Angélica Nogaroto
Segregação Planejada Não há muros, porém a valorização imobiliária separa pobres dos ricos nas metrópoles e tem apoio do poder público
A busca por abrigo fez o homem modificar o espaço em que vive. Foram as construções vistas atualmente como primitivas e de elementos técnicos limitados, como o uso de barro, galhos e madeira, responsáveis pela organização de diversos grupos em sociedade. Mas, com a evolução tecnológica, surgiram as metrópoles que conhecemos hoje. O abrigo que começou nas cavernas foi se adaptando enquanto o homem aprendia novas técnicas, como o domínio do fogo, a utilização da pedra, a domesticação de animais e a agricultura. Tornou-se conveniente a construção de habitações artificiais, que não limitassem aos recursos e perigos até então perto das cavernas. O que era somente meio de proteção, transformou-se em local onde há convivência, socialização e compartilhamento, tanto familiar como comunitário, sendo crescente o agrupamento de habitações e, com isso, a necessidade de infraestrutura para esses aglomerados. Na atualidade, a casa se tornou um bem comercial e objeto de desejo. Porém, a evolução tecnológica não favoreceu a todos, principalmente as classes pobres da população. Ter um pedaço de solo custa caro e ascende de acordo com a proximidade de infraestrutura e serviços no local. Já a construção finalizada incorpora o projeto, os materiais construtivos e o trabalho de profissionais. Além do custo efetivo, há a incorporação de lucro. Realizar o sonho da casa própria é quase impossível para boa parte da população brasileira. No Brasil, o mercado imobiliário é essencialmente operado pelas empresas privadas e isso se torna um limitador do desenvolvimento das cidades. O que se tem visto são regiões periféricas a grandes centros mantidas com infraestrutura precária na intenção de valorizar aquelas com mais qualidade. “Vivemos sob uma lógica perversa e o poder público tem sido parceiro, operando a favor do interesse do mercado e não assegurando a moradia as pessoas”
afirma Ana Lucia Rodrigues, doutora em ciências sociais e coordenadora de Observatório das Metrópoles da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Nessa lógica, o executivo municipal garante que as principais infraestruturas e serviços sociais de qualidade se mantenham centralizados. Em decorrência, o valor de um mesmo projeto de construção, com os mesmos materiais, vai depreciar quanto mais periférico estiver em comparação à mesma construção do centro da cidade. O resultado do método é a segregação da população de baixa renda para locais de absoluta precariedade. Em cidades como Maringá - com mais de 397 mil habitantes, segundo o IBGE - e Brasília, - 2,9 milhões-, que tiveram o crescimento planejado e pensado onde cada tipo de classe social iria morar, pessoas de mais baixa renda não conseguem ao menos fixar moradia no município. Em consequência, as cidades da região incorporam essa população, que pela baixa qualidade de infraestrutura, traz à tona mais problemas sociais em comparação às maiores cidades. A vendedora Josemari Silva, 36 anos, mora em Maringá, mas conseguiu comprar a casa própria somente em Sarandi, na região metropolitana. A compra foi financiada pelo programa social federal Minha Casa Minha Vida, há sete anos. Segundo Josemari, em Sarandi o preço do imóvel estava mais acessível em relação a Maringá. A entrada do imóvel que em Maringá seria de R$ 30 mil, em Sarandi saiu por R$ 3 mil com subsídio do governo, fora os valores da documentação. “Uma pessoa que ganha pouco, não tem condição de pagar esse valor [em Maringá], mesmo que economize”, justifica Josemari. O valor do imóvel em Sarandi na época era de R$ 71 mil. Em Maringá, uma casa com as mesmas características custaria R$ 130 mil ou mais. Para a vendedora, o aluguel pago todo mês não compensa, mas pela infraestrutura e maior oferta de emprego preferiu morar em Maringá. A decisão pesou mais quando descobriu que estava grávida. Vangloriar-se de não ter favelas não é grande vantagem, demostra que a cidade segrega mais a população de baixa renda. “Maringá, Goiânia e Brasília são exemplos de cidades mais perversas na integração da população. Ter favela significa que a cidade abriu os braços para todo mundo morar lá”, afirma Ana Lucia Rodrigues. Goiânia, que foi planejada para 50 mil habitantes, já conta com mais 1,3 milhão. A capital de Goiás tem o Conselho Municipal de Política Urbana mais antigo em funcionamento no Brasil e programas para evitar a formação de habitações
clandestinas. Mas a partir de 1970, foram surgindo loteamentos irregulares e clandestinos com nome de condomínios para atender as pessoas de mais baixa renda, que não eram considerados favelas. “Por incrível que pareça, a única favela que tínhamos, que era o Morro da Aranha, foi regularizada há 20 anos, esclarece Sebastião Ferreira Leite, secretário de Planejamento Urbano e Habitação de Goiânia. Segundo o secretário, houve preocupação desde a elaboração do Plano Diretor da cidade, de tirar as famílias das áreas de risco e de regularização fundiária das áreas clandestinas. Porém, esses locais têm dificuldade em se valorizar pelo mercado imobiliário. Áreas habitadas sem planejamento e de forma irregular são mais difíceis de receber infraestrutura, como água e esgoto, de forma adequada, além de “haver falta de interesse de se investir nessas áreas”, explica Gilson Aguiar, mestre em história e sociedade.
