A FABRICAÇÃO DA PLEBE SOB A PERSPECTIVA DE SÊNECA1 Luciane Munhoz de Omena
Conhecemos o universo da plebe, sobretudo, por um viés elitizado. Sêneca, membro da aristocracia, retratava a plebe como uma multitudo inconstante e irracional. O filósofo mantinha por ela um profundo desprezo e a classificava como vulgus, retratando-a pelo anonimato e, por vezes, adjetivandoa como sordida plebs, imperita multitudo e credulum vulgus,2 por contraposição à elite, ordem senatorial, eqüestre, corte, identificada por nomes como Crasso, Catão, Julio César, Pompeu, etc. A plebe exercia ofícios como artesão, comerciante, cabeleireiro, cafetão, porteiro, taberneiro, entre outros. Para Sêneca, tais atividades não eram honrosas, pois não possibilitavam o engrandecimento da alma por meio da virtuosidade, assim como o estudo da filosofia. Tínhamos, nestes ofícios, não apenas desprezo, mas sim um retrato de como a plebe vivia em seu cotidiano, mantendo-se de atividades rendosas e não sobrevivendo apenas de pão e circo, visão estereotipada, que foi construída ao longo da História.3 Sêneca relatava desde os vendedores de salsichas nos balneários, pequenos comerciantes, até o comércio de iguarias suntuosas destinado à aristocracia romana (Ad Paulinum de Brevitate Vitae, De Constantia Sapientis, De Providentia, Epistulae Morales).
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Utilizamos o conceito de fabricação – da imagem de Luís XIV – estudado por Peter Burke. A palavra designa um processo, e “sugere a importância dos efeitos dos meios de comunicação no mundo, a importância do que foi chamado de ‘a feitura de um grande homem’ ou a ‘construção simbólica da autoridade’” (BURKE, 1994, p. 22). Colocaremos, em evidência, o retrato, a imagem e o processo pelo qual Sêneca – em obras como De Clementia, Epistulae Morales e Diui Claudii Apocolocyntosis – projetava o poder do princeps e sua correlação com a plebe. 2 Sêneca apresentava dois binômios: plebe X elite e plebe X liberto. O filósofo não posicionava o liberto como sendo um elemento da plebe. Citemos in extenso: “E, por enquanto, até estou falando das canalizações da plebe: que não dizer quando me referir aos balneários dos libertos!” (Ep. Mor. 86, 6-7-8). Sêneca esclarecia os motivos pelos quais identificava plebe e libertos por diferenciadas categorias. De acordo com suas palavras: “A natureza me aconselha a ser útil a todos: se forem livres ou escravos, ingenui ou libertos, livres por direito ou por amizade, que diferença faz? Onde existir um homem, existirá a oportunidade de fazer o bem” (De Vita Beata XXIV, 3). O filósofo afirmava que as hierarquias sociais não teriam sentido frente à oportunidade de se fazer o bem, embora explicitasse dois importantes binômios: escravidão x liberdade e ingenui x libertos. Esta hierarquização, explicitada a partir dos binômios, explicava o cerne da questão: a plebe faz parte do grupo de indivíduos livres por nascimento, enquanto, libertus era o grupo livre por direito ou por amizade. O sujeito, ainda que tivesse conquistado a liberdade, continuava com a mácula da escravidão, por isso, o filósofo da stoa referia-se ao binômio da liberdade e da escravidão. Tratava-se da relevância do status social, descender de um homem livre. A plebe, mesmo sendo de origem, livre era considerada um grupo de segunda ordem. Sêneca demonstrava o desprezo no momento em que criticava os estudiosos por quererem saber os motivos pelos quais a plebe se afastava do monte Aventino. Ou, quando afirmava: “mas de um daqueles de Segunda classe a quem Ovídio chama ‘a plebe divina’” (Ep. Mor. 110, 1). Na obra Consolatio ad Polybium, aconselhava o liberto de Cláudio, dizendo: “nenhuma ação plebéia, nenhuma ação humilde te convém” (Consolatio ad Polybium IV, 2). Qual seria, então, esta ação? A capacidade de sempre assediar o vestíbulo do outro (Consolatio ad Polybium VI, 2). Sêneca fez um comentário semelhante nas Epistulae Morales, afirmando que “os clientes não buscam nele senão o mesmo que buscam num lago: beber até fartar e deixar a água suja! O vulgo julgá-lo-á um homem sem valor, sem atividade” (Ep. Mor. 36, 2). A plebe estaria somente disposta a alcançar a riqueza e os favores obtidos com as relações de clientela. 3 Era reproduzido, quase num consenso absoluto, que a plebe vivia à margem da sociedade e era sustentada pela elite. Alföldy, por exemplo, desenhava uma plebs urbana rodeada de divertimentos e benefícios proporcionados pelas doações de cidadãos ricos. Para ele, relevante era igualmente o fato de a plebs urbana de Roma ser regularmente abastecida de cereais pelo imperador e, nas cidades restantes, por particulares ricos. As possibilidades de divertimentos que as cidades ofereciam, especialmente, os anfiteatros, circos e teatros, eram financiados pelo imperador de Roma e pelos cidadãos ricos de outras cidades (ALFÖLDY, 1987, p. 150). A plebs era vista, portanto, como uma multidão de analfabetos, vivendo das redistribuições promovidas pelos ricos e pelo Estado, isto é, eram percebidos como uma massa grosseira controlada pela elite por meio de sua política do Panem et Circenses (GAGÉ, 1964; ROSTOVTZEFF, 1967; VEYNE,1976; WALLACE-HADRIL, 1990).
