AFETIVAÇÕES URBANAS
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Annaline Curado Piccolo
CASA-NÔMADE afetivações urbanas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, da Universidade do Estado de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes Visuais. Orientadora: Prof. Dra. Nara Milioli Tutida
Florianópolis 2016
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Annaline Curado Piccolo
CASA-NÔMADE afetivações urbanas
Dissertação de mestrado elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em artes visuais - Mestrado, CEART/ UDESC, para obtenção do título de mestre em artes visuais.
Banca Examinadora Orientadora: ________________________________ Prof. Dra. Nara Beatriz Milioli Tutida CEART/PPGAV Membros: _______________________________ Prof. Dra. Maria Raquel Stolf CEART/PPGAV ________________________________ Prof. Dr. Leandro Belinaso Guimarães PPGE/UFSC
Florianópolis, 2 de agosto de 2016.
Apresentam-se aqui, divididas em 6 cadernoscapítulos, as colheitas e colagens de um processo de pesquisa-produção-formação artística, desenvolvido ao longo de dois anos de residência na cidade de Florianópolis-SC e itinerância por outros espaços urbanos. A Casa-Nômade se construiu a partir de experiências de trânsito por lugares e linguagens artísticas, e de práticas de vizinhança com pessoas e projetos que procuram produzir, de forma colaborativa, mais espaços afetivos de convivência com e nas cidades. Palavras-chave: deslocamento, convivência, vizinhança, espaço urbano.
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Se presentan aquí, divididas en seis cuadernoscapítulos, cosechas y collages de un proceso de formación-investigación-producción artístico, desarrollado a lo largo de dos años de residencia en la ciudad de Florianópolis-SC y la itinerancia en otros espacios urbanos. La Casa-Nômade se ha construido a partir de experiencias de tránsito por lugares y lenguajes artísticos, y de prácticas de carcania con personas y proyectos que buscan producir, de manera colaborativa, más espacios afectivos de de conviviencia con y en las ciudades. Palabras clave: desplazamiento, convivencia, cercanía (barrio), el espacio urbano.
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SUMÁRIO PARTE I 1.1
dados pessoais
p.10
PARTE II- MEMORIAL 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6
título a coisa a ser pesquisada as vontades os porquês o como rotas a percorrer
PARTE III3.1 bibliografia geral
p.11 p.11 p.11 p.12 p.25 p.27
p.29
ANNALINE CURADO PICCOLO 1.1 É graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela UDESC (2012), tendo passagens também pelos cursos de Arquitetura e Cinema. Atua como fotógrafa itinerante em projetos culturais e como arte educadora em espaços informais. Participou de quatro residências e outras tantas convivências (artísticas e/ou não). Atualmente é mestranda em Artes Visuais na linha de Processos Artísticos Contemporâneos e participa do grupo de pesquisa Observatório Móvel. Artista visual por formação, fotógrafa-viajante por paixão-profissão, educadora em eterno aprendizado. Como fotógrafa, já quis ser etnógrafa, produtora cultural, marinheira, cartógrafa, carteira, geógrafa, historiadora, escritora, inventora, flautista... Como artista-pesquisadora-educadora é tudo isso um pouco. Encontra nos caminhos entre a rua e o mato o substrato do seu fazer. Nascida em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, terra sagrada indígena, cada vez mais invadida por reinos de gados e soja. Toma tereré, come mandioca, adora o céu do pantanal, e o sertanejo de raiz. Não nega sua raiz: meio-italiana mezzopantaneira, desde cedo assume vida estradeira, não entende as cercas nem as fronteiras. Tem residência no trânsito e domicílio-provisório na casa 634 da geral do Canto dos Araças, Lagoa da Conceição, Ilha de Santa Catarina.
