Conselho Editorial: Evandro Rhoden, Osvaldo Piva, Claudia Aguiyrre Editora: Claudia Aguiyrre Consultor Editorial: Marcia Stecca Direção de Arte e Projeto Gráfico: Osvaldo Piva Assistente de Arte: Jota Vianna Colaboradores: Beto Guilger, Cláudia Reis, Felipe Garcia de Medeiros, Luciano Garcez, Marco Aurélio de Souza, Mariana L., Pedro Port, Ricardo Dantas
Editora Kazuá
Zunguera da Kazuá
Diretora: Claudia Aguiyrre Editor Chefe: Evandro Rhoden Editor Assistente e Comercial: Fernando Torres de Andrade, Roberta Oliveira Co-Editor de Estudos Acadêmicos: Luciano Garcez Diretor de Arte: Osvaldo Piva Artistas Convidados da Kaza: Beto Guilger, VJ Scan Editor Web: Jota Vianna Desenvolvedor Web: Diego Rojas
Revista Entrelinhas da Kaza é uma revista bimensal da Editora Kazuá. Esta publicação não se responsabiliza por ideias e conceitos emitidos em artigos ou matérias assinadas, que expressam apenas o pensamento dos autores, não representando necessariamente a opinião da revista.
Divulgadora e Distribuidora
Aquele que cria é autor da sua obra e também de si mesmo. Tal proposição ganha importância quando pensamos a morte deste autor, e mais do que isso, o questionamento da autoria, como pertencimento e criação. Luciano Garcez, poeta, dramaturgo, compositor, cancionista e maestro, assina uma reflexão sobre a Morte do Autor anunciada por Roland Barthes. Em Escritura, Uma Neutralidade Que Fala, Relendo Roland Barthes em sua “Morte do Autor”, Garcez pontua a necessidade desta discussão para a concepção e fruição de criações artísticas. A Kazuá é uma editora que busca conhecer a intimidade de cada obra, para desenvolver seu projeto literário. Mas, a Kazuá também quer participar concretamente de reflexões sobre literatura e poética, pensando em ações e circunstâncias que possam contribuir para tanto. Contribuições provocativas como a da autora Mariana L., que escreve sobre os usos contemporâneos do heterônimo, contextualizando e repensando seu lugar na escrita. Na Revista Entrelinhas da Kaza reunimos a produção artística e reflexiva de autores e pensadores das letras. Entre espaços temáticos fixos e assuntos especiais propostos por quem vive literatura. Escritos como o conto A Viajem de Pacífico integra uma coletânea reunida no livro A Mulher do Zagueiro e outros contos, de JB Cardoso. Ele apresenta a escrita direta com a qual o autor aborda o cotidiano, resumida pelo também escritor e poeta Pedro Stiehl, na ideia de a obra nos assalta para oferecer exatamente o que queremos − “... o susto de um mundo que parece banal, mas que deixa de ser quando literário”. Pensando que para um escritor as palavras são a expressão de sua existência. Seja Autor!
DOS USOS PÓS-MODERNOS DA HETERONÍMIA Partícula e Desdobramentos Mariana L. Borges Speaking Borges: “Este Macpherson se educou na escola primária de sua cidade, indo logo para a Universidade de Edimburgo. Havia ouvido muitas vezes os cantos dos bardos [...] Os grandes clãs de Escócia tinham bardos encarregados de relatar a história e as façanhas de uma família. Eram poetas e cantavam naturalmente no idioma gaélico.” (...) “Então, Macpherson publica seu libro em Edimburgo, e poderia ter feito uma tradução rimada. Porém, e felizmente, elegeu uma forma rítmica, baseada nos versículos da Bíblia, sobretudo os Salmos. Atribuiu o livro a Ossian, filho de Fingal. E representou Ossian como um velho poeta cego que canta no castelo arruinado de seu pai.” (...) “Este poema se apoderou da imaginação da Europa, e poderíamos enumerar-se centenas de admiradores [...] E nos discursos de Napoleão aos seus soldados, nos discursos que precederam as vitórias de Jena, de Austerlitz e a derrota de Waterloo, se encontram ecos do estilo de Macpherson.” (...) “Porém, seja como for, Macpherson foi acusado de falsário. E, sem dúvida, se isto não houvesse ocorrido, não veríamos hoje nele um grande poeta. [...] O estilo de Macpherson, do Ossian de Macpherson, circulou por toda a Europa e com ele se inaugurou o movimento romântico.” 1
Que o Eu sempre tenha sido um Outro (Rimbaud), todo escritor sempre soube – Homero estava em Aquiles e Heitor, tanto quanto sua cultura, a de sua época, vazava através dele para os atos das duas personagens. Mas a partir do momento em que esse Outro, assumido como uma partícula do Eu - uma sua saliência, um seu “traço distintivo”, uma sua outra voz – se desprende daquele que o encapsula e cria uma vida literária própria, com nomes, dicções e assinaturas próprias: a partir daí temos, propriamente e por completo, um heterônimo. Do grego héteros ónoma, isto é, o “nome diferente”, um nome outro, sinal diverso - mas para um mesmo objeto que, se tem vida, assume aqui a condição de origem-vivência para um seu “duplo”. Um aspecto, um traço, uma postura – um algo expandido do autor, o ortônimo (o gerador originário do heterônimo). Pode-se analisar com falsa facilidade um heterônimo, portanto, dado que o mesmo parte de uma construção da psique de seu criador, levando parte dela consigo no ato da personificação. 1 Jorge Luis Borges, fragmentos de um seu curso de literatura, ministrado na Universidade de Buenos Aires, em 1966, e publicado por Martín Arias e Martín Hadis, em 2000.
Assim, heterônimo pode ser, por exemplo, a Anima junguiana (o lado atávico-arquetípico feminino na psique masculina), se se tratar de uma criação feminina. Outros exemplos de teorias psicológicas poderiam ser utilizados aqui para explicar a heteronímia, e o assunto é evidentemente vasto e fascinante - mas falaremos, mais especificamente, do heterônimo enquanto atuação e possibilidades de. Visto um pouco de perto, podemos perceber que o heterônimo pode ser uma vivência do autor coagulada, fixa e delineante no tempo, que procura, através de índices do real, se materializar concretamente numa voz própria, e que terá parentesco de traços constitutivos com a tal experiência vivencial (não sendo o mesmo, o heterônimo, a sua simples réplica poética, entanto – no caso, se assim fosse, teríamos uma simples transposição de traços e impressões). Há não muito de “personae” (máscara), de personagem mesmo, no heterônimo, porque a voz do autor, do Eu do autor, continua presente – mas modelada, conteúdo despejado numa fôrma que, por sua vez, fora talhada com os mesmos elementos que constituiriam uma personagem comum, de livro ou de dramaturgia. Porque o heterônimo diz muito do autor, pois se descola/desloca dele para, num jogo duplo entre ambos, estabelecer um diálogo. Pois pela distância conhecemos melhor aquilo que já conhecemos – ou que acreditamos conhecer. E no momento atual da Arte Pós-Moderna, uma fase de transição onde as linguagens se misturam desenfreadamente, e se interpenetram com igual rapidez - é tempo de, mais do que no grosso de gêneros e estilos consagrados (poesia-prosa, estrutural-aleatório, realismo-estética do sonho, etc.), partirmos, antes, dos recursos literários mais fundantes, atomísticos, (como o heterônimo, por exemplo) para se desenvolver linguagens novas, e ampliar conceitos que se refletirão em insuspeitas dimensões no fazer artístico. Assim, a primeira experiência de expansão de sentidos e significados que um heterônimo possa ter é o de transpô-lo, mui simplesmente, para o real. E, sustentando essa “literatura em vida”, saber e entender o quanto a mesma sobrevive aos atritos do real: a interação do heterônimo com as vozes reais, e não mais fictícias e oriundas da concepção do autor (como no caso da acepção tradicional da heteronímia), quando dentro de uma obra. E é aqui, onde por atuarmos no campo da pura experimentação, que se nos deslindam mais perguntas fecundantes do que argumentos encerrados em si: personificado em alguém, é o heterônimo a simples atuação de um ator de posse de uma sua personagem, ou seria o caso, numa práxis real do que chamaremos de “Heterônimo em Vida”, de o ator, “aquele que atua”, incorporalmar o autor do heterônimo mais o heterônimo nominado - a mão e a pena, o significado (no sentido, aqui, de personagem -estrutura) e o significante (aqui encarado como o “conteúdo” a emanar do autor)? Mais perguntas em forma de sementeira: quando na realidade pós-moderna e então transposto o heterônimo, como o mesmo se desdobraria num tempo de simulacros, selfies e redes sociais? Acaso não são todos esses elementos férteis possibilidades de se preencher de vida real - e no real ele mesmo - o heterônimo? Façamos aqui, a título de exercício hipotético e poético a seguinte suposição: tendo Fernando Pessoa a possibilidade de não apenas fazer um mapa astral para Álvaro de Campos, nem tampouco, também, escrever prefácios assinados pelo viés da dita heteronímia – mas, de posse de uma rede de relacionamentos on-line, onde o resultado (ao menos visível) do interlocutor pudesse ser aferido, testado ludicamente e, mais, dramaticamente palmilhado, acaso Fernando Pessoa se furtaria à tentação de testar tal experimento – de resto, tão fácil de se executar? A possibilidade da criação de “vidas que não são vidas” na era do simulacro, portanto – mas, tomando o pensamento original de Baudrillard de que o “hiper-real é mais real que o real”, e usá-lo favoravelmente, como veículo-depositário, criando uma vida outra – também ela, mais real do que o real, porque o autor colocou em tal “vivente” um “material” pessoal “editado”, que contém doses indistintas de Si Mesmo e de um (algum) Outro absoluto. Que o Eu sempre tenha sido um Outro, todo escritor de fato sempre saberá - como já foi dito em bom francês, por um Outro, aliás. E talvez em partículas:
Eu
em-um
Você a ponte ante e anti assim:
VoSêu! (Mariana L. Löhnhoff, poeta e tradutora)
Marianne Liuba Löhnhoff, que assina literariamente Mariana L., nasceu do Rio de Janeiro, em 1988. Tendo antepassados russos, alemães e um avô poeta diletante, que a incentivou desde menina a escrever, já aos doze anos ganha um prêmio de dramaturgia com a peça “Carlo, o Construtor”, baseada na vida do compositor renascentista Gesualdo da Venosa. Dos 10 aos 17 anos, traduz Hölderlin, Anna Akhmátova, Marina Tsvetaeva, Pushkin, Kleist, Flaubert e toda a escura poesia da Décadence Française. Cursou dois anos de Filosofia na USP, logo passando para o curso de Letras da Universidade de AlbstadtSigmaringen, na Alemanha. Trabalha como tradutora e professora de Línguas, e vive entre São Paulo e Rio. Lança, em dezembro de 2014 e pela Editora Kazuá, seu livro “A Mais Atada à Tua Palavra – O Caderno de Mariana L., em Mãos, Seguido de Avulsos do Poeta B”, que tem a organização, prefácio e posfácio do poeta Luciano Garcez.