Contraste social Bairros mais antigos, que passaram por alta valorização imobiliária, demostram as mudanças ocorridas nas cidades. Ibéni Berto, 52, mora com a mãe Ana Gaudelice Berto, em um dos bairros mais antigos de Maringá, a Zona 2, região central de Maringá. No início, só havia barro e prostíbulos, hoje, é umas das regiões mais nobres da Cidade Canção. Entre duas casas de alto padrão, a casa de madeira simples, construída há 48 anos, reflete a supervalorização dos imóveis. O terreno custou “um caminhão de tanque de gasolina”, o que na época era muito dinheiro. Hoje, a casa à venda não representa nenhum valor aos compradores, mas o lote de 730 m² está sendo ofertado por R$ 2,2 milhões. E não faltam prováveis compradores. Nos primeiros dois meses em que a placa foi posta em frente à casa no portão, apareceram 10 interessados no terreno. Entretanto, a venda representa para Ibéni ter de sair do bairro onde cresceu, já que o valor da herança será dividido entre ela e os três irmãos. O contraste não é só visual. As diferenças entre a população de baixa renda e as mais ricas geram conflitos que vão desde comportamento, sons, até dos ambientes sociais que as pessoas frequentam de acordo com a classe social a qual pertencem.
“Pressionados pelas diferenças, pelo mercado imobiliário, pelo valor do IPTU ou pela morte do proprietário, os moradores acabam vendendo”, explica Gilson Aguiar. Com a tendência em que as casas são vendidas, aos poucos, as diferenças dos bairros tendem a se homogeneizar. As casas que eram feitas para durar décadas e ser herança para os filhos, netos, não representa a realidade atual. Hoje, segundo Aguiar, uma construção dura em média 25 anos. Não há mais a tradição dos filhos criarem a própria família na mesma casa que cresceram, pois as pessoas estão sempre em movimento. As habitações mais antigas, simples e de madeira, comuns e de qualidade na época que foram construídas, não são o interesse dos compradores, que buscam nos terrenos edificar obras modernas.
Aluguel Financiar a casa própria nas cidades de alta valorização imobiliária também pode pesar no bolso. As principais dificuldades são fazer um planejamento a longo prazo e o alto valor de entrada. Quem não consegue comprar casa na metrópole, recorre às cidades vizinhas, mas pela falta de emprego e de infraestrutura deixam as casas e partem para as maiores cidades e se prestam a pagar o aluguel por melhores serviços ofertados. O Censo do IBGE de 2010 aponta que 20,9% das famílias vivem em casa alugada. Dessas, 25,7% comprometem cerca de 30% ou mais da renda para pagar pela moradia. A enfermeira Josiane Moreira de Campos, 25 anos, mora há três anos de aluguel em Maringá. Para ela a maior dificuldade para conseguir a casa própria é o financiamento, seja pelo valor da entrada ou o valor das parcelas que fogem da realidade financeira. Mesmo o marido tendo uma casa própria em Mandaguari, região de Maringá, não compensa para o casal morar naquela cidade por ter menos infraestrutura e emprego. Mesmo que o imóvel em Mandaguari seja melhor estruturalmente em comparação à casa de Maringá, o valor recebido do aluguel só contribui com 80% no aluguel pago pelo casal. Com as mudanças nas regras do financiamento pela Caixa Econômica Federal, o valor da entrada, que era de 50% caiu para 30% do total do imóvel. Mesmo
assim, juntar esse valor é algo complicado e deve ser planejado, já que a dívida pode durar até 40 anos. “As pessoas têm receio de ficar desempregadas, já que a economia está passando por crise e o desemprego está cada vez maior. É por isso que muitos tendem a ficar em moradia de aluguel em vez de financiar o próprio imóvel”, afirma o doutor em economia Arthur Gualberto Bacelar da Cruz Urpia.