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PARTE II MEMORIAL 2.1 – título:
CASA-NÔMADE afetivações urbanas
2.2 – A coisa a ser pesquisada: Minhas investigações poético-político-pedagógicas a respeito das relações de convivência com e no espaço urbano. 2.3 – Vontade-geral: Coletar, cartografar, criar e compartilhar convivências possíveis entre teorias e práticas de vizinhança e deslocamento no espaço urbano. Vontades-Específicas: -Instigar reflexões poético-político-pedagógicas a respeito dos processos contemporâneos de deslocamento (de coisas, pessoas, saberes, afetos, espaços, percepções), buscando referenciais teóricos que as amparem; -Dar continuidade a práticas de pesquisa e proposição de ações coletivas que abarquem experimentações de ocupação do espaço público, derivas pela cidades, modos de convivência e compartilhamento de saberes; -Questionar os processos atuais de mercantilização e gentrificação do espaço urbano, investigando possíveis subversões a eles; -Investigar o espaço da casa onde estiver morando como uma espécie de residência-laboratório de experimentações artísticas públicas em espaço
privado; -Pesquisar processos de escrita experimental de cadernos/diários de bordo de artistas/escritores que me auxiliem na legitimação desse modo escrita dentro da Academia; -Produzir e reunir rotas, rastros, rasuras e relatos poéticos que venham compor um “desmanual” de construção: dissertação. 2.4 – os porquês em busca de pontos cegos Nasci em Campo Grande, Mato Grosso do Sul (onde comecei a tomar tereré e me apaixonei pelo horizonte); já morei em Cuiabá, no Mato Grosso (onde vi fritarem ovo no asfalto); passei um ano e dois meses na Itália (onde meu pai nasceu e eu aprendi a falar com as mãos); estudei cinco anos em Florianópolis (onde mudei de casa nove vezes e aprendi a entender o vento); quase-morei várias vezes em São Paulo (onde me escondo na multidão); passei três vezes parceladas de um mês em Recife (onde me achei entrei cordéis e rodas de coco); participei de duas residências artísticas (30 dias em Diamantina, em Minas, onde aprendi a soltar pipa e desenhei retratos, e 20 dias em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro, onde gravei silêncios e comi alimentos vivos); naveguei 30 dias pelas águas amazônicas (onde conheci a imensidão); passei 13 dias em Rio Branco (onde descobri que o Acre existe lindamente); trabalhei 3 meses em Porto Alegre (onde aprendi a tomar chimarrão e passear na Redenção); morei um mês em Belo Horizonte (onde subi ladeiras e 12
caminhei sobre rios); transitei um mês por terras mexicanas (onde vi tempos sobrepostos e homens voadores); e depois de tanto caminhar a vida me trouxe de volta para cá: Florianópolis. Desta cidade saí, em 2013, em busca de viver na prática as ideias que cultivei em meu trabalho de conclusão do curso de graduação. O ”Ponto Cego”, realizado com a orientação da professora-artista Raquel Stolf, foi apresentado em dezembro de 2012, e trata-se de uma narrativa visual composta por anotações de cadernos, fotografias, sons e recortes de jornais. Provocada pelas palavras de Manuel de Barros (2008), em que o poeta diz que a “arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.”, decidi realizar uma busca pelo ”transver”, materializada no formato de caderno/publicação de artista. Uma aventura no espaço do papel, que me deixou instigada a transbordar suas margens e ganhar as ruas, ir caçar os pontos cegos do cotidiano, para visibilizá-los e compartilhá-los com os outros. Me deu vontade de ir buscar o que Foucault (1998) chama de ”outros espaços”, e onde Linke (2010, p.492) afirma existir uma potente “teatralidade“: “A teatralidade dos lugares outros, estruturas dialógicas e encontros como possibilidade de resistência ao isolamento, ao capitalismo e ao esvaziamento da vida contemporânea, como uma rede de sites reservados para a projeção do sujeito e do encontro. Lugares vivos, imersos numa rede de conexões em constante movimento“. Segurei nas mãos do erro e parti. Fui caçar os
caminhos do ”desterritorializar”, para vivenciar assim outras formas de estar no mundo que não as determinadas pelo tempo-progresso. Segundo Jaques (2008): “O desterritorializar seria o momento de passagem do territorializar ao reterritorializar. O interesse do errante estaria precisamente neste momento do desterritorializar, ou do se perder, este estado efêmero de desorientação espacial, quando todos os outros sentidos, além da visão, se aguçam possibilitando uma outra percepção sensorial. A possibilidade do se perder ou de se desterritorializar está implícita mesmo quando se está territorializado, e é a busca desta possibilidade que caracteriza o errante.“ Como uma artista-errante, transformei o caminhar em minha casa, as ruas em meu ateliê, o corpo em minha linguagem, e a convivência em meu principal destino. Me rendi ao nomadismo. Foi então, a partir dessas experiências de trânsito, e dos encontros que aconteceram pelo caminho, que o projeto Casa Nômade começou a ganhar vida. por uma casa-caminhante Mas o que entendo por “nomadismo”? E quais tensões quero criar ao colocar o termo “nômade” para dividir espaço no título e nas práticas deste projeto com a palavra “casa“? Sobre essas questões, tentando esboçar uma ideia de nomadismo intrínseco ao estar no mundo, escrevi em meu caderninho:
