RASURAS

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(latim rasura, -ae, raspagem, raspas, resto, risco)

substantivo feminino, capítulo terreno

ato ou efeito de rasurar; render-se ao caminho do risco; quando o caminho deixa resto; quando os restos são prioridade; escrita construída por raspagens do cotidiano; palavras com pretensão à despretensão; impermanência; sobreposição de tempos; espécies de espaços; movimento de reforma agrária dos terrenos da escrita acadêmica; vírus epidêmico; mania de metalinguagem; de onde eu vim, pra quê venho; sobre saber, ou tentar, se colocar em algum lugar; conversas que o mundo tem comigo; conversas que tenho com os meus cadernos; artes do fazer; referências da rua; bibliografia da roça; sobre o que aprendi com Seu Manoel, meu conterrâneo; andar pela via das dúvidas; quando não cabe nas palavras mas a gente tenta; tentação; amor pelo erro; jardim de ervas daninhas; escrita-parangolé; pedadogia da percepção; política da faísca; cartografia da desconstrução; poética da provocação; metodologia da divagação; substantivo em estado plural; quando não cabe nos conceitos mas a gente inventa; assumir-se etc...


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A menina senta no chão de terra, pega um graveto na mão e começa a desenhar. Ela já sabe que aquelas formas são letras e que com elas pode escrever seu nome. Junta algumas letras, aleatoriamente, quase formando uma palavra. Querendo saber qual a pretensão da criança, alguém lhe pergunta: “O que você escreveu?” Olhando pra cima como quem consulta a imaginação, ela responde: “Sabe o que é, a moça do alfabeto me ensinou essas letras e disse que eu podia brincar com elas”.

a menina Agata e o alfabeto Assentamento Boa Esperança- SP


- Olha sĂł, a primeira letra do nome da senhora ĂŠ um anzol! dona Jandira e o nome Vila dos Pescadores, Superagui-PR

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Nos dois anos que estudei no colégio da maçonaria, cometi meus maiores e melhores delitos. Oswaldo Tognini era o nome do colégio (devia ser algum maçom importante). Eu tinha estudado a vida toda num colégio montessoriano, que tem por princípio a valorização da autonomia do aluno. A questão é que meus pais não puderam mais pagar essa alternatividade (que quase sempre custa caro, aliás), e eu, que já estava apaixonada pelo vôlei e achava a técnica do time do Oswaldo muito simpática, pedi pra mudar pra lá (pelo vôlei!). Mal sabia das mudanças drásticas que viriam no dia a dia: mapa de sala, líder de sala, professor escrevendo no quadro sem olhar pra trás, provas, gente, muita gente. De repente virei um número! Aquilo me incomodava tanto que comecei a criar minhas válvulas de escape, ou melhor, a escapar mesmo! O colégio ficava perto de um parque da cidade, onde vendiam água de coco. As vezes, a gente (sim, começamos a montar uma espécie de gang) matava a primeira aula por lá. Outras, quando estávamos mais dispostos a andar, íamos caminhando até o cinema do shopping (que ficava a 1km de distância). Um dia alguém contou pro diretor que nos viu indo em direção ao shopping e diz que ele foi atrás. Nos desencontramos, mas quando chegamos na escola (como quem não fez nada) nos mandaram direto pra coordenação: minha primeira advertência! Foram cinco ao longo de dois anos, uma delas muito relevante: o dia em que pulamos o muro pra fugir da aula de matemática! Éramos duas meninas de 12