Como é possível que essa massa, que Sêneca dizia ser composta das “pessoas mais vis” (De Providentia V, 4) pudesse influenciar, mesmo indiretamente – expressando opiniões, por exemplo –, as ações políticas do ImperatorI? Para Sêneca, essa interação, em um primeiro momento, tornava-se, legítima pelo fato de o homem viver em sociedade. Como não conseguiria imaginar-se fora do núcleo social, criava estratégias de sobrevivência que privilegiavam o compartilhamento de valores. Para ele: Não é possível alguém viver feliz se apenas se preocupar consigo, se reduzir tudo às suas próprias conveniências: tem de viver para os outros quem quiser viver para si mesmo. A convivência – observada com nobre e contínuo empenho – que nos insere como homens entre outros homens e admite a existência de algo comum a todo o gênero humano, é da maior importância (Ep. Mor. XLVIII, 2/3). A partir do compartilhamento de valores sociais, evidenciava-se, igualmente, a necessidade do soberano sustentar-se pela popularidade e pelo apoio do populus. A manutenção de sua potestas deveria ser negociada e isto incluía elementos tanto da aristocracia quanto dos setores subalternos. A auto-sustentação do governante dependia do carisma, pois pertencia ao centro e, por esta razão, tornava-se imprescindível à sociedade. Não era sem razão que Sêneca exortava a magnificência e a aproximação do imperator aos seus subordinados. Vejamos: “afável de conversa, fácil à aproximação e ao acesso, com fisionomia que cativa, sobretudo as massas, amável, propenso às petições legítimas (...) ele é amado, defendido e respeitado pela nação inteira” (De Clem. III, XI, 4) .4 O filósofo da stoa compreendia a importância da plebe para a estabilização e segurança do princeps, aconselhava Nero a cativar, sobretudo às massas (De Clem. III, XI, 4). Sabia que todos esperavam o seu quinhão, desde os poderosos até os insignificantes, pois “cada um sente e espera menor ou maior bem de acordo com a porção de sua sorte” (De Clem. Pr. I, 9). A opinião pública era uma poderosa arma para destruir o poder de qualquer autoridade. Daí a atenção de Sêneca com as exigências da multitudo.5 Ele escrevia da seguinte forma: “não fazer qualquer coisa para a qual viesse a desejar o perdão da opinião pública, o juiz mais imparcial dos príncipes” (Ad Marciam de Consolatione IV, 3). Em outro momento, “é indubitável que aquele que despreza os ataques que partem da multidão se coloca mais alto do que ela” (De Ira III, XXV, 3). Sêneca não compreendia como essa multitudo, composta por indivíduos pouco cultivados, desinteressados e vulgares, agia ou não de forma conjunta (FAVERSANI, 2000, p. 143). Em Roma, a multidão, de modo geral, expressava a sua cólera destruindo monumentos, estátuas e até mesmo prédios públicos e, ao mesmo tempo, as ruas estreitas e os edifícios altos dificultavam a supressão dos motins. Nero, quando decidiu separar-se de Otávia – filha de Cláudio – para casar-se com Popéia, ocasionou insatisfação entre a população de Roma. A plebe derrubou as estátuas da pretendente e aquelas da esposa eram carregadas nos braços pela plebs (Tácito, Anais, 61).
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A manutenção do poder requereria um conjunto de responsabilidades e obrigações do governante, entre as quais, assegurar a paz e a prosperidade dos homens. Para Sêneca, o soberano sapiente “jamais se compadecerá, mas socorrerá e será útil. Nasceu para a assistência comum e para o bem público, do qual dará a cada um a sua parte” (De Clem. II, IV, 3). Em nome do bem público e de um estado de segurança, o filósofo justificava a legalidade e, por conseqüência, a existência do poder. Sêneca pensava o seguinte quadro: “é a sua própria preservação que os homens amam quando conduzem legiões, às dezenas, à batalha a favor de um só homem, quando acorrem às primeiras linhas de frente e apresentam o peito aos ferimentos para não deixar retroceder as insígnias de seu imperador” (De Clem. III, II, 1). 5
O imperator utilizava a paz, a prosperidade e a idéia de unidade imperial como ícones de propaganda. Esta era definida como “um conjunto de símbolos, idéias e imagens que eram divulgadas no território imperial, mediante a utilização de vários suportes, formando em seu conjunto a imagética imperial (...) o princeps dependia de uma adesão mínima dos soldados, das elites das províncias e dos membros da plebe de Roma” (GONÇALVES, 2002, pp. 13-14).
