Histórica

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A Imigração Italiana para o Rio Grande do Sul no final do século XIX Miriam de Oliveira Santos Vários fatores concorreram para a grande imigração transatlântica, que levou milhares de italianos para o continente americano. Um dos principais é a maneira por meio da qual foi feita a Unificação Italiana. Com a dissolução do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), acontece a fragmentação da Itália, que se transforma em uma região dividida em várias unidades políticas independentes entre si. Após o Congresso de Viena, em 1815, estas regiões passaram a ser dominadas por austríacos, franceses e pela Igreja Católica. Os reinos e ducados da Lombardia-Veneza, Toscana, Parma, Módena e Romagna estavam submetidos ao domínio austríaco. O Reino das Duas Sicílias pertencia à dinastia francesa dos Bourbon. O Reino do Piemonte-Sardenha era autônomo, governado por um monarca liberal e os Estados da Igreja pertenciam ao Papa. No início do século XIX, o norte da Itália passou por transformações sociais e econômicas desencadeadas pelo desenvolvimento industrial, as cidades cresceram e o comércio se intensificou. Em 1848, contando com o apoio da burguesia, o Rei Carlos Alberto, do Reino do Piemonte-Sardenha fez a primeira tentativa de unificação, declarando guerra contra a Áustria. O rei foi vencido deixando o trono para seu filho Vítor Emanuel II. No governo de Vítor Emanuel II o movimento a favor da unificação da Itália foi liderado pelo seu primeiro-ministro, o Conde de Cavour. Com o apoio da França, em 1859, Cavour deu início à guerra contra a dominação austríaca. Alcançando expressivas vitórias, conseguiu anexar ao reino sardo-piemontês as regiões de Lombardia, Parma, Módena e Romagna. Havia outros grupos que também lutavam pela unificação italiana, mas com a intenção de transformar o país em uma República. Mazzini e Garibaldi foram os líderes mais conhecidos desta corrente. Em 1860, Guiuseppe Garibaldi alia-se a Cavour e, liderando um exército de mil voluntários, conhecidos como camisas vermelhas, ocupou o reino das Duas Sicílias, afastando do poder o representante da dinastia dos Bourbon, Francisco II. Em março de 1861, dominando quase todo o território italiano, Vítor Emanuel II foi proclamado Rei da Itália. É importante notar que a Unificação Italiana ocorreu apenas alguns anos antes da grande imigração para o Brasil, e que não foi de modo algum um movimento único e consensual. A Unificação acontece em 1861, mas Veneza só foi anexada em 1866, Roma em 1870. A região de Trento só foi incorporada à Itália Unificada após a 1ª Guerra Mundial em 1919 e a questão dos Estados Pontifícios arrastou-se por décadas, sendo resolvida apenas em 1929 com a assinatura do Tratado de Latrão, já no governo fascista. Em função disso a capital do Reino da Itália de 1861 até 1866 foi Turim, depois Florença (1866 até 1870) e, só então, Roma. Dentre os numerosos problemas gerados pela unificação (1848-1870), o que se apresentou como mais urgente foi o de tornar homogêneo um território muito diferente política e economicamente. Não foi à toa que D’Azeglio, um dos mentores da unificação, afirmou: “Nós fizemos a Itália: agora temos que fazer os italianos”. Segundo Ianni (1972:32) “(...) até não muito tempo milhares de contadini1 só no exterior adquiriam consciência de italianos e deixavam de ser sicilianos, ou napolitanos ou vênetos”. Ou seja, após a Unificação acontece uma construção da nacionalidade italiana, dentro e fora da Itália. Ainda na década de 60 do século XIX, antes de concluída a unificação, a supressão das alfândegas regionais, a oferta de produtos industriais a preços reduzidos e o desenvolvimento das comunicações haviam destruído a produção artesanal, atingindo os pequenos agricultores, que complementavam as suas rendas com o artesanato familiar ou o trabalho em indústrias artesanais existentes no campo.

