RESIDENCIAS-ROTAS

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(latim residentia, recinto, resistência, recanto)

substantivo feminino, capítulo fundação localidade onde se vive; sentir-se em casa; quando a casa é que mora dentro da gente; tekoha; meio do caminho; sobre tentar morar em algum lugar; impermanência; sobreposição de convivências; espécies de espaços; movimento de reforma afetiva do urbano; ciganagem; sobre o que aprendi com o bicho preguiça; habitar o desterro; pra onde vim, e como venho; como viver junto; sobre o que aprendi com um bruxo, meu vizinho; não entender as cercas; onde o cotidiano se inventa; amar a rua; quando as histórias não cabem na palavra escrita; um rio chamado tempo, uma casa chamada terra; referências da roça; bibliografia da rua; resistir; sob o que aprendi com os guaranis, meus conterrâneos; habitar a via das dúvidas; apego pelo desapego; especulação da afetividade urbana; escrita-parangolé; pedadogia da provocação; política da divagação; cartografia da percepção; poética da faísca; metodologia da desconstrução; substantivo em estado plural; ter varizes; quando a gente não cabe num lugar só; o bem comum ; sentir-se etc...

(latim rupta, roteiro, revés, ruas, rios)

substantivo feminino, capítulo fundação mobilidade onde se vive; viajar; quando a casa é que mora dentro da gente; amizade com o vento; o caminhar como prática estética; sobre tentar viajar sem sair do lugar; impermanência; sobreposição de convivências; espécies de espaços; movimento de reforma agrária do urbano; ciganagem; sobre o que aprendi com os peixes voadores; viver o desterro; por onde vim, e como venho; como viver junto; sobre o que aprendi com o guaco da vizinha; não entender as fronteiras; onde o cotidiano se inventa; amar a terra; quando as histórias não cabem na palavra escrita; o incendiador de caminhos; referências da roça; bibliografia da rua; resistir; sob o que aprendi com os guaranis, meus conterrâneos; ocupar a via das dúvidas; apego pelo desapego; especulação da afetividade urbana; escritaparangolé; pedadogia da divagação; política da percepção; cartografia da provocação; poética da desconstrução; metodologia da faísca; substantivo em estado plural; ter varizes; quando a gente não cabe num lugar só; trama; revés da zona de conforto; deixarse etc...


quando uma imagem alimenta, ou por onde vim minha foto-cabeceira: série “Ara Solis” (Aquí estoy ante Mi) de Luis Gonzalez Palma, 2010.


planta-baixa Quando estou em trânsito preciso me sentir em casa, quando me rendo à rotina preciso criar asas. Talvez por influências astrológicas ou por construções históricas, carrego comigo um dilema: como posso fazer do viajar uma casa, e da casa uma viagem? Uma mania de movimento se embate à necessidade do mantimento, à vontade do alento. Perambulante-atenta deixo-me atravessar pela paisagem, mas também atuo sobre ela. Meu corpo vai riscando novas cartografias no caminho e na memória. Meus passos, gestos e afetos traçam altos e baixos relevos. Carrego (talvez nas solas dos pés, na mente ou no coração) pedaços daqueles (lugares, coisas e pessoas) com quem me encontro no percurso. Deixo também, em cada encontro, um pedaço afetado de mim. Assim, vão se criando enredos em constante construção, sempre propícios a sobreposições e decomposições, como tudo que é orgânico.