A plebe, neste mesmo Principado, armada com paus e pedras, revoltava-se contra a decisão do Senado em condenar quatrocentos escravos pelo fato de um deles ter assassinado o seu senhor, Pedânio Segundo. Colocava-se em vigor um velho costume transformado em lei sob Augusto, isto é, eram executados todos os escravos que viviam sob o mesmo teto do assassino (Tácito, Anais, XIV, 44). Há, concomitantemente, manifestações que não eram concebidas por um caráter violento. Temos, por exemplo, no período de Augusto, que a falta de alimentos provocava veementes discussões ocorridas nas ruas, embora não tenha ocorrido quebra-quebra. Sêneca compreendia que os indivíduos em constante necessidade não aceitavam e nem compreendiam as crises de abastecimento. Como retratava para o prefeito da anona: “Tu lidas com o ventre dos homens! O povo esfaimado não dá ouvidos à razão, não se aplaca pela moderação, nem se dobra a nenhum argumento” (Ad Paulinum de Brevitate Vitae XVIII, 5). Além da diminuição de alimentos que gerava descontrole, temos, igualmente, reivindicações pelos divertimentos públicos e pela crise de habitações – provocadas pelos incêndios, pelas inundações do Tibre –, a cobrança rigorosa de impostos, o aumento dos preços dos aluguéis, etc., fatos que provocavam uma grande insatisfação popular. O soberano utilizava os espetáculos oficiais para obter apoio da plebe, pois os jogos desempenhavam funções político-sociais. Eram promovidos tanto pelo imperador quanto pelos magistrados, sendo considerados instrumentos de controle sobre as massas urbanas. A platéia podia, no entanto, tanto apoiar as autoridades quanto fazer reivindicações de diversas ordens aos promotores presentes. Daí a relevância de sua participação no circo onde “o gladiador pode jogar e apelar para a clemência do público” (Ep. Mor. 37, 2) e a garantia de que suas reivindicações seriam cumpridas. Sêneca dava a seguinte recomendação ao homem precavido: “assim que vê começar a distribuição de presentes, se retira do teatro, pois sabe que muito terá de ceder para conseguir um pequeno favor” (Ep. Mor. 74, 7). Era no circo e no anfiteatro que se demonstravam desejos e protestos de toda a ordem como uma prática social.6 Essas agitações, de acordo com Sêneca, representavam o desejo do povo pela violência. Se assim não fosse, o homem não seria exposto à morte “apenas para se servir de divertimento; já era sacrilégio treinar homens para o circo e ser feridos, agora atiramo-los para o circo nus e inertes, bastanos a simples morte como espetáculo!” (Ep. Mor. 95, 33). A violência incontida gerava um medo permanente e, sobre isso, o filósofo, no tratado De Clementia, fazia a seguinte afirmação: “Outrora, decidiu-se por um parecer do senado que um sinal na roupa distinguiria os escravos dos homens livres. Em seguida, ficou evidente quanto perigo nos ameaçaria se os nossos escravos começassem a nos enumerar” (De Clem. III, XXII, 1). O poder que a multitudo possuía em agir pela violência, a constante repressão realizada pelos membros da elite e a consciência de que estavam em maior número eram condimentos relevantes para que o princeps tratasse a plebs com mais tolerância. Aos olhos de Sêneca, obedecia-se freqüentemente ao que comanda com mais tolerância. “O espírito humano é rebelde por natureza e, pelejando contra o que lhe é contrário e árduo, acompanha mais facilmente do que se deixa conduzir” (De Clem. III, XXII, 2). O princeps, na cidade de Roma, deveria voltar-se, portanto, diretamente às reivindicações da plebe, por três motivos: primeiro, porque ela era vista como uma massa inconstante e, por este motivo, disposta a qualquer tipo de ação, violenta ou não; segundo, como tutor da ordem pública, era dever o princeps evitar qualquer desordem social ou política; e em terceiro, Roma era considerada centro do poder imperial e o soberano deveria, assim, manter o equilíbrio social, pois esta “cidade terá deixado de dominar no mesmo momento em que tiver deixado de prestar obediência” (De Clem. III, II, 2).
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Essas agitações eram tão visíveis que, no Principado de Tibério, a crise de abastecimento e carestia de cereais provocou protestos por parte da plebe. Segundo Tácito, “governando ainda os mesmos cônsules esteve para haver uma sedição por causa da escassez dos víveres; e o povo por muitos dias fez grande barulho no teatro, dizendo contra o imperador mil coisas que nunca até ali se tinha ouvido” (Anais VI, XIII).
CONCLUSÃO Revelava-se, no discurso senequiano, o recurso do soberano em apoiar-se tanto nas camadas elitizadas quanto nas populares. O governante precisava manter-se no poder e, para isto, deveria unirse aos preceitos da moderação. Evitaria assim a violência, protegendo os mais fracos dos mais fortes e discerniria o que tivesse ou não utilidade. Embora pudesse consultar os cidadãos, o soberano estava no centro das interações sociais; dele dependiam a paz e o equilíbrio do Império, para assim, garantir a preservação da ordem social e, portanto, as proteções e os direitos que ela pressupõe. A plebe não pode ser interpretada como uma massa despolitizada, ociosa e entregue aos prazeres do luxo. As manifestações ocorridas nas ruas e nos teatros representavam as exigências políticas. Não era possível restringir a dinâmica social a um espaço harmonioso e tranqüilo – cujas possíveis tensões dificilmente eclodiriam em conflitos declarados – no qual o príncipe e a elite manteriam o controle e o domínio públicos. Caberia ao soberano, segundo Sêneca, garantir os privilégios da multitudo por ser in commune auxilium natus ac bonum publicum (De Clem. II, IV, 3). Sobre a autora: Doutoranda no programa de pós-graduação em História Social da FFLCH/USP. BIBLIOGRAFIA: ALFÖLDY, G. História social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. BALANDIER, G. O poder em cena. Brasília: UNB, 1982. BRAREN, I. Da Clemência de Sêneca. São Paulo, 1985. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. BURKE, P. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. BRUNT, P. A. La plebe romana. In: FINLEY, M. I. Estudios sobre historia antiqua. Madrid: Akal, 1981. CLAVEL-LÉVÉQUE, Monique. L’espace des jeux dans le monde romain, Ausfstieg Und Niedergang Der Römischen Welt. Berlin: Walter de Gruyter, II, 1986. FAVERSANI, F. A sociedade em Sêneca. São Paulo, 2000. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. GONÇALVES, A. T. M. A construção da imagem Imperial: formas de propaganda nos governos de Septímo Severo e Caracala. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios em Antropologia interpretativa. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. GUARINELLO, N. L.; JOLY, F. D. Ética e ambigüidade no principado de Nero. In: BENOIT, H.; FUNARI, P. P. A. (orgs.). Ética e Política no mundo antigo. Campinas: Unicamp, 2001. GAGÉ, J. Les classes sociales dans l’empire romain. Paris: Payot, 1964. KANTOROWICZ, E. H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. OMENA, L. M. de. A centralização do poder nas obras De Clementia e Diui Claudii Apocolocyntosis, de Sêneca. Campinas, 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas. _____. O poder do imperator sob a perspectiva de Sêneca. ALPHA, Patos de Minas, n. 05, ano 05, 2004. SÊNECA, L. A. De la Clémence. Trad. François Préchac. Paris: Les Belles Lettres, 1990. _____. Lettres a Lucilius. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1993.
