RASTROS

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(latim rastrum, rede, recado, risco, ritos)

substantivo feminino, capítulo construção do que passa e fica (dentro); render-se ao caminho do fazer (ou do tentar fazer); quando o caminho deixa rastros; quando os rastros formam rede; sobre puxar papo em espaço público; da importância política do fazer visitas; do perigo de ser-se quem se é; registros; sobreposição de desejos; desescolarização do cotidiano; movimento de reforma agrária dos tempos urbanos; vírus polêmico; por onde eu vim, como venho; sobre se fazer presente; conversas que tenho com o mundo; artes do fazer; referências da rota; sobre o que aprendi com a Dona Rosa; minhas queridas Marias; práticas de empatia; quando não se cabe na distância e a gente aproxima; riscos; rabiscos; amor pelo outro; curanderia; do espaço potencial entre a rua e o quintal, do encontro entre redes virtuais e presenciais; devir vizinhança; pedagogia-parangolé; escrita da percepção; política da desconstrução; cartografia da faísca; poética da provocação; metodologia da causação; substantivo em estado plural; quando parece não caber mas a gente encaixa...


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todo movimento carrega consigo uma gota de ar, um punhado de loucura, um tanto de incerteza e uma certa contrariedade.

proximidade física não faz intimidade des-respeita-->des-conhece-->des-iste desistências em convivência o que tem de mim no outro? tarefa do artista-educador-mediador: investigar pontos de convergência!

quem somos nós? o que viemos fazer aqui? existe alguma imagem/nome/palavra que consiga nos representar? espelhos nem sempre refletem a imagem desejada. 130



Era uma vez um lugar chamado Quaseaqui. Sua população era composta por meio-humanos, meiomáquinas e uns poucos meio-árvores. O meio era o que os unia, apesar de ninguém nunca entender ao certo o que isso queria dizer. Viviam do outro lado da ponte. Tinham medo de atravessá-la, talvez porque assim perceberiam que ela nunca existiu. Todos comiam. Os árvores eram aqueles que ainda tinham raízes, parte do corpo que os ligava diretamente ao meio e por onde eles se alimentavam do mais puro e orgânico amor criolo (uma espécie espontânea do meio). Eles tentavam ao máximo preservar esse lugar, pois sabiam que era só isso que os mantinha vivos. Só o meio tinha terra fértil para brotar esse alimento. O outro lado da ponte estava dominado por uma espécie exótica: o dinheiro (coisa que se come com os olhos). Os humanos e os máquinas tinham suas raizes atrofiadas por não utilizá-las. Achavam mais sofisticado comer com os olhos e se afastar do meio. Eles comiam aparência, segurança, competição, ganância, violência e outras frituras e alimentos processados produzidos a partir do dinheiro. O consumo dessa substância era insaciável, e sua produção ocupava boa parte do território de Quaseaqui. Até o meio começou a ficar ameaçado. Para vencer o bloqueio dos árvores, a indústria alimentícia criou um experimento: utilizando micropartículas de dinheiro, saborizadas com essências artificiais de sutentabilidade,

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eternidade, sentimentos de posse, preconceito, machismo e outros ingredientes modificados, desenvolveu um produto que prometia conquistar o paladar de todos: o amor transgĂŞnico. mito de desorigem, ou do rastro-combustĂ­vel

postal foto-mandinga do amor: experimentando dispositivos de afetivação


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especul(ações) imobiliárias: em menos de 24h o cartaz foi arrancado Florianópolis-SC 136



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gentrificação do inglês “gentrification” 1. do que chega impondo novo padrão imobiliário sem perguntar opnião de quem já mora no lugar (bairro/cidade); 2. do que transforma um lugar de muitos em pra poucos; 3. do que muda o nome do churrasquinho da esquina para “brazilian barbecue” e cobra o triplo do preço; 4. das coisas “pra gringo ver”; 6. das barreiras invisíveis; 5. do que manda embora quem não pode pagar; 6. prática muito contemporâneas;

disseminada

nas

cidades

7. da praça com “pet place”; 8. dos mobiliários urbanos desconfortáveis que é pra ninguém resolver dormir neles; 9. das gramas em que não se pode deitar; 10. da “gourmetização” da vida...