anos, cansadas das repetições e desatenções da sala de aula. Num belo dia decidimos nos aventurar ao lado de lá do muro. Acho que a ideia foi dela, Gabriela era seu o nome! Enfim, isso não importa, fomos cúmplices. O mais importante é que o muro era alto, muito alto. Escalamos as grades que cercavam a quadra pra conseguir sentar no muro. De lá de cima via-se o mato do terreno baldio ao lado e uma panorâmica dos altos da Avenida Afonso Pena. Atrás do muro tinha um horizonte! Fomos nos arrastando até chegar num ponto que fosse mais fácil de pular. Eu fui primeiro! Lembro de sentir medo, fechar os olhos, respirar fundo e.... sentir dor, muita dor! Cheguei ao chão apoiada pelo braço, que não aguentou meu peso e trincou! Chorava que só! A Gabi pulou que nem viu o ar, e me ajudou a entrar na escola de novo. Nossa fuga durou pouco! Entramos como quem tivesse saído pra pegar alguma coisa lá fora. Não podiamos é claro, motivo da advertência que tomamos. Só que a dor era tanta que antes da bronca veio a ajuda: o diretor me levou ao hospital! Gesso por 20 dias, e o pior, 20 dias sem jogar vôlei. Isso doía mais ainda! O braço era o esquerdo e eu, que sou destra, conseguia continuar escrevendo! eu e o muro da escola Campo Grande-MS

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“Havia muitas coisas para aprender, aqui em Genna. A gente não as aprendia com as palavras, como nas escolas das cidades; a gente não as aprendia forçadamente, lendo livros ou andando nas ruas cheias de barulho e de letreiros brilhantes. A gente aprendia sem se dar conta, às vezes muito rápido, como uma pedra que silva pelo ar, outras vezes muito lentamente, dia após dia. Eram coisas muito belas, que duravam muito tempo, que não eram nunca parecidas umas com as outras, que mudavam e se moviam o tempo todo. A gente as aprendia, depois as esquecia, depois as aprendia de novo. A gente não sabia muito bem como elas vinham: elas estavam lá (...) Era suficiente vê-las e ouvi-las.” pedagogia da percepção, ou o desentender (LE CLÉZIO, 2010, p. 278) Mondo et autres histoires


de onde eu vim, ou onde me coloco “Por quê fazer um tcc no formato caderninho?”

Ponto Cego- 2012 54



“...se aproveitou de coisas que já estavam escritas’ – as crônicas, por exemplo – e foi recortando e colando, ajuntando fragmentos, até que se deu conta de que o trabalho estava ficando grande demais, e perigoso demais, achando por bem reduzir algumas páginas, sobretudo aquelas que eram de crônicas em que ela –a mulher-cronista-escritora – aparecia de forma mais pessoal. No entanto, mesmo tendo feito todo esse trabalho cuidadoso de cortar o grande texto na tentativa de rasurar o ‘eu’ pessoal, outros textoscrônicas permaneceram na escritura, mas sem perder o sentido emanado pelo fragmento. Ou melhor: cada fragmento (crônica) encaminhase para a formação do grande sentido - se é possível falar em grande sentido- mantendo, contudo, o que já trazia no seu corpofragmento. Desse modo, o livro se assemelha a um “fundo de gaveta”, lugar de onde a autora retira fragmentos que nada mais são que “reminiscências”, objetos guardados, e , justapondo-os, monta a escritura fragmentária que o constitui. ” sobre nós, mulheres escritoras (NOLASCO, 2001, p. 195-196) Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura

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T.P.M tensão pré menstrual ou textos pro mundo As coisas não ditas me implodem! Transbordo em um dizer naufragado em sentimento. Saem de mim espécies de palavras-deriva, coisas vivas desorientadas pelo vento.


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PRINCÍPIO NÔMADE DO SER ou sobre as distâncias entre ser e estar estar pouco diz sobre o ser quem é está mesmo quando longe há quem diz estar e não é dizer é querer ser ser é estar sem dizer distâncias estão quando ditas dizer é um modo de estar ser é um modo de ex-istir praticar um estado fora do alcance do pensar o ser muda sempre de lugar está sempre, de passagem


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PRATICANDO NEOLOGISMOS ou táticas de instigar enredos entre as pessoas e o ambiente em que vivem, e entre elas mesmas (toda vez que escrevo “afetivação“ o corretor ortográfico insiste em me corrigir para “efetivação”) efetivação do afeto = AFETIVAÇÃO