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Reprodução artística de afrescos da cidade de Pompéia. As imagens retratam o cotidiano das cidades romanas. Pasquale D’Amelio Napoli. “Pompei”. 1895.
DISCURSOS INTOLERANTES: O LUGAR DA POLÍTICA NA EDUCAÇÃO RURAL E A REPRESENTAÇÃO DO CAMPONÊS ANALFABETO Claudia Moraes de Souza A década de 50 e os princípios dos anos 60 testemunharam o surgimento, em todo o continente americano, de um conjunto de iniciativas em educação de adultos e capacitação de um amplo contingente de trabalhadores, que naquele momento, compunham as surpreendentes estatísticas que revelavam os altíssimos índices de analfabetismo e baixa escolarização da população latino-americana. Neste contexto, a Educação Rural ganhou importante dimensão, gerando um conjunto de ações e projetos educacionais relacionados à capacitação individual e formação agrícola do trabalhador rural, que se espalharam pelos territórios americano e brasileiro. Este artigo trata da educação de trabalhadores rurais, buscando resgatar os preceitos dos projetos e das políticas públicas em Educação Rural e suas perspectivas políticas e culturais intolerantes. Em nosso entender, a construção conceitual acerca do analfabeto e do homem do campo, nos moldes da educação rural da década de 50, revela a intolerância aos valores sociais e ao modo de vida do homem rural, ou seja, um projeto de subordinação da cultura popular à cultura moderna. A representação elaborada acerca do camponês revela-nos a rejeição do arcabouço cultural do adulto analfabeto rural, concebendo-o como ícone do atraso econômico brasileiro e identificando-o como um empecilho à plena realização do desenvolvimento econômico necessário ao ingresso do território campestre na modernidade pretendida pelo processo capitalista. A forma intolerante de representação do camponês revela, na verdade, o lugar político que o Estado e as classes dominantes definiram para este grupo social na integração de excluídos ao projeto modernizador brasileiro. Propomos assim, um resgate das representações construídas acerca do analfabeto rural e uma discussão da intolerância cultural e política revelada no conteúdo da Educação Rural. Historicamente, as iniciativas acerca da Educação Rural brasileira não despontaram unicamente na década de 50. A difusão do ensino elementar entre adultos, com o intuito de promover a alfabetização em massa, tanto no campo quanto na cidade, teve uma primeira visibilidade nacional no período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial. Uma onda de diferenciados “nacionalismos” e fortes preocupações com as questões da “ordem social” levou a discussões da necessidade de combate ao “mal do analfabetismo” entre imigrantes, migrantes das cidades e a imensa população rural brasileira, estimulando ações voluntaristas de diferentes entidades representativas da sociedade – as ligas católicas, as ligas nacionalistas, o Exército Nacional – que, naquele momento, empreenderam ações de combate aos elevados índices estatísticos de analfabetismo de adultos, sem que, no entanto, estas ações atingissem repercussões eficazes sobre o problema. Até as duas primeiras décadas do século XX, podemos dizer que o debilitado processo de industrialização brasileira alimentava as características de um país rural em que a educação do homem do campo vinculava-se à fixação deste indivíduo à terra. Nas décadas de 10 e 20, a fixação do homem na terra era objetivo de parcas políticas educacionais – orientadas por concepções teóricas denominadas “ruralismo pedagógico”. 1
Em meados dos anos 20, passamos a perceber que um movimento reformador e modernizador da educação começava a se formar a partir das ações dos chamados “pioneiros da educação”. Este movimento, nas décadas seguintes, irá refletir-se nas ações governamentais e em políticas públicas implementadas pelos pioneiros quando dirigentes do sistema educacional do país – dentre eles, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Sampaio Dória. Podemos dizer que, apenas com o Governo Vargas foi que, pela primeira vez, um conjunto de políticas públicas convergentes permitiram a configuração do que poderíamos chamar de um sistema nacional de educação. Neste contexto, as perspectivas urbanas e industrializantes da Era Vargas evidenciaram para o Estado brasileiro a necessidade de uma intervenção orgânica no campo como função retificadora das debilidades da economia rural e, conseqüentemente, do homem rural, potencialmente transformado em mão-de-obra migrante carente de qualificação profissional. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, a difusão do ensino elementar nos países pobres – em especial a educação de jovens e adultos e a educação rural – sofreu acentuado processo de mudança. O contexto surgido da Guerra acirrou a centralidade pretendida pelos EUA no controle do pólo capitalista mundial, ao mesmo tempo em que informou ao mundo as fragilidades do sistema capitalista: pobreza, miséria social, analfabetismo, mortalidade infantil, fome, etc. A necessidade urgente de consolidação da democracia liberal representativa colocou o controle político-ideológico da América Latina como elemento fundamental do evento da bipolarização ideológica. As condições reveladoras do subdesenvolvimento e das desigualdades sociais entre os países ricos e a África, a Ásia e a América Latina foram irrestritamente condenadas, o que transformou os problemas do desenvolvimento desigual do capital, tais como a fome, a mortalidade infantil e o analfabetismo em “males” a serem combatidos acirradamente diante do “atraso” econômico da região. Desta maneira, a escolarização da população dos países pobres transformou-se em panacéia de organismos internacionais como UNESCO, OEA e CEPAL. A cooperação internacional apareceu