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A unificação alfandegária, impôs à toda a Itália o sistema alfandegário da Sardenha, que tinha as taxas mais baixas, e fez com que as economias regionais, que eram mais ou menos fechadas e até então conseguiam manter certo equilíbrio, sofressem um violento baque. Também a disparidade econômica do Norte, que se industrializou mais cedo, e do sul, predominantemente agrícola, agravou o quadro econômico do país. Preocupado em obter recursos para a realização de obras públicas, como ferrovias, o governo italiano tomava medidas impopulares, como o imposto sobre a farinha, que atingia duramente os pobres. Nas décadas de 70 e 80 no final do século XIX, várias decisões desse tipo aumentariam os problemas. No entanto, a unificação política e aduaneira impulsionou a industrialização, que se intensificou no decênio de 1880-1890. O Estado reservou a produção de ferro e aço para a indústria nacional, favorecendo a criação da siderurgia moderna. Protegida pelo Estado, a siderurgia se concentrava ao norte, mas sua produção não era suficiente para o mercado interno, o que exigia importações. A indústria mecânica cresceu mais depressa, especialmente as de construção naval e ferroviária, máquinas têxteis e ligadas à eletrificação, principalmente motores e turbinas. A partir de 1905, a indústria automobilística de Turim conseguiu excelentes resultados. Também protegida, a indústria têxtil era a única com capacidade de conquistar mercados externos. A falta de carvão estimulou a produção de energia elétrica. O problema mais grave estava na total concentração do processo de crescimento no norte, enquanto o sul permanecia agrário. Esta situação econômica fez com que houvesse uma crise na Itália durante o período final do século XIX, crise esta que não abalou igualmente todas as regiões. O norte foi a primeira área a ser atingida, pois ali começou a se desenvolver a industrialização, deixando os agricultores que complementavam sua renda com o trabalho artesanal sem emprego e sem ter mercado para colocar seus produtos, que não podiam competir com os feitos pelas fábricas locais ou com os importados. Por isto, o norte da Itália forneceria as primeiras grandes levas de emigrantes, e o sul só viveria o processo de emigração mais tarde, principalmente a partir do início do século XX. A aplicação de formas administrativas típicas do Reino de Savóia provocou com o tempo o agravamento das diferenças já existentes entre as regiões da Itália, criando as condições para um grande movimento migratório de classes rurais para os países das duas Américas entre o fim do século XIX e o início do século XX quando muitos milhões de italianos emigraram. Em 1902, através do decreto Prinetti, o Comissariado Geral da Emigração na Itália proibiu a emigração subvencionada para o Brasil. Este decreto refletia o imenso debate que a imigração provocou na Itália, debate que podemos acompanhar pela sua repercussão nos jornais. Ao analisar os jornais vênetos do período 1861-1914, Filipuzzi (1976) demonstra que a emigração era vista como a única saída possível em face do desemprego e da miséria e ao mesmo tempo as colônias agrícolas do Brasil são pintadas como se fossem o Paraíso na Terra. É significativo que as fazendas de café de São Paulo não sejam nem sequer mencionadas, especialmente porque é para esta região que se dirige o grosso da imigração italiana para o Brasil. 2 Enquanto a elite econômica da Itália tentava reter o êxodo de mão-de-obra, a Igreja incentivava e abençoava seus fiéis, incumbindo-os de serem no mundo portadores da boa-nova. Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, na Emilia Romagna, se preocupou com a assistência espiritual dos emigrados italianos, fundando uma sociedade, logo transformada em Congregação Religiosa para assistência aos emigrantes. Dom Geremia Bonomelli, analista e crítico da política italiana, o pensador maior da emigração da Itália para o mundo, combatia a exclusão, a exploração imposta pelo poder econômico e político, defendendo o direito de os pobres e explorados buscarem seu destino, liberdade e dignidade através do direito de emigrar. Sob o aspecto econômico e social o período decorrido entre a Unificação e a 1ª Guerra Mundial caracterizou-se por um crescimento geral da economia italiana, favorecida pela conjuntura internacional po-