Era inverno no interior de Minas Gerais, o festival daquele ano tinha como tema o “bem comum”. Eu não tinha visto nenhuma palestra ainda, confesso cultivar certo preconceito por esse nome (é quase como se ele carregasse a iminência do sono...), mas minha simpatia pelo desconhecido acabou me levando para dentro do auditório. Plateia lotada! No palco, sentavam três lideranças indígenas, de etnias e proveniências diferentes. Uma delas, era Guarani Kaiowá: nome que me era familiar, desde criança, quando fomos com a escola visitar a aldeia próxima à cidade. “Familiar”? “Próxima”? Naquele dia eu entendi que distância não tem nada a ver com proximidade física. Não lembro o nome dele, mas carregava no rosto as marcas da resistência. Começou a falar em português: “Nós guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul...” e sem perceber, pouco tempo depois, estava falando só em guarani. A plateia silenciosa e bastante acadêmica, fazia cara de paisagem. Entre todas aquelas palavras tão vocálicas e tão alheias ao meu entendimento, eu escutava de vez em quando aquele mesmo trecho (único em português): “Nós do Mato Grosso do Sul...”. Sim, nós viemos do mesmo lugar, mas cada vez que ele dizia aquilo eu sentia os arames farpados da história demarcando em meus ouvidos o território da distância entre nós. Nunca achei que as palavras (ou que mora por trás delas) pudessem me reverberar tanta aflição! A constatação do nosso distanciamento, ali


explicitado pelo meu não entendimento do guarani, me doía! Ia além de uma questão de tradução em palavras. Meu choro foi inevitável e impulsivo, feito de criança. Que nada! Elas é que sabem das coisas (aliás, entre entender e saber também mora uma distância). Saí do auditório, meio desnorteada, me desentendendo, buscando ar (nessas horas eu lembro que tenho asma!) e, do lado de fora, me deparei com um grupo de crianças brincando, jogando sorrisos ao vento. Eram indígenas e não-indígenas, misturados, sem pretensão à distinção, falando em guarani, português e “mineirês”. A língua não fazia diferença, eles se entendiam e se sabiam como se não precisassem de palavras. Não era palestra, mas ali eu aprendi muito bem o que era o “bem comum”. as cercas internas, ou de onde viemos Diamantina-MG


“Os Guarani hoje em dia denominam os lugares que ocupam de tekoha. O tekoha é, assim, o lugar físico – terra, mato, campo, águas, animais, plantas, remédios etc. – onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o estado de vida guarani. Engloba a efetivação de relações sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um espaço físico determinado. (...) Idealmente este espaço deve incluir, necessariamente, o ka’aguy (mato), elemento apreciado e de grande importância na vida desses indígenas como fonte para coleta de alimentos, matériaprima para construção de casas, produção de utensílios, lenha para fogo, remédios etc. O ka’aguy é também importante elemento na construção da cosmologia, sendo palco de narrações mitológicas e morada de inúmeros espíritos.(...) Não era, até a chegada do branco, necessário exprimir medidas; simplesmente vivia-se com base no próprio costume; respeitava-se e fomentava-se as regras do teko (modo de ser guarani). Como decorrência da presença do colonizador, os Guarani passam fixar atenção nas regras do branco e a considerar espaços com superfície definida, o que é expresso pela categoria tekoha.”

parentesco com a terra, ou não ter cambimento (ALMEIDA e MURA,2003) ISA|Povos Indígenas no Brasil: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guaranikaiowa/print, Acessado em: 11/11/2015




da busca pelo ar, ou a nossa natureza sufocada pesquisa fotogrรกfica itinerante (em processo)


morar: nem sempre fácil achado, às vezes compartilhado, direito muito maltratado, pra muitos anulado, verbo bastante especulado pouco público muito privado, muitos sem telhado, um puchadinho improvisado, na cidade empilhado, quase sempre alugado, quando próprio em muitas vezes parcelado, endividado, ocupado, com namorado, casado, desapegado, sozinho nem sempre quer dizer separado, sempre tem alguém necessitado, do centro afastado, em comunidade organizado, poucos em mansão ou sobrado, pode estar no pouco aconchegado, pode estar no muito isolado, muitas vezes sem saber quem está do lado, com os pais até quando a rua mandar o chamado, na rua quando desapropriado, desalojado, no campo acampado, com suor conquistado, espada de são jorge, alecrim e arruda pra espantar o mau olhado.



