O Mundo de Negra Anastácia Negra Anastácia e os filhos Poeta peculiar, Negra Anastácia é uma entidade que acima de tudo preza a palavra. Ela brinca com as letras e com o mundo ao seu redor e se define poeta: é como gosta de ser chamada. Tão difícil de explicitar quanto o próprio sentido por trás das palavras, resta apenas perceber a energia emanada de seus versos, que provocam e orientam seus leitores. Anastácia se confunde com parte da história do Brasil. Nos relatos foi negra e escrava no século XVIII, e provavelmente é desta vivência que resulta sua reflexão sobre a existência humana. Surge pela primeira vez no terreiro de Aruanda, lugar de culto do Candomblé, incorporada pela mãe-grande daquela comunidade, Gisele Peixe. Aruanda é um terreiro, localizado no município de Cotia, em São Paulo, num sítio permeado por artistas, suas criações e o ambiente bucólico da região. Lugar onde se compartilha a mesma prática espiritual a partir dos ensinamentos de um mestre, o pai-de-santo Kabila de Aruanda. Kabila costuma dizer que em Aruanda se pratica um Candomblé anárquico e contemporâneo, sem nação definida e com hierarquia equivalente e horizontal, “funciona como um trem, eu como se fosse o primeiro vagão, mas todos os outros vêm junto, equivalentes a mim”, explica. Com seus iaôs, filhos-de-santo, mantém um galpão-estúdio que serve como ateliê comunitário, chamado Usina da Alegria Planetária e que “contribui com a sensibilização para o modo orgânico de viver e se relacionar com as pessoas, com o ambiente natural e seus ciclos”. A Usina é um espaço “coletivo de pesquisa e criação que, desde 2008, propõe a troca livre entre artistas, em múltiplos formatos, com base na transdisciplinaridade, na experimentação de lingua-
gens, na transformação de materiais e indivíduos”, como se lê na apresentação do lugar em sua página virtual. Ali são promovidas residências artísticas, a produção coletiva de arte e a troca de saberes, “(...) é um coletivo de artistas livres focado na criação, produção, difusão e intercâmbio de ideias, ações e projetos artísticos sustentáveis, através da reinserção e transformação de materiais, indivíduos e do próprio entorno”, como o definem seus integrantes. Os livros de Negra Anastácia enriquecem a arte produzida em Aruanda onde é considerada uma das artistas que compõem o coletivo. O processo em torno de Negra Anastácia Os primeiros poemas de Negra Anastácia tratam de sua vida como escrava no Brasil, o que definiu também a escolha de seu o nome. Anastácia é a pombagira da mãe-grande Gisele Peixe, que além desta relação, ajuda na produção dos textos da autora, procurando o significado das palavras, organizando os escritos e digitalizando o conteúdo. Gisele relembra como se deu o primeiro contato: “Quando ela veio, começou no chão, se debatendo, inquieta, agitada e algo prendia sua fala, não se comunicava. Após um período, ela se acalmou, conseguiu tirar a máscara que prendia sua boca e percebi que ela falava tudo rimado, era poesia”, ressalta. Com o passar do tempo, Kabila se tornou a extensão desta entidade e atualmente é ele quem escreve os textos da poeta, sem incorporar. “Ela é um espírito, quando escrevo é como se ela estivesse ao meu lado realmente... mas é mais do que isso, há um envolvimento grande, sou as mãos dela, ela risca, refaz, repensa, às vezes passam dias e ela pede: ‘corte aquela frase’”, conta Kabila. Além desta intera-
ção produtiva, o contato com Kabila proporciona uma intensa troca de informações pessoais, a exemplo dos questionamentos sobre a influência dele nos textos, por se manter consciente de certa forma, quando está recebendo os versos da poeta. “Gosto de poesia, mas as minhas tentativas de escrever foram ruins, já conversei isso com ela. Isso pode até ser uma vantagem, pois preciso criar um distanciamento”, explica o pai-de-santo. Em outras conversas, Kabila foi informado sobre como o espírito de Negra Anastácia foi apresentado ao mundo das letras. Ele narra que numa encarnação ela nasceu na Europa Mediterrânea e foi levada à Itália ainda jovem, onde foi alfabetizada por seu marido, um homem mais velho, chamado por ela de “católico burguês”. Anastácia começou escrevendo “poemas de donzela”, como ela mesma classifica, mas usou um pseudônimo masculino para assinar os textos mais críticos e ousados e assim esconder sua autoria. Ao ser descoberta, provocou a ira de seu marido, que como castigo a isolou em uma casa de campo, deixando-a afastada das filhas. A relação de Negra Anastácia com o Candomblé se dá exclusivamente em Aruanda, já que quando escrava não teve envolvimento com preceitos religiosos. Kabila menciona que é “muito difícil ela falar sobre Candomblé em seus poemas, mas quando fala, ela fala de Aruanda, pois foi onde ela conheceu e aprendeu sobre o Candomblé”.