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UM OLHAR DISTANTE As terras sempre seriam boas para o cultivo de manivas. Mel encontrava-se com fartura nas densas matas serranas. Os animais existentes saciavam praticamente todas as necessidades. Igarapés e cachoeiras propiciavam diversão, conforto e subsistência. Pataa’ Maimu havia sido generosa. Sempre fora generosa. Porém Paapa travava, de forma irredutível, afrontas para com a Mãe Natureza. Por capricho, ou quem sabe porque deveria assim ser, Paapa estabelecia que os povos nunca pudessem desfrutar de seu paraíso privado com serenidade plena. Pataa’ Maimu, quem sabe, aproveitava o ensejo para pequenas punições. Não teriam zelado do presente satisfatoriamente? A vida se resumiria a breves gerações de calmaria? No senso de justiça, até onde suportar seria possível? A Natureza, sábia, daria o sinal. A virtude da inocência não transcreve a barbárie reincidente. Entretanto, prescreve a brandura da equidade bárbara, uma permanência transcendental. Difuso e obscuro, as eras configuram-se em uma constante imutável. Estavam três macuxis ajoelhados, com as mãos atadas nas costas, os rostos irreconhecíveis pelos hematomas. Os karaiwas bradavam a nova lei das terras altas. Seria mais uma ira de Paapa? Por que motivo Pataa’ Maimu não estava protegendo-os? Mereceriam tal punição? Seriam os karaiwas detentores das terras por direito, já que eram possuidores da força injusta e lhes faltavam escrúpulos? Os macuxis, que estavam em pedestal, aguardavam o veredicto final. A cada disparo, efetuado à queima roupa em suas cabeças, um a um, como lágrimas ante o horror, caiam ceifados. De um lado a aldeia, reunida em assembleia como era de costume, mas para uma nova pauta, a submissão. No outro extremo, os karaiwas, com armas em punhos e mandados tendenciosos, concretizando as profecias de outrora, de que os “bichos” reduziriam os nativos a pó. Bichos, a representação de um povo que demarcava o território com sangue. Crianças assistiam a cena. Crianças de ambos os lados. Crianças não mais crianças. Uma com lágrimas nos olhos. Outra esboçando um leve sorriso. Crianças não mais vizinhas. Uma das crianças caía no solo arenoso da savana, manchando o capim de púrpura... Os questionamentos cessariam. A dúvida permanecerá. O autor Ricardo Dantas recebeu prêmio no II Concurso Jaider Esbell de Criação Literária, ação que integra o II Encontro de Todos os Povos (2014), realizado em Roraima.
Ricardo Dantas é biólogo e escritor
Kamaradagem Literária é um espaço singular em que autores, novos ou já publicados pela Kazuá, interagem expondo seus processos criativos e trocando leituras, conhecimentos, experiências ou inspirações. O projeto Kamaradagem Literária propõe uma mídia social em torno de temas relacionados com a literatura e com a elaboração e execução de projetos de estímulo à concepção literária. A intenção principal é a habilitação de usuários para o acompanhamento de processos de publicação e a divulgação de iniciativas para o aprimoramento textual, além de disponibilizar serviços de profissionais especializados nas diferentes etapas do projeto literário. O Kamaradagem Literária acredita que a troca de conteúdos e ideias colaboram com a inspiração para a escrita e com o incentivo à leitura. A dinâmica gira em torno de discussões sobre o ato de escrever e a apresentação de atividades para o aperfeiçoamento textual e o estímulo à leitura, com o compartilhamento dos processos e resultados provenientes destas trocas.
Beto Guilger Beto Guilger foi o primeiro artista convidado da Editora Kazuá e é o criador da arte dos livros de Negra Anastácia. Guilger é artista multimeios, performer, diretor de arte e atualmente realiza projetos vinculados ao coletivo da Usina da Alegria Planetária, com reaproveitamento de materiais. Tem interesse por todos os tipos de manifestações artísticas, assim como nas “pessoas e suas dicotomias”, e gosta de representar “a impermanência das coisas”. Cursou a Universidade de Campinas, foi vencedor do I Premio Arthur Bispo do Rosário na categoria Pintura, realizou mostras individuais e coletivas em São Paulo e frequentou ateliês paulistanos com os artistas Cezira Carpanezzi e Rubens do Espirito Santo, entre outros. Também realizou oficinas de pintura para portadores de Deficiência Visual no estado de São Paulo.
“O processo criativo desta obra de fantasia tão rica, foi tão intenso que, hoje acredito que Krasnídia passou a existir de verdade”, Alan Cassiano, ilustrador de Krasnídia. Alan Cassiano é um paulistano que define sua essência já na apresentação de seu endereço virtual: “Posso ficar sem respirar, assim apenas mataria o meu corpo, mas não fico sem Arte, pois minha alma morreria”. Este artista visual tem uma forte relação com o universo onírico e sua representação. A autora Tarsilla Xavier tem predileção pelos temas relacionados com o fantástico e o extraordinário. Seus estudos sobre questões relacionadas com o conhecimento, a verdade e valores morais e estéticos aparecem em seus escritos, bem como reflexões sobre o feminino. A proximidade destas preferências temáticas e expressivas fica evidente no livro Krasnídia, um dos próximos lançamentos da Editora Kazuá. Tarsilla convidou Alan Cassiano para ilustrar sua saga, contada por Vixit, a semideusa do tempo.
ADVERTÊNCIA EDITORIAL Todas as postagens que nos foram dadas no blog de W., reunimos com diligência e agora as publicamos no formato de livro, sabendo que haverá conflitos de opinião e divergências quanto ao trato dispensado a alguns elementos desta coletânea (ou poderíamos chamá-la já, não sem levantar alguma polêmica, um romance?). No que tange ao conteúdo das postagens, ainda que publicadas de forma integral, a disposição e a ordenação de tais textos passou por ligeira modificação, que se justifica aqui pela própria dinâmica da blogosfera, uma cultura autônoma de leitura. A despeito das inscrições temporais e das datações presentes no início de cada postagem, o caráter hipertextual dos links e a hierarquização das postagens dentro de um critério de visualizações, no qual as postagens mais lidas são indicadas ao visitante em um quadro lateral da página inicial do blog, sugerem que a leitura de Conexões Perigosas perderia muito de sua potência e eficácia se fosse disponibilizada somente numa ordenação cronológica linear. Nesta edição, nosso intento é o de simular o efeito fragmentário e descontínuo da atividade leitora na web, reorganizando tais postagens de modo que as mesmas guardem algum elemento da surpresa e da estetização um tanto caótica experimentada no veículo original de publicação. Para que não nos acusem de ter-mo-nos esquecido deste lei-
tor mais afeito à sociologia do que ao romance, acrescentamos ao fim desta edição o índice cronológico das postagens, facilitando assim o trabalho daquele que almeja ler tais conexões por outros caminhos que não estes – demasiadamente marcados por nossas próprias pegadas. De todo modo, o espectro de leituras possíveis não se resume aos dois enredos aqui sugeridos, sendo, no limite, permitido ao leitor tomar o conjunto das postagens de modo aleatório, lendo um texto aqui, outro acolá, assim como o internauta comum efetivamente toma o material que encontra disponível na blogosfera. No tocante às questões de linguagem, devemos acrescentar que algumas alterações foram realizadas no intuito de conferir ao livro uma unidade de língua, dando maior clareza aos textos e facilitando assim a sua leitura. Dado que a linguagem utilizada pela cibercultura, popularizada pelas redes sociais, não segue uma regra fixa e estável, é comum depararmo-nos com uma oscilação constante entre, de um lado, abreviações, escritas de oralidade e formas organicamente virtuais de representação e, de outro, o português normativo. Tendo em vista a ausência de um padrão, optamos aqui por “corrigir” o conteúdo da narrativa, exceção aberta aos casos em que foram verificadas intenções estéticas ou documentais no desvio (poemas, citações de email, conversas de bate-papo, etc.). Ainda dentro desta mesma proposta, uma revisão ortográfica foi em-
preendida adequando o blog/romance à norma culta da língua, o que evidentemente não consistia uma preocupação do autor. Julgamos nosso dever prevenir os leitores de que, apesar do sucesso nas redes sociais – observável pela explosão de hashtags com menções ao conteúdo do blog/romance – não garantimos a veracidade dos acontecimentos narrados através das postagens, e alguns afirmam, inclusive, terem fortes razões para considerarem os textos assinados por W. como capítulos de uma trama ficcional. Se assim for, sua autoria torna-se ainda mais obscura, fato que não modifica a situação incerta e difusa que a publicação virtual nos impõem a todos. Inventado ou não, certo é que pessoa física alguma se decidiu a assumir e provar a autoria de tais escritos. Há que se pensar na possibilidade de ser justamente esta a intenção primeira do uso de uma mídia como a em questão: resguardar a identidade do autor por trás destas linhas. Suposição torna-se, portanto, a palavra de ordem. Cabe-nos salientar, ainda, que os comentários – elementos fundamentais na lógica interativa dos meios virtuais – foram excluídos em função da presença abundante de considerações diversas, escritas por leitores qualitativamente desiguais, que descaracterizaram as postagens e desvirtuaram o propósito dos textos reunidos. A omissão dos comentários deverá evitar, ademais, que as possibilidades interpretativas do leitor deslizem da narrativa em si para a avaliação e consi-
deração de terceiros, fato que colaboraria para uma confusão generalizada em torno da obra. Com efeito, a favor do ponto de vista aqui assumido, as diversas exclusões de comentários realizadas pelo proprietário do blog apontam para o fato de que nem todas as considerações de leitores foram aceitas pelo autor das postagens. Assim sendo, na falta de um critério de seleção que viabilizasse a inclusão dos comentários de modo coerente, optamos por concentrar nossa atenção exclusivamente nas postagens de W. Para aquele que deseja conhecer este conteúdo velado, o blog original continua em atividade na rede, ainda que não saibamos exatamente por quanto tempo. O curioso poderá constatar e observar a enorme variedade de vozes ali presentes, construindo sua própria interpretação através do contraste. Muitas outras questões poderão ainda serem levantadas. Muitas objeções os senhores poderão formular também. Para responder a todas, seria preciso, antes, que nos calássemos. Sendo assim, entremos logo e, portanto, pela porta que mais nos aprouver. Sem a interatividade da web, mas com o inesgotável prazer dos rituais livrescos e da leitura pré-eletrônica que o leitor paciente logo saberá, a ocasião merece. Máxima da boa educação, não se oferece às visitas um bom vinho em taças de plástico. Esclarecidos os pormenores, estejamos servidos. Marco Aurélio de Souza
Fragmento do livro Brevidades Cotidianas, de Bernardo Pacheco
Escritura, uma neutralidade que fala Roland Barthes em sua “Morte do Autor”1 Por Luciano Garcez, compositor e poeta “O processo de irresponsabilidade é claro: colorir o mundo é sempre um meio de o negar” Roland Barthes, “Mitologias”) 1 BARTHES, Roland – “A Morte do Autor” – São Paulo, Martins Fontes, 2004.