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sitiva que permitiu à Itália ajustar as próprias finanças, reorganizar a administração pública e desenvolver setores essenciais ao desenvolvimento industrial. As condições sociais do país, caracterizado por uma disparidade entre as áreas rurais e urbanas, marcaram os primeiros anos da sua industrialização e os primeiros passos para a organização social moderna, com a formação de partidos políticos o emergir de tensões sociais que tiveram uma ampla influência nos sucessivos eventos históricos italianos. Às vésperas do primeiro conflito mundial a Itália entrou na guerra ao lado das Potências Aliadas, França, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Após a Conferência de Paz de Versailles (1919) a Itália conquistou as regiões setentrionais que ainda faltavam para completar o processo de unificação nacional, Trentino, Alto Adige e Venezia Giulia.3 No entanto a região da Dalmácia, também ambicionada, permaneceu ligada à Iugoslávia. Vitoriosa na guerra, porém economicamente destruída, a Itália foi sacudida por uma série de agitações. Surgem nesse período algumas associações políticas que terão uma influência decisiva no destino do país pelos próximos decênios, o Partido Popular (1919) de Don Sturzo, que no futuro daria origem à Democracia Cristã, o Partido Socialista, o Partido Comunista de Gramsci (1921), e os Grupos de Combate de Mussolini (1919) que depois de 1921 transformou-se no Partido Nacional Fascista, levando Mussolini ao poder. A crise da Itália no pós-guerra e a incapacidade do parlamentarismo e do liberalismo em conter o avanço comunista possibilitou a ação dos fascistas. Em 1926 com a extinção de todos os outros partidos teve início o período do regime fascista. Inspirado numa política autárquica, de cunho nacionalista, o regime fascista introduziu mudanças radicais na vida do país, limitando a liberdade política. Na política exterior o governo Mussolini buscou uma afirmação de prestígio por meio de uma política expansionista que culminou na aliança com a Alemanha (Pacto de Aço de 1939), e a entrada na Segunda Guerra Mundial (1940-1945) contra as Potências Aliadas. Deposto após o desembarque anglo-americano na Sicília, em 1943, Mussolini refugiou-se no norte da Itália, onde foi preso e fuzilado nos últimos dias da guerra em 1945. Tanto a ascensão do fascismo, quanto a entrada na segunda guerra mundial propiciam a criação de um novo fluxo emigratório, radicalmente diferente daquele do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Neste período a migração é de indivíduos isolados, citadinos e com certa escolaridade, enquanto no fluxo migratório anterior verificava-se a predominância de famílias camponesas em sua maioria analfabetas ou com baixo grau de instrução, pois só em 1879 a instrução primária torna-se obrigatória na Itália. A massificação da alfabetização acontece a partir de 1931, todavia já é significativa desde 1921. No entanto na época da grande imigração para o Rio Grande do Sul, nas décadas de 70 e 80 do século XIX, o analfabetismo ainda era a regra. A Itália era um dos países mais pobres e populosos da Europa, com enorme oferta de mão-de-obra. As guerras para a Unificação, a ocupação por sucessivos exércitos, o serviço militar por três anos consecutivos, foram fatores que contribuíram para a desorganização da unidade familiar de trabalho e para a pauperização do pequeno agricultor, além das formas tradicionais de sujeição do campesinato aos proprietários de terra. Por outro lado, a industrialização da Itália Setentrional não era capaz de absorver toda a mão-de-obra disponível, o que explica a opção pela migração. Delineadas as condições em que a massa de migrantes se encontrava na Itália e os motivos da sua partida, buscaremos agora analisar a recepção que eles tiveram no Rio Grande do Sul.