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”princípio nômade do ser, ou sobre as distâncias entre ser e estar estar pouco diz sobre o ser quem é está mesmo quando longe há quem diz estar e não é dizer é querer ser ser é estar sem dizer distâncias estão quando ditas dizer é um modo de estar ser é um modo de ex-istir praticar um estado fora do alcance do pensar o ser muda sempre de lugar está sempre, de passagem“ Uma mania de movimento se embate à necessidade de mantimento. Onde o nômade encontra seu alento? O conceito de nomadismo se moveu através do tempo, do espaço e das disciplinas, sendo atualmente objeto de estudo frequente na filosofia e na arte. São diversos os autores que investigam essa prática e suas possibilidades metafóricas, mas pretendo me ater principalmente às concepções dos sociólogos Michel Maffesoli e Michel de Certeau, dos filósofos Felix Guatarri e Gilles Deleuze e do arquiteto Francesco Careri. Pretendo investigar as analogias entre nomadismo-sedentarismo para, a partir daí, buscar uma possível relação de complementariedade entre eles, como prática de transformação do espaço urbano. Segundo Maffesoli (2000) a relação nomadismosedentarismo seria um “dado mundano“, que se manifesta na atualidade numa espécie de
“enraizamento dinâmico“. As territorializações individuais (identidade) e sociais (instituição), tônicas da modernidade, estariam dando lugar ao nomadismo e à errância. Segundo o autor, o homem pós-moderno estaria impregnado de errância, de uma “sede de infinito” que o faria se movimentar. Deslocamentos de profissão, de casa, de cidade, gerados às vezes por necessidades econômicas, outras por uma não concordância com as identidades impostas pela ”forma-Estado” que configura a sociedade. Em meio a tantos trânsitos, diferenciar migração e nomadismo torna-se importante para entender a utilização desses termos. Para Deleuze e Guatarri (1997) o migrante se movimenta segundo os fluxos da globalização coordenada pelo ”Estado“, sendo regulamentado por suas normas espaciais, se move em um ”espaço estriado e controlado”. Já o nômade, se move em um espaço “aberto e liso“, se contrapondo às normas que regulam a circulação e o movimento. O nomadismo poderia ser visto então como uma forma de resistência à imagem da estabilidade (casa própria, emprego, família...) vendida pelos estados-modernos. Maffesoli (2000, p.70) diz que o nômade busca “escapar da solidão gregária própria da organização racional e mecânica da vida social moderna“. Porém, o espaço nômade, “liso e aberto”, pode ser também traçado e controlado pelo Estado, assimilador e transformador de tudo, criador de espaços “lisos virtuais” (Deleuze e Guatarri, 1997). Questões político-sociais que determinam os espaços do ser e estar no mundo. Segundo Certeau (1994), o saber científico tende a organizar a legibilidade do mundo de modo 16
similar ao poder político, por meio de linguagens artificiais. O corpo social responde a eles por meio da imprevisibilidade e da criatividade dos atos cotidianos, desestabilizando e desorientando a organização de controle. Instala-se assim, nas cidades e em todo território controlado pelo ”Estado”, uma zona de conflito entre espaços sedentários e nômades. Segundo Deleuze e Guatarri (1997): “O espaço sedentário é estriado, por muros cercados e caminhos entre os cercados, enquanto o espaço nômade é liso, marcado apenas por traços que se apagam e se deslocam com o trajeto. “ Praticar o nomadismo dentro da cidade seria então uma maneira de criar espaços de descondicionamento do cotidiano mecanizado, de “alisar” o espaço “estriado“. Desestabilizar as determinações entre público e privado, para se pensar na noção de espaço comum de convivência e compartilhamento, público por princípio, ainda que privado. A CasaNômade pretende ser então esse espaço, privado e estriado porque dentro das regras estabelecidas pelo “Estado”, público e liso porque aberto à práticas de deslocamento e ressignificação do cotidiano. Uma casa-caminhante que atue modificando e construindo “outros espaços” nos lugares (na casa mesmo, no bairro, na cidade) por onde passar. O arquiteto Francesco Careri (2013), em seu livro “Walkscapes, o caminhar como prática estética”, aproximando conceitualmente arte e nomadismo, defende que, antes de inventar a arquitetura, o homem possuía uma forma simbólica de transformar
o espaço: o caminhar. O autor fala do caminhar como uma prática estética capaz de intervir nos espaços públicos metropolitanos e periféricos. Segundo Careri (2013, p. 28), o nomadismo se caracteriza como “uma forma de intervenção urbana, que traz consigo os significados simbólicos do ato criativo primário: a errância como arquitetura da paisagem, entendendo-se com o termo paisagem a ação de transformação simbólica, para além de física, do espaço antrópico.”