“Quem fala assim?”, indaga maliciosamente Roland Barthes no início de seu célebre ensaio sobre a suposta “morte do autor” – ou, em outras palavras, a desaparição do sujeito unívoco, sem outro além, naquela realidade em que ele mesmo soçobra em sua fictícia “individualidade”. Mas não nos enganemos com essa aparente facilidade de definição, desta não direcionalidade da observação, este “quem fala assim?”, esta fórmula simples que Barthes nos apresenta como, de resto, é aparentemente clara e fluente a própria forma do texto de “A Morte do Autor”. Nada mais cheio de labirintos que esta limpidez direta com a qual Barthes fala, pois que sua intertextualidade, claramente alusiva, é justamente o sustentáculo maior de todo o pensamento do texto e da obra do autor, e da chamada “pós-modernidade” em geral. Pró-cedida desta pergunta no texto de Barthes, está estrategicamente posicionado um fragmento da novela “Sarrasine” de Balzac, e não à toa: esta obra é pródiga de pares binários e variados de combinação, tão caros ao
estruturalismo e ao pós-estruturalismo do pós-guerra. Publicada em 1830, “Sarrasine” conta a história de um artista parisiense que se apaixona por um castrati (um contratenor) da Ópera, “La Bambinella”, sem saber que se tratava de um homem. Esta angustiante situação de se gostar “pela aparência”, pela “representatio”, pois La Bambinella, apesar de ser homem, é de uma perfeição feminina sem par, principalmente ao representar seus papéis (e o teatro surge aqui como alegoria da “representação como verdade”), resolve-se numa situação de violência por conta da decepção de Sarrasine - afinal este mundo “perfeito” de seu “Ideal Feminino” (notemos aqui, de novo, a perícia de Balzac em desmontar com tinturas tragicômicas o “Amor Sublime”, tema amoroso caro ao Romantismo) rui e Sarrasine tenta matar La Bambinella num acesso de fúria: exterminar a duplicidade dessa forma negada e, necessariamente, quase extinta, por sua insuportável dialogia. Balzac cria, para isso e no interior do próprio texto, prodígios antitéticos como:
“Visto em meio desta atmosfera fantástica, que recordava vagamente a dos fantasmas mal envoltos em suas mortalhas, imagem gigantesca da famosa dança dos mortos (Balzac nos fala aqui da famosa e pictoricamente simbólica “Dançada-Morte - nota do trad.). Então, voltando-me para o outro lado, eu podia ver a dança da vida!”, ou na velada dicotomia de “Morte -Vida”, ou ainda dentro do mesmo par oposto: “Então, à minha direita, a escura e silenciosa imagem da morte; à minha esquerda, as decentes bacanais da vida.”1 O autor retira da instabilidade original do texto de Balzac as perguntas lançadas para todos os lados em “A Morte do Autor”, a partir das possibilidades tremulantes da própria personagem da novela: “Era mulher, com (...) seus caprichos sem razão, suas perturbações instintivas (...)”. A este feixe 1 No original, “Vus au sein de cette atmosphère fantastique, ils ressemblaient vaguement à des spectres mal enveloppés de leurs linceuls, image gigantesque de la fameuse danse des morts. Puis, en me retournant de l’autre côté, je pouvais admirer la danse des vivants !” e “Ainsi, à ma droite la sombre et silencieuse image de la mort ; à ma gauche, les décentes bacchanales de la vie”, em BALZAC, Honoré de – “Sarrasine”, Éditions du Boucher, Paris, 2002.
de possibilidades - por si só, imensas - Barthes propõe a anterior pergunta da “autoria” direcional, dividindo-a em outras perguntas dissecadoras: 1. “É o herói da novela, interessado em ignorar o castrati que se esconde sob a mulher?” – ou seja, a personagem pura em simples, do livro em questão. 2. “É o indivíduo Balzac, dotado por sua experiência pessoal, de uma filosofia da mulher?” – a biografia do autor e suas relações com as mulheres, no caso específico de Balzac a relação conflituosa com a mãe, e suas aventuras amorosas cheias de impossibilidades romanescas, como seu envolvimento com Antoniette de Berny, mulher 22 anos mais velha do que ele, ou com a Duquesa D’Abrantès - que desembocaram em seus vazios em seu um ruidoso casamento às portas da morte com outra nobre, a Condessa polonesa Eveline Hanska 3. “É o autor, professando ideias “literárias” sobre a feminilidade?” – Um escritor que usa figuras-personagens para dizer do “mundo feminino”, de suas características próprias. 4. “É a sabedoria universal? ” – O lugar-comum na boca de todos sobre a mulher e os sexos, o “pequeno estado” institucionalizado, de Bourdieu. 5. “A psicologia romântica” dentro dos chavões, dos preceitos, do escrito e do esperado em uma “escola específica”: as ferramentas por ela usada para destrinchar o objeto, ou para confeccioná-lo ao desmontá-lo, que aqui fazem parte do conhecido projeto “realista” de Balzac, ao ter a pretensão de retratar fidedignamente a sociedade parisiense nas 88 obras que compõe a “Comédia Humana”.
E é dessa algaravia de pergun-
tas que resulta a proposição nuclear de todo o texto barthesiano de que “A escritura é a destruição de toda voz”, o “Eu”, e “de toda a origem”, este “Eu” citado localizado e localizável num tempo/ espaço restritos. Assim, sendo a “escritura” (palavra-chave para se compreender o texto) “o branco-e-preto em que vem se perder toda a individualidade”, este “neutro” será sem reação previsível frente ao leitor, e o autor será “composto” de vários fatores e todos eles variantes e, finalmente, se quedará “oblíquo” por rejeitar francamente a ideia de uma dispersão linear, retilínea. E, necessariamente, dessa forma a “escritura” fugirá ao Sujeito por não ser um objeto delimitável, uma “Coisa”. Diz então Barthes que “desde que um fato é ‘contado’(...) não para agir diretamente no real (...) a voz perde a sua origem”. Em termos jakbosonianos2, referencial caro ao autor de “A Morte do Autor”, estamos em plena área de atuação da Função mais necessária à linguagem das belas letras - a saber, a “Função Poética”, que no dizer do linguista russo seria “O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal, o enfoque da mensagem por ela própria”. A mensagem que tem a função de não agir diretamente no real, mas enraizada em si mesma e dela tirando o proveito expressivo máximo (imagético, fônico, etc.) perderá, por isso mesmo, sua direção originária, pela lógica da superestruturação de seus próprios meios, e a dissipação ostensiva do emissor que a gerou. Sabemos, além disso, que des2 JAKOBSON, Roman – “Linguística e Comunicação”, Cultrix, São Paulo, 1995.
de a Modernidade há um pendor claro para, em todas as artes, mas principalmente em literatura, um predomínio da “Função Poética” e também da “Função Metalinguística” – que Jakobson definia como “o discurso que focaliza (seu) Código”. Nada mais natural que Barthes, um semiólogo das mitologias, aposte sua tese de “neutralidade” autoral baseado nestas duas funções mães da linguagem. E para isso, cita e toma por fulcrais autores basilares destes dois discursos. Antes, porém, de entendermos o que estes autores citados por Barthes em seu brilhante jogo de xadrez denunciatório significam, lembremos que o mesmo alude, em seu texto, à figura mítica do Xamã, que para ele representa exemplarmente a “performance, mas nunca o gênio”. Uma crítica caberá aqui a esta comparação um tanto escapadiça que Barthes faz: sabemos que o Xamã é originário de um mundo mítico, “circular em sua história” 3(Mircea Eliade), um mundo embasado na “mítica como forma mais primitiva de ciência” 4(Jung) – forma esta que permeia a Arte até hoje, como construtora de “míticas”. Há no Xamã, assim, uma história de vida, um vivenciar de fatos específicos que o tornaram um “Xamã” - ou seja, um Ser especial, nem acima nem abaixo de sua sociedade, apenas que “diferenciado”, “à parte” e que, por isso, terá acesso às vozes ancestrais e ao mundo simbólico eterno que a esfera espiritual comporta. Seria assim o Xamã, sim, um “gê3 ELIADE, Mircea – “O Sagrado e O Profano”, Martins, São Paulo, 1995. 4 JUNG, Carl Gustav – “ Cartas de C. G. J – 1946-1955, Volume 2”, Editora Vozes, São Paulo, 2002.