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investigando suportes: porta do banheiro pĂşblico


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Respeitar o tempo de cada um, de cada semente, cada pedaço de chão. Não dá pra chegar impondo opnião. Estar aberto aos atravessamentos, respeitar o que vem de fora e saber enxergar nele o que está dentro. É preciso estar atento. Quem está disposto à troca tem que saber cuidar onde e quem toca. Semente que quer voar tem que aprender a se adaptar. Só brota quando identifica as condições específicas do lugar. das táticas de semeação ou práticas de empatia

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Na Rua das Araras tem uma casa virando floresta. Ninhos e mudas se espalham por todas as frestas. O mato toma conta do portão, enquanto pássaros, formigas, gambás e as árvores mais antigas se reúnem para organizar mais um dia de ocupação. Tem um senhor, morador da Lagoa, que todos os dias, às 7:15, leva seu cachorro pra passear. Mais disciplinado e rotineiro que ele é o cachorro de rua que sempre o segue (num ritmo mais lento e disfarçadamente desatento). Todos os dias o senhor leva seu cachorro pra passear. Todos os dias o outro cachorro sái pra passear e escolhe o senhor e seu cachorro para lhe acompanhar. A Dona Adelina diz que é a moradora mais antiga da Lagoa. A casa dela não tem muros nem portão. Ela gosta de deixar a porta aberta e ficar ao lado, sentada na poltrona, estratégicamente colocada pra observar o movimento da rua. Sempre que eu passo ela vem me comprimentar e me pergunta “e Ele vai bem?”, respondo que sim, apesar de não saber de quem se trata. O vizinho da direita não gosta de árvores. Ele junta as folhas da amendoeira que caem no seu terreno, põe dentro de um saco plástico e joga no nosso lado. É bom pra fazer compostagem. O vizinho da esquerda acorda de madrugada pra regar plantas e lavar o quintal. Ele tem uma máquina de lava-jato. A janela do quarto dele é perto da minha. Uma vez coincidiu de abrirmos nossas janelas no mesmo momento: foi a única vez que ele me comprimentou.


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O bairro do Campeche fica aproximadamente a 13km de distância do bairro Lagoa da Conceição, onde resido no momento. O trajeto se altera de acordo com o transporte utilizado, o clima, o humor das pessoas, o vento e tantas outras variáveis que podem fazer os dois bairros estarem longe ou perto. Tenho muitos amigos que moram no Campeche. A presença deles lá faz com que eu me sinta mais vizinha desse bairro. Foi num encontro de vizinhos, alí, que fiquei sabendo de um grupo virtual criado por eles na rede social facebook* chamado “Vizinhança é bãum”. A proposta era que a reunião virtual dos vizinhos fosse uma ferramenta para instigar encontros presenciais, trocas de informações, caronas, e outros fazeres coletivos. Observei e respeitei uma certa restrição geográfica na seleção dos convidados a participar do grupo virtual. Eu, que não morava nas redondezas fiquei em uma zona de vizinhança expandida, o que me permite ainda ser convidada aos encontros presenciais. Bom demais! Mas boa mesmo era essa ideia e, como tudo que é bom nesse mundo, deveria ser disseminada. Foi assim então, de forma bem copiada, que em março de 2015 nasceu o grupo virtual na rede social facebook* chamado: “Vizinhança é bãoAraças e Arredores”. Além dos três amigos que moravam comigo naquele momento, eu conhecia outras 15 pessoas que estavam residindo pelas redondezas do centrinho da Lagoa e Canto dos Araças e que faziam parte também dos meus contatos no facebook*. Cada um foi adicionando seus vizinhos e assim foi se constituindo uma 150


vizinhança, ainda em estado virtual. Simples até então, bastava o apertar de um botão. Uma rede de desconhecidos próximos geográficamente estava criada, isso não dizia nada sobre serem vizinhos. Talvez se sentissem mais vizinhos de pessoas que moravam no Campeche. quando não se cabe na distância e a gente aproxima ou do copiar para disseminar

*Sim, lidar com redes sociais é saber-se nunca contemplando um todo (coisa difícil de alcançar fora delas também) mesmo aproximando-se de uma maioria. É entender-se praticante conciente da contradição cotidiana dos espaços privados publicizados e amplamente utilizados. É observar-se habitante dessa instabilidade comunicacional sucetível a ordens e olhares superiores. É tentar entender essas ferramentas como úteis enquanto lugares de troca, mas questionáveis na pseudo liberdade de expressão que provocam.


