus princípios civis e a que já é apenas degradação de seus lugares públicos, a cidade concebida para expressar a modernização e o migrante miserável que fixou seu perfil. Algo que se mantém suspenso por de nosso entre as margens em que se divisa a esperança e o país e permanece à-topos, embora continue enunciado em Grande sertão: veredas, pela voz do jagunço Riobaldo Tatarana.

abandono



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