nio”, porque distando do comum, eleito e possesso. Barthes parece tropeçar ao remirar o mundo simbólico-mítico contra as luzes setecentistas-científicas de seu Ocidente francês, sendo que a própria noção de mitologia perderia todo o sentido em uma sociedade mítica de fato. E, dizendo -o de outra forma aqui, à ciência ainda escapa o “Iluminismo sem Luz” errante e cheio de teias de lendas das trevas da tribo imersa em seu oceano mítico. O Estruturalismo, filho super-educado e de recomendada família do Racionalismo em extremo naufragou em suas próprias bases ao excluir estrategicamente o Caos e a Incerteza, e ao eleger para isso uma estrutura clara, discernível, entre as penumbras assombradas da realidade – e para decodificar a própria realidade. Obviamente, os campeões do Estruturalismo e do Pós nunca foram tolos o suficiente para crer que, achado o esqueleto no armário, toda a história estaria contada e resolvida: nem Lacan, nem Lévi-Strauss e nem o próprio Barthes foram ingênuos a esse ponto. Sabiam que “o artista sabe de tudo, só não sabe que sabe”, no dizer de Lacan - ou, para citar um grande mitólogo do séc. XX, Joseph Campbell5, falando da ainda supostamente inexplicável presença do “mítico” numa era de plena “ratio”, que argumentava incisivamente que “um fascinante problema tanto psicológico quanto histórico nos é apresentado por nossa ciência. O homem, aparentemente, não consegue manter-se no universo sem acreditar em algum arranjo 5 CAMPBELL, Joseph – “Mitologia na Vida Moderna”, trad. Luiz Paulo Guanabara, Record, Rio de Janeiro, 2002.
de herança mítica geral. Na verdade, a plenitude de sua vida parece mesmo estar em proporção direta à profundidade e alcance não de seu pensamento racional, mas de sua mitologia local”. E, sendo mais claro, trate-se da mítica que o poder de um traficante derrama sob a forma de terror e endeusamento próprio em uma área pobre da Polis, seja a própria crença na maquinaria infernal das ciências (outra mítica, e ainda mais insidiosa...), sempre esbarramos neste produto inconveniente e necessário de devir, nesta forma esquiva mas plena, construída pelo homem para, mais do que entender soberanamente o mundo, de alguma forma dele participar POR DENTRO. Mas Barthes quererá o fim, o aniquilamento do “autor” por princípio, por sistêmica, do “autor como pessoa”. Cabe-se perguntar se este óbito autoral é realmente real, se se mantém de pé diante de alguns exemplos que fogem ao cânone dos exemplos utilizados pelo próprio Barthes. Arthur Rimbaud começa sua “Temporada no Inferno” pós-dizendo que: “Antes, se me lembro bem, minha vida era um festim onde se abriam todos os corações, onde todos os vinhos corriam”.
É impossível, por qualquer esforço que se faça, seja ele de focalização na poética fanopaica deslumbrante de Rimbaud, seja mesmo de descrença pura e veemente diante das veracidades dos fatos que o poeta narrará turbilhonantemente durante todo o livro - impossível separar totalmente a Obra-Rimbaud do Ho-
mem-Rimbaud, porque no meio sempre restará a figura conectiva do Artista-Rimbaud: o poeta que se desregrou em sentidos, abandonando precocemente a poesia para ir traficar armas na África, e que o fez por tédio, por descrença, depressão clínica - por gosto ou maldição. Enfim, o gesto todo de evadir-se, lançando-se ao Mundo a esmo (feito já predito quase metodicamente em seu maior poema, “O Barco Bêbado”) existiu, e fora refletido na literatura que se fez por aquela “voz”: Mando para o inferno o sacrifício dos mártires, os clarões da arte, o orgulho dos inventores, o ardor dos plagiários; volto ao Oriente e à sabedoria primeira e eterna. – E parece que isso é uma veleidade de grosseira preguiça! Em outra língua e época, em diversa situação e poética mais distante ainda, um homem absorvido por sua fé contrarreformista, mas pleno de reluzentes imagens de dor nascidas de um amor cego ao “amado-Cristo”, dizia de sua vida, escura e inconsolável, que: “Oh noche que guiaste! Oh noche amable más que al alborada! Oh noche que juntaste Amado com amada, Amada en el Amado transformada!”6
Onde começará nos sopros invisíveis desta “escritura” seu sutilíssimo erotismo e onde será o ponto de chegada da Ascese cristã - evidentes no texto de Juan de La Cruz? Não sabemos, e a Poesia não abrirá a sua porta de sonoro ébano e canículas se batermos 6 DA CRUZ, São João – “Poesias Completas”, trad. Maria Salete Bento, Ed. Nerman, Embajada de España, São Paulo, 1991.
nela, mui científicos e incrédulos, perguntando. O que é evidente é que este homem banhado do sangue luminoso e luciferino em sua exaltação poética, e que nos legou uma obra diminuta, mas das maiores da Literatura, existiu de fato, foi devoto do que disse ser devoto, amou o que disse e da forma que disse amar, e se chamou João. Da Cruz. Mas há autores e autorias, e em não necessária concordância, e no flanco dos cultores puros da linguagem pela linguagem, nomes inaugurais da Cultura de hoje. Barthes, assim, cita-os, em especial Mallarmé, o poeta dos dados que não abolirão o acaso de sua própria queda. Mallarmé seria o exemplo cabal daquele que põe a linguagem no lugar do autor, sendo que a falar aqui teríamos tão somente a linguagem, um ponto preciso e diretivo em que só a linguagem age – no dizer de Barthes, “performa”, e não “expressa o Eu”, criando dessa forma uma intocável soberania autônoma da escritura. Exemplo contrário à Rimbaud, Mallarmé é sabidamente o exemplar acabado do “poeta artífice”, que cria a obra para que o Mundo finde nela – o sentido do mundo provindo da escritura. Elogiando Valéry, continuador ilustre do projeto mallarmaico e que considerava a “interioridade do escritor uma superstição”, Barthes não se furta a dizer que o mesmo se embaraça numa “psicologia do Eu”. Ora, Valéry, sempre desconfiado da filosofia e um cético de primeira hora, foi um dos grandes “pensadores” da Estética do primeiro quartel do séc. XX, como bom poeta oscilante
entre a embriaguez e a dissecação minuciosa da mesma. Pleno e consciente dos ópios do decadentismo literário da época, não poderia – nem deveria jamais – se livrar de um necessário aprofundamento interior. Em um de seus diálogos poético-filosóficos, diz a certa altura, pela voz de Sócrates: - Diríamos agora que tudo é espectro ao seu redor (da dança)... Ela os cria ao fugir deles; mas se, de repente, volta atrás, parece-nos que se apresenta aos Imortais! 7 Porém, o golpe de resistência - arriscado em sua ousadia, em a “Morte do Autor” - é dado por Barthes ao citar o sutil egotista Marcel Proust, argumentando com lucidez que o “Tempo Perdido” faz do narrador “aquele que vai escrever”. A obra em Proust é feita de uma vida cujo modelo seria o livro, insinuará Barthes, sendo assim esse autor bem mais próximo do ourives Mallarmé do que se supõe... Só que a vida de Proust vaza contínua, obsessivamente, dentro de sua “procura”. E grande parte dela é identificável na obra, fazendo a delícia de seus biógrafos e exegetas: tiradas dos salões e das vivências íntimas intensas do autor, suas personagens são lapidadas a partir de um modelo real, vivo, que Proust de fato conheceu. Modificando, como sabemos, o que não poderia ser aceito à época, ou talvez pelo próprio Proust em meio ao seu círculo social – como por exemplo, a homossexualidade que permeia todos os livros de “La Recherche”, como a da nuclear personagem de Charlus, que é a transposição 7 VALÉRY, Paul – “A Alma e a Dança e Outros Diálogos”, trad. De Marcelo Coelho, Imago, Rio de Janeiro, 1996.
literária da figura do Conde Montesquieu, um aristocrata famoso e contemporâneo do escritor, e sabidamente homossexual. Mais adiante no texto, passando pelo Surrealismo, onde se vê uma frustração das respostas aos sensos esperados, ou seja, de um estímulo resposta coerente e, portanto, de autor para leitor, e dentro deste Movimento a presença da “escrita automática” que, desabando no Inconsciente rói as pretensões de um Eu compacto e discernível, Barthes conclui que “o autor nunca é mais do que aquele que escreve, o ´eu´ é só aquele que diz ´eu’”. Temos então o “sujeito” e não a “pessoa”: o primeiro, vazio, e fora da enunciação que o define, ao ponto de se distanciar dela – da e na linguagem. É Então que Barthes afirma, com espantosa convicção, que o texto moderno se caracteriza pelo afastamento do autor. E o mesmo questionamento antes posto aqui pode ser reposto diante de tal afirmação: peguemos um autor contemporâneo de Barthes, o poeta norte-americano Allen Ginsberg e seu livro inaugural da geração Beat, “Uivo”. Sem nenhuma metáfora ou atenuação imagética, “Uivo”, livro e poema, começam da seguinte forma: “Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, Arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa...”8 Indo dessa forma num emaranhado de fatos pungentes, agressivos, citações verídicas de 8 GINSBERG, Allen – “Uivo”, tradução de Claudio Willer, L&PM, Porto Alegre, 1999.