como paradigma central das nações, que passaram a se “responsabilizar” pelo combate aos “males do atraso”. No campo educacional, diferentes atitudes cooperacionistas foram incentivadas pelos organismos internacionais em consonância com governos nacionais, como os do Brasil, do México, do Peru, da Venezuela, da Colômbia, dentre outros. O Projeto Principal para a América Latina e os Seminários Interamericanos de Educação, no quadro geral das atitudes cooperacionistas e reformadoras da realidade local, foram pontos de partida para a reorganização dos sistemas nacionais de educação, para o combate ao analfabetismo , para a ampliação dos níveis de escolarização e para a elaboração dos preceitos da educação das populações rurais e indígenas da América Latina. Em 1949, o Brasil foi escolhido como sede do Seminário Interamericano de Educação, devido ao acúmulo de um conjunto de iniciativas em educação de adultos de consumada significação no continente: o constante debate de idéias promovido pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP – fundado e dirigido por Lourenço Filho; a Campanha Nacional de Construção de Escolas Rurais; e, principalmente, a grande Campanha Nacional de Educação de Adultos e Adolescentes – CEAA – que, em 1947, transformou o país em referência internacional em matéria de alfabetização de jovens e adultos.1
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SOUZA, C. M. Nenhum brasileiro sem escola: projetos de educação de adultos do Estado desenvolvimentista. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
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Em se tratando da Educação Rural no Brasil, o Seminário Interamericano de Educação, promovido pela UNESCO e pela OEA em 1949, com sede no Rio de Janeiro, configurou-se como momento de reflexão, planejamento e sistematização de diretrizes que projetaram o conjunto inicial de práticas em Educação Rural estendidas pelos anos 50. Para nós, a busca das idéias originais do Seminário se faz importante, na medida em que, o entendimento dado ao problema do analfabetismo rural, revela, na verdade, o uso político da educação num projeto interventor e intolerante. Como objetivo geral, o Seminário estabeleceu para si o compromisso com a construção de uma “nova vida internacional”, com formação de uma “cultura americana”, com a estruturação política e econômica do continente, com a convivência civil e a participação democrática de todos no bem estar geral, além do compromisso central, que era o da incorporação das massas indígenas e rurais à vida nacional e o “cumprimento da missão histórica da América em construir uma pátria aberta a todos os perseguidos da terra”.2 A Educação Rural e Alfabetização de Adultos foram definidos como projetos de integração social, e o objetivo explícito era o da assimilação do indivíduo ou do grupo isolado (comunidades camponesas ou indígenas) “à cultura comum através da habilitação do adulto para atuação de forma construtiva na vida social”.3 Desta forma, o analfabetismo das populações indígenas e camponesas da América Latina foi visto como um empecilho à realização da missão histórica do continente, que, para os idealizadores do Seminário, seria o da “cooperação internacional” e construção de uma “cultura americana”. 4 Curioso foi notar também que o analfabetismo, nas concepções apresentadas pelos relatores do Seminário, seria um problema massivo devido à postura do próprio analfabeto, na medida em que a causa apontada como principal para os altos índices estatísticos foi o ausentismo, ou seja, a não freqüência à escola por parte da população analfabeta. O nível de vida das populações foi apontado como problema a ser enfrentado. No entanto, vencer o ausentismo – resistências da população à escola – seria o ponto principal da luta contra o analfabetismo. Como finalidades da Educação Rural e da alfabetização, o homem do campo deveria ser integrado ao meio social por meio de ações solidárias e cooperativistas e pela divisão do trabalho. Estudos da língua; estudos econômicos e sociais (as leis, o cooperacionismo); estudos da educação cívica (condutas sociais no trabalho, na família, no sindicato, etc.) e estudos da educação recreativa (com o papel de enobrecer o ócio) deveriam fomentar e direcionar as relações sociais do educando. Além disto, a formação técnica para o trabalho teria a finalidade de dar ao indivíduo “um status construtivo na sociedade”, adaptando-o às técnicas agrícolas modernas. A partir da análise das proposições do Seminário, nossa idéia central é a de que a Educação Rural – concebida como um projeto modernizador pelo pensamento conservador – foi parte de um mecanismo de intervenção sobre processos sociais e políticos em curso, quais sejam: a atualização histórica proposta pelo pacto burguês capitalista de modernização do Estado e do território brasileiro 5
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UNESCO/OEA/BRASIL. Seminarios Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951, p. 2. UNESCO/OEA/BRASIL. Seminarios Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951, p. 59. 4 UNESCO/OEA/BRASIL. Seminarios Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951, p. 99. 5 OLIVEIRA, F. Elegia para uma (re)ligião. São Paulo: Paz e Terra, 1981, cap. V. 3