Depois de 1870, o governo imperial incentivou a vinda de colonos italianos para o Rio Grande do Sul. Pequenos cultivadores procedentes em sua maioria do Tirol, do Vêneto e da Lombardia 3


estabeleceram uma série de colônias, das quais a de Caxias foi a mais importante. A atividade econômica dos italianos, além de seguir alguns caminhos semelhantes a dos alemães, especializou-se no cultivo da uva e na produção do vinho. Entre 1882 e 1889, em um total de 41.616 imigrantes que ingressaram no Rio Grande do Sul, 34.418 eram italianos. (FAUSTO 2000: 241-2) A colonização italiana e alemã no Rio Grande do Sul fez parte de um projeto geopolítico do governo imperial brasileiro, que ocorreu no final do século XIX e início do século XX e utilizava a imigração para preencher os chamados “vazios demográficos” do Sul do país. No pós-independência há uma decisão de concentrar a colonização na região sul como uma decisão geopolítica, de consolidação de fronteiras. Neste contexto, os indígenas que ocupavam aquelas terras não eram pensados como nacionais ou brasileiros. Além dessa função estratégica e geopolítica, a imigração foi planejada como um processo de substituição não só do trabalho escravo pelo trabalho livre, mas principalmente como uma substituição do negro escravo pelo branco europeu em um processo de colonização baseado na pequena propriedade. Nessa perspectiva, a escravidão era vista como uma forma arcaica de produção que não se coadunava com a modernidade, enquanto a colonização era vista como um processo civilizatório. No início do século XX, com a aceitação em nível oficial da tese do branqueamento que apostava na imigração e na miscigenação como forma de “branquear” a população brasileira, houve um apoio maciço à imigração européia e a defesa irrestrita de uma imigração de brancos oriundos da Europa. Ramos (1994) observa que enquanto a preocupação do Império era aumentar o número de brancos no país a da República era miscigenar os imigrantes com a população mestiça para branqueá-la. Importa notar que a política imigratória e seus objetivos alteram-se ao longo do tempo como ressalta Carneiro (1950:10): (...) há a distinguir duas políticas de imigração: (1) a política do governo imperial, criando núcleos coloniais de pequenos proprietários, num prosseguimento da velha idéia colonizadora, inaugurada por D. João VI, com a fundação de Nova Friburgo; e (2) a política dos fazendeiros, que querem imigrantes para a lavoura, à medida que vêem o braço escravo escassear. Com a lei de terras de 1850 a terra foi transformada em mercadoria e cessou a distribuição gratuita para os imigrantes. Este fato despertou o interesse da iniciativa privada. Assim, ao lado das colônias imperiais e provinciais surgiram colônias particulares (IOTTI, 2001: 24). As primeiras colônias na encosta superior do nordeste do Rio Grande do Sul, foram as de Conde d’Eu e Dona Isabel, na região onde atualmente estão localizados respectivamente, os municípios de Garibaldi e Bento Gonçalves. Estas colônias foram criadas pela presidência da província em 1870, antes que se iniciasse o processo de imigração italiana no estado. Para ocupá-las, o governo provincial firmou contrato com duas empresas privadas, que deveriam introduzir quarenta mil colonos em um prazo de dez anos. No entanto, as dificuldades encontradas fizeram com que apenas um pequeno número de colonos fosse assentado. Vários foram os motivos que contribuíram para este quadro. Na Europa Central, e em especial na Alemanha, havia uma prevenção generalizada contra o Brasil, que era visto, especialmente depois da publicação das memórias de Thomas Davatz,4 como um local onde os imigrantes sofriam privações. Além disso, o governo provincial pagava menos para os transportadores do que o governo central, e os imigrantes preferiam ficar no sopé da serra, nas áreas já colonizadas. Por isso em 1874 só dezenove lotes da colônia Conde d’Eu estavam sendo cultivados, com apenas setenta e quatro pessoas vivendo no