situações vividas pelo poeta ou por conhecidos dele, num retrato vívido do que o homem Ginsberg sentia da América de então - e vemos então, aqui, que cai por terra, sem mais, a teoria barthesiana do afastamento do autor, pois que sem um “glossário de realidades”, diríamos assim, que acompanha este longo poema, torna-se quase impossível entender o que de fato ocorre na sucessão de imagens que Ginsberg nos dá... Em “comeu fogo em hotéis mal pintados ou bebeu terebintina em Paradise Alley”, por exemplo, temos uma citação direta do suicídio de um jovem poeta da época, bem como “Paradise Alley” era o nome da casa onde morou Mardou Fox, protagonista de um romance de outro expoente da geração Beat, Jack Kerouac. Mas que “O texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura”, assinala Barthes, quase ao fim de seu ensaio, e esta afirmação, ainda válida hoje e prenhe de possibilidades de instrumentais de análise, conclui-se com a ideia de que o “escritor”, e não o “autor” - ou seja, o sujeito sem paixões e etc. - usaria um dicionário (um sistema ordenado) de onde tiraria uma escritura (um sistema pós-ordenado) que não tem um começo causal (autor) ou fim (leitor). Sendo assim, “a vida imita o livro (lembremos de Mallarmé...), que é um tecido (no sentido de ter sido tecido), uma imitação perdida (em seus fios) do real.” Por isso, torna-se “inútil decifrar um texto”, pois dar um autor ao texto (um “um”) é, nos termso de Barthes, “travar-lhe”. Este seria, então, o erro supremo da crítica, que elide a obra, dirigindo-se diretamente ao autor.
E o fascinante conceito de “tecido” barthesiano nos leva à conclusão de que “na escritura múltipla tudo se deslinda, mas não se decifra”, afirmação que funciona plenamente para o texto poético e metalinguístico, mas que carece de utilidade para as escrituras sagradas ou míticas. Mas o tecer nos leva mais longe, pois não há fundo (autor ou tema), os sentidos são propostos para em seguida serem evaporados e, por conta dessa indefinição de verdades, a “escritura” recusa o “segredo” do texto (um sentido último e único) e seria necessariamente “contrateológica”. Na página sessenta e quatro está, porém, a suma e, ao mesmo tempo, a abertura e a possibilidade contra analítica que a “Morte do Autor” propõe: “um texto é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar onde esta multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor”, ou seja, a obra vive porque está sendo vivida numa pós-vida suposta, a da separação autoral, da ruptura de um elo que a liga a um Eu tirânico e que lhe solapa a individualidade na eterna condição de filha em que se encontra, e por conta de uma superstição cultural. Ora, se o livro existe para desaguar no leitor, então “o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino (e vemos aqui uma belíssima sugestão barthesiana de uma possível estética da recepção), mas esse
destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia, ele é apenas esse alguém que mantém reunido em um mesmo campo todos os traços de que é constituído o escrito”. Em círculo e talvez partindo do mesmo ponto, autor e leitor são infinitos se olhados com delimitações, porque imediatamente as extravasam – seus tecidos se estendem para o fundo de si e lá se perdem, e se espalham ao redor deles mesmos, só para se retrançar ao que passa e, de novo, se perderem. A neutralidade da escritura, em resumo, é mais “branca” por conta da ágil mistura das cores/ vozes que a compõe, como se um arco-íris pudesse correr em alta velocidade aos nossos olhos. Veríamos a miragem do branco, mas sabendo que este branco/ autor é o resultado de todas as cores combinadas – que, por sua vez são, também, miragens...
Nascido em 1972 no ABC paulista, Luciano Garcez é poeta, dramaturgo, compositor, cancionista e maestro. É Mestre em Composição e Poesia pela UNESP e UNIRIO. Sua obra de música erudita e popular está distribuída em CDs pelo Brasil e Europa, gravada por diversos intérpretes. Lançou seus livros de Poesia “Salutz a Uma Dama Moura” em 2010, “As Cidades Cediças” em 2012 e sua sátira-ópera em e-book “L´Ascension ou o Cristal do Milagre Chinês”. Seu CD autoral de canções “You Are The Trickster” foi lançado, também, em 2012. Sua obra o autor a define como “Mitopoética” e “Pluridimensional”, onde “Tempos, estilos, épocas e gêneros se misturam com a mesma elegância abstrata dos temas tão difusos que se organizam em uma banca de jornal, ou nas páginas e links da Internet”.
Plínio Camillo é um autor nascido em Ribeirão Preto, formado em Linguística pela USP, que encontra inspiração nas vivencias do cotidiano para produzir seus escritos. Atento ao que lê, escuta e às distintas formas de ver o mundo, Camillo também atribui grande importância à dedicação ao trabalho: “Escrever para mim não é um ato mediúnico e sim de muita transpiração”. “... Éramos todos passageiros da agonia. Presos na Terra de Gigantes, tentando reencontrar nosso lugar no presente. Talvez não fosse nada disso: eu só era mais moço e a juventude impregnava o mundo. Hoje é fácil: você tem Coração Peludo...”. (Brontops Baruq, escritor, publicou a antologia de contos O Grito do Sol sobre a Cabeça)
Fernando Torres de Andrade é Paulistano, nascido na década de 1980. Começou a escrever quando arrumou seu primeiro emprego em um jornal e nunca mais parou. Mescla em seu estilo literário imagens reais com ficção do submundo, tanto natural quanto urbana, tendo vivido boa parte das linhas escritas. A prosa de Fernando Torres é um livre exercício de linguagem. Frases curtas e impiedosas enfatizam o tom áspero das conversas cotidianas e denunciam a mesquinhez de uma existência banal, na qual grandeza e transcendência já não são mais possíveis. Seus narradores são criaturas que tateiam às cegas, inseridas em um território híbrido de sonho e realidade, sempre a balbuciar vestígios de seus absurdos, desorientados, iludidos pela sordidez cotidiana, pela anestesia diária e pela impossibilidade de se perseguir uma vida maior – daí o desejo de se libertar, evadir, transgredir, atingir o êxtase pela linguagem e pelo amor, porque sim, há espaço para o amor nessas linhas”, Rennan Martens, editor e escritor.
“Psicóloga de formação e artista por auto-intitulação” é como se define a autora da Kazuá, Lorene Camargo. É também “indignada por opção”, o que deve ter influenciado em sua escolha de se tornar militante em movimentos estudantis, durante sua graduação em Psicologia. Ela adota uma postura política também no uso das palavras ditas e escritas: “Carniceira das boas condutas, maravilhosas e repressoras…”, exclama. João Henrique Balbinot, colega de profissão e de ofício da psicóloga e escritora Lorene Camargo, escreve no prefácio da obra da autora: “Neste livro, composto de dezenove peças, entre contos e poesias, a autora também passeia por diferentes estilos, com a preocupação de priorizar não a forma, mas o conteúdo, principalmente aquele contido nas entrelinhas (que, aliás, para nosso encanto, são muitas).
A Kazuada de outubro convidou o grupo Ilú Obá De Min! O Ilú Obá De Min – Educação, Cultura e Arte Negra é uma associação paulistana, sem fins lucrativos, que desenvolve atividades para o empoderamento da mulher, o fortalecimento das relações étnico-raciais e o enfrentamento do racismo, sexismo, homofobia, discriminação, preconceito e intolerância religiosa. O objetivo da entidade é preservar e divulgar a cultura negra no Brasil mantendo diálogo cultural constante com o continente africano, explorando a diversidade cultural e rítmica da música brasileira, visando o fortalecimento individual e coletivo das mulheres na sociedade. As intervenções culturais do grupo promovem a cultura popular e a participação ativa da mulher na sociedade através da arte. Diversas atividades trazem para região urbana a dança e os cantos dos terreiros do Candomblé e de diversas manifestações da cultura negra, como o maracatu, o batuque, o coco, o jongo, entre outras, tornando-se referência étnico-cultural e educativa na região. Ilú Oba de Min foi fundado pelas percussionistas Beth Beli e Adriana Aragão. Adriana é percussionista, vocalista, compositora, arranjadora e profunda conhecedora do Candomblé. Ainda menina obteve a permissão para tocar os tambores sagrados Rum, Rum-pi, Lê. Bethi Beli, além de diretora do Ilú, é percussionista, cantora, regente e mestra de bateria e arte educadora. Uma das contribuições do Ilú Obá De Min é que colocar em pauta a ampliação do discurso sobre a participação feminina no ato de tocar o tambor. Mesmo dentro do Candomblé as mulheres não têm permissão para tocar tambor. Então, Beth inspirou-se em outras tradições africanas, como alguns rituais que ocorrem na Nigéria, por exemplo, onde as mulheres podem, sim, tocar o tambor. Kazuada, Roda de Samba e Literatura! A Kazuada é uma festa-sarau movida a ritmos brasileiros. O evento conta com convidados e anfitriões reconhecidos na cena cultural nacional, e além das atrações de cada edição, é possível conhecer os títulos publicados pela Editora Kazuá. A Kazada reúne os ritmos da alegria brasileira e os escritos de seus autores.
