AS GRAVURAS BRASILEIRAS DE ALBRECHT DÜRER
Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner Doutora (MS-3) – ECA-USP Pós-doutorada (MS-4) – UNICAMP-IA
As estampas das principais coleções brasileiras de Albrecht Dürer foram submetidas, pela primeira vez no Brasil, a uma minuciosa investigação científica sob métodos laboratoriais. A idéia da pesquisa surgiu da leitura de uma nota banal em uma revista de consultório médico, que continha uma matéria sobre os “tesouros artísticos da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro”, entre os quais encontravam-se as gravuras de Albrecht Dürer. A nota dizia que a procedência de tais gravuras era a antiga Real Biblioteca Portuguesa, e teria sido herdada pelos brasileiros após a partida da Família Real, no século XIX. Portanto, valia a pena investigar se “as gravuras de Albrecht Dürer”, de porte real, estando entre nós, brasileiros, há mais ou menos 125 anos, já possuíam o devido laudo de autenticidade ou se nunca haviam sido submetidas a um estudo pericial que as identificasse corretamente a respeito de sua legitimidade. A investigação começou pela seleção e separação do material. Havia 167 imagens entre xilogravuras, buris, reproduções de todas as qualidades (desenhos, estampas propriamente ditas, cópias), estampas elaboradas por copistas de Albrecht Dürer, que se apropriaram do monograma do artista, cópias fraudulentas. Tal era a heterogeneidade do acervo que cada peça teve de passar por minuciosa pesquisa antes de ser descartada ou resgatada de acordo com a proposta do projeto de origem. Iniciouse, então, a inspeção técnica das peças selecionadas. As gravuras medievais de Albrecht Dürer, para serem consideradas autênticas, devem ser situadas dentro de rígidos parâmetros técnicos. Para serem consideradas originais (cujo termo técnico é mais flexível em seus parâmetros), devem ter uma proveniência direta da matriz, de madeira ou de metal, para a folha. Porém, seu limite de impressão é muito mais amplo, porque inclui a hierarquia das tiragens. As estampas de Albrecht Dürer, não são consideradas autênticas nem originais, não possuindo, portanto, valor artístico. São situadas em tempo e espaço abertos, e têm pouquíssima importância no âmbito internacional, sendo consideradas por seu valor histórico-patrimonial, por exemplo. A perda do valor artístico de uma estampa ocorre por conta de algum elemento atípico, que distorce suas características originais no que diz respeito ao papel, ou à impressão, ou às marcas d’água. O passo seguinte da investigação foi a seleção das estampas originais e o estudo de seu estado de conservação, implicando não somente inspeção criteriosa do papel e das devidas marcas d’água, responsáveis por grande parte do diagnóstico, como também definição da qualidade de impressão das peças do acervo, identificando-se, com este trabalho, as diferenças entre estampas advindas de matrizes retrabalhadas, estampas retrabalhadas no laboratório de restauro ao longo dos anos, e o conseqüente
1
reflexo deste procedimento na qualidade das impressões. Após este processo, realizou-se identificação historiográfica da procedência da peça, laudo técnico e, por último, elaboração dos corpi .1 MATERIAIS UTILIZADOS NA PESQUISA: a) lentes microscópicas: para inspeção do tipo de impressão, tiragem, etc; b) lâmpada fluorescente: para análise da impressão; c)lâmpada ultravioleta: para inspeção da qualidade das restaurações realizadas ao longo do tempo; d) eventual lavagem da estampa para identificação da marca d’água, às vezes de difícil leitura por sobreposição de grossas veladuras de proteção ou borrões de cola advindos de antigas manipulações, nem sempre bem administradas; e) fotografação das marcas d’água dos originais em infravermelho para comprovação científica dos passos da pesquisa. A correção desta parte da historiografia brasileira tinha por intuito introduzir as gravuras de Albrecht Dürer no âmbito internacional, em que a renovação de catálogos e as identificações por acervo ocorrem à medida que avança este tipo de pesquisa. No entanto, somente exemplares autênticos são bem-vindos nestes inventários culturais. Entre as estampas analisadas (xilogravuras, buris e águasfortes) não houve exemplar que pudesse ser enquadrado na categoria de autêntico. A pesquisa às estampas de Albrecht Dürer obedeceu a duas etapas: a primeira, dedicada somente ao exame do acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, deteve-se na análise das xilogravuras, selecionando as peças originais e separando-as daquelas sem atribuição possível. A segunda etapa deteve-se na investigação dos buris e águas-fortes, obedecendo ao mesmo procedimento, porém, abrangendo os acervos de mais duas importantes coleções de São Paulo, além da Coleção Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foram elas: Coleção Fundação Cultural Ema Gordon Klabin e Coleção Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand-MASP. As estampas passaram por provas rígidas, sendo permanentemente reconferidas em seus detalhes mais íntimos. No exterior, a pesquisa contou com a possibilidade de manusear exemplares autênticos das quatro coleções mais conceituadas neste tipo de acervo, para fins de comparação: Albertina Museum (Viena); Kupferstichkabinett (Berlim); Germanisches Museum (Nuremberg), e Musée du Petit Palais (Paris). A grande colaboração profissional dos especialistas e curadores das coleções supra-citadas foi relevante a fim de levar a cabo esta difícil empreitada.
1
Corpus: (etimologia emprestada do lat. corpus)1. coletânea ou conjunto de documentos sobre determinado tema. Plural: corpi. Houaiss, Antônio (et al.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, 1ª edição.
