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1. Patrimônio

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Referências

Referências

1. Patrimônio

A maturidade no debate acerca do termo patrimônio provém de meados do século XVIII e início do século XIX (GONÇALVES, 2002, p.116) e seu discurso nasce no processo de formação dos Estados nacionais, ou seja, onde se pretende a construção de memórias, tradições e identidades, na busca, como nos relata Gonçalves (2002, p. 116), de uma “subjetividade coletiva, a nação”. Para Choay (2014, p.11) o patrimônio surge pela acumulação de uma diversidade de objetos que reúnem a sua “pertença comum ao passado”, que evocam ao passado como uma memória viva. Ainda de acordo com a autora, o patrimônio edificado possui um caráter especial, em razão de criar uma relação de maior proximidade com a vida de “todos e de cada um” (CHOAY, 2014, p. 12), englobando todas as artes de edificar (eruditas e populares, urbanas e rurais) e todos edifícios (públicos e privados). O primeiro desenvolvimento do termo patrimônio, antes da compreensão madura que se consolidou no século XIX, denominava-se unicamente como monumento - que, segundo Françoise Choay (2014, p. 17-18), pode ser qualquer objeto edificado que tem por finalidade induzir a recordação de um acontecimento, povo, pessoa, rito ou sacrifício. Além disso, a expressão monumento carrega consigo a intenção de poder, grandeza e beleza. Trazendo ao debate o ponto de vista do historiador Alois Riegl, Choay nos apresenta a dupla possibilidade de existência de um monumento. Em primeiro lugar, o monumento pode ser uma criação deliberada - e que nos leva ao encontro da definição clássica de ser um objeto construído para rememorar algo. Em segundo lugar, e acrescido de um termo, podemos encontrar o monumento histórico que não é almejado como marco, mas que ao passar do tempo e sob olhar histórico, este objeto edificado se notabiliza e ganha o caráter de monumento. Sob a influência da Revolução Industrial, a cidade torna-se objeto do saber e por consequência, a cidade antiga torna-se objeto de investigação (CHOAY, 2014, p. 193). Neste contexto, avançando no tempo para a primeira metade do século XIX, na França, o patrimônio ganha novos significados e deixa de se referir apenas às tipologias recorrentes, como vestígios da antiguidade, edificações religiosas da Idade Média e castelos. A partir desse momento, o termo começa a compreender conjuntos edificados e o tecido urbano, desde poucos quarteirões até conjunto de cidades. O estudo da expressão patrimônio nos direciona aos debates das teorias da restauração, porém, esta pesquisa não visa centrar-se na conservação ou alteração de edificações, mas do espaço urbano patrimonial em que o conjunto de

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edificações proporciona. Para tal, Choay (2014, p. 191) nos explica que a noção de patrimônio urbano nasceu na Grã-Bretanha, sob a pena de Ruskin, e em concordância com Rupf e Queiroga (2015, p. 140), este patrimônio edificado urbano se faz presente como uma espessura que, ao mesmo tempo, remete ao passado e ao futuro, dando base à memória social. Ou seja, acrescido do entendimento de Mesentier (2005, p.168), este conjunto de “edifícios e áreas urbanas de valor patrimonial como ponto de apoio da construção da memória social” perdura ao longo de gerações. Ainda sobre memória social, Mesentier explica:

[...] enquanto suporte da memória social, o patrimônio atua como um estímulo ao processo de desenvolvimento da consciência social, pode-se dizer que o faz de modo especial na construção do sentido que propicia a percepção do caráter histórico da existência das estruturas sociais (MESENTIER, 2005, p.170).

A memória social é, portanto, decisiva para a construção do sentido da dimensão histórica da vida social, propiciando a percepção do processo de desenvolvimento social como algo sujeito a mudanças que se produzem, por intervenção das forças sociais do presente, a partir de acúmulos produzidos historicamente (MESENTIER, 2005, p.170).