Se Poeta, ou Poesia Hoje? A arte poética, um ensaio do autor Felipe Garcia de Medeiros Aristóteles foi o grande filósofo de Estagira, ou pelo menos aquele que se dedicou deveras à arte poética na aurora de Atenas. Estudei bastante a poética clássica, o conceito de mímesis e verossimilhança – a construção da poesia, a diferença da história, um pouco de retórica e, no geral, a definição da tragédia e epopeia. Cheguei a sonhar por vários dias com a palavra imitação martelando a minha cabeça e, como o gigante da terra de Jotunhein, atingindo Thor, fingi não sentir nada. No entanto, doía. “Imitação que, aos poucos, um com mais e outros com menos habilidades desenvolveram a poesia”. Foram (épico, lírico e dramático); mas não me contentei com o conceito e com o possível surgimento da poesia, muito menos com o sumiço da segunda parte da poética (lenda para Eco). Octávio Paz, no Arco e a Lira, dá mil sinônimos à poesia e, ao invés de defini-la (não no conceito positivista da palavra nem pragmático, mas no sentido essencial, que não quer dizer último ou cristalizado), apenas classifica algumas sensações que são despertadas (ou não) no momento da leitura. Hegel, mais idealista, procurava sempre criticar algo de Aristóteles na sua Estética e dizer que o poeta
lírico devia causar no leitor a mesma sensação que sentira ao escrever. Fernando Pessoa, longe de ser idealista como o genial Hegel, foi o que mais bem expressou, em Autopsicografia, as relações poeta-leitor. Contudo, creio que Eliphas Levi encerrou o assunto em poucas palavras, num livro seu que não lembro o nome, dizendo que “o espírito se comunica pelo espírito através do verbo”. Eis o ponto central. Os primeiros homens do mundo viveram num estado mágico de presença intensa com a poesia. Os mitos de criação dos povos, juntamente com os primeiros poetas teólogos (assim definidos por Vico), foram um dos elementos principais da formação da poesia. A origem do homem é um mistério, mas o que fazer com isso? Cada tribo primitiva possuía seus rituais de encantamento (o colar de dentes de animais para dominá-los na caça, por exemplo) e o chefe, em algumas tribos só eleito mediante um conflito com outra tribo inimiga, ou uma feiticeira, que previa desastres, bonança – geralmente mística no modo de ser excêntrica ao executar seus rituais. O que pretendo? Continuando, assim como pensava Aristóteles, pensei que o homem
imitava a natureza e, não somente a imitava, mas a construía de acordo com a verossimilhança e com a necessidade. Houve um tempo, justamente o tempo fora da história (o que é maravilhoso), ou melhor, na pré-história, em que o homem vestiu a natureza, não somente com o que ela é (uma macieira, árvore que dá maçãs) – mas a deusa da vulva que repousa no galho. E também com o mito da criação. Antes da imitação da natureza, descrito pelo macedônico, existiu a criação. O que é a grande poesia, a verdadeira, a que permanece, senão essa criação eterna? Homens rudes, quase animais selvagens que mal articulavam um som linguístico – conceberam a poesia, essa discutida até hoje por quem a lê e a vive. Nietzsche fala, um discurso que se aplica aqui, da filosofia grega na época trágica dos gregos: Filosofavam como homens de cultura e, por isso, eximiram-se de inventar, uma vez mais, os elementos da filosofia e da ciência a partir de alguma arrogância autóctone; ao contrário, trataram rapidamente de completar, elevar, erguer e purificar de tal modo os elementos por eles absolvidos que, a partir de então, tornaram-se inventores num sentido mais elevado e numa esfera mais pura.
É exatamente esse o ponto cru-
cial: filosofavam como homens da cultura e, por isso, eximiram-se de inventar [...]. Os povos primitivos não caíram na “arrogância autóctone” de criar um elemento vazio no seio da sua cultura. O mito é gerado a partir de uma tradição profunda – que obedece a lei do primeiro mito – este que de forma alguma, in essentia, pode ser alterado. O propósito do grande poeta é elevar os elementos da cultura e purificá-los no sentido de torná-los poesia, em forma de poema – pois, está bem certo Octávio Paz quando diz que todas as expressões artísticas são poéticas amorfas, ou seja, sem uma forma definida, imortal. Oswald de Andrade fez exatamente o que disse o pensador alemão, juntamente com Mário de Andrade e os modernistas brasileiros. O que fizeram? Foram (des)cobrir o Brasil “no fundo da mata virgem”, o Brasil místico dos brasileiros... A antropofagia é a lei de ordem do genuísmo nacional. Aqueles poetas que se esqueceram da sua cultura, da sua raiz primeira, esses não chegaram ao trono do sol, pois a essência da arte não está no objeto (algo que existe em todo o mundo), mas no eco despertado pela sensibilidade. Poetas medíocres acham que falando da globalização ou da via férrea europeia, atingem a literatura universal por se referirem a alguns conceitos ou lugares do mundo – pecam, sem exceção, pelo superficialismo material, o mesmo pregado pelo futurismo e criticado por muitos. Não quero dizer que o poeta precisa, necessariamente, se vestir de índio, claro que não. O que tenho percebido em alguns poetas, sobretudo nos africanos, uma forte e extrema ligação com sua cultura, principalmente por aquela cultura construída historicamente com base na opressão, na miséria e no racismo. O movimento pelo qual esses poetas direciona a
sua poesia, chamo-o de empréstimo aditivo. O que isto significa? É o movimento pelo qual o poeta é valorizado (com a poesia carregada de sentido atribuído) pela sua história de origem. Não é que sua poesia seja trabalhada, de qualidade (não no sentido capitalista, óbvio), inovadora, espantosa. O seu poema, perdoem-me a expressão, é apenas um pão seco melado de mel na boca de um faminto. Quem tem fome? Um crítico interessado/e um leitor ofendido. A poesia não pode se submeter a nenhuma questão exterior – ela não dever ser contida, ela contém e impõe o próprio limite (fonte inesgotável de poesia). O poeta, portanto, cria – e cria, não o objeto ou uma concepção, mas uma imagem que se desfaz e refaz na palavra em estado permanentemente latente em nosso espírito. No canto XXXI, do Purgatório da Divina Comédia de Dante, diz: Meu espanto, leitor, qual não seria, Vendo o objeto na imagem, transmutado, Quando constante em si permanecia?
Mas que terceto sublime! Aí vemos o diálogo de homem para homem – na sua imanência transgressora e fantástica. A força mágica das imagens é a causa mais importante de todo o sentido. Por isso, repito, o poeta, consciente da sua condição, não deve – isto não é lei, talvez razão de ser, ou algo mais próximo – cometer uma “arrogância autóctone” nem estar alheio ao espírito do seu povo, pois somente dessa maneira ele irá se tornar, num sentido mais elevado, inventor. Não é à toa que, poetas dessa estirpe, são visionários e mágicos e universais. O poema revela segredos incontidos – aqueles do qual não se podem extrair de uma pessoa e que muitos amantes tentam, em vão, arrancá -lo um do outro. Há na poesia uma espécie de exposição do segredo,
revestida por uma forma mais pura de linguagem, que desapropria a individualidade do segredo, fulminando-o para todos aqueles que leem/ vivem o verso. Não podemos acusar o poeta de coisa qualquer antes de olharmos para nós mesmos. Um crítico chegou a afirmar que Oscar Wilde fazia pose até quando escrevia em verso (referindo-se ao Balada do Cárcere de Reading). Na verdade, quem fez pose foi o crítico – não o artista – ao tratar os versos que são, mesmo os traduzidos para o português, profundamente poderosos e vitais. O poeta transforma sua intimidade, triforme como Cérberus, multiforme como Proteu ou como um homem/e o próprio Fernando Pessoa o é, sendo – no momento em que escreve – destituído da imagem acústica que o segredo lhe atribuía. Depois de escrever, seu material verbal perde o fio de origem como um filho ao sair do útero e, por isso mesmo, o poema torna-se um ser no mundo (simplesmente autêntico esse ser no mundo) – mas lembra que o fez: o artista. Não acusemos o poeta de rebeldia. Somos rebeldes, Rimbaud é um outro. O poeta captura leitores através de suas imagens/ versos e, nesse instante, o arrepio é compartilhado por ambos. A partir de agora, para deixar mais claro, irei traçar, brevemente, a trajetória da poesia no país ou em algum lugar com um pouco de ma-
lha cronológica/quase inexistente e de como os poetas lidaram com ela através do tempo. Não posso dizer nada além do que sei, apenas pressinto a chegada de novos poetas capazes de atingir patamares nunca dantes alcançadas por outras gerações nos países – e eles trarão de volta aquele espírito renovador que reluta em permanecer na aura do homem, como um demônio enjaulado durante muito tempo que anela fugir como um grito – porque a poesia com vigor ressurge em cada século quando os verdadeiros poetas se impõem mestres. A literatura brasileira recebeu seu testamento quando Vaz de Caminha escreveu aquela carta e, a partir daí, começamos a (re)produzir elementos peculiares de outros mares longínquos. De sorte, muito se salvou nesse undoso mar de versos – de poucos, quase nenhum poeta. Desde a descoberta até períodos do romantismo, a poesia brasileira medrou apenas breves ápices de liberdade. Gregório de Matos, de um talento inquebrantável, ousado na forma e no conteúdo, compôs poemas indeléveis, tratando temas da sua época: religião/reforma/ barroco/antíteses claras e escuras. Pelo o que consta, alguns versos espalhados retratam o poeta (dessemelhante) em meio a toda essa estética. Há um só tempo (“período: classicismo”) podia ser ver, em Portugal, Sá de Miranda compor versos bi/partidos de si e Camões se desfazer em épico e lírico. Embora a florescência poética de Petrarca tenha atingido/impregnado os dois portugueses, eles foram além da presunçosa influência literária do italiano. E os períodos foram se sucedendo – há quem acredite na inexistência do barroco – o que é um bom sinal para os poetas, até o arcadismo. O artifício mais hábil para encaixotar satisfatoriamente os poetas durante