pela “afetivação” da cidade (toda vez que escrevo “afetivação“ o corretor ortográfico insiste em me corrigir para “efetivação”) efetivação do afeto = afetivação “O que será de uma cidade que destrói as suas reservas de delicadeza, de graça, de modéstia? Caminhe um pouco pelas ruas de seu bairro em busca dos cantinhos que ainda não foram devastados por alguma obra grandiosa e brega. O que será de uma cidade sem varandas? (...) O que será de nosso convívio diário numa cidade sem o pequeno comércio da rua, responsável pelo território coletivo onde as pessoas aos poucos se conhecem, se cumprimentam, conversam? Uma cidade sem zonas de familiaridade? (...) Procure os lugares em que ainda seja possível o encontro entre público e privado, o íntimo e o estranho, o desafiante e o acolhedor. O que será de uma cidade que é pura arrogância, exibicionismo e eficiência? O que será de nós, moradores de uma cidade que despreza a vida urbana?” (KEHL, 2010)
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Maria Rita Kehl se referia à São Paulo em seu texto, mas poderia estar mencionando a ideia de cidade contemporânea como um todo, ou ao menos o rumo que ela está tomando. Especulação imobiliária, espetacularização da vida, mercantilização da educação, da cultura, invidualização do ser coletivo. Entre todos esses “ãos” se constroem e se movem as cidades de hoje. Territórios da contradição, do conflito, da convivência com a diferença. A cidade é narrativa em construção, escrita a muitas mãos. Texto cheios de rasuras, colagens, ficções, histórias que nos conduzem. Cidade é corpo-mutante, assim como seus habitantes. Se vivemos na cidade, somos moldados e escultores, inventados e inventores da paisagem urbana. Escrevemos essa história ao mesmo tempo em que ela nos escreve. Porém, predomina entre os cidadãos da cidade, a alienação de seus papéis como construtores dessa história. Conduzidos pela ordem dominante, são condicionados por ela. O corpo da cidade acaba sendo moldado por poucos. Narrativas possíveis se tornam mera informação. Walter Benjamin, em seu texto “O narrador”, denuncia a perda da nossa capacidade de “contar” e “compartilhar experiências”: “Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (…) Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do
que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. “ (BENJAMIN, 1993) Como instaurar a invenção e o extraordinário no espaço do corriqueiro e da realidade concreta? Como subverter a temporalidade apressada, as configurações dominantes e instigar o descondicionamento da percepção e do imaginário, esmagado e oprimido, daqueles que compõem a paisagem urbana? Em uma palestra para a campanha “Indio é nóis”, realizada na Casa do Povo em São Paulo, no dia 05/04/2014, Maria Rita Kehl traz o conceito de “tekohá” da cultura guarani para falar sobre a escassez dos espaços de convivência nas cidades. Para os guarani, “tekohá” é mais do que a aldeia, é o lugar onde eles praticam seu modo de viver. Sendo o modo de viver (tekó) entendido como um conjunto de preceitos para a vida, em consonância com os regramentos cosmológicos herdados pelos antigos guarani. Segundo Khel (2014), assim como os guarani, “Nós somos vítimas da invasão, da perda dos nossos tekohás. (...) O nosso tekohá é destruído diariamente. (...) O lugar onde nós praticamos o nosso modo de vida deve ser respeitado, não pode ser destruído diariamente.” Para assumirmos nossa autonomia como construtores desse corpo-cidade seria preciso que o entendêssemos como nosso tekohá. Que modos de vida exercermos nas cidades de hoje? Que cultura está sendo incentivada? “Trata-se da demarcação da propriedade, do território, de poder, desse territorial corpo20