2
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SIGNIFICATIVAS DESTE TIPO DE PESQUISA PAPEL A análise de uma estampa de Albrecht Dürer do século XV/XVI inicia-se pelo papel no qual ela está impressa. Grosso modo, em uma folha de papel antiga é possível se observarem os seguintes caracteres: Vergaduras – são linhas horizontais alternativas, escuras e claras, que podem ser vistas quando se observa a transparência do papel. Pontusais – são marcas postas de forma perpendicular aos fios horizontais da vergadura. Filigranas (ou marcas d’água) – são impressões fixadas em profundidade em uma folha de papel; tipo de adorno elaborado com fio de metal regulado, de acordo com a forma que se pretende registrar. Estas marcas, empregadas pelos papeleiros de diversos lugares e épocas, demonstram, de uma maneira mais ou menos precisa, a idade da folha de papel. As marcas d’água eram sujeitas a todo tipo de falsificações que, naturalmente, apareciam a partir daquelas mais notórias da época. Estas contrafações, a julgar pelos casos conhecidos, muitas vezes não tinham uma identidade absoluta com o modelo-padrão, limitando-se a uma imitação, por vezes até grosseira. Desde as primeiras décadas de 1900 as contrafações das marcas d’água são levadas em grande consideração, e desde a metade do século são constantemente aglutinadas, de acordo com o andamento da pesquisa mundial, em um Museu fundado por um pesquisador dedicado a esta vertente de investigação, daí a Instituição que leva seu nome: Museu de Marcas d’água Gehard Piccard, no Arquivo Maior da Cidade de Stuttgart – Alemanha (Der Wasserzeichenkartei Piccard im Hauptstaatsarchiv Stuttgart ). É por esta razão que cada uma das marcas d’água da coleção brasileira foi submetida a uma investigação criteriosa e posterior fotografação em infravermelho, reunindo-se, então, material suficiente para envio a esse Museu de marcas d’água, participando, até mesmo, pela atipicidade de seu desenho, do circuito da pesquisa internacional. MATRIZES E IMPRESSÕES De maneira geral, as matrizes elaboradas por Albrecht Dürer foram expostas a todo tipo de dano, em conseqüência de utilização demasiada e de má conservação. Matrizes de madeira – as primeiras lacunas apareceram nas bordas superiores e inferiores, dando início às fendas, que aos poucos foram se alargando e espalhando e, no final, acabaram por destroçar pedaços inteiros. No relevo desenhado, atuaram interrompendo a continuidade das linhas artísticas e, como conseqüência, provocaram intervalos brancos na impressão. Outro grande inimigo das matrizes eram os carunchos, que deixavam vestígios na superfície em forma de caminhos ou orifícios, e, nas impressões, círculos brancos. A irregularidade das impressões, resultante de fendas e lacunas feitas pelos carunchos, fez com que algumas matrizes fossem corrigidas de maneira muito habilidosa, com, por exemplo, pó de madeira. Alguns dos danos são visíveis e reconhecíveis nas impressões, e, dessa forma, pode-se chegar a conclusões corretas acerca da seqüência cronológica da estampa, além da qualidade da matriz. 3
Matrizes de metal – tinham arranhões causados pela limpeza na face polida da chapa, arranhões resultantes de escorregões ocorridos durante o manuseio do buril. Como era extremamente difícil reconstituir o trajeto dos traços, uma vez que o buril escorregava para os lados, às vezes fora do controle do restaurador, isto fez surgir linhas duplas ou mesmo linhas com abas, sinais típicos de placas retrabalhadas. Impressões retiradas deste tipo de matriz deixavam, inclusive, as linhas mais cheias e úmidas, provocando quase sempre um hiperescurecimento da impressão. No caso de matrizes que resultassem em impressões fracas e débeis, pela perda de profundidade das linhas, retrabalhavam-se com o buril as suas partes principais, aprofundando o contorno. Então, linhas normalmente finas, claras e lisas tornavam-se grosseiras, adquirindo um aspecto “desfiado” e trêmulo. TIPOS DE IMPRESSÃO Impressões de teste – significavam as primeiras provas da prancha incompleta e pressupunham necessidade de eventuais correções antes que a impressão final fosse entregue ao mercado. Eram elaboradas pelo artista em papel sem marca d’água. Hoje em dia, são praticamente inexistentes. Impressões pessoais de Dürer – folhas soltas, invariavelmente elaboradas em papel “Coroa Alta” para as xilogravuras, e em papel “Cabeça de Boi” para os buris e águas-fortes. Impressões editoriais – para o grande lançamento dos “três grandes livros” de Dürer, A Vida da Virgem, A Grande Paixão e O Apocalipse de São João, em 1511, usou-se papel “Triângulo com Flor”. Já para o lançamento do pequeno livro Pequena Paixão, no mesmo ano, valeu-se do papel “Coroa Alta”.
PROBLEMAS COMUNS DAS IMPRESSÕES As séries encadernadas sempre causaram sérios embaraços ao estudioso, uma vez que o mais comum é se deparar com folhas soltas das imagens e, às vezes, ocorre de o conjunto não se completar. Também é comum encontrar imagens de séries, que deveriam formar álbuns inteiros, impressas em papel com marcas d’água variadas. Heterogeneidade na impressão das folhas – suavização de uma gravura, pode indicar tensão desigual da prensa ou impressões muito tardias. Já estampas excessivamente claras derivam de tiragens exaustivas. Outro dano comum às impressões é a destruição pelo uso da tesoura, que ocorre com o objetivo de eliminar completamente manchas de sujeira ou rasgões na linha de borda da gravura. CONCLUSÃO O Catálogo/Corpus das xilogravuras periciadas, junto com a documentação laboratorial comprovativa e o laudo técnico, encontra-se na Fundação Biblioteca Nacional-RJ e, embora ainda não editado, pode ser consultado pelo pesquisador (HITNER, Sandra Daige Antunes Corrêa. Investigação Historiográfica de um Patrimônio Brasileiro: As Gravuras de Albrecht Dürer. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, SP, 2002, 2 vol.). 4
Em relação ao Catálogo/Corpus dos buris e águas-fortes do acervo das três fundações (FBNRJ, Klabin e MASP), encontra-se no prelo. A exposição deste patrimônio deve acontecer daqui a algum tempo, dependendo apenas da obtenção do apoio de patrocinadores.