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local. Em função desse quadro, o governo provincial desistiu de administrar a colonização da área e repassou-a para o governo central. Foi a partir de 1875, sob a administração da União, que chegam as primeiras levas de italianos para Conde D’Eu e Dona Isabel. A área dessas colônias encontrava-se limitada pelo rio Caí, os campos de Vacaria e o município de Triunfo, sendo divididas entre si por um caminho de tropeiros . Nesse mesmo ano foi criada a colônia Caxias, no local chamado pelos tropeiros que subiam a serra em direção a Bom Jesus de “Campo dos Bugres”. Essa colônia limitava-se com Nova Petrópolis, São Francisco de Paula, o rio das Antas e com as colônias de Conde d’Eu e Dona Isabel. As primeiras levas de imigrantes vieram do Piemonte e Lombardia, e depois do Vêneto. Quando começou a imigração do Sul da Itália, em 1901, as terras disponíveis no estado já estavam quase que totalmente ocupadas e, por isso, no Rio Grande predominaram os italianos vindos do norte. Falando sobre a colonização do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XIX, Woortmann esclarece: O processo de ocupação pelos colonos interessava ao capital num duplo sentido: a valorização das terras e a comercialização da produção. Realizando o objetivo da Lei de Terras, datada de 1850, a colonização transforma terras devolutas em mercadoria, cria um campesinato parcelar ao mesmo tempo que elimina o posseiro (e os grupos indígenas, exterminados no bojo do processo), e transforma a propriedade no fundamento da subordinação do capital (1988: 99). Ou seja, a imigração no Rio Grande do Sul foi dirigida para a colonização, que por sua vez foi pensada como um processo de preenchimento de áreas não ocupadas economicamente. Roche nos lembra que além de preencher os vazios demográficos e econômicos, as colônias tinham uma função exemplar: (...) as colônias eram fundadas para balizar e preparar a abertura das estradas que subiriam o escarpamento da serra. Invadiam a frente florestal além da zona de povoamento luso-brasileira e formavam grande número de núcleos agrícolas cujos intervalos seriam ocupados, pouco a pouco, pela população de origem nacional, que a prosperidade exemplar das colônias oficiais atrairia (Roche, 1969:112). Essa colonização dá origem à formação de um novo tipo de campesinato no Brasil, que, por sua vez, engendra a construção de núcleos urbanos e de um pequeno mercado regional. O objetivo dos agentes de colonização era trazer para o Brasil famílias de agricultores brancos. O processo de recrutamento para a colonização no norte da Itália só se efetivava quando se tornava mais difícil trazer alemães, que eram vistos como agricultores eficientes e como o ideal para a colonização no Rio Grande do Sul (SEYFERTH, 2001). Parte do campesinato europeu emigrou para a América em busca de novas terras. Esses camponeses italianos adquiririam, ao chegar ao nordeste do Rio Grande do Sul, a identidade de colonos, isto é, proprietários de uma fração de terra denominada colônia. Segundo Seyferth (1993:38): “No seu significado mais geral, a categoria colono é usada como sinônimo de agricultor de origem européia, e sua gênese remonta ao processo histórico de colonização (...) e ainda” A categoria colono foi construída, historicamente como uma identidade coletiva com múltiplas dimensões sociais e étnicas (SEYFERTH,1993: 60)” . Sendo assim, a palavra colono, que era a designação oficial para o imigrante que adquiria um lote de terra em um projeto de colonização, converte-se em um símbolo de diferenciação étnica. Analisando os aspectos econômicos da colonização italiana para o Rio Grande do Sul, Moure (1980: 96) afirma que a imigração italiana seguiu três etapas básicas: 5


(a) o estabelecimento dos imigrantes em moldes de uma agricultura de subsistência (1875-1910); (b) o desenvolvimento de atividades vitivinicultoras (1910-1950), onde a comercialização de excedentes de produção começa a especificar a área de colonização italiana; e (c) a instalação de cooperativas e empresas de industrialização capazes de aproveitar a produção local, gerando, a exemplo da zona colonial alemã, redefinições ao nível de mercado e nas relações de produção da pequena propriedade (...). Enquanto a primeira fase é quase exclusivamente rural, a partir da segunda o núcleo urbano ganha importância e passa a ser preponderante na terceira fase. No decênio 1950-1960 no Rio Grande do Sul, como aliás em todo o território nacional, a população urbana aumentou de maneira expressiva em detrimento à rural. Uma possível explicação para isso é o surto de industrialização desencadeado após a 2ª Guerra Mundial e consolidado entre 1950 e 1960. Gostaria de sublinhar que esse processo histórico imprimiu certa marca na representação da identidade, memória e tradição da população do Rio Grande do Sul. É através dele que surgiu uma cultura que não é a dos dois Estados Nacionais envolvidos no processo, mas uma mescla de ambas. Ao chegar ao território brasileiro, o imigrante italiano reelaborou sua identidade, definiu seus amigos e inimigos, delimitou imaginariamente seu território, estabelece sua ordem social e familiar, e redefine seus modelos de conduta.

