Os rumos

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(grego róhmbos, ruir, revés, regar, rosa-dos-ventos)

substantivo feminino, capítulo desconstrução

qualquer uma das direções que o vento pode levar; da necessidade de descontruir-se para ser o que se é; movimento de compostagem dos caminhos; dos corpos de memória que carregamos em nosso corpo coletivo; das voltas que o mundo dá; do ser criança poética-política; de como o que se planta em Santa Catarina pode ser colhido na Bahia; do semear sem fronteira; sobre as barreiras de papel; sobre o que aprendi com o menino Isaac; etinerrâncias pedagógicas; das provocações poéticas; cartografia dos avessos; zonas de democracia temporária; política da faísca; do desaprender nosso de cada dia; do que transborda a palavra educação; das redes de empatia; da convivência-resistência; sujeito ativo pluralizado; do que não se conclui, apenas continua... ............... ............................................ ............................................ ............................................ ............................................ ............................................


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PPPP poética político pedagógica perambulante a pele pinga perda de poder pirâmides perpetuando-se? pretérito presente pesadelo persistente! propagandas prescrevendo padrões perversos publicidade pesada propagando porrada polarizações proliferam-se putaria partidária poder-público-patrimônio-privado patentes, permissões, parasitas, patrocínios peçonhentos, pedaladas, pandemias: paradoxos permitidos! pseudo-progresso, produzindo prédios, palidez, podridão picaretas, pistoleiros piadizam, pisam, perseguem patriarcado procriado polícia prostituída protege propiedades particulares projetando periferias pacificadas à pontapés e pauladas pavor! o povo pira, perdido, precisa politizar! pausa pra pensar

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o que não cabe entre ponteiros: relógio na casa do Sr Antonio Zaine, o maior guardador de memórias (mesmo agora com Alzheimer) de Xapuri-AC


prontificar para pesar paralisados padecerão pluralizar protagonistas pontos, pautas, potências, perguntas porquês!? praquens?! poréns!? pipocar parcerias planejar passos, poentes, pontes produzir a própria paisagem! pertencer-se(r) público, na plenitude praticar perspectivas, primaveras, propostas plausíveis posicionamento político-poético pedagogia da percepção! sem-pressa, com-partilhar, a-proximar-nos princípio de percurso…


Foi a primeira das tantas viagens-aventuras que fiz junto ao Grupo Teatral Parlendas. Nosso rumo era o extremo noroeste do Brasil, município de São Gabriel da Cachoeira-AM, lá onde mora a imensidão. Nossa função era a circulação da peça Marruá e de oficinas de teatro, canto e palhaçaria por algumas comunidades indígenas do Alto Rio Negro. Eu fui como fotógrafa do projeto, mas aos poucos minha tendência a ser eticétera foi tomando conta de mim. Logo na chegada em São Gabriel, no primeiro ensaio, o grupo descobriu ter esquecido em São Paulo um dos componentes-objetos importantes da peça: o barco. Ele era uma referência, em tamanho pequeno e portátil, ao barco amazônico que transportava prostitutas de Manaus aos seringais na época auge dos “senhores da borracha”. Uma das cenas da peça dependia desse barco para acontecer plenamente. Não tinha jeito, precisávamos encontrá-lo por ali mesmo, faltava um dia só para a primeira apresentação. Foi aí que me pediram para assumir essa função. Sem pensar duas vezes, aceitei o desafio! Estávamos no quintal de uma casa à beira rio, embaixo de uma amendoeira. As folhas secas da árvore cobriam o chão das mais diversas cores que, por coincidência ou não, eram dos mesmos tons do figurino da peça. Pronto, ali achei a principal matériaprima para a construção do barco: folhas e galhos, que usei para forrar uma base feita de papel. O medo de que tudo se desmanchasse no meio da apresentação (fruto dessa nossa 208