apêndice que insinua a privacidade conquistada e, também a intimidade sempre desejada. Há portanto, uma sobreposição de significados ou de sinais: intimidade, privacidade e privatização da vida. Não se está, portanto, na cultura do público e, muito menos, na cultura do compartilhar.” (HISSA, 2011, p.23) Criar espaços de convivência e compartilhamento nas cidades torna-se hoje uma questão de sobrevivência. “Afetivar” a cidade seria então o ato de efetivar o afeto entre as pessoas e o ambiente em que vivem, e entre elas mesmas. Para assim, poder transformar o território segundo as premissas de um “bem comum”. Vários projetos colaborativos foram e estão sendo desenvolvidos tendo essa questão como causa-motriz. São o que Laddaga (2012) chama de “ecologias culturais”, projetos que implicam na: “...implementação de formas de colaboração que permitiram associar durante tempos prolongados a números grandes de indivíduos de diferentes proveniências, lugares, idades, classes, disciplinas; a invenção de mecanismos que permitissem articular processos de modificação de estados de coisas locais e produção de ficções, fabulações e imagens, de maneira que ambos os aspectos se reforçassem mutuamente; e o planejamento de dispositivos de publicação ou exibição que permitissem integrar os arquivos dessas colaborações de modo que pudessem se tornar visíveis para a coletividade que as originava e se constituir em materiais de uma interrogação sustentada, mas também circular nessa coletividade aberta que é a dos espectadores e leitores.”
por uma rede de afeto-saberes Nas minhas perambulações nômades pelas cidades aí afora, pude ter contato com algumas dessas “ecologias culturais”: o “Espaço Comum Luiz Estrela” em Belo Horizonte, ocupação cultural que reúne pessoas de diversas áreas na restauração e ressignificação de um casarão abandonado, antigo manicômio da cidade; a Rede Brasileira de Teatro de Rua, que em seus encontros presenciais, duas vezes por ano, reúne artistas de rua de todo o país para pensar ações e requisições à respeito da arte pública no Brasil; o “Projeto Transite”, que está percorrendo o país (do Rio Grande do Sul à Belém) de bicicleta, conhecendo e registrando pessoas que utilizam a bicicleta como meio de transporte; a “Nuvem”, em Visconde Mauá-RJ, estação de rural de arte e tecnologia, voltada para a experimentação, pesquisa e criação vinculada à tecnologia e sustentabilidade; o “Organismo Parque Augusta”, movimento horizontal, heterogêneo, e aberto a quem se interessar pela causa da criação de um parque 100% público no espaço de um terreno em disputa no centro de São Paulo; e por último, e muito inspirador, o projeto “Base Móvel”, estrutura flexível que objetiva proporcionar encontros, conversas e estudos ligados à arte. O contato com esses projetos, as vezes com as pessoas e outras com os materiais por trás deles, me instigou a pensar uma proposição nesses moldes. Comecei a pensar no processo de criação artístico colaborativo como um dispositivo político-afetivo ativador da invenção de outras realidades, ativador da troca, da educação, um 22
dispositivo pedagógico por princípio. Lendo o seguinte trecho da publicação “Conversa como lugar”, dos propositores do projeto “Base Móvel”, tive certeza de que era a isso que queria me dedicar: “Só sei que cada pessoa/cada grupo foi levando a outras pessoas e outros grupos e assim fomos construindo uma rede de trabalho e de afeto; e que esse afeto era muito importante, era o que determinava a qualidade de cada encontro.” (KUNSCH e CESAR, 2011, p.12) O projeto Casa-Nômade foi pensado a princípio, como uma espécie de residência artística itinerante, que ocupasse por tempos prolongados (de um a seis meses) o espaço de uma casa-morada, em alguma cidade-sede escolhida, transferindo-se para outra cidade depois de um determinado período. Uma casacaminhante, que por onde passasse fosse formando uma rede cultural colaborativa, incentivando o livre trânsito e partilha de saberes, entre lugares e pessoas, territórios e linguagens. A ideia continua a mesma, a única alteração no projeto, aqui apresentado como projeto de pesquisa-criação em Processos Artísticos Contemporâneos, é que ele se propõe a pensar a cidade de Florianópolis como porto-provisório, por onde podem passar ou partir essas ligações, esse fio entrelaçador e para onde ele volta para se recarregar e reverberar as trocas realizadas durante o transitar. morador-provisório Morar foi uma questão bastante intrigante para