As palavras de Anastácia O primeiro livro finalizado por Negra Anastácia e seus ajudantes foi Poema Preta. Foram confeccionados exemplares artesanais, utilizando papel reciclado, que finalmente eram colocados em sacos de pano. Os escritos seguintes chegaram aleatoriamente e sem tema ou ordem específica, foram reunidos nos livros: Ilustre, Eu sou o que rezo pra mim e Vozes de N.A. O título O mar é quando mergulho apresenta uma composição de poemas que versam sobre a água. A Editora Kazuá reuniu estas publicações em um box comemorativo contendo as cinco primeiras obras de Negra Anastácia, numa justa homenagem a sua autora memorável. O lançamento deste box coincide com a inauguração da Usina da Alegria Planetária e sua proposta de coletivo criativo e formaliza a existência da Kazuá no mercado literário. A poética de Anastácia provoca uma reflexão sobre a vida, a posição da mulher na sociedade e sobre a vaidade humana. A autora assevera que “geralmente, a hipocrisia não quer ouvir” e desafia o leitor a passar pelos seus versos. Negra Anastácia estimula comportamentos diversos diante de sua obra, sem sustentar rótulos ou espaço definido nas prateleiras. Tentar classificar seus escritos é inútil e desnecessário, mas podemos dizer que seus poemas estão distantes de falsos otimismos e do romantismo poético. Chega a ter participação significativa no dia a dia de alguns leitores que usam seus livros como oráculo. Negra Anastácia segue com sua escrita intensa, iluminando caminhos a partir do verbo de sua poesia incorporada. Ela dita seus versos e liberta sua palavra!
Eu sou o que rezo pra mim
livre
Eu me aceito com tudo a que tenho direito Eu me concluo Sou obra feita sem passado nem futuro Eu, livro aberto Eu, livro sem páginas De mil edições esgotadas Livro de meu amor Livro de minha vida Livro que não é um sonho Divino livro que sou
Poema Preta
Insônia
O paraíso é o sono quando não sonho O sono sem sonho é real, talvez como a morte Talvez deitada e para sempre, exposta ao nada, descanse O corpo entrega-se ao vazio do ser, a inexistência confirmada no escuro Não me sei, nem quero sê-lo, nem carta, nem alforria Que bom nada ser a cada novo dia.
Ilustre
atuar
A vida dos seres em si não tem real valor Estar vivo: sangue nas veias e artérias, inalar e exalar o ar, movimentar cadeias musculares, é sabida mecânica. O real de se estar vivo é ter roteiro e direção, camarim, coxia, luzes e ação Ação não-mecânica emoção pulsação interação dos corpos transmissão e assimilação de coisa-arte Coisa que mexe, revira, diz ao que veio, lágrima, riso, saliva, secreção, ação contínua, aplausos sem ato final. Vida real transpõe o último fechar de pálpebras Atores (homens, mulheres e animais) libertos da não vida cotidiana com seus amores-família e modernas cabanas, instituições consagradas de um Deus a consumar tempo de séculos. O real sentido da vida é o inventar.
O mar é quando mergulho penitência
Água e fúria, combinação mortal. A fúria nasce com a água ou a água é que dela nasce? E quem foi que disse que o movimento da água, esse tão brusco e forte, é tomado de fúria? Água e fúria não se misturam. A água é por demais divina. Jamais se mesclaria a este sentimento tão humano. Água é desprovida de sentimentos. Água é água e já é muito. Nada fica de pé sem sua presença, água não é penitência. Penitência é nascer gente. Sentir o que a água não sente.