quanto mais perto mais caro, o perto depende da estação do ano, perto da UFSC é uma constante, perto da lagoa, até dezembro, longe as vezes é o atravessar a ponte; é preciso estar propício à mudanças, do tipo em seis anos, dez casas diferentes; donos que colocam seus imóveis em imobiliárias tendem a ser mais desapegados do negócio, imobilíarias tendem a exigir o impossível; direto com o proprietário normalmente quer dizer vizinho do mesmo; tem casas muito ruins muito caras, tem casas muito boas relativamente baratas, as ruins quase sempre fazem as melhores propagandas, ruim é quando esquecem que você respira e resolvem alugar a garagem como casa, muito bom é quando até os passarinhos querem entrar; a ilha é uma área de preservação permanente, a ilha é uma área de especulação permanente, quem não tem salário 4 vezes maior que o valor do aluguel, nem cheque-caução, nem família rica, fica à mercê do acaso e das redes de afeto. funciona! habitar o desterro ou questões imobiliárias Florianópolis-SC





o despertador tocou! Levantei ofegante, coração palpitante. Acho que foi só um pesadelo, mas parecia tão real… O cenário que vi me causou desespero: nossa sala não era mais esse espaço de 5x4m no térreo da casa; tinha se transformado na praça, nas ruas, na beira da lagoa, nos canteiros, parques, pontos de ônibus, postes. Nossa sala tinha se transformado em todo o espaço público! Assim como a sala, todos os outros cômodos foram se desacomodando. De repente percebi que nossa casa era a cidade inteira! E, nossa, como ela tava bagunçada! Não sei porquê, nem quando, nós tínhamos resolvido escolher, a cada quatro anos, um organizador oficial pra colocar ordem na casa. Achávamos, quem sabe, que assim nos sobraria mais espaço pro tempo livre. Doce ilusão! Isso de eleição só fazia aumentar a confusão. O tal organizador terceirizava seu serviço, deixava tudo nas mãos da forasteira especulação imobiliária. Ela, em troca, oferecia o financiamento de toda campanha partidária. Juntos, eles foram transformando a casa sem pensar nas vontades e necessidades da maioria dos moradores. Deixavam o medo e o abandono tomarem conta do terreno. Nenhum novo parque, nenhuma nova praça, ninguém podia encostar na grama, nada de lugares pra sentar,


se encontrar. A sala era um enorme lugar de passar! A estratégia era que perdêssemos a vontade de ficar no espaço público, assim ele perderia sua função como nossa sala de estar, se transformando em hall dos espaços privados e murados deles. Sem nosso espaço de encontro não poderíamos nos articular, nem causar nenhum confronto. Nós íamos nos desconhecendo. Seguíamos só passando, lado a lado, compartilhando nossas solidões a caminho do trabalho. Nosso tempo livre não tinha mais onde morar. Eu não sabia mais com quem estava morando. Não existia mais laços entre as pessoas, muito menos nós. Fui ficando assustada. Tentava falar mas continuava calada. Enquanto toda aquela atrocidade ia tomando conta da cidade, nós permanecíamos imóveis. Éramos meros locatários de nossa casa própria. O despertador tocou! Levantei ofegante, coração palpitante. Acho que foi só um pesadelo, mas parecia tão real…


Carroças, cavalos, carros antigos e alguns novos, bicicletas, bici-táxis, motos, tricíclos, mas sobretudo gente, muita gente! Dois meninos correm tentando fazer a pipa (feita de sacolas) subir, outros três jogam beisebol, um casal se beija encostado no poste, quatro mulheres sentadas na varanda fazem as unhas e conversam sobre a vizinhança, quatro homens jogam dominó sentados à mesa colocada no canto da rua, logo ao lado deles um jovem desmonta sua moto para consertar algum problema mecânico. Todos escutam música, todos são música. O reggaeton do radinho chiado convive com o canto dos galos e passarinhos. Mesmo à noite, as casas estão de portas abertas. Os vizinhos se conhecem, se ajudam, se misturam. Ninguém tem medo da rua! sobre como a rua pode ser casa da convivência Guantánamo- CUBA


“Como ustedes consiguen vivir en una sociedad así?” Sobre quando a Esperanza (uma amiga) se assustou com a existência de moradores de rua no Brasil.