Mercado construtor O local não é o único influenciador do valor do imóvel. Projeto, mão de obra e materiais ainda interferem na valorização imobiliária. Toda técnica construtiva poderia estar mais adiantada. O que torna inviável é o pouco investimento. No Brasil, a relação construtoras e universidade – de onde partem boa parte das pesquisas sobre novos materiais e técnicas construtivas – é ainda distante. “O interesse da cadeia produtiva é fazer a multiplicação do capital e da margem de lucro. Como é possível produzir sem investir nessas áreas, as empresas de construção continuam produzindo”, explica Reginaldo Ronconi, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo (USP). Investir no campo da ciência traz benefícios para toda sociedade, das construtoras até os consumidores, sejam de baixa renda ou não. Em Maringá, segundo o secretário de Habitação de Interesse Social, Sergio Bertoni, há em torno de 10 mil inscritos ativos em programas sociais, sendo 2,5 mil com renda superior definida pelos critérios dos programas. O que dificulta a obtenção da casa própria, além dos valores dos terrenos muito valorizados, é o padrão de materiais utilizados. Ainda assim, uma das barreiras para a introdução das novas técnicas são as dificuldades operacionais, que vão desde divulgar o produto até a resistência da mão de obra tradicional. Para obter uma nova tecnologia, a empresa vai analisar a redução de custo bem como custo de aquisição e manutenção. Mas falta também mão de obra qualificada para operar os novos sistemas. Uma ideia nova pode não ser econômica para as empresas, precisa ser bastante estudada, percebendo se haverá benefícios. “Há uma restrição natural em relação as coisas novas”, afirma Leandro Vanalli, diretor adjunto do Centro de Tecnologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Porém, as barreiras não estão somente no campo empresarial. Como muitas construtoras desenvolvem poucas pesquisas particulares e não investem nas universidades, o campo acadêmico não consegue alavancar e introduzir as pesquisas no mercado. Para o arquiteto Ricardo Dias, diretor do Centro Tecnológico da UEM, o grande desafio das universidades é a transferência tecnológica. Há dificuldades em introduzir novos materiais no mercado construtor. Isso se deve a distância entre empresa versus universidade. De acordo com Dias, o desenvolvimento e registro da patente de um produto requer custo de tempo e dinheiro que o estudante muitas vezes não tem e quando consegue romper todas essas barreiras não tem retorno financeiro, pois o “ganho vai todo para a instituição”. O que predomina na grade escolar dos cursos de engenharia civil e arquitetura é a construção convencional, a de estrutura de concreto com parede em alvenaria e cerâmica. Mas aos poucos as universidades vêm inserindo novas técnicas às obras, que podem baratear o custo final de uma residência, acelerar o tempo de construção e melhorar a qualidade estrutural. A utilização de materiais não convencionais, fruto
das pesquisas
universitárias, tem a possibilidade de baratear o custo de uma construção, mas deve se investir no projeto específico para o material utilizado. “Na construção civil não há material melhor que o outro. Existe o material certo para o projeto específico”, diz Ricardo Silva, diretor do Centro Tecnológico da UEM.
Novas Tecnologias Mesmo com o déficit de investimento, as universidades vêm desenvolvendo pesquisas na área de mestrado e doutorado. As universidades têm desenvolvido pesquisas na utilização de wood frame, estrutura feita de perfis (frames) de madeira que junto com placas estruturais formam painéis resistentes. Outra técnica é a utilização de aço nas mesmas estruturas das placas de madeira, a chamada steel frame. Materiais não convencionais têm vantagens e desvantagens. A escolha deve ser pensada no conjunto da obra. O aço, por ser material industrializado, tem maior controle tecnológico em relação aos outros materiais. No canteiro de obra o aço não tem desperdício, mas para produzir consome muita energia, o que acaba aumentando os custos.
Pesquisadores de engenharia civil e arquitetura da UEM, assim como a Universidade Estadual de Londrina (UEL), estudam a utilização de madeira de floresta plantada na produção de habitações. Ao contrário do que se pensa a utilização de madeira de floresta plantada contribui para o meio ambiente, pois quando cresce retira CO2 da atmosfera, além de ser matéria-prima renovável. Reginaldo Ronconi, professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), afirma que há grande pesquisa na destinação dos resíduos sólidos da construção. No geral, a Lei nº 12.305/10 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), regulamentada pelo Decreto 7.404/10, ainda não é aplicada no cotidiano, principalmente pelas pequenas construtoras. As pesquisas da USP trazem às novas construções sobras de demolição. Os resíduos sólidos são triturados e utilizados novamente na fabricação de tijolos ou misturados à argamassa. Esses materiais têm alto teor pozolânico (podem ser agregados facilmente) e, com isso, diminui o consumo de cimento e etapas da produção, reduzindo o valor da construção. Porém, diminuir o valor estrutural da residência deve vir atrelado às políticas de inclusão, que vão depender do envolvimento do poder público com a população de baixa renda, até o desenvolvimento de novas tecnologias. Segundo o IBGE, 75% da população brasileira recebe até três salários mínimos, público que não é alvo do mercado construtor. Com isso é necessário a ampliação dos subsídios do governo. Além disso, a valorização imobiliária acontece em qualquer cidade de mundo. “O papel do governo é regulamentar e estabelecer critérios de impostos para combater a especulação imobiliária”, afirma o secretário de Planejamento Urbano e Habitação de Goiânia, Sebastião Ferreira Leite, que é a favor de impostos progressivos.