o tempo na História foi a produção/ criação dos períodos literários/estéticos/afins/estilos de época. O poeta, Judeu errante, expulso da República, novamente, teria de emigrar. Não poderia existir outra maneira de guardá-los no tempo, desde que um poeta fosse representante de uma época que já passou – o que não é, de todo, verdade. Quando se fala em literatura, o tempo entra em pânico, a história refaz o seu discurso, e a vida se reinventa para não dar vexames diante desse fenômeno que é uma obra de arte. “O poeta é a má consciência do seu tempo” – assevera Perse. Seja a cachaça/a doença/a pátria/o nativo/o cotidiano ou os cisnes selvagens de Coole, um simples sistema social, uma construção épica da Europa moderna, o fragmento de milhares de versos/poemas/autores, tragédias/desconstruções/rosas/ pulmões/descobertas, clássico ou contemporâneo; não tenho sistemas ou pensamentos complexos na cabeça nem linhas que conectam a um ralo comum para encaminhar todos os homens. No máximo, linhas de fuga, conexões avulsas e alguns mestres da arte podem nos guiar. Falta: eis a palavra. Precisa-se de poetas na Nicarágua, a falta sensibilidade do nosso país e a falta de objetividade estão destruindo a palavra. Destruindo não, mas contaminando e disseminando a palavra de ordem: falta. Não existe anarquia em arte - isso é coisa de classes sociais, Karl Marx e Engels, Adorno, estrutura e infraestrutura. Chove, e a criança emite o som da chuva por quê? É verdadeira a relação da criança com o poeta, mas como os poetas se esquecem de ser criança? Depois, o que resta do laço? O poeta cresce e tem consciência disso. A criança acha que tudo é brincadeira. Existe uma tendência geral para o ridículo, improfícuo/silício na poe-
sia, herança da poesia marginal, dos poemas/piadas da aclamada era de ouro do modernismo brasileiro de 1922 que se estabelecem como regra abissal para composição de poesia neste país – não digo para os novos poetas (poucos, raros), mas para aqueles que almejam ou os que leem um poema “curto, bom pra ler”. Não se pode negar a importância do modernismo brasileiro, ele não acabou com a literatura, de modo algum, basta qualquer um ler alguns poemas séculos atrás e os produzidos na época do movimento – e todos podem observar, nesse percurso, as mudanças efetivas/eletivas e importantes para produção de uma literatura mais crítica, mais densamente consciente no panorama geral das artes do que, diferente do que se pensa, descobrir o Brasil ou pátria que seja, não. Esse período foi marcante porque o ser poeta tornou-se um dilema original em nossa literatura (tendo como gênese lá em Cruz e Sousa com mais acento, Augusto dos Anjos e, Menotti del Picchia mais próximo da semana e do que viria a acontecer no país); e o papel desse homem, em nossa sociedade, foi posto em questão/ relevo/expressão. Foi mera coincidência ou mera sina buscar o Brasil primitivo/nativo/místico/lendário/ folclórico como meio de expressão de uma literatura brasileira, e Juca Mulato ter sido escrito nesses “moldes” mesmo antes da semana de 22? Não – de forma alguma o foi. Por quê? Era o que estava se fazendo na Europa – e na mesma linha dos movimentos estéticos de vanguarda, o Brasil precisava olhar para si e seguir os preceitos políticos/instantâneos/ imediatistas dos movimentos literários em voga no mundo. O Juca foi exaurido nesse ideal como muitas obras pelo tempo. Ser poeta não está no âmbito exclusivo do desejo e anseios da
criação de uma nação – mas da natureza imprecisa cujas leias são rigorosíssimas, cruéis e, como o tigre branco, surge durante um tempo, impreciso/justo/necessário alguém capaz de olhar com esgar para tudo o que foi deixado para trás e com brilho tudo o que se sucederá em arte. Qualquer outro tipo de homem poderá conseguir ser o que deseja, com o talento – todos o podem ter com o esforço – será um excelente maratonista, lutador, pedreiro, empresário, advogado, médico/palhaço, professor/garçom/frentista/ atendente e, com o devido talento, vão ser mestres em seu artifício/emprego/habilidade. É um grande paradoxo pensar em gênio/talento. Nenhum poeta ou artista é um buraco negro que engole todos os demais, embora, em arte, isso pareça possível – no máximo, ele poderá ser um guia dúbio (como Virgílio na Comédia de Dante) que iluminará gerações até permanecer nas estrelas, como os grandes heróis do universo, mestre da atração, a atrair novos homens. O buraco negro talvez seja cria do leitor/crítico no ato de fechar ou abrir um ou outro livro de poesia do seu interesse e, no interior das páginas, a verdadeira escuridão prevalece naquela obra que não elegeu. O nosso problema atual com a falta de inovação nas artes em geral reside no fato crucial de admirarmos, durante um longo/vasto tempo, um escritor antigo/imortalizado/artista. E essa admiração vai longe, chegando à imitação, culminando na brincadeira legal com as palavras, trocadilhos, repetições/e cacoetes de lagartixa. As coisas mudam, já dizia Camões em um dos seus sonetos – naturalmente – e seguem-se novos meios de expressão/novos sujeitos portadores de escrituras que, por serem novos/inovadores, iluminam os antigos. O mesmo processo ocorre, se compararmos, com um cantor
que se consagrou com uma música de sucesso: sempre irá tocá-la se outra não se instalar em nossa alma – ou em seu repertório. Jamais algum escritor irá se comparar com outro, todavia, estarão na mesma altura, alternando e, ao mesmo tempo, juntos, como ocorre na física quântica. O outro problema: a escassez de leitores e a abundância de consumidores de textos de massa, de diversos gêneros – os mais esdrúxulos (para usar esta palavra) possíveis. Há um número abundante de pessoas que escrevem qualquer coisa, de qualquer jeito, utilizando qualquer efeito banal e qualquer esforço repetitivo crendo-se qualquer gênio passado, moderno/ou atual. Jorge Luís Borges, aquele que tirou a literatura argentina do beco profundo em que esta afundava, além de espalhar a cultura e a literatura do mundo em seu país, estabeleceu o nível de qualidade em arte de que necessitava a sua nação. E Borges, mais ousado ainda do que imaginamos, fala, no livro Elogio da Sombra, no poema Um leitor: Que outros se jactem das páginas que escreveram;/a mim me orgulham as que li. Lembrei-me de uma obra, ao pensar sobre a leitura, de Ricardo Piglia, O último leitor, no qual o autor falava dos tipos de leitores, desde o maluco Dom Quixote de Cervantes até o obsessivo leitor argentino Jorge Luís Borges (que ficou cego com o tempo), e ele concluiu que o leitor ideal é aquele que se dedica a obra de alguma maneira – se lê a página que abre, folheia o livro, ou o deixa na cabeceira para devanear em qualquer hora. André Gide, em seus diários, ao lembrar uma conversa que teve com D’Annunzio, no qual este dizia que lia tudo, se surpreende com a afirmação do poeta quando disse ao escritor francês: nós lemos tudo na esperança que sempre renasce de encontrarmos enfim a obra-prima
que há tanto esperamos. Onde esse leitor está? Creio haver no Brasil uma insensibilidade anômala à poesia, ao verso e ao poema, como um todo. Equívocos têm sido cometidos durante muito tempo e é de se espantar com o número parco de leitores e, sobretudo, com a visão absurda de poesia disseminada pela indústria cultural e pelos ditos “poetas”. Poema é sinônimo de rima ou, o que é pior, de família, amizade, amor, paquera/patética e expressão verbal fútil, para cultura bestializada. Drummond, em A rosa do povo, escrevera dois poemas (os que abrem triunfalmente o livro), Considerações sobre o poema e Procura da poesia, deixando esclarecido o que, de fato, não era poesia/poema: O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não se pode dizer, é evidente, o que é poesia ou poema, no entanto, o que não é, fica evidente quando a tradição é enfrentada de acordo com o mesmo paradoxo da viagem no tempo: matando o avô no passado. O formalismo russo se encarregou da parte mais evidente ao delinear a forma/construção e a característica singular de um discurso literário/poético como elemento de literariedade intrínseca às obras de arte. Embora o tratado de versificação de Olavo Bilac e alhures não construa um poema, ainda mais um poeta, é digno de nota levar em consideração, no caso dos grandes discursos literários, a sua forma/informe e vazia. Existe algo que anima tais discursos, uma força vital que me demorei a reconhecer durante muito tempo em minha vida. Leituras estão sendo feitas de romances terríveis do estrangeiro, literatura de vampiro, sugando toda a nossa capacidade, e “escritores” brasileiros estão se atrevendo a fazer o mesmo aqui, escrevendo a mesma futilidade, as mesmas historinhas,
com trilogias e reality shows piores do que poderíamos imaginar diante de uma realidade tão expressiva quanta a “brasileira”, mas destruída, desqualificada, e a população é como um pinto no ovo podre – infértil e mal cheirosa. Aqui reside o lugar de prestígio que os antigos ocupam: óculos para o novo, bases para o futuro, o inaudito silêncio que entra em confluência com o nosso mundo. Se esquecermos da história, vamos, enfim, perceber o que significa essa força cósmica que ainda paira no ar, provinda da explosão de tais obras literárias e autores. Rimbaud era (e)vidente ao dizer que precisávamos ser absolutamente moderno em Uma Temporada no Inferno, porque ele sabia que, por mais belos que fossem os versos feitos em sua época e antes até, do mundo antigo, além do estigma de imitação ter crucificado muitos poetas (levando uns à ressurreição - os que abandonaram tal ideia), o poema figurava apenas como uma coroa de louros no poeta e, para o mundo, uma cópia de realidade. Manoel de Barros diz, e com toda razão de/lírio: a aura do poeta é uma aura de ralo. Mas não podemos esquecer Baudelaire (o príncipe maldito/redentor da poesia), de suas Flores do mal, e do seu poema de entrada, Ao leitor, no qual o poeta chama de hipócrita, tu, leitor, hipócrita, meu semelhante, meu irmão. A poesia clássica, de Homero e Virgílio, Dante e Camões, cantava - no caso de tais epopeias - a fundação de um povo, uma nação, ou marcava o período histórico de uma civilização/ país. Isso é o que se fala. No entanto, penso que eles criaram uma nova nação/realidade/mundo, suspensos, como se existissem em outra dimensão, por isso são atuais/estranhos, trazem novidades de lá, escorrem inolvidavelmente em nossa época, descicatrizando as chagas de hoje.