Outro dia, subindo uma das ladeiras que leva à minha casa, fui abordada por uma senhorinha (assim no diminutivo, padrão açoriano de altura). Com uma sacola na mão, em frente à uma cerca de arame coberta por uma trepadeira, ela ia coletando folhas da planta enquanto me dizia: “É guaco, filha. Pode pegar também.” Toda vez que passava por ali eu sentia cheiro de chá. Cheguei até a arrancas algumas folhas de lá, mas ainda não tinha conseguido identificar o que era. Pois bem, a senhora estava respondendo minha questão. Resolvi então me juntar a ela naquela colheita. Em alto e bom “manezês”, Dona Maria foi me contando que achava que os donos da casa não estavam por ali. Ela os conhecia de vista, pois sua filha mora duas casas ao lado. Olhando para os lados, Maria me dizia e repetia: “Tem tanto, não vai fazer falta pra ela. E guaco é tão bom né... Pega,


filha, pode pegar! Pega mais!” Por um momento percebi que nossa colheita não estava autorizada. Enquanto seguíamos conversando, um moço chegou e foi entrando na casa, sem nos dar muita atenção. Antes que ele fechasse totalmente o portão, Maria lhe perguntou se aquela planta era guaco mesmo, como que puxando assunto. O meço fez que sim com a cabeça e nós (já cumplices naquela subversão) nos sentimos um pouco mais autorizadas a seguir coletando nossos futuros chás, xaropes, melzinhos... Peguei umas dez folhas grandes de guaco, agradeci à Maria pela dica e pela boa conversa e voltei a seguir meu caminho para casa. Duas semanas depois, descendo a mesma ladeira, passei em frente àquela casa. O guaco havia sido dilacerado: o arame da cerca, antes coberto pelo verde cheiroso, estava agora totalmente aparente. Algumas folhas secas, já sem cheiro, se misturavam à poeira do chão. Nada mais ali chamava atenção de ladrão! sob a sobreposição de convivências Florianópolis-SC


sobre nĂŁo ter fora, ou como nasce o sertĂŁo (HISSA, 2006) Ambiente e vida na cidade. Belo Horizonte, Editora UFMG


ode ao bicho preguiça teme o torto não sai do porto acha-se esperto limita-se ao certo só vê o perto se saísse, se andasse, se arriscasse, se permitisse, se errasse, se abrisse a porta, teria descoberto: vivia quase-morto. os caminhos se libertam fora da zona de conforto. a leveza mora na consciência do peso... o bicho preguiça me atiça.




“Para os Mbyá contemporâneos, a “terra sem males” é um lugar guardado e protegido; uma terra boa e fértil, um lugar onde existem as plantas e os animais que compõem o mundo original, onde as próprias pessoas experimentam as condições favoráveis à sua plenificação. Essa terra produz não só alimento, mas também inspiração para rezar e cantar.(...) Cercados pelas novas frentes de colonização no oeste brasileiro, leste do Paraguai e nordeste argentino, eles tinham que escolher entre tornar-se mão-deobra escrava (Burri, 1993, p. 30) para os novos guardas da terra, exporse à humilhação de conviver com os representantes do desenvolvimento agrícola que os consideram “entraves do progresso” ou pôr-se a caminho na busca da “terra sem males” que se encontra do outro lado do oceano.(...) A “terra sem males” não é uma mera utopia, no sentido de um não lugar, como muitos querem entender, para se desvencilhar dos incômodos que a reivindicação dos indígenas pode desencadear. Os Mbyái estão convencidos de que, para entrarem na “terra sem males”, precisam caçar, plantar, festejar e viver como Mbyá. Mas a “terra sem males” tampouco pode ser reduzida à dimensão terrena e social, haja vista que, em muitos casos, as áreas que os indígenas deixam para trás apresentam maior equilíbrio do ponto de vista ecológico do que as áreas que eles passam a ocupar ao longo do litoral brasileiro. Nesse caso, há que se levar em conta dois elementos: a compulsoriedade da saída dos Mbyá das áreas que ocupam no Paraguai e na Argentina e o significado do “estar a caminho” como uma forma