mania de achar que as coisas são permanentes) me fez tentar impermeabilizar o objeto com algumas fitas plásticas transparentes. Assim, dessa mistura entre a beleza do orgânico e a fragilidade do apego, nasceu o primeiro barco da viagem. Durou dois dias! Assumi então uma espécie de ritual-missão: antes de cada nova apresentação, eu me colocava em diálogo com o contexto, observava os materiais disponíveis no entorno e criava um novo barco. Depois da quarta vez, observando a constância da presença de alguns materiais (fibra de tucum, galhos e o casco de palmeiras) nos diversos locais por onde passamos, fui desenvolvendo uma certa receita ou modo de fazer. Já estava bem experiente na minha fazeção quando fui observada, à distância, pelo olhar curioso do menino Isaac. Se escondeu atrás da árvore para que eu não notasse sua presença. Atento e rápido, tratou logo de criar sua versão do barco e, sem que percebêssemos, colocou-a ao lado da minha no cenário da peça. Confusa entre as duas opções, a responsável pela contrarregragem acabou escolhendo usar a minha. No dia seguinte, o barco que fiz, que parecia firme ao menos para aguentar mais uma viagem, apareceu todo destruído e desmantelado pelo chão. Eu não tinha dúvidas: era uma provação! Fui diretamente conversar com o autor da “infração”. Eu não falava Nheengatu, nem ele tinha amplos conhecimentos de português, mas nós nos entendemos perfeitamente: -Isaac, eu ouvi dizer que tem um monstro


destruindo os barcos aqui da região. Você tá sabendo de alguma coisa? (bem tímido, fez que sim com a cabeça) -E será que, por um acaso, esse monstro é você? (querendo rir, continou afirmando com a cabeça) -Então quer dizer que você vai me ajudar a construir outro barco? (se levantando e jogando de lado sua timidez, ele disse....) -SIM! Fomos os dois, às 6h da manhã, cheios de disposição, somar nossos saberes na construção de um novo barco. Desapegar dos padrões estabelecidos, conversar coletivamente com o território e saber o que ele tinha a nos dispor. Achamos umas cascas interessantes, galhos e folhas, mas precisávamos ainda de algo que servisse para a amarrar tudo aquilo: a fibra de tucum! O menino saiu correndo dizendo que ia buscar. Voltou, 10 minutos depois, acompanhado de pai e mãe, me fazendo chorar: traziam nas mãos um maço grande de fibra de tucum e apoiados entre os braços dois barcos esculpidos na madeira de mulungu. -Presente pra você. (disse ela em bom português) -Kuekaturetê!! choroso)

(respondi,

em

Nheengatu

O menino Isaac tinha passado a noite esculpindo aqueles barcos para me dar de presente. Nem cabe nas palavras a minha emoção. Usando a 210


fibra de tucum trazida por eles, conseguimos terminar nossa construção, feita à quatro mãos. Era possível perceber uma certa tristeza no rosto dele, como quem previsse que teria que se despedir do novo brinquedo. Ele pegou o barco em suas mãos, orgulhoso da nossa criação. Estava pronto o barco para a próxima apresentação. Só que não: -É nosso, mas fica com você. (eu disse, certa do que estava fazendo!) (um sorriso amendoado, surgiu no rosto dele) Comunidade Cabeçudo- Rio Içana- AM 07-2013 pedagogia da provocação ou do desconstruir-se para ser outros possíveis PS: Usando os dois barcos esculpidos pelo menino Isaac, as fibras de tucum e alguns palitos de bambu, construí(mos) o que é (passando sempre por reconstruções) ainda hoje (mas que pode deixar de ser) o barco utilizado pelo Grupo Parlendas nas apresentações da peça Marruá.


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lições de re-existência com a folha da fortuna