“E se a gente se encontrasse? Que tal um almoço de vizinhos? E se fosse aqui em casa?” Conversar com quem mora na casa, sintonizar as vontades, os tempos de cada um, a disponibilidade de abertura para o(s) outro(s) (ser público) que compartilharia(m) temporariamente esse espaço (privado) conosco. Achar um dia em comum e ir disseminando a ideia entre os vizinhos já conhecidos de cada um. Assim se deram os primeiros encontros, em formato de almoço-pequenique: cada vizinho trouxe um pratoingrediente para compor as mesas, que tiveram que ser duas para caberem todos. do encontro entre redes virtuais e presenciais 152



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dia 16 de agosto de 2015 Diz que teve gente que saiu pelas ruas batendo panela pedindo o impeachment da Dilma. Diz que teve gente que ficou indignada. Diz que tem gente que acha que se ela sair o país vai melhorar. O facebook disse. O povo diz que viu na tv, outros viram da janela de casa. Aqui em casa hoje circularam outros ditos. As panelas serviram pra fazer bolo e esquentar a água pro chimarrão. Foi dia de visitação! Nós abrimos o portão, espalhamos as cadeiras entre a rua e o quintal e penduramos a plaquinha chamando a vizinhança pro Chimarrão Musical. Era domingo de inverno, mas as folhas secas da amendoeira espalhadas pelo chão davam a impressão das cores do outono (a decoração natural foi ideia do Quito). O povo de casa não tava com muita inspiração pra música, mas o bolo da Gabi tava chamando atenção. Teve gente que passou e não entendeu. O moço lá do começo da rua foi o primeiro que se atreveu, o chimarrão quentinho o convenceu: tava cansado da caminhada. Enquanto ele contava sobre sua jornada, a vizinha da frente desceu pra ir ao mercado mas também fez uma vizitinha ao nosso encontro pra comer um bolo e nos contar das mudanças na vizinhança ao longo dos 20 anos que ela mora por aqui. Até aí ninguém tinha tocado o violão, até que chegou o moço viajante que anda com uma violinha de acompanhante. Mal sentou e já começou a cantar, distribuiu uns miniinstrumentos pra quem quisesse lhe acompanhar.


A amiga que mora longe e tava indo do sul pro norte da ilha passou também pra dar uma palhinha. Teve gente que disse que vinha e não veio. Teve gente que já chegou sentando no meio, cheia de causo pra contar. Teve quem olhou de longe, não queria incomodar. A roda foi mudando, as pessoas trocando de lugar. A noite chegou e a cantoria seguiu. Teve gente que conseguiu vir antes de terminar. Foram algumas horas de portão aberto, mas um fato é certo: por aqui hoje circulou o afeto e com ele não tem “diz que me diz que”. relato de fim de dia de fundo de caderno Canto dos Araças, Florianópolis-SC inverno

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das táticas e/ou tentativas de pluralização das decisões


Em junho de 2015, o Encontro caminhou algumas quadras e foi se dar lรก no vizinho Dimi, que abraรงou a causa e abriu a casa para receber nossa Festa Junina da Vizinhanรงa. Foi uma baita festanรงa! quando a coisa comeรงa a andar sozinha 158


dia 15 de dezembro de 2015 Teve bão o encontro cá no Canto dos Araçá! Teve gente que disse que vinha e tardô em chegá, teve quem parô só pra espiá, teve novo morador chegando com as mudanças pra arrumá, teve outro que já começou a cantá, teve vizinho do lado que sempre ficava calado e agora resolveu se misturá, teve vizinha que trouxe pandeiro e ganzá, teve bolo de mandioca com coco, cenoura, banana e inté uma bebida boliviana que se não tomar cuidado a danada te engana. Já bem passava da meia noite e o portão ainda tava aberto, quando o encontro é bom não tem teto pra acabá. Até a chuva passou pra dar um oi e logo se foi pra outro lugá. Óia, só sei que teve bão o encontro cá no Canto dos Araçá! relato caipirês de fim de dia de fundo de caderno Canto dos Araças, Florianópolis-SC verão


dados estatíscos da pesquisa de campo 7 Encontros da Vizinhança................... 125 vizinhos cadastrados no grupo virtual..... aprox 50 horas de encontros presenciais..... aprox 12 bolos comidos coletivamente........ aprox 30 cuias de chimarrão bebidas em roda. aprox 350 músicas cantadas................... aprox 200 músicas só com metade da letra..... aprox 150 abraços dados...................... aprox 687 olhares trocados................... aprox 5 novos bamboleadores................ aprox 32 novos cantores de rua e quintal.... aprox 412 sorrisos compartilhados............ aprox 145 indignações compartilhadas......... aprox 347 conversas jogadas fora............. aprox 287 conversas jogadas dentro........... aprox 763 aprendizados efetuados............. aprox 254 esquecimentos funcionais efetuados. aprox 35 novas relações entre vizinhos antes deconhecidos ................................. aprox 293748366 outros possíveis vizinhos a se conhecer...................................... aprox 973862474 km de distância transformados em proximidade, mesmo que temporária.......... aprox 8231748647235475 dados não computáveis... Através de tais dados pode-se verificar a comprovação aproximada da efetivação de processos de afetivação urbana no bairro da Lagoa da Conceição, na microregião Canto dos Araças, em Florianópolis-SC entre os meses de março de 2015 e julho de 2016.