Vozes de N. A.
“mulheres enfeitiçadas”
Minha mulher minha flor mais querida o tempo banha tuas feridas que caem como folhas que se renovam
O tempo não levou de teus olhos o brilho, o desejo de vida cristalina a pureza levada ao cerne na carne, no sorriso choroso. Receba esse amor o meu, o nosso, o de teus amigos preciosos Beba da fonte do bom tempo Ele não se apressa nem demora Uma hora pode não ter hora de acabar Dentro de um sorriso largo da manhã de sol nesta terra sagrada onde eu e tu nos libertamos
Poemas de Guerra Meu corpo é geografia Palavras migram em mim traçando mapas de mim Em minha história de guerra sou refugiada e fugitiva Montanhas, lagos, florestas, cascatas, cidades homens constroem meu corpo no espaço-fêmea Meu corpo, país sem origem Meu corpo, país-ilha flutua no tapete azul-oceânico Meu corpo vago e sem alfândega recebe a todos Hospeda prazeres e dores de viajantes católicos e protestantes muçulmanos, dirigentes Ditadores me dominam e sem sucesso seguem a outros continentes Eu mapa de estar só
POEMAS DE GUERRA, de NEGRA ANASTÁCIA Versos, às vezes atônitos, às vezes vigorosos, representam as angústias diárias da miséria humana e espiritual ou estampam o horror das guerras entrincheiradas, onde vidas se perdem sem propósito. Sempre há “o suor mal gasto”, lembra a autora em suas palavras. A poesia aturdida pelas barganhas do metal e batalhas cotidianas, que sequer integram as estatísticas, é benevolente em letras. “E como julgar a posição de cada ser nessa guerra do viver?” Diferente dos livros anteriores de Negra Anastácia, Poemas de Guerra vem sem as cores vibrantes que sempre acompanharam seus dizeres. Livro incolor? Não, apenas acometido de uma sensação de espanto, confuso entre brancos e pretos: cinza sangrento, cor de dor. E o vaticínio. “A ira pela ira em um mundo de onde nada se leva tampouco nada se eleva” Em meio a tanto confronto e independente de opiniões e crenças, Negra Anastácia nos lembra, com a sua energia imantada nas palavras: “Deixem em paz as crianças, e paz terão por garantia”.
Aquele que cria é autor da sua obra e também de si mesmo. Para um escritor as palavras são a expressão de sua existência. A obra resulta de sua relação com o mundo e consigo mesmo, e talvez por isso o processo da elaboração de um livro seja tão envolvente. São pensamentos traduzidos em enredos, personagens, ambientes, cenários, objetos: tudo! E este tudo sai apenas de um lugar: o imaginário do autor. A Editora Kazuá entende a complexidade desta criação e se coloca como parceira na concepção de cada obra. Na Kazuá o livro é um conceito integral, no qual o texto, e as idéias que o compõem, se relacionam com os elementos visuais que o constituem como obra acabada. A intenção da Editora é promover um diálogo entre a arte de escrever e as artes plásticas, uma vez que entende o escritor e o artista como atores sociais. É a união dos saberes destes profissionais que forma o discurso único concretizado na obra publicada. O ideal da Kazuá é funcionar para um coletivo de autores e disponibilizar os profissionais e os serviços que cada livro requer. O resultado são projetos personalizados e originais que refletem a proposta editorial de colocar no mercado publicações únicas, com a melhor relação entre o custo e o benefício. A Kazuá é uma editora que trabalha para o devido reconhecimento da obra de seus autores. Como a criatividade é uma das premissas da Editora, contamos com a singularidade de artistas, envolvidos no processo de elaboração dos livros, assegurando que todas as publicações tenham um projeto gráfico de alto padrão estético, independentemente da tiragem. O que mobiliza os profissionais da Kazuá é conhecer a intimidade de cada projeto literário e propor o processo mais adequado para publicá-lo. Seja Autor e venha fazer parte desta Kaza! Kazuá, palavra que a um só tempo significa corpo e casa.
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