Prisão de Cristo II. Albrecht Dürer.
5
A CRIAÇÃO DA ESCOLA DE FERROVIÁRIOS DA COMPANHIA SOROCABANA
Bianca Barbagallo Zucchi1
A historiografia brasileira é rica em obras acerca do desenvolvimento do Estado de São Paulo – baseado na economia cafeeira – a partir de meados do século XIX. Substituindo a mão-de-obra escrava pelo trabalho assalariado, o cultivo do café tornou-se foco principal da economia brasileira por décadas. A economia cafeeira possibilitou a acumulação do capital essencial para a configuração de um novo estágio do capitalismo no Brasil. Dentre tais transformações, esses grandes latifundiários financiaram a criação da rede ferroviária do Estado de São Paulo, já que o produto precisava ser levado até o porto de Santos, de onde era exportado para a Europa e para os Estados Unidos. A estrada de ferro Sorocabana é criada em 1870, incorporando a ferrovia Ituana vinte anos depois. No início do século XX, a Companhia sofreu uma séria crise financeira e, sendo encampada pelo Governo Federal, passou a ser, em 1919, definitivamente de responsabilidade do mesmo. Nesse momento, foi estabelecido um plano de remodelação geral da ferrovia, com o objetivo de recuperar e modernizá-la. Os principais pontos desse programa diziam respeito à compra de máquinas e equipamentos, à ampliação de linhas, à construção de novas oficinas de manutenção e de estações, entre elas, a Nova Estação Inicial de São Paulo (chamada posteriormente de Estação Júlio Prestes). Porém, sua realização mais importante foi a construção do trecho Mairinque-Santos. Com o fim deste empreendimento, na década de 1940, a ferrovia Sorocabana se configurou como a maior do Estado em termos de extensão, alcançando 2.074 quilômetros de linhas férreas. No entanto, observou-se, a partir dessa década, o declínio em todo o sistema ferroviário que, por diversas questões estruturais e de planejamento, vinha sendo rapidamente substituído pelas rodovias. A criação da Escola de Ferroviários da Sorocabana está indiscutivelmente atrelada a dois personagens: Roberto Mange, educador, e Gaspar Ricardo Junior, diretor da Estrada de Ferro Sorocabana. Ambos membros fundadores do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT). Desde o início, tal escola foi pensada nos moldes de racionalização que vinham sendo discutidos e implementados por diversos intelectuais e empresários no Brasil já na década de 1920. Um dos principais objetivos dessas pessoas era transformar o local de trabalho e o trabalhador, tornando-os mais produtivos segundo uma organização racional do espaço e das tarefas executadas. O discurso a favor da racionalização baseava-se principalmente no fordismo, que, por sua vez, incorporou a linha de montagem introduzida pelo taylorismo, priorizando a segmentação das tarefas e o aumento da velocidade em que eram executadas. No entanto, o modelo fordista se preocupava de forma mais ampla com o trabalhador, extrapolando os muros das fábricas. Dessa forma, a indústria
1
Graduada em história e mestranda pela PUC-SP.
1
deveria desenvolver um setor de serviços sociais, agregando instituições paralelas que se preocupassem com o lazer e a instrução do trabalhador. Os pensadores dedicados aos ideais de racionalização no Brasil se apoderaram tanto dos princípios ligados ao maior rendimento do trabalho nas fábricas, quanto à necessidade da criação de serviços extra fábrica dos quais disporiam os trabalhadores. Assim, podemos concluir: O termo racionalização deve ser entendido como abrangendo uma grande variedade de estratégias para a reorganização do trabalho, e mesmo da vida cotidiana, de acordo com princípios que seus defensores consideraram “científicos”. (...) Esse métodos deveriam resultar, segundo se esperava, numa maior eficiência e produtividade, que redundariam em benefícios para patrões, empregados e consumidores.2 O que podemos observar é que, a partir de uma reconfiguração interna no trabalho das fábricas, pretendia-se, num âmbito mais amplo, racionalizar toda a sociedade que assistia à consolidação do processo de industrialização do país. Roberto Mange teve um papel preponderante no debate sobre a racionalização e na implementação dos métodos desenvolvidos no universo escolar, especialmente com relação ao ensino profissionalizante. Em 1923, inicia sua campanha para modificar o treinamento técnico-profissional no Brasil. Até aquele momento, o ensino profissionalizante tinha um caráter assistencialista e era dirigido principalmente aos órfãos, desvalidos e aos jovens e crianças à beira da marginalidade. As escolas que ofereciam essa modalidade escolar muitas vezes estavam ligadas a instituições religiosas e ofereciam cursos para carpinteiros, sapateiros, pedreiros e outros trabalhos manuais de pouco prestígio. Mange era um crítico severo da forma como os trabalhadores aprendiam seus ofícios: de maneira tradicional e prática. Aos aprendizes não era dedicado nenhum tipo de educação específica ou gradual e, quando atingiam uma certa idade, tornavam-se definitivamente profissionais. O ofício era aprendido no ato de observar e imitar os outros, impedindo o aprendizado de novas técnicas e seu aperfeiçoamento, além de não haver nenhum tipo de seleção segundo aptidões pessoais. O educador tinha um discurso que refutava esse tipo de conhecimento, ao seu modo de ver, improvisado. A finalidade maior de Mange era criar um novo tipo de trabalhador, que se ajustasse às novas demandas da indústria e fizesse parte de uma nova cultura do trabalho. O operário deveria aceitar suas tarefas e realizá-las de forma correta, dentro da hierarquia da linha de produção. Para tanto, eram necessárias mudanças na educação desse operário e mesmo a introdução de um ensino moralizante ministrado junto ao ensino técnico. A primeira experiência do educador no Brasil foi no Liceu de Artes e Ofícios, que havia, desde o início do século XX, voltado suas atenções ao ensino industrial, uma vez que, até aquele momento, havia se dedicado preponderantemente ao ensino de artes. Mange aplica alguns princípios racionalizantes, como transferir o local de aprendizado para uma instituição escolar, onde as aulas eram ministradas por especialistas. A modificação mais importante proposta por Mange foi a aplicação das “séries metódicas”, onde o aprendiz inicia seus estudos executando tarefas mais simples, que vão se tornando mais complexas e difíceis, conforme este vai avançando em sua habilidades e conhecimentos. As atividades
2
WEINSTEIN, Barbara. (Re)formação da classe trabalhadora no Brasil, 1920 -1964. São Paulo: Cortez, 2000.