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concomitantemente à irrupção, no campo, de um conjunto de manifestações e ações coletivas contestatórias do iminente processo de expulsão da terra ou da perda de direitos de trabalhadores rurais na exploração da terra para sobrevivência familiar. Assim, a Educação Rural relaciona-se à história do país, ou, ainda, do continente, como produto de uma nova dinâmica do capitalismo em desenvolvimento que desafiava o pólo modernizador a agrupar uma estrutura agrária caracterizada, dentre outras coisas, pelo predomínio do latifúndio, pelo atraso tecnológico e pela alta exploração do trabalho.6 No plano internacional, e inserida no contexto do pósguerra, a Educação Rural vinha assumindo papel significativo nas proposições modernizadoras relacionadas à manutenção da ordem democrática liberal, à educação para a paz e ao combate ao comunismo. Em nosso entender, no Brasil, a trajetória da educação rural inclui-se na dinâmica de modernização do campo assumindo um papel decisivo no processo de expropriação, proletarização e controle dos trabalhadores rurais. A modernização da produção no nordeste brasileiro, por exemplo, incentivou o processo de sindicalização em massa dos trabalhadores das zonas canavieiras, estimulou reivindicações no campo do trabalho ligadas à aplicação do Estatuto do Trabalhador Rural e, contraditoriamente, fez emergir as manifestações pela distribuição de terras encampadas pelas Ligas Camponesas.7 Esta aparente contradição revela-se, na verdade, como uma articulação entre capital e Estado, no sentido de disciplinarização do movimento de trabalhadores num processo que, inicialmente, contrapôs o latifúndio tradicional usineiro à ação modernizadora, mas que, posteriormente, beneficiou este mesmo latifundiário com o atrelamento do movimento de trabalhadores rurais à máquina e ao controle do Estado. Neste contexto, o papel da Educação rural foi o de criar as condições necessárias para a modernização da produção, na medida em que “modernizava” o homem do campo – preparando-o para as novas exigências do trabalho e da formação econômico-social e cultural – ao mesmo tempo em que combatia formas organizativas populares autônomas, como a ação das Ligas Camponesas. Das análises da documentação produzida pelo Seminário e de um conjunto de artigos sobre Educação Rural publicados entre 1944-1952 na Revista do INEP, podemos dizer que, a priori, a Educação Rural foi definida como um dos elementos centrais do processo modernizador do campo e do homem rural. Como elemento modernizador, esta modalidade educacional foi incorporada pelo desenvolvimentismo, tornando-se mecanismo de extrema importância nas políticas agrícolas do Estado – dentre elas, a política de reforma agrária –, estruturalmente necessárias para a modernização do capitalismo brasileiro. À guisa de conclusão, podemos dizer que o lugar da Educação Rural no processo de formação econômica e social brasileira articulou-se ao projeto de modernização conservadora, que visava a subordinação do campo ao processo de urbanização-industrialização; a regulamentação das relações sociais de produção no campo aos moldes do capitalismo; a homogeneização econômica do território nacional, eliminando as grandes desigualdades regionais; e a adaptação da população rural aos preceitos da cultura moderna.
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ANDRADE, M. C. Latifúndio e Reforma Agrária no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 59. MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1936, 3ª edição, cap. 1.
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Na tessitura histórica, o projeto educativo cedeu espaço aos “usos da política” no cotidiano. Desta forma, apontamos o tema da cultura popular e suas relações com o processo social da modernização agrária por meio dos projetos em Educação Rural, como fundamental para o entendimento do movimento modernizador da sociedade brasileira. Os projetos de Educação Rural da década de 50 – como a CNER (Campanha Nacional de Educação Rural) e as Escolas Rurais –, quando instalados em comunidades rurais das regiões “atrasadas” do Norte e do Nordeste, propunham-se a reconstruir o homem do campo, emoldurá-lo segundo novos preceitos, desconsiderando sua cultura, suas formas organizacionais e suas representações sociais. Apoiados em pressupostos teóricos e filosóficos liberais reformadores, agentes da Educação Rural instalaram-se nas comunidades rurais com proposições de reorganização social, política e cultural – introduzindo elementos estranhos às representações sociais dos camponeses (civismo, nacionalismo). Nestas ações revelam-se as assertivas autoritárias e intolerantes do projeto educacional em questão, que negava preceitos culturais existentes – no lazer, na vida familiar, nos pactos políticos do camponês – em prol de comportamentos pré-estabelecidos que regulamentariam novas relações sociais impostas pelo projeto nacional-desenvolvimentista. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, M. C. Latifúndio e Reforma Agrária no Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980. MARTINS, J. S. Os Camponeses e a Política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1936, 3ª edição. OLIVEIRA, F. Elegia para uma (re)ligião. São Paulo: Paz e Terra, 1981. SOUZA, C. M. Nenhum brasileiro sem escola: projetos de educação de adultos do Estado desenvolvimentista. São Paulo, 1999. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. UNESCO/OEA/BRASIL. Seminários Interamericanos de Educación. Washington D. C., 1951. Sobre a autora: Claudia Moraes de Souza é doutoranda em História Social, professora de Teoria da História da Unifieo e pesquisadora do LEI.
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Escola mista da Fazenda América. Relatório da Delegacia Regional de Ensino de Bauru. Dezembro 1933. Nº 7020/DAESP.
Escola Mista Rural. Relatório da Delegacia Regional de Ensino de Bauru. Dezembro 1933. Nº 7020/ DAESP. 6
Imagem encontrada no Relat贸rio da Delegacia Regional de Ensino de Bauru. Dezembro 1933. N潞 7020/DAESP.
Imagem encontrada no Relat贸rio da Delegacia Regional de Ensino de Bauru. Dezembro 1933. N潞 7020/DAESP. 7
Imagem encontrada no Relat贸rio da Delegacia Regional de Ensino de Bauru. Dezembro 1933. N潞 7020/DAESP.