“Eu não sou artista q se posa de artista: nem sei se sou artista: dizem que o artista acredita e eu não acredito: em nada nem no q faço. Hoje nem sei se é preciso acreditar em coisas, ideias, projetos: meu trabalho se assim se pode chamar é algo em processo contínuo de valores q se processam e q o processo interessa mais do q resultados palpáveis de coisa acabada, etc.: isso é fácil conceber mas não levar adiante nem assumir: é duro: nesta publicação q vou fazer q para mim é fundamental há textos e fragmentos e documentos desses anos aqui que dão hints do q seja o problema q nem eu sei formular porque se reveste de descobertas q faço a cada dia: não descoberta de ordem psicológica catártica q a meu ver são puramente da ordem naturalista mas descobertas de comportamentofenômeno q se apresentam como transformação permanente.” sobre nós, impermanentes (COELHO, 2010 p.180) Livro ou Livro-me, os escritos babilônicos de Hélio Oiticica

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GRAVURA ou sob as artes do fazer cotidiano corpo matriz, mapa da memória. a poeira entinta, a idade texturiza, o caminho suporta. passos, gestos e afetos traçam altos e baixos relevos. sempre prova de artista, sempre uma cópia original. entre o preto e o branco varios tons, cinzas dos dias passados servem de matéria para compor futuros planos. a sobreposição é inevitável, a decomposição também.

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“Num conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher, em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma história para apaziguar as insuportáveis dores. Mal ele inicia a narração, ela o faz parar: —Não, assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida. —Desconhecida?— pergunta ele. —Uma língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender nada! O marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sentese ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser humano. Aos poucos, porém, vai ganhando mais à vontade nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de estarmos vivos. Na nossa infância, todos nós experimentámos este primeiro idioma, o idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um destino.“ sobre não caber na palavra, ou amar o Mia (COUTO, 2011, p. 12) E se Obama fosse africano? e outras interivenções


CORPO-CASCA de cobra, ou não A história (ainda) vive nas entrelinhas do corpo de cada um. Corpo que sussura um passado latente, corpo-presente, corpo-caderno, espaço de memória corrente. História mutável e mutante. Quanto mais passa o tempo e maior é o contato com a vida do lado de lá, maior é a necessidade de trocar. O corpo pede pele nova, feito cobra que cresce, feito encontro de rio. Heis aí o maior desafio: viver a mutação sem mudar a tradição? Toda criança vira adulto, ou será que não? Quanto mais eu cresço, mais entro em contradição. A história que contei ontem, hoje pede ponto de interrogação. Quem era desconhecido, vejo agora refletido na minha própria confusão. Quem são eles, quem sou nós? Amálgama de tempo, passado presente e futuro em estado de presentificação. aprendendo a ser nós São Gabriel da Cachoeira-AM

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Há tempos: sobre tempos contra tempos justa tempos passa tempos entre tempos meio tempos pós tempos contemporâneos. sobre a posição dos tempos Cidade do México- México


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CHECK LIST

peneirar prioridades valorizar vontades abandonar ansiedades bagunçar burocracias cativar curiosidades desvendar dilemas rasurar respostas suprimir segregações quarar questões utilizar utopias experienciar efemeridades flexibilizar filosofias gozar gentilezas achar verbos com H... Ps: habitar horizontes interditar ilusões jardinar jacarandás tonificar telepatias liquidificar limites movimentar monotonias navegar novidades operar oportunidades aprender alemão ou inventar verbos com k e x...


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dois ou um? atento ao comum, seguir os caminhos do meio na dúvida, soltar o freio... escutar a estrada escrita perdê o prumo, sem sair do rumo quebrar a rima!

desnortear o texto questionar os papéis ....................... descobrir o que vive além rebaixar os títulos deixar a palavra MUDA falar

O C U P A R........O...... E S P A Ç O agir no/com texto!

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m

O

das margens


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(CERTEAU,1994,p. 35-36)

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