2
práticas aconteciam concomitantemente ao aprendizado teórico, afastando-se, dessa maneira, do empirismo tão criticado, presente no modelo tradicional. Além disso, aconteciam testes psicotécnicos, onde os aprendizes eram avaliados quanto a uma predisposição ao tipo de trabalho que desempenhariam. Era esse modelo o pioneiro com relação aos métodos racionalizantes aplicados à educação no Brasil. Em 1924, é criada, no Liceu de Artes e Ofícios, a Escola Profissional Mecânica, chefiada por Mange, para onde quatro empresas ferroviárias (dentre elas a Companhia Sorocabana), a partir de um acordo, enviavam dois aprendizes para freqüentar o curso. É baseada nessa experiência que o ensino profissional para ferroviários se mostra produtivo e viável para as companhias ferroviárias de São Paulo.
As diferentes propostas na formação de ferroviários Este artigo teve como ponto de partida o dossiê da Secretaria de Viação e Obras Públicas, da Divisão da Inspetoria de Estradas de Ferro, intitulado “Suggestão sobre a criação nas grandes estradas de ferro de um systema de educação profissional do pessoal, nos moldes do que está praticando a Companhia de Orleans”.3 Por meio dessa documentação, é possível obter um retrato do debate acerca da criação da Escola de Ferroviários baseado na burocracia oficial e acompanhar as etapas de sua criação. A partir da análise dos três currículos que compõem a documentação, é possível apreendermos de que maneira os ideais racionalizantes vinham sendo implementados no Brasil. O que chamaremos de currículo da Companhia de Orleans foi uma série de princípios extraídos da reportagem de onde o engenheiro ajudante da Secretaria de Viação e Obras Públicas aparentemente se inspirou para propor uma escola para ferroviários utilizando os mesmos moldes no Brasil. A reportagem enfatiza que os dois maiores objetivos da Companhia, com tal iniciativa, eram alcançar um rendimento máximo entre os operários da ferrovia e sistematizar o que se denominou um verdadeiro ensino técnico. O curso para aprendizes admitia jovens de 14 a 17 anos mediante assinatura de contrato de três anos com seus pais. Além disso, os ingressantes deveriam se comprometer a permanecer na ferrovia por pelo menos cinco anos após a conclusão dos estudos. O ensino seria teórico e prático, desenvolvido a partir de exercícios racionais e progressivos. As matérias ministradas eram: História, Geografia, Moral, Higiene, Física e Mecânica, Geometria, Aritmética, Desenho e Tecnologia. Todos os alunos matriculados recebiam uma remuneração fixa, conforme a idade e a qualidade de seu desempenho, auxílio-residência e gratificações. A escola dispunha de quadras de esporte e colônia de férias, dando ênfase à importância da saúde física dos aprendizes. Os exames práticos eram ministrados em vagões de demonstração criados especialmente com essa finalidade. Os exames ocorriam mensalmente. A partir do currículo elaborado pela Companhia de Orleans, podemos observar que houve uma mudança significativa no eixo que norteava o ensino técnico-profissional. Para obter mais produtivida-
3
Localização no AESP: CO-9449, Fundo FEPASA.