mim no período em que estive em Florianópolis. Em quatro anos e meio na cidade, mudei de casa nove vezes. Por razões diferentes, a mudança sempre me perseguiu. Morei com amigos, com desconhecidos, com sete, quatro, três, duas, uma pessoa, e as vezes sozinha. No centrinho, na floresta, perto da praia ou perto da UFSC. Cada mudança de casa era um forte exercício de desapego, de desconstrução e reconstrução interna. Eu não sabia, mas já estava construído em mim as bases para a Casa Nômade. Não foram poucas as vezes que escutei falar de Florianópolis como um lugar de passagem, principalmente no meio de profissionais da arte e da cultura. Cidade turística e universitária. Muita gente passa por aqui, seja a passeio, trabalho ou por estudos. Mas quem fica? Quais são as dificuldades de se estabelecer como morador desta cidade? Quais são as especificidades deste corpo-urbano e como um laboratório-residência de pesquisa, experimentação e circulação urbana pode atuar como agente modificador dessa realidade? O projeto Casa-Nômade pretende-se propor à compreensão do contexto através de um olhar morador-provisório em troca constante com outros olhares-moradores e transitantes, para poder gerar assim processos de reflexão crítica que atuem na apropriação do espaço público do conhecimento. Assim como Moraes, este projeto busca: “...ampliar as perspectivas, e olhar a casa de múltiplos pontos de vista, gerando uma abordagem multidisciplinar de sua conformação arquitetônica, de sua inserção urbana e territorial, de sua 24
caracterização funcional ou de uso, esse exercício busca uma extensão que permita compreender a residência artística desde esse ponto de vista caracterizando-a como um ambiente - aqui entendido como um conjunto de condições e circunstâncias que abarcam a relação do homem com o espaço e o tempo- de moradia, mas ao mesmo tempo de inserção de outras relações, conviviais, profissionais, educacionais, afetivas e sociais.“ (MORAES,2009, p.10) Entender a casa, o quintal, a cidade, o bairro, como espaço gerador de ideias, como chão mesmo, terra fértil de onde pode brotar o livre trânsito de conhecimento. Um “lugar praticado” (CERTEAU, 1994) que exceda seus limites físicos, liberte-se dos muros de contensão e alcance outros espaços (a comunidade, a cidade, e através das redes que se criarem, até outras localidades). O prédio, os móveis e os residentes podem mudar, mas enquanto houver convivência, encontro e conversa, a casa permanece viva. Vou encerrando esta revisão, com a citação de um autor com quem me deparei (não por acaso) recentemente em meu processo de pesquisa e que apresenta grande potencial transformador de meus rumos bibliográficos: “O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora.”(COUTO,2003, p.54) 2.5 – como coletar, criar, compartilhar: cartografar
Trata-se de uma pesquisa teórico-prática, que se constitui como processo experimental e documental. Experimental pois se dispõe a investigar práticas de deslocamento no espaço urbano e modos de escrita experimentais; e documental quando produz registros dos processos de pesquisa e das práticas realizadas, compartilhando-os através da compilação gráfica/composição da dissertação. Busca-se nos percursos de pesquisa a utilização dos métodos cartográficos, entendidos segundo conceitos de Sueli Rolnik. A autora propõe o que ela mesma chama de uma “definição provisória” da cartografia: “Para os geógrafos, a cartografia- diferentemente do mapa- representação de um todo estático- é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que os desmanchamentos de certos mundos- sua perda de sentido- e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua paea afetos que pedem passagem, delse se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo...” (ROLNIK, 1989) Utilizada como método de pesquisa no campo das artes visuais, a cartografia toma um tom experimental, e se configura como acompanhamento dos percursos (rotas, rasuras, redes e rastros) 26
gerados no processo de pesquisa-criação. Segundo as pesquisadoras Moura e Hernandez (2012), quando é “aplicada como método para traçar percursos poéticos” a cartografia torna-se “aquilo que força a pensar e ver o todo do processo do artista pesquisador”, ainda segundo as autoras, o método cartográfico, “estando voltado para o traçado de um campo problemático, requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo do que reconhecê-lo.”