De forma geral, conforme explica Cecília Santos (2012, p. 03) a origem do patrimônio se fundamenta no entendimento da relação de cada sociedade com o tempo, que é uma relação de caráter mutável. No Brasil, o estudo sobre este termo nos remonta à década de 1930, a partir do “Anteprojeto para a criação do Serviço Histórico e Artístico Nacional”, escrito por Mário de Andrade em 1936, que teve como objetivo formalizar a institucionalização do patrimônio. Este escrito foi base para o Decreto-lei N.25 de 1937, redigido pelo advogado Rodrigo Melo Franco de Andrade, que funda o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico (SPHAN), hoje Instituto (IPHAN). De acordo com Nabil Bonduki (2010, p. 25), nosso país foi um dos primeiros a redigir uma legislação com o intuito de proteger e preservar o acervo de patrimônio histórico e artístico, e teve como referência também as ideias do urbanista Lúcio Costa. O anteprojeto indica uma nova instituição designada a cuidar do patrimônio, desenhando seu campo de ação e reflexão - como descreve Santos (2012, p. 03), em concordância com o costume europeu, englobava arte, arquitetura, museus, arqueologia, dentre outros. Mário de Andrade propôs uma organização técnico-administrativa para o Serviço, definindo a obra de arte patrimonial em categorias. O redator do anteprojeto cria um novo termo para a preservação, o chamado “tombamento”, criando os 4 livros do tombo e os 4 museus nacionais. Descreve sobre o que seria o patrimônio artístico nacional e como deveria se dar sua preservação. Tal escrito de Mário de Andrade

possuía também um caráter de cunho cultural, pois abordava o que ele descreveu como “monumentos da arte popular”, porém, no Decreto-lei este termo e este alcance ficaram de fora. Cecília Santos nos apresenta que os escritos de Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco que deram surgimento ao SPHAN, entre os anos de 1936 e 1937, trouxeram um campo de discussão intelectual do assunto patrimônio. Porém, na prática, o texto do Decreto-lei N.25 que instaura o SPHAN possui uma característica “elitista” e até “classista” (SANTOS, 2012, p. 04), pois visa proteger essencialmente a arquitetura religiosa e militar da era Brasil colônia. Santos traz uma citação da tese de doutorado defendida por Antonio Gilberto Ramos Nogueira, o qual descreve a primeira fase de atuação do SPHAN como “sacralização da memória em pedra e cal [...] e a eleição de uma etnia, dita civilizada, em detrimento de outras à margem do processo”. No contexto político, o nascimento do SPHAN data da época do Estado Novo, regime caracterizado pela centralização do poder, e que acaba refletindo na primeira fase de atuação do Serviço, concebendo uma ação limitada que se deu por vozes correntes e os gostos das elites dirigentes da época. Desde logo o início de sua atuação, o Serviço começa a receber críticas, como as de Lauro Cavalcanti, arquiteto e antropólogo, que analisa as primeiras produções da Revista do Patrimônio e percebe que se privilegia, na maior parte, os monumentos de pedra e cal de Minas e do Rio. Ainda em 1937, na primeira edição da Revista, Mário de Andrade já indagava sobre a cultura popular fazer parte do programa de conservação e valorização do patrimônio com a pergunta: “E folclore? Já pode entrar na revista?”. Cavalcanti ainda critica a grande atuação dos profissionais arquitetos no Serviço, dizendo que esta seria a causa do grande privilégio às obras de pedra e cal, de cunho elitista ou religioso. Neste mesmo pensamento, Mariza V. Motta Santos (apud SANTOS, 2012, p. 05) descreve que a forte atuação dos arquitetos é carregada até a década de 1970, quando a partir disso as ideias centrais passam ao arcabouço teórico antropológico. O documento que instituiu o Serviço trazia referências à Carta de Atenas, que foi a primeira carta internacional de princípios para a restauração de monumentos. Segundo Santos (2012, p. 05), a Carta não se desenvolve como uma cartilha, discutindo regras ou leis, mas como uma natureza teórica e, neste sentido, Rodrigo Melo se fez referência na redação do Decreto-lei, no sentido de um “rigor conceitual e atualização”. Mário de Andrade, além de ter papel fundamental na discussão brasileira acerca do patrimônio, foi o primeiro responsável pela regional

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