Meu destino era o estado de Chiapas, no México, terra do Zapatismo. Carregava em mim a expectativa de fortes aprendizados sobre resistência camponesa e indígena, autonomia e organização social. Meu plano era conhecer pelo menos um caracol (núcleo comunitário zapatista), mas antes disso, conversando com amigos ainda na Cidade do México, recebi uma intimação: conhecer a igreja de San Juan Chamula, localidade vizinha aos territórios zapatistas. Uma igreja? Não era lá muito o meu interesse por ali, mas a indicação foi tão enfática e misteriosa que não pude resistir. Absolutamente indígena, com regras sociais e características culturais bem peculiares, os Chamula chamam atenção por suas vestes tradicionalmente feitas de lã bem pesada: nas mulheres a saia preta, nos homens o colete branco. Na igreja, logo na porta, uma placa bastante visível alerta: é proíbido fotografar tanto o espaço interno como qualquer ritual que esteja sendo feito no pátio externo à igreja. Respeitando as regras, guardei minha câmera no fundo da mochila e entrei. Respirei fundo, abri e fechei os olhos, como que para limpar meu filtro de realidade. Era tudo tão confuso, complexo, diverso, um acesso direto à profundidade das conjunções culturais. Meu primeiro impulso seria sair fotografando aquela cena, queria compartilhar minhas impressões com todos. Quem sabe alguém poderia me ajudar a entendêla. Ah, essa mania de compreensão! Sabendome proibida de registrar fotograficamente 214


aquela experiência, tirei meu caderno da mochila e comecei a desenhar. Em menos de um minuto, se aproximou de mim um vigia Chamula e me disse que não se podia desenhar ali dentro. Sedenta e condicionada ao registro, tentei escrever. Rapidamente fui novamente interrompida: proibido! Nenhuma forma de registro era permitida a não ser minha própria capacidade, cada vez mais preguiçosa e destreinada, de registrar as experiências em meu próprio corpo. Eu não estava em território zapatista, mas recebi ali, naquela igreja, uma verdadeira lição sobre resistência e autonomia histórica. corpo-registro ou da necessidade-resistência de saber contar sua história ps: texto escrito no trajeto de trem entre Veneza e Brescia-ITALIA, em fevereiro de 2016, dois anos após o fato narrado. Colocando a memória e a capacidade narrativa em teste!

mural “silencioso” de manifestação político-poético-pedagógica: proposição coletiva realizada durante o Laboratório Iberoamericano de Inovação Cidadã- em novembro de 2014, Veracruz- MÉXICO


Aeroporto Internacional de Madrid, área de imigração. Apresento meu passaporte brasileiro, recém renovado, todo bonitinho, legalizado. O policial espanhol me lança um olhar desconfiado e pergunta: “o que veio fazer aqui?” Respondolhe que venho visitar amigos. Nada convencido por minha resposta, ele folheia mais um pouco o documento, vejo que sua antipatia aumenta ao se deparar com o carimbo de entrada em Cuba. Me adianto à sua próxima pergunta inquisitória e digo que tenho também um passaporte italiano, vencido no ano passado. Mostro-lhe o tal documento europeu, surge então um sorriso em seu rosto. Me olhando nos olhos, diz: “é melhor você usar só este aqui”. Entendi o recado: melhor ser uma européia vencida que uma estrangeira legalizada. Papéis que pesam mais que chumbo, muros invisíveis por toda parte. Termino de escrever um relato sobre minha desagradável experiência de imigração no Aeroporto de Madrid e me dou conta de que, ao me deixar passar com meu passaporte italiano vencido, o policial espanhol estava na verdade me dando de presente a clandestinidade. Brasileira sem carimbo de entrada na Europa, italiana sem documento válido: descubro que minha única prova de entrada aqui é a narrativa desse episódio. submetida às fronteiras de papel, cidadania oral ou sobre estar 29 dias dentro sem nunca ter entrado 216


Sempre me senti hipnotizada por fogueiras. Olho pro fogo e imagino que em cada um de nós mora uma faísca, uma combustibilidade inata. Entendo que fazer fogo é tipo um sinônimo da palavra poder. Penso na palavra democracia, que vem do grego demos (povo) + kratos (poder). Me pergunto: se todos acendêssemos ao mesmo tempo causaríamos um grande incêndio-democracia? Sinto que ares condicionados nos deixaram acostumados à temperaturas amenas. Chamam isso de sistema de representação, mas me parece mesmo um grande processo de refrigeração. Acham que o frio é capaz de apagar nossa combustibilidade. Só que é no inverno que mais sentimos a necessidade de fazer calor. Uma faísca procura outras porque sabe que juntas esquentam mais. Foi assim, me juntando, que descobri que nos somando podemos ser fogueira(s)! Eu já participei de algumas e encontrei várias espalhadas por aí (aqui). Percebi que todo fogo é movimento, sensível sim às inconstâncias do tempo. As fogueiras duram por alguns momentos, as faíscas saem delas acesas deslocando-se com o vento, cada uma leva consigo um devir-fogueira: um empoderamento. sobre ser faísca ou a democracia vaga-lúmica


