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Crónicas de um comboio escalfado IX - Jorge Serafim
from Revista APAT 133
by Apat
Crónica de um comboio escalfado IX
Partir e deixar-se ficar a contemplar a paisagem. Vários cenários se desenrolam lá fora. Como um tapete que se estende à nossa passagem. Sucedem-se planícies, serras, mar, cidades, aldeias, montados, olivais, árvores de frutos, plantas silvestres, cidades, aldeias, lugares despovoados e um céu que se vai desenhando até ao seu destino. Os olhos fixos no horizonte e o espírito adormecido neste embalo proporcionado por aquele a que os índios na América do Norte chamavam de “O Cavalo de Ferro”. O tempo suspende-se e o pensamento ausenta-se para parte incerta. É a terapia de uma viagem. A capacidade de nos perdermos no detalhe, no pequeno pormenor ou em algo ao qual anteriormente nunca demos importância. Os olhos começam novamente a ver, a descodificar o supostamente insignificante. A interpretar o desconhecido. Observando pela janela parece que estamos constantemente a ver um filme. Do início até ao término da viagem, o filme poderia intitular-se “Horizonte Contínuo”. Várias correntes cinematográficas acontecem diante dos nossos olhos. Filme italiano dos anos cinquenta, quando as famílias se despedem ruidosas em abraços demorados extremamente apertados, como se fosse a última vez que se vissem nesta vida, e até o comboio se atrever a partir mantêm-se junto à carruagem onde está sentado o familiar (universidade, emigração, profissão) para agarrar com unhas e dentes o último aceno, o último beijo enviado pela palma da mão. E as lágrimas humedecendo de dor e saudade o coração fragilizado. Filme francês transversal às épocas, casal que se beija perdidamente. Febre de boca com boca, corações ardendo um no outro, mãos dadas no presente para entrelaçarem o futuro na alma. E o beijo incendiando dois destinos nem ouve o apitar que sinaliza a hora de partida. É o aviso duro do revisor que os desperta e separa. Ficam represados os dois corações no paladar do último toque. Fotografia revelada eternamente na memória de cada um quando à distância recordarem a partida que os partiu. De fundo, uma canção de Edith Piaf complementa e aprofunda a densidade da cena. Filme americano dos anos decorrentes, as cidades a acontecerem no seu dia a dia. Corrupio de gente a sair de casa, a entrar no comércio, a apanhar a carruagem para chegar a horas ao emprego. Conversas matinais, cumprimentos banais, sorrisos cúmplices, passageiros sonolentos que arrecadam cada possível segundo para continuar a descansar o corpo. Tentar retemperar ao máximo as noites mal dormidas. Cigarros fumados sofregamente. Terapia que se apaga na biqueira do andamento. Veem-se carros e camiões a circularem em diversas direções. Assemelham-se a uma geometria descritiva da economia diária. Cruzamento de linhas, retas, traços e circunferências com destinos ora cruzados, ora afastados, ora interrompidos. Em cada paragem um novo episódio da série normal da vida. Filme iraniano dos anos noventa, a paisagem apresenta-se plena de nuances e sem pressa de ser apreciada detalhadamente. Parece que somos a personagem que caminha e às vezes corre sozinha por aquelas telas naturais, intemporais. Sentimo-nos o protagonista que se apropriou daquele castelo em Noudor, mesmo no meio do Tejo. Que é proprietário particular de uma praia de água azul tropical na Fuzeta. Que na baía da Meia Praia, em Lagos, é “A menina do Mar” da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen. Que desfruta a sombra de uma azinheira no chamado país das uvas (Vidigueira/Cuba/ Alvito) enquanto o ritmo do campo acon-
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Jorge Serafim Humorista

tece sem urgência sentindo na alma como as flores perfumam de aromas essenciais todas as viagens de uma vida. Filme japonês de qualquer altura, o céu! O infinito céu. Pintado sucessivamente em tons de roteiro. Paleta de pensamentos e sentimentos que ocorrem através do mesmo olhar. Viagem profundamente interna. Num itinerário o céu não se altera, acrescenta-se. Preenche-se de matizes. Perdemos o olhar num quadro ininterrupto. Pinceladas sem paragens, linCguagem visual, mas decididamente atrevida. Provocação da Mnormalidade. Tentamos, afeiçoados, adivinhar os desenhos que as nuvens fazem ao sabor do vento. Infinidade de abstraY CMtos aos quais tentamos atribuir uma forma e um significado MYconcreto. Consciência lúdica de que, afinal, a maior beleza do mundo está à mão de apanhar e de semear. Damos por nós CY a querer voar com os pássaros. A invejá-los por voarem tão CMY livres. Queríamos estar com eles a fazer bailados por aquele K mar de céu afora. Sem restrições nem contrições. Apenas bater as asas, libertos das normas regularizadoras, dos horários condicionantes, das regras desregradas… Usufruir do tempo e do espaço sem vedações nem cancelas. Filme português, transversal a qualquer dia. Influência por certo de Manuel de Oliveira. Tudo o que está para acontecer não se consegue tecer. Imobilidade condicionada. Cenários eternamente fixos em algo que não decorre. Apenas expressões nalguns rostos graníticos. Conformismo adaptado às circunstâncias. A impaciência já não explode. Nos diálogos, os olhares já não se cruzam. As perguntas são desabafos, as respostas são consolações. As malas e outras bagagens pousadas no chão tornam-se parte do mobiliário urbano da estação. Dá a sensação de que sempre ali estiveram, especadas. Um grito que solicita atenção. Existo para ser levada, para guardar a tua intimidade dentro de mim. Agarra-me! Dá-me a tua mão e leva-me a passear… Segura na minha asa como um carinho. Aperta-me junto a ti! Mas… O filme não se desenvolve. A viagem não começa. E, afinal, qual o motivo de hoje para continuarmos aqui especados na estação? Atropelamento? Avaria no motor? Acidente com outra viatura? Descarrilamento? Por que é que hoje a automotora não arranca? Greve! E não avisaram?

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