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Crónicas de um comboio escalfado XII - Jorge Serafim
from Edição 136
by Apat
Crónica de um comboio escalfado XII
Ir ao Algarve frequentar o bulício da noite era o sonho da malta em idade jovem. A consolidação das hormonas nas artes do engate e da paixão escaldante. Navegar de bar em bar a preparar a entrada avassaladora na discoteca às três e qualquer coisa da manhã e ficar a navegar na ilusão do ritmo, dos corpos, dos copos, até à hora em que a luz da manhã clareia a lucidez. Ir ao Algarve era um frenesim interior. O imaginar de um mundo perfeito lá fora, carregado de mulheres perfeitas e estrangeiras. Só o escutar de outras línguas já nos enchia a alma de futuro promissor. Já nos integrava no tamanho do mundo. Inglês, holandês, alemão e o sotaque de Portimão refaziam a nossa relação com o planeta. Aquele corrupio de gente nas ruas e nas praias abria nos nossos rostos sorrisos cosmopolitas e palpitações geográfico-cardíacas. O problema, o único problema seria a viagem de comboio... Um martírio! Um sacrifício necessário em prol das necessidades efetivas do coração e da puberdade. Não era uma simples viagem que se fazia, era uma odisseia interminável, o equivalente a dobrar todos os cabos das tormentas para aportar no paraíso das “camones” afrodisíacas. A epopeia do cavalo de ferro começava logo na estação inicial, Beja. O horário de partida não preconizava uma viagem tranquila, meia-noite e vinte e dois. Vivê-la no sono dos Deuses era uma impossibilidade efetiva. Para compensar tão longa e dura jornada, a malta via-se obrigada a consolidar-se em inúmeras latas de conserva, pão, toucinho e, fundamentalmente, em quantidades assinaláveis de latas de cerveja e vinho de pacote. Aliás, sabe-se hoje, com o avançar da idade, e quando se relembram as loucuras da adolescência, que muita úlcera nervosa nasceu graças à combinação explosiva de vinho martelado ingerido em carruagens de comboio que trepidam mais que um tremor de terra. Era tal o movimento no interior do estômago que, ao invés de fazermos as digestões, sentíamos erupções que iam desaguar descontroladas na casa de banho da carruagem. Beja, Penedo Gordo, Santa Vitória, Ourique / Castro Verde e depois mudança na estação da Funcheira. Aqui começa a cheirar a Algarve! Falta atravessar a serra, no concelho de Odemira, Santa Clara-Sabóia. Já na província onde o mar nos aguarda, Messines-Alte, segue-se a estação das grandes decisões, Tunes! Aqui é onde a maturidade boémia assume um peso considerável. Ou vamos na direção de Lagos para o turismo de pé descalço e unhas dos pés mais escuras que as cascas dos mexilhões, ou então vamos na direção de Vila Real de Santo António para ficarmos logo apeados na estação de Albufeira-Ferreiras, onde o mundo é uma coisa linda se pedirmos em qualquer bar de essência anglo-saxónica: one beer, please! E um whisky on the rocks com duas pedras de gelo, se faz favor! Para nós, a travessia era tão demorada, mas a ansiedade um crescendo em cada paragem, que não dávamos conta de que quando finalmente chegávamos ao destino já a manhã acontecia há um par de horas. E o nosso aspeto de adolescentes, com uma noite passada em branco a cheirar a aroma de cerveja coalhada no céu da boca e de vinho arrotadeiro canalizado pelo esófago, não abonava favoravelmente como cartão de apresentação a qualquer pessoa do sexo oposto. Acrescente-se ainda que, devido ao cansaço, já na praia, alguns sucumbiam ao sono em pleno sol escancarado. Escusado será dizer que quando acordavam pareciam camarões articulados, tal a dificuldade em acionar a sua expressão motora assim como pela tez extremamente avermelhada da pele. Como na altura não sabíamos que já tinham inventado os protetores solares, usávamos daquele sebo com o qual se engraxavam as botas caneleiras. Além do aspeto de vagabundo sem colo, juntava-se um cheiro nauseabundo que não adivinhava um futuro sorridente no universo dos beijos na boca de língua trocada. É sabido que são as desilusões que nos preparam o caminho para lidar com os obstáculos da vida. Mas mesmo assim, nada justificava as longas horas passadas dentro de um comboio para chegar a um porto que se tornava “indestinável”. Porque depois desta jornada deprimente, ainda havia um aspeto a considerar de não somenos importância… o regresso de mãos a abanar! Desta vez, sem ansiedades e esperanças promissoras. O que, por si só, já é um fator preponderante no que toca a reforçar o stock de acompanhamentos etílicos. Âncoras nas quais se apoiam as agruras dos corações rejeitados e se sustenta a paciência para aguentar cinco a seis intermináveis horas de comboio. Como para a desilusão tem de haver sempre uma justificação, ao chegar à estação de origem, Beja, ainda houve quem solicitasse no balcão da estação o livro de reclamações para apresentar devidamente fundamentada uma queixa contra a CP Comboios de Portugal. Motivo: um comboio demorado é o início de um coração destroçado.
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Jorge Serafim Humorista