Escola rural da Fazenda Nogueira. Relat贸rio da Delegacia Regional de Ensino de Bauru. Dezembro 1933. N潞 7020/DAESP. 8
Conflitos Sexuais, Medicina e Direito: Piracicaba nos Primeiros Tempos da República Daniela Meira Cotrim Meu querido predileto João1 você não fique zangado comigo hoje nós precisamos ir à cadeia. Você não me abandone que não deixo ficar preso. João pelo amor de Deus você não me deixe que eu queria e quero bem você peço, por favor, você não me abandone que eu te salvo da prisão hoje se eu não te salvar é bem capaz de você ficar preso. Por isso você não deixe de mim que te salvo. E vamos fazer as pazes outra vez que eu não deixo você ficar preso. Não me abandone João pelo amor de Deus. Ana Maria de Carvalho 2 Essa carta, escrita por Ana Maria de Carvalho em 1917, poderia ter sido encaminhada a João Couto, se a polícia não a tivesse tomado como parte integrante do processo aberto contra o referido, acusado de crime de defloramento. A prática descrita nesse documento histórico nos permite afirmar que as denúncias desse tipo de crime sexual eram recorrentes entre a maior parte da classe trabalhadora de Piracicaba, que se envolvia em conflitos sobre sexualidade no período abordado. Além de ser algo recorrente na sociedade piracicabana dessa época, os crimes de defloramento eram tema de debates científicos e jurídicos, que preocupavam os profissionais da saúde e da justiça, principalmente em função do seu ideário civilizatório direcionado ao Brasil. Essa elite intelectualizada pretendia auxiliar o Estado brasileiro no desenvolvimento de políticas de controle social, pautadas pela noção de que o Brasil deveria ingressar na modernidade tendo como parâmetro a civilização européia, que tinha na defesa da família a sustentação das nações ditas civilizadas. Para proteger as famílias brasileiras da barbárie, a elite criou mecanismos, inclusive no campo da lei, que pudessem reprimir comportamentos concebidos como imorais. Conflitos como o de João Couto e Ana Maria de Carvalho eram tidos como objeto de ciência por essa elite. Entretanto, nesse texto, objetivamos ressaltar as ações desses atores sociais que, em grande medida, contrariavam as exigências morais da sociedade expressas na lei. A partir da análise de dezoito processos criminais pertencentes ao Fórum da Comarca de Piracicaba e localizados no Centro Cultural Martha Watts da Unimep, buscamos desenvolver uma discussão sobre as relações entre médicos, juristas e instituições republicanas no que se refere aos conflitos sexuais desencadeados em Piracicaba nas primeiras décadas do século XX. Porém, mais importante é enfatizar as representações que os diferentes sujeitos históricos elaboravam sobre a sexualidade e em que medida essas representações eram remetidas ou não à lei ou dela se distanciavam, afirmando outros valores morais. Eram diversos os motivos que levavam esses indivíduos a recorrer à justiça; era um verdadeiro mecanismo estratégico para a realização do casamento ou de outros objetivos. Em suma, nosso propósito é estabelecer um diálogo entre as fontes históricas e a historiografia sobre o tema, ressaltando a problemática das relações de gênero, classe social e poder no período em questão. Os valores morais há muito eram tidos como objetos de ciência. Os filósofos enciclopedistas do século XVIII já se preocupavam com a definição de parâmetros de conduta moral direcionados aos indivíduos pertencentes à sociedade da época. O conhecimento era concebido a partir da racionaliza-
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Os processos-crimes citados nesse texto contam com nomes fictícios. AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra João Couto, caixa 6-B, 1917. 2
ção do pensamento religioso que representava – segundo alguns iluministas, como Diderot e D’Alembert –, o atraso da civilização. A maior inquietação desses ilustrados era determinar as bases da moralidade numa sociedade na qual a religião, de acordo com alguns estudiosos, já não era considerada capaz de orientar o progresso europeu.3 A ciência, nesses termos, durante todo século XIX, objetivou responder as indagações dos iluministas, institucionalizando a produção do conhecimento. Foi no espaço acadêmico que essa problemática se desenvolveu com maior intensidade.4 Os setores intelectualizados da sociedade brasileira, que formavam a elite científica, mobilizaram-se a fim de estabelecer medidas de controle social, formuladas a partir de princípios morais. A repressão sexual em relação à classe trabalhadora de Piracicaba é um exemplo desse controle social. No Brasil, a tradição cristã, os ideais iluministas do século XVIII e os ideais cientificistas do século XIX conviveram harmonicamente no processo de definição da honra como valor social. Os juristas e os médicos brasileiros buscavam se instrumentalizar do conhecimento científico, sustentando, no caso de crimes de defloramento, meios para averiguação dessa prática sexual ilícita e moralmente condenável. 5 Os defloramentos praticados em Piracicaba, no início do século XX, eram julgados por essa elite a partir da prova material do crime: a virgindade feminina. Porém, esse critério não era objetivo, pois o que estava em questão era a avaliação do comportamento feminino, que poderia ser considerado honesto ou desonesto. Na maioria dos processos analisados, os juristas objetivavam moralizar as famílias da classe trabalhadora piracicabana. A justiça era um recurso propício para os propósitos dessas famílias: promover o casamento para reparar o mal causado. Mas, o casamento era efetivado se a condição social e a honestidade feminina fossem quesitos favoráveis à ofendida. No caso do defloramento de Sônia de França e Souza, a preocupação jurídica com a moralização das famílias é evidente, vejamos: Há ainda nos autos prova exuberante de que Sônia era noiva e tinha já casamento marcado com Rafael da Silva. Essas provas são os depoimentos das testemunhas e principalmente a certidão fornecida pelo cartório do Registro Civil (...). As testemunhas todas atestam o bom comportamento de Sônia e todas afirmam que Sônia e Rafael eram namorados de muito tempo; fato aliás, público e notório no bairro em que residem (...). Acreditamos na culpabilidade de Rafael da Silva (...). A sua própria atitude fugindo no dia e pouco antes da hora marcada para o seu casamento, o denuncia.6 Esses crimes ocorriam, em grande medida, a partir de promessas de casamento feitas pelo homem à mulher e/ou a sua família, servindo como argumento para o consentimento da mulher à relação sexual. A presença de valores morais definidos socialmente era tema de divergências entre os juristas, entretanto, a moral cristã e a cientificidade eram mecanismos que estabeleciam modelos de análise do atraso brasileiro em relação às nações européias, sendo a honestidade feminina o símbolo da civilização. Nas décadas de 1920/1930, as divergências e os debates entre os juristas se acentuaram. Em Piracicaba, as mulheres envolvidas nos processos já não apresentavam comportamentos condizentes com a moral tradicional. A moralização e a modernização das famílias brasileiras eram os objetivos que deveriam ser conquistados por essa elite intelectualizada e, para isso, era mister empreender medidas
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DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, pp. 247-270. 4 HOBSBAWM, Eric. A ciência. In: A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 301-320. 5 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. 6 AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra Rafael da Silva, caixa 11-A, 1926.