3
de, não bastava treinar o operário para que este aprendesse somente o ofício que iria desempenhar, ou fazer com que ele se adaptasse às máquinas que devia operar. Essa idéia de treinamento se encontrava em franca decadência naquele momento. Ao ministrar curso de História, Geografia, Moral e Higiene além de matérias técnicas, o que se pretendia era a criação ou a remodelação de uma nova classe operária. Com conhecimentos mais abrangentes e mais adaptados ao novo ritmo dos trabalhos fabris, pretendia-se que os trabalhadores produzissem mais e melhor, adquirindo novas habilidades. Há, explicitamente, nesse currículo, uma preocupação mais ampla com o trabalhador, que vai além da sua relação com o trabalho. O novo trabalhador deveria estar de acordo com regras morais e higiênicas. Havia a preocupação com a saúde do operário e o incentivo para que este praticasse esportes, como parte de sua formação. Já no currículo formulado pela Companhia Paulista com o auxílio de Roberto Mange, denominado “Plano de organisação para Escola de Aprendizes Mecanicos na Companhia Paulista de Estradas de Ferro de Jundiahy”, temos um maior detalhamento das atividades e disciplinas propostas, bem como dos fins pretendidos com estas. O curso tinha a duração de quatro anos e era composto de disciplinas práticas e teóricas. Inicialmente, a escola oferecia um curso para mecânicos, compreendendo os ofícios de mecânico-ajustador, serralheiro e montador. Posteriormente, pretendia-se incluir outras especializações como torneiros, caldereiros, fundidores, modeladores-mecânicos e eletrotécnicos. Os requisitos para preencher as vagas eram: ser maior de 14 anos; não possuir doença contagiosa; prestar exame de admissão em Língua Portuguesa, Geografia e História do Brasil, Aritmética e Geometria Prática; passando também por exames psicotécnicos, onde seriam avaliadas aptidões naturais para a carreira. O currículo apresenta majoritariamente matérias técnicas e as horas dedicadas às matérias mais gerais, como por exemplo, “Noções de História da Civilização no Brasil”, “Geografia Política e Comercial do Brasil”, “Educação Cívica e Moral do Aprendiz no seu Ofício Perante a Sociedade” e “Noções de Higiene do Ofício” eram restritas. Era dada maior ênfase aos trabalhos práticos, sendo primordial a relação entre o ensino teórico e as atividades nas oficinas, que deveriam sempre permanecer conjugados. Nos dois primeiros anos, os alunos freqüentavam concomitantemente as aulas teóricas a Oficina de Aprendizagem e, nos dois últimos anos, freqüentavam a Oficina Geral. Suas atividades deveriam obedecer sempre ao princípio dos trabalhos metódicos e progressivos. O que podemos observar no currículo da Escola para Ferroviários, produzido pela Companhia Paulista, é a adoção integral dos ideais defendidos por Mange e outros pensadores adeptos da racionalização. Os alunos deviam comprovar saberes básicos sobre matérias escolares, mas o curso é baseado em matérias técnicas, o que tornava esse currículo menos abrangente e mais direcionado que o da escola francesa. No entanto, eram ministradas disciplinas moralizantes e ligadas a temas como segurança do trabalho e higiene. A questão da sucessão metódica é uma constante, e havia um grande cuidado na descrição das atividades a serem desenvolvidas pelos alunos nas oficinas, assegurando, dessa forma, uma progressão gradual das atividades propostas. Havia, também, a adoção dos testes psicotécnicos, onde “habilidades naturais” seriam averiguadas, sendo este outro princípio defendido pelo IDORT. Finalmente, temos o currículo implementado pela Companhia Sorocabana, denominado “Regulamento do curso de ferroviários da Escola Profissional de Sorocaba e da Estrada de Ferro Sorocabana”. 4
Os requisitos para o ingresso no curso eram idênticos aos da Companhia Paulista. O ensino teórico era ministrado na Escola Profissional de Sorocaba, e as aulas práticas, nas oficinas instaladas na Estrada de Ferro Sorocabana. Os aprendizes eram remunerados, como nas escolas anteriormente citadas. As especializações oferecidas eram: torneiros-frezadores, ajustadores, caldereidos-ferreiros e eletricistas. O ensino seria baseado nas séries metódicas, incluindo um estágio na área de especialização no quarto e último ano de curso. Era enfatizada a estreita ligação que devia haver entre os cursos teóricos e os trabalhos práticos.O programa e os cursos deveriam estar de inteiro acordo com as necessidades da Estrada de Ferro, sendo que os cursos e currículos seriam alterados para melhor se adaptarem às demandas da Companhia. Havia diferenças significativas entre o currículo proposto pela Companhia Paulista e o implementado pela Companhia Sorocabana, apesar de o segundo recorrer muitas vezes ao primeiro, chegando mesmo a copiar algumas propostas. O primeiro diferencial eram as aulas de português, ministradas em todos os anos. Essa disciplina incluía assuntos de História, Geografia e Educação Cívica. Havia também aulas específicas de Higiene e Acidentes; Orçamentos; Organização Ferroviária e exercícios físicos. Observamos, novamente, assim como na Companhia de Orleans, uma preocupação em formação mais ampla e menos pragmática. Nenhum dos currículos analisados tinha a preocupação em introduzir os alunos à realidade da Companhia em que pretendessem ingressar, nem oferecia disciplinas dedicadas especificamente ao desenvolvimento de orçamentos ligados a trabalhos técnicos. No entanto, o maior diferencial do plano de aulas da Companhia Sorocabana estava relacionado às aulas técnicas. Nesse sentido, a Companhia propunha que os alunos freqüentassem, desde o primeiro ano, além das Oficinas de Aprendizagem, a Oficina Geral. Os alunos trabalhariam na Oficina Geral como ajudantes, executando tarefas correspondentes ao seu nível de desenvolvimento. A partir do terceiro ano, os alunos fariam estágios em diferentes funções, vindo a se especializar em uma delas no quarto ano, quando cada especialização possuía um plano de aulas diferenciado. Mais uma vez é possível identificarmos a preocupação com a aplicação das séries metódicas. Cada exercício era detalhadamente descrito e a progressão gradual era uma constante em todas as atividades propostas. Com a análise dos currículos, pudemos acompanhar diferentes formas de como foram pensados e/ou aplicados os ideais racionalizantes no ensino profissional. Dessa maneira, temos a constatação de que o empresariado brasileiro – não somente os ligados às ferrovias –, vinham buscando novas formas de organizar a produção. Para tanto, havia a necessidade de um novo trabalhador, mais ágil, mais preciso em suas ações e mais consciente de seu papel na linha de produção. Como resultado dessa remodelação das indústrias, os resultados seriam sentidos em toda a sociedade, sendo essa nova indústria foco irradiador de mudanças sociais. Para a nova sociedade brasileira, que se reconfigurava naquele momento, não bastava que o trabalhador executasse melhor a sua tarefa e de forma mais produtiva; era preciso um novo homem. Nesse sentido, as escolas profissionais tiveram o papel de treinar o operário como técnico e como ator social, cuidando de seus valores morais por meio de um conhecimento mais abrangente do mundo. A maior eficiência dentro das fábricas seria fruto da educação profissional não estrita, mas racionalizada.