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cogitando causações com cê


Todo o fora leva a um caos de dentro. Todo o dentro é senão fora. Pra cada passo um preço. Perdeu o prazo? Desprezo! Inerte força da indiferença, intensa presença que molda a massa. Toda pressa não passa de pseudo-avanço. Nesse mundo engrenagem tentar parar cansa mais que andar devagar. São limitadas as vagas ao divagar. Não ceder à violenta sede reacionária. Responder ao previsível de forma arbitrária. Ser a bolhinha de ar da massa, que quando esquenta e cresce, explode deformando o bolo da festa. sobre a massa e o bolo cotidiano

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“A história que eu contei chama-se “O povo que come imagens”* e ela foi atenta e curiosamente ouvida por várias crianças, das mais diversas idades (de 5 a 60 anos), num lugarejo pequeno e distante. Assim como na história, esse lugar fica lá no alto do mapa (pelo menos do mapa brasileiro), no meio do nada, e se chama Cumuruxatiba. Esse nome um tanto curioso provém da língua dos índios Pataxós e significa grande variação de marés. Percebe-se assim a marcante presença dos Pataxós e a geografia litorânea do local. Assim como a água era contada na história e como é costume na cultura indígena local, esse conto foi partilhado ao pé de uma fogueira e debaixo de um céu estrelado. Coincidência? Pode ser, mas uma boa história merece uma boa ocasião. Era 10 de setembro de 2014 e a Vila-Escola comemorava seu sétimo aniversário baiano. Vivenciávamos o terceiro dia de uma semana de festas - o dia da Contação de Histórias e da Culinária Primitiva. Assim, enquanto a fogueira preparava nossa janta, as histórias nos serviam de aperitivos. Foram diversas as histórias contadas: princesa, lobisomem, luzes estranhas no céu, um povoado que comia imagens... imaginação não faltou para aqueles que criaram sua história no momento. Virtude infantil. A idade não importava, quem quisesse, contava sua história. Então, democraticamente como tentamos ser, quem não quisesse ouvir, não precisava. Assim o cenário era composto de algumas crianças imersas nas histórias, outras nem tanto, algumas andando pra lá e pra cá, 222


outras mais atentas nas abóboras que assavam na fogueira... variava, pois esticávamos o tempo contando histórias. Não sei como “O povo que come imagens”* afetou aos ouvintes, mas eu adorei o texto e quis partilhar. Sua leitura desperta instantaneamente a imaginação. Penso que algumas crianças possam ter se perdido numa palavra ou noutra – multinacionais, por exemplo -, e que muitas se identificaram com o personagem Cícero. Além do momento agradável, foi muito interessante observar a conduta das crianças durante a contação. Me chamou atenção o olhar atento de uma menina de dez anos, que é hiperativa. Quase sempre “acelerada”, ela se transformou e se transforma sempre que tem contação de história na Vila-Escola, quase não se mexe. Não quero qualificar isso como bom ou ruim, mas apontar para o fato de como a história pode proporcionar um campo diferente para aquela menina. Um campo que pode ser fértil para uma (re)organização individual, ou não. Esse exemplo me fez perceber ainda mais como a história pode ser importante para uma criança (não menos para um adulto) e para o processo educacional. Muito obrigado por “emprestar” seu conto!” André Patto Manferdini: educador da Vila-Escola Cumuruxatiba-BAHIA

conto-semente ou do semear sem fronteira *estória que criei e compartilhei com o mundo através da disseminação digital (processo-devir desta dissertação), e que ele leu e me “pediu emprestado”. É nossa, e que seja cada vez maior esse nós semeado!


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