Poderá o poeta compreender a dimensão de sua própria importância? Em 1922, ano da semana de arte moderna, o movimento modernista brasileiro, os novos escritores, ainda inseguros de sua produção, decidiram abandonar os velhos modelos e, seguindo a filosofia da antropofagia (desenvolvida por Oswald), extraíram o que eles consideravam de melhor nos antigos, brasileiros ou europeus. Tal atitude, admirável, sem dúvida, serve de exemplo para nós, desde que lembremos remotamente deles, e vivemos, finalmente, nossa época. Algo semelhante ao que ocorreu acontece hoje: muitos escritores duvidam ou estão desenvolvendo seu talento, mas poucos têm coragem o suficiente para se arriscar. Buscam a glória de um chá (com poções mágicas, quiçá, mortalíssimas) em Canaã, ao banquete na eternidade. O problema é que muitos beletristas não são realmente escritores, e acabam destruindo a si mesmos, só, e nada mais. Parece que todo jornalista ou colunista/freelance neste país possui talento inato para se tornar poeta/romancista/ portador de... A literatura nunca acabou nem acabará; o homem é que está em crise consigo mesmo - e ele precisa perder as palavras para se destilar em espelho/trincar em verbo. Assim como devo saber quem fui - na literatura também - eu só posso ser quem sou, e é por isso mesmo que atinjo o outro. Bertolt Brecht declara obstinadamente, em as Histórias do Sr. Keuner: bendito o filho que não lembra o pai – pois todo estilo deve ser citável, todo estilo é impessoal. Drummond, ciente da sua irônica luta vã, “cansou de ser moderno para ser eterno” e, dessa maneira, atingiu patamares inimagináveis em sua poesia, pois foi mais do que a realidade positiva que o cerceava, o mundo, e diria: a melhor poesia é um sinal de menos. Tenho pra mim que
um grande poeta é aquele que, ao ler um poema seu, mas aquele poema, o José, por exemplo, de Drummond, faz-me perguntar inconformado: mas de onde o poeta tirou esse poema? O que ocorreu e talvez não ocorra é outra semana/ não sei/ duvido - bastam de estéticas e movimentos sublimes.
Felipe Garcia de Medeiros nasceu em Imperatriz (MA) em 1989. Atualmente, mora no RN. Graduado em Letras pela UFRN e, recentemente, mestrando em Letras pela UFRN (Natal). Poeta, autor do livro de poemas Frio Forte, lançando em 2012 pela Editora Multifoco. Professor de Português e Literatura do IFRN (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte); com experiência em gêneros textuais, literatura e ensino, e pesquisador na área de literatura e estudos culturais (nos eixos temáticos: modernidade e pós-modernidade - tópicos de poesia e prosa), analisando a questão da lírica homoerótica em Fernando Pessoa.
Deus não conversa Ó quanta prodigalidade na natureza ó quão incomensurável super abundância do ser ó ser cujo desígnio vincula o ente vincula a existência em sua finitude a uma grandeza tão superlativa que desafia qualquer entendimento ó mistério profundo ó silêncio insondável capaz de dissolver tantas perguntas tantas disquisições desencontradas ó incerteza ó negro oceano ó noite cintilante
Elaine Milmann, educadora especial, psicopedagoga, mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Dentro das possibilidades de pesquisa na área da educação, escolheu o ramo da educação especial, que se ocupa do atendimento específico a sujeitos em uma posição singular na linguagem.
Testemunho. Testamento. Um livro que, corajosamente, testemunha um trabalho sobre o qual não cabem os predicados de clínico ou escolar. Pelo menos não em uma posição de alternância – ou um ou outro. Assentadas tanto no chão da clínica quanto da escola, suas letras compartilham os rastros deixados por anos de experiência de trabalho junto a crianças e jovens que apresentam uma posição singular na linguagem; posição essa que atualiza impasses na aprendizagem, notadamente, dificuldades na travessia rumo ao letramento. Um livro que, generosamente, oferece um testamento àqueles que têm o privilégio de percorrer suas páginas. Ao testemunhar da criação diuturna de formas de acolhimento e intervenção junto a sujeitos que não se alfabetizam conforme o esperado por nossas instituições, Elaine Milmann equaciona elementos que servem de princípios para orientar uma prática nesse terreno. Dessa forma, deixa um testamento àqueles que por essas terras se aventuram. Testemunho. Testamento. Ambos já seriam suficientemente instigadores para iniciar a leitura desse livro que tens em mãos, leitor. Mas não se surpreenda se no caminho fores catapultado para o que não esperaria encontrar em um livro científico: a poesia. A poesia é a lâmina que permite avançar abrindo caminho na floresta densa das impossibilidades de acessar o mundo das letras. Aprenderás que ela também pode te acompanhar, se precisares empreender semelhante travessia (Simone Moschen, 2014).
Neres, somente por Cláudia Reis Não faz muito; foi durante a gestação de sua quarta obra de poemas em prosa que José Geraldo Neres tornou-se, simplesmente, Neres. A nova grafia do nome literário homenageia os antepassados, mas reflete também a vontade de se aproximar da essência dos viveres, dos escritos e das criações, como ele mesmo explica: “provoco ao máximo o resgate da simplicidade que habita em cada corpo. Uso minha experiência para dialogar com a ancestralidade adormecida ou em repouso que manipula espelhos; como gosto das ações das letrinhas, tento até ao extremo trazer do abismo: narrativas. E, assim, vamos namorar palavras, e ter o gozo de acordar o pó, o barro, a fonte, tempestades e pestes poéticas”.
O atual diretor de Formação Literária da União Brasileira de Escritores (UBE) uniu-se aos profissionais da Editora Kazuá para ministrar, periodicamente, oficinas de desenvolvimento e criatividade de textos. O ensinar lhe proporciona a troca: “é sempre uma grata surpresa quando encontro um novo autor ou novo livro que possibilita o sequestro do meu corpo desta realidade: adoro ser devorado por livros e demais criações do saber humano. Entretanto, não consigo entender criação como isolamento, mas sim como diálogo mutante com nossa realidade (material importante e fundamental: a pulsar em cada alteração dos ponteiros do relógio)”. Os olhos dele brilham, então, porque identificam as almas siamesas: “não conheço fórmula
ou ato magístico para tornar alguém poeta ou escritor. Trabalho com atos fatos ficções poéticas, apresento ferramentas para um ofício ou sacrifício: quem manuseia esses elementos é que terá/ saberá o resultado”, relata Neres. Assim como a ênfase ao próprio sobrenome, as pesquisas de Neres lhe conduzem aos passados – alguns recentes, outros longínquos -, que permanecem ecoando em seus presentes. Uma dessas pesquisas ganhou o nome de Macumbaria Poética, e busca na dança, na música, nas artes visuais e na literatura afro-brasileiras a ressignificação da tradição e do contemporâneo. “Alguns símbolos sempre perseguem minhas criações, mas sempre com uma proposta singular de ruptura provocativa”, ressalta.
A VIAGEM DE PACÍFICO JB Cardoso
P
acífico entra no ônibus com certa dificuldade. Seus oitenta anos já lhe tiraram um pouco da habilidade da juventude. Com esforço, consegue se segurar quando o veículo arranca. Olha os bancos da frente, reservados para idosos, gestantes e deficientes físicos. Todos ocupados. Nem todos, claro, por idosos, gestantes ou deficientes físicos. Alguns ocupantes até bem jovens e de aparência saudável Pacífico resolve então passar a roleta e tentar um assento na parte de trás. Após passar a catraca, percebe que o fundo também está lotado. Se segura ao lado de um banco, onde estão uma mulher e uma criança. A mulher fala para outra, que está no banco da frente: “Só assim para a nenê ficar quietinha. Tem que ir sozinha na janela”. Pacífico resolve ir adiante. Após esbarrar em algumas pessoas, devido ao movimento do ônibus, ele acaba ao lado de um assento ocupado por um casal de namorados. Pacífico observa que, do jeito que ambos estão grudados, poderiam ocupar um lugar só. O velho recorda de quando viajava nos bondes da antiga Porto Alegre. Nenhum homem se sentava enquanto houvesse uma dama em pé. Muitas vezes ele e outros cavalheiros desceram dos veículos para dar lugar aos mais velhos e às senhoras. Mais sacolejo, esbarrão, dificuldade e Pacífico chega ao fundo do ônibus. Ali, todos os lugares ocupados por uma turma barulhenta. A maioria vestindo uniforme de alguma escola. Ninguém presta atenção ao idoso, que mal consegue se equilibrar com o freia-acelera do veículo. Quando o ônibus para em um ponto, Pacífico pede licença e aproveita para descer. Na parada de ônibus tem um banco. Pacífico senta-se, olha o relógio. “Daqui a vinte ou trinta minutos deve passar outro. Tomara que eu tenha mais sorte”, sonha Pacífico.
O artista plástico, escritor e poeta Rodrigo de Haro escreve sobre a criação poética de Pedro Port, que lançará dois livros pela Editora Kazuá.
Entrevista com Elaine Milmann, educadora especial, psicopedagoga, mestre e doutora em educação e autora do livro Poética do Letramento. A obra é o resultado de sua tese de doutorado e de sua trajetória de investigação que relaciona escrita, corpo e linguagem nas possibilidades de letramento de sujeitos em posição singular de linguagem.
Conto de Fernando Torres de Andrade, autor de Para quando o entulho soterrar os joelhos.
Palavraimagem com a literatura de brevidades de Cláudia Naoum.
“Fascinados pelos Rolling Stones”, diz a sinopse, “uma garota e cinco meninos vivem num mundo de fantasias inocentes e despretensiosas. Enquanto tentam superar os obstáculos escolares, isolam-se em seu pequeno paraíso afastado de tudo e de todos para tocar e sonhar com um mundo utópico no qual planejam levar a boa vida que imaginam ser a de seus ídolos. Entretanto, um silencioso acaso os sugará aos poucos para uma sequência de acontecimentos que mudarão suas vidas de modo dramático”.