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Crónicas de um comboio escalfado XV

Às vezes a saúde prega partidas inesperadas. Nunca tanto se arrependera de ter levado uma existência inteira a proclamar: “Comer e beber é o que se leva desta vida!”. Por muito que a esposa o advertisse: “Ainda te vais arrepender… Quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga!”.

Manelinho Gonçalves Boca Aberta foi um homem dedicado em regime de internato intensivo à arte do copo e do petisco. Para ele, uma galinha era um sinónimo de arroz de cabidela. Um pato era um arroz à espera de ir ao forno. Uma perdiz só está bem voando para dentro de um tacho a fim de ser estufada em vinho branco. Tordos querem-se fritos. Lebres pedem-se guisadas com feijão branco e cogumelos. Coelhos só à caçador. Chouriços, paios, presuntos, linguiças, morcelas, alheiras, toucinhos, solicitam fatias finas de pão devidamente acompanhadas por azeitonas salgadas quanto baste. Queijos, há os frescos, os de cura, os de meia cura e os de entorna para os quais felizmente se inventou o vinho com o objetivo de equilibrar a intensidade do palato no céu da boca. Quando Manelinho acariciava a sua volumosa cavidade abdominal, sentia um inusitado conforto: “É o que se leva desta vida”.

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Festas de aniversários de amigos, de desconhecidos, casamentos, batizados, festas da aldeia em honra do padroeiro, festas da vila vizinha em honra da padroeira, matanças do porco, da vitela, da vaca e do seu marido, o boi, a todas se apresentava de apetite declarado. Se uns iam à igreja rezar pela proteção divina, Boca Aberta fazia romarias a qualquer taberna para orar em nome do petisco, do vinho e do espírito santo. A partir de meia garrafa, começava a cantoria. Os homens, de alma aberta e garganta escancarada, de olhos fechados e de vinho no sangue, entoavam tristezas e sonhos, trigais e horizontes enquanto o tempo passava sem hora nem destino.

Quando já tomado por algum desequilíbrio chegava a casa, a esposa insistia: “An- das a cavar uma cova para o teu caixão…”. Não fazia caso.

Vieram os primeiros sintomas pela urina. Avermelhada. Posteriormente as dores de barriga. Cólicas intestinais e febres repentinas. Não fez caso. Continuou. A visão turva, dificuldade respiratória, coração cansado… Não fez caso. Continuou. Assim se sentia feliz. Então depois de consumir garrafa e meia nem sentia as indicações que o corpo lhe estava a transmitir. Amofinava os indícios da doença inebriando a razão. Assim decorriam os dias e as noites, até que numa os gritos foram tão altos e agudos, que sua esposa não teve mais remédio senão o de chamar a ambulância.

O prognóstico não era bom, o diagnóstico afigurava-se pior.

Marcaram-lhe consultas da especialidade em Lisboa. Tantas eram as patologias, que aqui não seria possível prestar os cuidados necessários para a maléfica situação em que se encontrava.

Mas é o quê, senhor doutor? Ainda perguntou, visivelmente assustado. O que é que eu tenho? Ao que o profissional de saúde lhe respondeu: “Tudo, senhor Manel. Não percebo a sua perplexidade. Pelo que me chegou aos ouvidos, trabalhou com bastante afinco para chegar a esta débil situação. Vou-lhe prescrever um vasto conjunto de exames. Quando tiver os resultados procure os melhores especialistas para todos os seus excessos”. Agora era o dia indesejado. Chegara a hora de ir às consultas. A esposa não o quis acompanhar, castigando-o assim pelo seu desmazelo e pelos ouvidos moucos que fizera a todas as suas advertências. Manelinho Gonçalves Boca Aberta, na estação dos comboios em Beja, provou o sabor da solidão como nunca provara até então. Às 08h22, hora de partida para Lisboa, sentiu que a estação era o maior local do mundo. Não pregara olho a noite toda. Hoje seria o frente a frente com todos eles. O urologista, o dos intestinos, o do estômago, o do coração… Mais houvesse, a mais iria. Tinha um pressentimento de que assim que chegasse ao hospital na capital do império periférico, iria entrar para um ringue de boxe onde os médicos especialistas seriam os adversários, e todos eles tinham o rosto de sua esposa. E por cada copo bebido, por cada abuso cometido iria levar uma punhada na cara. E de cada vez que sofria o impacto nas bochechas, saíam-lhe da boca em voo livre e aberto todas as galinhas e perdizes que tinha degustado prazerosamente. Bom dia para aqui, bom dia para ali, mas a ninguém respondia com uma cordial saudação. Não ouvia os outros passageiros. O medo de uma coisa ruim ausentou-o da boa educação. Numa mão, meia dúzia de envelopes com os resultados. Na outra, a aliança de casamento, impossível de sair do dedo. Pois o que engordara já não permitia retirar a dita cuja. Pensava no casamento e como, em troca de umas moelas em molho de tomate e de uns branquinhos fresquinhos, se ausentara dos seus deveres conjugais por tempo indeterminado. A voz dela ressoava-lhe dentro da cabeça, da alma, do coração. Os raspanetes da esposa inundavam-lhe o espírito. Mas, apesar de tudo, um sorriso acendeu-se-lhe no rosto. No altifalante da estação anunciava-se: “Excelentíssimos passageiros, por motivo de greve dos maquinistas, não será possível efetuar qualquer deslocação. A CP Comboios de Portugal pede desculpa pelos incómodos causados”. Manelinho Gonçalves Boca Aberta pensou: “Ainda não é hoje que me partem o focinho!”.

Saiu da estação e dirigiu-se à taberna do costume. Sem medo no seu andar e tremendamente solidário com as reivindicações dos motoristas de comboios.

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