2.6 – rotas a percorrer: raiz-residência provisória Primeiro pré-passo: procurar um lugar para morar e pessoas que queiram compartilhar uma residência, e aceitem a ideia do projeto. Como se mora em Florianópolis? Quem chega de fora e gostaria de se instalar na cidade tem que se submeter a que esquemas e configurações espaciais? rascunhando um convívio Pesquisar referenciais teóricos-conceituais, materiais e contatos de projetos familiares. Conversar, compartilhar experiências, conviver e elaborar junto com os outros moradores os próximos passos do processo de ocupação da casa como laboratório-residência de experimentação. Estabelecer coletivamente os princípios de convivência. Como vão funcionar as práticas de visita à casa? Até onde vai o limite do “público” em nós?
reconhecendo as redondezas Uma vez situada, inicia-se o processo de perambul(ação). Derivas pelo bairro, e pela(s) cidade(s), buscando reconhecer a paisagem, perceber suas potencialidades, suas histórias e estórias. A partir das trocas e da convivência na Casa e no Caminhar pensar e propor (se possível colaborativamente) ações que possam criar zonas de afetivação na cidade (algumas possibilidades: oficinas abertas, hortas urbanas, piqueniques, chimarrão de rua ou quintal, encontros da vizinhança, cinema na rua, teatro de rua, rascunhos na rua, etc...). Buscar uma proximidade-interação com o bairro-comunidade em que estiver morando, mapeando e criando parcerias na vizinhança. reverberando redes A visita como prática de enredamento. Instigar aproximações entre pessoas, projetos e saberes distantes fisicamente através da prática de visitas e contação de estórias advindas de outras localidades. Registros de estórias contadas durante a estadia nos lugares. rasurando relatos O caderno é, para mim, meu principal registro de processo-criativo-prático. É nele que ficam impressos meus pensamentos-ideias na sua matéria mais pulsante. Acredito e invisto na força da escrita manual, dos relatos, das rasuras, do torto, nos caminhos do erro. Como a pesquisa tem caráter provisório-perecível, os passos serão registrados em uma espécie de caderno de viagem (com relatos, fotos, rascunhos, rasuras, colagens, coletas), que será editado na composição da dissertação28
cartografia deste processo de pesquisa-criação. Amigos moradores-visitantes e outros transitantes serão convidados a participar e intervir com seus relatos. PARTE III 3.1 – Bibliografia: ALMEIDA, Rubem Ferreira Thomaz de; MURA, Fabio. Instituto Socioambiental | Povos Indígenas no Brasil http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ guarani-kaiowa/print, Acessado em: 11/11/2015 BARROS, Manuel. Memórias inventadas: as infâncias de Manuel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197221 (Escrito em 1936 sob o título Der Erzähler: Betrachtungen zum Werk Nikolai Lesskows). CALVINO, Italo. Marcovaldo ou As estações na cidade. (trad. Nilson Moulin) São Paulo: Cia. das Letras, 1994. CARERI, Francesco. Walkscapes: el andar como practica estética. Barcelona: Ed. Gustavo Gili, 2009 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira
Alves. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
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RB T Rhttps : / / w w w . f a c e b o o k . c o m / redebrasileiradeteatroderua/info VIDEO MARIA RITA KHEL SOBRE TEKOHÁ: https://www. youtube.com/watch?v=_8xTYijhZPM TEKOHÁ DEFINIÇÃO: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Teko%C3%A1