5
BIBLIOGRAFIA MATOS, Odilon Nogueira de. Café e Ferrovias: A evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: Arquivo do Estado, 1981. (Coleção Monografias 3) WARDE, Mirian Jorge; BONTEMPI JR., Bruno. Internacionalização-Nacionalização de padrões pedagógicos e escolares no ensino secundário e profissional (Brasil, meados do século XIX ao préSegunda Guerra Mundial), 2003. Acesso em 27/11/2003. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/ehps/secretaria/internacionalizacaoIframe.html WEINSTEIN, Barbara. (Re)formação da classe trabalhadora no Brasil, 1920 -1964. São Paulo: Cortez, 2000.
Acima, “estructura metallica da plataforma da Nova Estação de S. Paulo.” RICARDO JUNIOR, Gaspar. Relatório referente ao anno de 1928. São Paulo: Sociedade impressora paulista, 1929. À esquerda, “linha de Mayrink a Santos – Trecho S. 2. 1.ª bocca e janella do córte n.º 8.” RICARDO JUNIOR, Gaspar. Relatório referente ao anno de 1928. São Paulo: Sociedade impressora paulista, 1929.
6
A História, a Codicologia e os Reclames Para o estudo da História são desejáveis conhecimentos de diversas ciências auxiliares. Um grande número de historiadores estuda documentos ou objetos antigos, fazendo análises e comparando suas informações com outras já sabidas, desenvolvendo a partir daí o seu trabalho. Fazem uma pesquisa minuciosa acerca dos documentos, que culmina numa análise numismática, esfragísitica, heráldica, paleográfica, papirológica, epigráfica, codicológica e assim por diante.1 O foco principal deste artigo é apresentar-lhes brevemente a Codicologia – uma ramificação da Paleografia – e a inserção dos reclames nesta ciência. As ciências auxiliares estudam questões específicas que, para a História, estão em segundo plano, apesar de ser reconhecido que as estruturas dessas ciências ditas auxiliares potencializam ganhos para o saber histórico.2 Podem ser divididas conforme o tipo de questão específica que estudam, sendo classificadas em três grupos principais: objetos, fatos ou circunstâncias e fontes escritas: a) objetos: a Numismática (moedas), a Esfragísitica (selos) e a Heráldica (brasões); b) fatos ou circunstâncias: a Teologia, a Sociologia, a Etnologia, a Economia Política, a Cronologia (calendários) e a Metrologia (padrões de medida), entre outros; c) fontes escritas: a Paleografia, a Papirologia, a Epigrafia e a Codicologia.3 A Paleografia foi consagrada por Jean Mabillon (1642-1707), um beneditino francês que, além do estudo dessa ciência, dedicou-se à Diplomática e à Cronologia. Inicialmente, a principal função destes estudos era, digamos, jurídica: servia para provar a autenticidade de documentos, provando, assim, o direito de uma pessoa sobre determinado patrimônio. Grosso modo, ocupa-se da decifração e ordenação de escritos antigos. Entre o estudo das fontes escritas temos:
1
“Não cabe ao paleógrafo somente ler textos; a ele compete igualmente datá-los, estabelecer sua origem e procedência e
criticá-los quanto à sua autenticidade, levando em consideração o aspecto gráfico dos mesmos. Das ciências auxiliares da História, a Paleografia é a mais importante porque ela se dedica ao estudo da escrita sobre material brando, principal fonte de informação do historiador.” In: ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: UFPE/Editora Massangana, 1994, p. 5. 2
“O documento manuscrito é considerado a mola-mestra da História. É indiscutível que ele proporciona recursos inesti-
máveis ao historiador, representando o melhor testemunho do passado, fonte direta de informação básica para o estudo da História. A interpretação do fato histórico depende do conjunto de documentos de que se dispõe, do mesmo modo que a interpretação dos documentos históricos depende do conhecimento paleográfico do historiador. Para que o documento seja bem interpretado, é necessário que antes tenha sido bem analisado e criticado sob o ponto de vista paleográfico.” In: ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: UFPE/Editora Massangana, 1994, p. 1. 3
In: ACIOLI, V. L. C. A escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: UFPE/
Editora Massangana, 1994, p. 6.