de higienização moral dos indivíduos aptos ao casamento para constituição de famílias civilizadas. O elemento material do crime de defloramento – a virgindade feminina –, não era mais considerado prova da honestidade da mulher, mas o comportamento moral cerceado pelos padrões estabelecidos socialmente. As mulheres que se aproximavam de um comportamento “moderno” representavam, para essa elite intelectualizada, uma ameaça aos valores da família e da civilização, pois sua liberdade era tomada como enfrentamento aos valores morais. O caso amoroso entre Ana Maria de Carvalho e João Couto nos auxilia no entendimento da relação dos juristas com o comportamento “moderno” de algumas mulheres. O discurso do advogado de defesa do acusado elucida essas questões: No caso, se Ana Maria de Carvalho, com 18 anos de idade, permitiu, livremente, que o acusado João Couto a deflorasse – exercitou um direito seu, podia assentir na sua desonra. Se, arrependida, depois, suplica o auxílio da Justiça – esta, quando muito, poderá lastimar. Nada mais poderá fazer, como nada poderia fazer a uma pessoa capaz, que se arrependesse de uma transação mercantil. (...) A vítima não era honesta. Tinha mau comportamento; andava em companhia de prostitutas; tivera relações sexuais com as testemunhas Ignácio Lima e Francisco Ramos, como eles próprios afirmam; tivera relações sexuais com muitos estudantes. (...) Andava em companhia de mulheres de vida alegre. E a carta, que consta dos autos, dirigida pela vítima ao acusado, fala bem alto da sua sagacidade e esperteza.7 Em virtude das diversas interpretações acerca da honestidade feminina, os juristas tinham dificuldade em definir parâmetros de boa conduta para essas mulheres. A moralidade defendida pelos juristas e alguns acusados no período indica que aos homens era permitido o relacionamento com várias mulheres enquanto, em contraposição, esse comportamento, quando praticado por mulheres, era tido como desonesto. Os depoimentos das testemunhas revelam a desigualdade e a hierarquização das relações de gênero, pautadas pela defesa da honra feminina e pela ênfase na vigilância familiar, favorecendo o emprego das normas sociais compatíveis com a legislação e jurisprudência do período. Em Piracicaba, nas primeiras décadas do século XX, a maioria das “mulheres modernas” não consumava casamentos. O “mau comportamento” indicava imoralidade, questão fundamental para o impedimento de uniões formais. O rompimento com esse tipo de disciplina demonstra que as mulheres não podem ser vistas como vítimas, de acordo com a visão do Estado, que buscava intervir nas relações de gênero para evitar que a modernidade trouxesse perigos à honestidade feminina. As mulheres de vida “moderna” faziam escolhas pessoais, e no seu cotidiano, apresentavam comportamentos que, às vezes, contrariavam os valores morais defendidos por essas personagens, instrumentalizando seu discurso a fim de conquistar seus objetivos. O embate entre a posição tradicional e a tendência modernizante de alguns juristas nos oferece elementos para afirmar que os conflitos sexuais entre homens, mulheres e demais personagens envolvidos nos processos eram complexos. As mulheres “modernas” possuíam um comportamento não condizente com os valores sociais sustentados pela elite brasileira. Em Piracicaba, no início do século XX, as mulheres apresentavam diversas representações quanto à sexualidade que, ora se aproximavam, ora se distanciavam das concepções morais dos diferentes sujeitos históricos presentes na trama judicial. A justiça se apresentava como uma complexa área de enfrentamento e os atores sociais se apropriavam de discursos jurídicos e médicos, resignificando-os com sentidos muitas vezes contrários à normatividade dominante no campo da moralidade. Eram múltiplas as interpretações e, por conta disso, as mulheres não reproduziam a lei.
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AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra João Couto, caixa 6-B, 1917.
Bibliografia AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra João Couto, caixa 6-B, 1917. AFCP/AHIEP (Arquivo Histórico da Comarca de Piracicaba/Arquivo Histórico do Instituto Educacional Piracicabano). Juízo de Direito, processo-crime contra Rafael da Silva, caixa 11-A, 1926. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. DARNTON, Robert. Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986. HOBSBAWM, Eric. A ciência. In: A era das revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
Sobre a autora: Daniela Meira Cotrim graduou-se pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Atualmente é professora de História na Escola Estadual Romana Cunha em Santa Bárbara D’Oeste e desenvolve projeto de mestrado em história social da cultura.
Charge da revista “A Cigarra”. Agosto de 1925. DAESP