de “aproximar-se” dos lugares verdadeiros. (...) Ao evocar e insistir em alcançar a terra original, os indígenas mostram à sociedade que os cerca que há um descompasso entre o mundo que hoje habitamos e o das origens. Transitando, geográfica e simbolicamente, eles contestam a sorte a que foram relegados pelo desenvolvimento implantado nos estados paraguaio, brasileiro e argentino. Contradizendo os prognósticos mais pessimistas escritos sobre eles (...) os Mbyá encontraram no seu “estar a caminho” a forma de continuar sendo os mesmos. Carregando o que lhes é minimamente indispensável para não serem desenraizados, ampliam seus espaços e se aproximam, no mínimo, psicologicamente das origens.” sobre o caminhar como hábito de resistência, ou avizinhar-se da Casa (CHAMORRO, 2008, p172/177) Terra Madura, Yvy Araguyje: fundamentos da palavra guarani. Dourados: Editora UFGD. 2008.


o caminhar como prática mais que estética Depois de quase seis anos de mudanças de curso (entre arquitetura, artes visuais e cinema), de casa (3 cidades, 8 bairros e 11 casas) e de ânimo, finalmente minha graduação estava chegando ao fim. Eu fazia meu tcc e pensava nos rumos que poderia tomar dalí pra frente. Possibilidades de trabalho, de viagem, de viagens à trabalho, de ficar de partir, de não saber ao certo para onde seguir. As dúvidas que frequentemente habitavam minha cabeça, resolveram se deslocar para outra parte do corpo: minhas pernas. Caminhos, cruzamentos, vielas, avenidas, rios e seus afluentes... uma verdadeira bacia hidrográfica começou a se formar logo atrás dos meus joelhos, principalmente do esquerdo. Varizes? Várias: raízes! Se fico muito tempo sentada, parada, minhas pernas latejam, amortecem, e as varizes crescem como que porcurando água ou chão. Quanto mais ando mais os caminhos aparecem fora e não dentro de mim. Os que já estão, ficarão. Os médicos dizem que não tem cura. Se quiser, eu posso fazer a cirurgia, retirar as veias congestionadas. Dizem que outras aprendem a fazer o mesmo serviço (são forçadas, coitadas!). Porém, mais além, outras dúvidas virão, momentos de bifurcação, indecisão, e minha cabeça pode novamente precisar criar raízes. Por isso, ando pensando em continuar andando, deixar o corpo assumir o comando.


sobre a mobilidade vivenciada Cidade-corpo. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p. 54-77, jan./jun. 2013.


O carbono-capital sobe à cabeça, congestiona, dói, até que tudo o que pensa em todos se corrói. Ambulâncias e polícias circulam pelas veias entupidas, violentas vias, sanguíneas áreas. A pele se arma de concreto, num tom cinza-decreto. Sem trato direto, sem tato. Afeto? Tantos sem teto! Olhar tangente. Tanta gente perto, tão longe, buscando um tal “certo”. Paladar calejado, cansado de tanto nada mastigado. Difícil digestão, tudo duro, tudo muro, tudo murro. O pulmão, asfaltado, suspira calado, feito rio canalizadosufocado debaixo do chão. O coração, músculo involuntário, segue batendo, sem-salário. Revolução vai ser o dia em que ele aprender a dizer NÃO! Quando perceber qual modelo de corpo-cidade-sociedade seu trabalho leva adiante, bem capaz de ter um infarto fulminante. sob a falência múltipla dos órgãos públicos São Paulo-SP



Seis meses depois, voltei lá e a pergunta tinha virado conversa. Fiquei sabendo também o nome da escritora de rua, e que ela morou na casa em que uma amiga minha mora hoje. Ela ainda não sabe que eu sei o seu nome, nem que sua escrita de rua virou referência pro papel da Academia. Tita, a p(u/i)xadora de conversa, ou sobre a vizinhança anônima Belo


“Produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas da racionalidade funcionalista (...) Traçam “trajetórias indeterminadas”(11), aparentemente desprovidas de sentido porque não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicas organizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulários das línguas recebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposições urbanísticas), embora fiquem enquadradas por sintaxes prescritas (modos temporais dos horários, organizações paradigmáticas dos lugares etc.), essas “trilhas” continuam heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e de desejos diferentes. Elas circulam, vão e vem, saem da linha e derivam num relevo imposto, ondulações espumantes de um mar que se insinua entre os rochedos e os dédalo de uma ordem estabelecida. Dessa água regulada em principio pelas redes institucionais que de fato ela vai aos poucos erodindo e deslocando, as estatísticas não conhecem quase nada. Não se trata, com efeito, de um liquido, circulando nos dispositivos do sólido, mas de movimentos diferentes, utilizando os elementos do terreno.” sobre a política da divagação, ou ser tático (CERTEAU, 1994, p97) A invenção do cotidiano: 1.artes Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

do

fazer.


Aquário flutuante, sistema dominante. Água que boia sobre água. Ilha cercada por um rio de possibilidades, vontades. Desejos ensinados a nadar quadrado. O vidro mantém a ordem, detém os peixes em seu estado, calado, privado, público-privatizado. Quem tenta escapar nadando morre afogado. A questão é perceber que as barbatanas podem ser asas. Nesse mundo-água resistente é peixe que aprende a voar... Mas os aquários são bonecas russas e até os rios andam sendo canalizados. Um peixe que voa sozinho, foge, mas o aquário se mantém, outros ficarão a ver navios... É preciso voar junto. Cardume-ventania. Quebrar os vidros, cair no rio e perceber o nado desgovernado. A profundidade é um mistério! sob aquários e profundidades Porto Alegre-RS



“Acreditamos que todos sabemos o que é um rio. No entanto, essa definição é quase sempre redutora e falsa. Nenhum rio é apenas um curso de água, esgotável sob o prisma da hidrologia. Um rio é uma entidade vasta e múltipla. Compreende as margens, as zonas de captação, as áreas de inundação, a flora, a fauna, as relações ecológicas, os espíritos, as lendas, as histórias. É uma rede de entidades vivas (...) Habituados a olhar as coisas como engenhos, esquecemos que estamos perante um organismo que nasce, respira e vive de trocas com a vizinhança.” pedagogia da percepção, ou ser rio (COUTO,2011, p53) Rios, cobras e camisas de dormir - “E se Obama fosse africano?”. São Paulo: Companhia das Letras. 2011


Andar sobre águas, ou os milagres ao avesso do que chamam de progresso observações caminhantes por Belo Horizonte-MG

entre aparências e presenças se ausentam as coerências sustentabilidade-vaidade cada um vendendo suas verdades pintar de verde não altera o que é cinzento por dentro enquanto isso, a todo momento, (nos vãos do cimento) sementes resistentes encontram terra fértil pra brotar espontaneamente sub sustentabilidade e publi-cidade, ou ode às ervas daninhas São Paulo- SP


Yumurí está em guerra, desde que nasceu como tal. Antes de ter esse nome, talvez vivesse só em paz. Mas fato é que em algum momento chegaram os espanhóis, invadindo, construindo, desapropriando gente, terra, cultura e tudo mais, e os indígenas locais não se aguentavam, sem saída, perdendo sentido na vida, saltavam do alto dos cânions gritando: “Yo morí!” Dizem que vem daí o nome atual. Pode ser casualidade ou a mais pura causalidade, mas a verdade é que desde então, o povo que vive ali, pra conviver com tamanha beleza, vive em eterna relação de ação e reação com a natureza. Todo ano, quando os ciclones resolvem chegar, quem mora de frente pro mar recolhe tudo de mais valioso, põe no caminhão do governo e sobe o morro. Defendem-se com o que dá: cercas de plantas, de madeira, de pedras, móveis atrás da porta.


Mas o mar não se importa, entra por onde quiser entrar e leva embora o que quiser levar. Na volta pra casa, presentes: areia, rachaduras e sementes que insistem em rebrotar. sobre ser mar, ou política da desconstrução Yumuri-CUBA


sobre o velejar, ou deixar-se etc... (CARERI,2013, p.172) WALKSCAPES TEN YEARS LATER. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G Gilli 2013.




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