1
a) Papirologia: o estudo dos papiros, que foi o suporte para escrita mais utilizado na Antigüidade. Esta ciência trata da leitura, conservação e interpretação dos papiros; b) Epigrafia: o estudo da escrita em materiais sólidos, como madeira, pedra e metal; c) Codicologia: o estudo dos documentos manuscritos ou impressos, em pergaminho ou papel, encadernados em forma de livro (códice). A Codicologia tem como objeto de estudo o livro manuscrito ou impresso, mas apresenta orientações segundo os objetivos. Interessa ao pesquisador da área conhecer o quadro teórico da ciência codicológica e atender à finalidade essencial do estudo do códice, que é situá-lo de modo a entender a transmissão do texto e a sua funcionalidade de leitura, fixando a atenção particularmente em constituir instrumentos de recuperação do livro e dos fundos de manuscritos. Alguns tópicos são importantes para a Codicologia: a) Suportes da escrita medieval (papiro, pergaminho e papel): inicialmente a madeira, casca de árvores, folhas de palmeira, peles de animais, tabuletas de cera e o couro foram utilizados como suportes para a escrita. A revolução para a confecção do livro foi a produção do papiro, que diminuía os problemas apresentados pelo uso de vegetais, madeira e argila. O papiro era de uso exclusivo do Egito até aproximadamente o século VII. Era feito de caule de junco; as lâminas longitudinais e transversais eram coladas e formavam as folhas, geralmente usadas em forma de rolo – portanto os livros eram em rolos, mas também havia os livros quadrados. Este material não era muito resistente e com as novas alternativas de materiais para a escrita, deixou totalmente de ser usado no século XI. O pergaminho foi o principal material utilizado para a escrita entre os séculos IX e XII na Europa. Era feito de pele de animais, tais como o carneiro, bode, bezerro, etc. Seu preparo é teoricamente simples, mas bastante trabalhoso: deixava-se a pele do animal de molho em água com cal por aproximadamente três dias; depois disso, raspava-se a pele para extrair os pelos e gorduras e, a seguir, para uma raspagem mais refinada, usava-se pedra-pomes; então, sobre uma bancada, a pele secava ao sol. A História afirma que a origem deste suporte deu-se em Pérgamo, pelo rei Euménes II, no século II a.C. Portanto, a origem do nome pergaminho, devese ao topônimo Pérgamo. Diz-se que esta invenção deveu-se à proibição do uso do papiro, por Ptolomeu V, do Egito. No entanto, atualmente, consideramos que o que ocorreu foi um aprimoramento da técnica de confecção de suportes para a escrita. Por volta do século X, as peles de animais possuíam grande valor comercial e eram elementos corriqueiros na vida do homem medieval. Havia, naquele período, o peliteiro, que possuía a função de preparar, curtir e vender as peles. No entanto, as peles por eles preparadas não tinham a finalidade da escrita, mas sim do fabrico de calçado e vestuário. Nos séculos XII e XIII os monges, em seus respectivos mosteiros, eram quem preparavam os pergaminhos para a escrita. Em períodos de falta de pergaminhos, raspavam-se os livros mais antigos para a 2
reutilização – eram os chamados palimpsestos ou opistografia. Com a indicação dos produtos (tipos de papiro, pergaminho ou papel) produzidos ou utilizados em determinado local e data, indicando-se como eles eram manipulados, podemos ter uma idéia a respeito da economia desta região com o devido apoio da História. Já o papel, invenção chinesa datada de aproximadamente 100 d.C., chegou à Europa por intermédio dos árabes por volta do século IX. Apesar de já ser conhecido, passou a ser mais amplamente utilizado a partir do século XIV. A utilização do papel deu-se pela dispersão, no século XV, de fábricas pela Europa. O pergaminho, nesta época, apresentava preço pouco acessível. b) Scriptorium: os scriptoria eram os locais de trabalho dos copistas (ou escribas), que tinham, inicialmente, duas funções principais: a religiosa e a administrativa – finalidades judiciais, reais, fiscais, etc. Apresentava divisões definidas de tarefas, cada trabalhador tinha sua função específica na composição do códice: um preparava o suporte da escrita, outro cortava este suporte, outro definia os limites dos fólios e sua justificação (margens), outro trabalhava as capitulares, outro tratava da iluminura e assim por diante. A cópia era uma ação repetitiva e devia-se agir com fidelidade máxima ao texto original. c) Instrumentos da escrita: estilo, cálamo, pena: nos primeiros tempos utilizou-se o estilo – stilus ou graphium –, que era uma haste de ferro ou mármore com ponta para traçar os caracteres nas tabuletas. Com o tempo, deu-se a utilização do cálamo – calamus – que era um pedaço de junco cortado em forma de pena e foi utilizado até o século XIII. A pena de pássaro, geralmente de ganso ou de cisne, também foi bastante usada. Elas eram afiladas e talhadas, isto é, passavam por um processo de endurecimento para que atendesse de forma mais adequada à finalidade de servir de instrumento para a escrita. Pelo menos no ocidente peninsular, a pena foi o instrumento de escrita mais usado. d) Códices e encadernações medievais: a codicologia, conforme já referido acima, trabalha com a descrição técnica e a análise do codex, isto é, do códice. O códice é um antecessor do livro. Os livros de papiro eram em formato de rolo ou quadrados; já os de pergaminho somente podiam ser quadrados, pois as folhas eram um tanto quanto espessas e não eram tão flexíveis como as folhas de papiro. Os códices de pergaminho datam do início da Era Cristã e não eram projetados com o intuito de serem portáteis. Para a confecção do códice, o pergaminho era cortado em formato padronizado, os fólios eram atados em conjunto por um lado e formavam os cadernos que, reunidos, formavam o livro, de modo similar ao utilizado hoje. Geralmente, na primeira página de cada um dos cadernos havia uma “assinatura”, que até hoje é usada para indicar onde deve ser feita a dobra e as margens de cada uma das folhas para uma posterior organização dos cadernos para que, finalmente, se 3
coloque a capa do livro. A assinatura é ou um número ou uma letra, ou ainda, um número e uma letra juntos. Vejamos as gravuras abaixo:
Imagem 01. Exemplo de um caderno “bínio” (duas folhas).
Imagem 02. Exemplo de como se compõe um caderno “quaterno” (quatro folhas)
4
Imagem 03. Exemplo de livro composto de três bifólios. Neste caso, cada bifólio é um caderno.
Imagem 04. Exemplo de livro composto por dois cadernos de três bifólios.