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Eram dois que resolveram deixar sua casa aos cuidados de outros e sair viajando de bicicleta pelo mundo, por um ano. Éramos quatro que compartilharíamos aquele espaço decidindo juntos os compassos da convivência. Fomos nove (as vezes dez, doze...) que habitamos e transitamos pela casa, em diferentes combinações de personalidades, afinidades, vontades. Mesmo nessa diversidade, uma unanimidade: todos abraçaram a causa de abrir a casa esporadicamente como espaço de encontro da vizinhança. Inclusive os dois primeiros, já chegaram de viagem perguntando quando seria o próximo encontro. Sem cada um deles nada disso aconteceria. dos nós que a gente é, ou 1+1> 2


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“O homem passa meses do ano prestando visitas aos vizinhos e familiares distantes. As visitas parecem não ter um propósito prático e definido. Quando se pergunta a um desses vizitantes qual a finalidade da viagem, ele responde: “ Só venho visitar!” Na realidade, prestar visitas é uma forma de prevenir conflitos e construir laços de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa e sem mecanismos estatais que garantam estabilidade.” sobre a visita como prática político-poética (COUTO, Mia, 2011,pg 70) O incendiador de caminhos- “E se Obama fosse africano?”. São Paulo: Companhia das Letras.


Dona Rosa, 98 anos, faz pão todo dia e já deixa tudo pronto por se acaso alguém quiser lhe visitar. Vila da Fumaça-RJ Dona Maria fez questão de mostrar toda sua produção de colchas de retalho, deixou todo mundo admirado com a belaza de seu trabalho e no final disse: “Nada disso eu vendo viu, porque não há dinheiro que possa pagar”. Me deu uma semente de olho de boi para colocar na carteira e nunca me faltar dinheiro. Yumurí-CUBA Dona Lotinha me benzeu com três galhinhos de jabuticaba, uma pra cada mal, o que murchou indicou o que eu estava precisando curar. Cemitério do Peixe-MG Dona Rita fez uma torta de banana maravilhosa e um chá. Na despedida me deu uma mudinha de erva doce para levar. Assentamento Che Guevara-SP Joana tem um restaurante e me disse que queria saber como aproveitar mais o lixo orgânico que produzia. Conversamos sobre compostagem, falei como eu fazia em casa, ela disse que iria tentar fazer também. Eu não tinha endereço para dar, ela pegou meu e-mail para mandar as fotos, mesmo sem ter acesso à internet. Mazunte- MEXICO Judite tem cara dura, voz brava e um coração que é pura doçura. Ela me deu uma muda de babosa, disse que é bom de ter em casa. Garuva-SC sobre curanderia ou as semeadoras de caminhos..

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Foram muitas visitas realizadas, à outras casas, outros projetos, outros modos de ser, de conviver, de praticar e cohabitar os espaços (urbanos ou não). Visitas sem pretensão ou para matar a saudade, para conhecer a casa nova, para trabalhar junto, visitas de circulação teatral, de ação comunitária, de despedida, de boasvindas, de reencontro...foram muitas idas e vindas. A cada visita que fazia para outros mais eu percebia o quanto me sentia visitada. No emaranhado desses nós foi-se ampliando a rede-casa, ganhando asas, rodas e pernas para seguir sustentando o caminhar.


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“O que chamam de distância? Isso vão ter que me explicar. Só estão lonje as coisas que não sabemos olhar. Os caminhos são caminhos na terra e nada mais. As léguas desaparecem se a alma começa a afetar. Profundo sentir, rumo fixo, coração e clareza: se o mundo está dentro de cada um, pra fora porque olhar? Que coisas tem a vida, misteriosas por demais! Um está onde quer, muitas vezes sem pensar. O que chamam de distância? Isso vão ter que me explicar.” sobre se fazer presente proposta de tradução da letra “A qué le llaman distância?”, de


medidor de atenção ou provocação de proximidades: A intromissão do cartaz com a palavra “DISTANTES” abaixo do anúncio que dizia “PROXIMAMENTE”, no Centro Comercial Carlos Slim em Veracruz-MEXICO, resistiu aos olhares dos vigilantes durante uma semana. No dia em que foi retirado eu tinha acabado de colocar para dialogar com outro “PROXIMAMENTE” mais ao lado, a palavra “DESAPARECIDOS”: essa não durou nem uma hora.

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