5
O primeiro livro manuscrito foi confeccionado em data não definida, aproximadamente até o século XV d.C. A partir deste século, até aproximadamente 1470, confeccionaram-se os incunábulos, que deixaram de ser usados, e nos dias atuais temos o livro moderno, impresso. e) A folha como espaço racionalizado: nos primeiros tempos, não havia a concepção de margens para a escrita como atualmente. Hoje trabalhamos com o contraste do preto no branco, isto é, estudamos as melhores medidas para a mancha, com a finalidade de proporcionarmos uma melhor fluência da leitura. Do período medieval até os primeiros anos da imprensa, a formatação da mancha do texto deuse de modo que, aparentemente, a margem superior fosse menor do que a margem inferior, pois na última linha havia o reclame, que ocupava um pequeno espaço do canto direito desta linha, acarretando um maior espaço em branco na margem inferior.4 Há muito, a margem superior tem sido menor do que a inferior; caso contrário, parecerá que o texto está “caído” na folha, criando uma sensação visual não agradável. No entanto, a margem inferior deve deixar espaço para que o leitor vire a página sem tocar no texto, pois se isso acontecesse, o texto escrito seria deteriorado devido ao manuseio. f) Incunábulos – do latim incunabulu, “berço” –: eram livros publicados antes de 1500. Estes impressos do final da Idade Média tornaram os conhecimentos mais acessíveis, evitando o contato com o manuscrito, o que era raro. Assim como o códice é um antepassado do livro, o incunábulo é um antecessor do livro impresso. Os Reclames São chamadas Reclames as repetições de palavras que se dão ao final de um fólio e no início do fólio seguinte. Uma das utilidades reconhecidas do reclame é indicar a seqüência dos fólios e adiantar sua leitura. “A ordem, ou como hoje dizemos, a paginação, era indicada por uma abreviação colocada, quase sempre, em baixo da página, mas isso começou tardiamente, no século XIV”.5 Dizemos que os reclames tinham a função de adiantar a leitura pois, como já referido acima, boa parte dos antigos códices e livros não apresentava o tamanho e o formato atuais. Sendo bem maiores, os livros não eram projetados para ser objetos portáteis e, portanto, tomavam um certo tempo do leitor para virar a página e dirigir os olhos até o início do fólio seguinte, causando uma interrupção da leitura. Consideremos, também, que a tradição era essencialmente oral, assim, essa interrupção na leitura não era agradável.
4
HOUAISS, A. Elementos de Bibliologia. São Paulo: HUCITEC/INL/FNPM, 1983, p. 46.
5
BUENO, F. S. Estudos de Filologia Portuguesa. São Paulo: Edição Saraiva, 1954, p.156.
6
Imagem 05 Exemplo de reclame no livro História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. BARLAEUS, Gaspar. Amsterdam: 1647. Este exemplar não está disponível à consulta pública, pois encontra-se em tratamento técnico.
Imagem 06 Exemplo de reclame no livro História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. BARLAEUS, Gaspar. Amsterdam: 1647. Este exemplar não está disponível à consulta pública, pois encontra-se em tratamento técnico.
7
“O codex semelhava-se assim ao livro de hoje; entretanto o livro moderno pode ser de tamanho reduzido, ao passo que o de pergaminho não era dobrado nem cortado em folhas pequenas, o que significa que os códices são livros grandes, in-fólio, isto é, ‘em folhas’, no tamanho da folha.”6 Tomamos este trecho do Prof. Spina como uma esclarecedora explicação de o porque os livros eram realmente maiores que os atuais. Entretanto, havia outras maneiras de indicar a seqüência dos fólios: a) o sistema de assinaturas: de tradição romana, aparece quase sempre ao início dos cadernos, apesar de que, em alguns casos, aparece na última página; b) a própria numeração, como conhecemos atualmente; c) assinaturas e reclames simultaneamente. Cabe informar que existem reclames horizontais, reclames verticais e reclames oblíquos.7 Porém, o fato de não haver nenhum sistema de ordenação entre as páginas de um texto era freqüente no período medieval, pois se afirma que o uso deste elemento técnico está relacionado com os costumes dos copistas, que podiam utilizá-lo com certa independência. Julgamos que este tema apresenta relevância, uma vez que acreditamos ser um estratagema muito perspicaz usado nos séculos passados e que seria interessante que ainda hoje existisse, pois, muitas vezes, durante uma leitura, um espaço de silêncio ocorre entre a mudança de página. Sem mencionar as possíveis implicações e relações que os reclames podem ter com diversas ocorrências atuais, como os comerciais de rádio e televisão, uma vez que os reclames de TV também são artifícios para ocuparmos um período entre um bloco e outro do programa ao qual estamos assistindo ou ouvindo, assim como os reclames aqui estudados, que também não passam de artifícios para ocuparmos o tempo da virada de um fólio para outro.
6
SPINA, S. Introdução à Edótica: crítica textual. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 1994, pp. 34-35.
7
DÍAZ, E. E. R. El uso del reclamo en España (Reinos Occidentales). In: Scriptorium, 53, 1, Bruxelas, 1999, pp. 3-30.
8
Bibliografia ACIOLI, V. L. C. A Escrita no Brasil Colônia: um guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: Editora Universitária UFPE/Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 1994. AZEVEDO FILHO, L. A. de. Iniciação em Crítica Textual. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/ EDUSP, 1987. BUENO, F. S. Estudos de Filologia. São Paulo: Edição Saraiva, 1954, 1º vol. DÍAZ, E. E. R. El uso del reclamo en España. In: Scriptorium, 53, 1, Bruxelas, 1999. HOUAISS, A. Elementos de Bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967, 2 v. MARTINS, W. A Palavra Escrita. São Paulo: Anhembi, 1957. MEGALE, H. Filologia Bandeirante. São Paulo: Humanitas, 2001. SILVA NETO, S. da. Textos Medievais Portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1956. SPINA, S. Introdução à Edótica: crítica textual. São Paulo: Ars Poetica/EDUSP, 1994.
Autora: Elizangela Nivardo Dias Mestranda da área de Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
9