Bibliografia CARNEIRO, J. Fernando. (1950) Imigração e colonização no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil. DAVATZ, Thomas (1972)Memórias de um colono no Brasil. São Paulo: Martins/Edusp FAUSTO, Bóris (2000) História do Brasil.8 ed. São Paulo: EDUSP FILIPUZZI, Angelo. (1976) Il Dibattito Sull’Emigrazione; polemiche nazionali e stampa veneta (18611914). Firenze: Le Monnier. GABACCIA, Donna (2000) Italy’s many diasporas. Seattle: University of Washington Press IANNI, Constantino (1972) Homens sem paz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. IOTTI, Luiza Horn. (2001) Imigração e Colonização: legislação de 1747 a 1915. Porto Alegre / Caxias do Sul, Assembléia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul/EDUCS MOURE, Telmo.(1980) A inserção da economia imigrante na economia gaúcha. In: Dacanal, José H. e Gonzaga, Sérgius (org.). RS: Imigração e Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980 RAMOS, Jair de Souza. (2002) O Poder de domar do fraco: Construção de autoridade e poder tutelar na política de povoamento do solo nacional. Tese de doutorado. PPGAS, Museu Nacional, UFRJ ROCHE, Jean. (1969) A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo. SEYFERTH, Giralda (1993) “Identidade Camponesa e Identidade Étnica (Um estudo de caso)”, Anuário Antropológico 91 SEYFERTH, Giralda (2001). “Imigração e nacionalismo: o discurso da exclusão e a política imigratória no Brasil”. In: Castro, Mary Garcia (coord.). Migrações Internacionais: Contribuições para políticas, Brasília: CNPD WOORTMANN, Ellen F.(1988) Colonos e Sitiantes: um estudo comparativo do parentesco e da reprodução social camponesa. Tese de Doutorado, Brasília, UNB

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NOTAS * Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professora da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora. 1 Camponeses. 2 A ponto de uma autora ítalo-americana afirmar em um livro sobre a diáspora italiana (Gabaccia, 2000) que os imigrantes italianos foram encaminhados para plantações de café no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Aliás o texto original demonstra perfeitamente que a autora não compreendeu a existência de dois diferentes tipos de imigração italiana para o Brasil: a de colonização e a de braços para as fazendas de café. 3 Estas regiões enviaram vários colonos para o Brasil, que aqui chegavam com o passaporte austríaco. 4 Colono alemão que participou da revolta de Ibiacaba, publicou, ainda ano século XIX, um livro sobre o tratamento que os colonos recebiam nas fazendas de café paulista. Ver Davatz (1972).

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Documento de contratação de famílias de imigrantes pela Agencia Official de Collocação. Nº de ordem: 9857.

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Capa do passaporte de imigrante italiano. Secretaria da Agricultura – Requerimentos Diversos, 1920, nº de ordem: 7535.

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Pågina interna do passaporte de uma imigrante italiana. Secretaria da Agricultura –Requerimentos Diversos, 1920, nº de ordem: 7535.

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Bilhete de embarque de um imigrante Italiano com partida do porto do Rio Grande (Rio Grande do Sul) e destino Porto de Santos (São Paulo). Secretaria da Agricultura – Requerimentos Diversos, 1920, nº de ordem 7535.

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A Procissão do Senhor Morto e as atividades da Semana Santa: representações culturais, poder e cidadania.1 Bárbara Caldeira2 No século XIX, por conta do número de festas e solenidades religiosas realizadas na Bahia, já era possível identificar e organizar os eventos em um calendário que seguia o caminho dividido entre ciclos temáticos. Inseridas nesse conjunto de práticas cristãs, as procissões durante o período colonial e imperial exerceram um papel de destaque como representantes do referencial social das pessoas que buscava por meio de elementos culturais ocidentais, adaptá-los ao seu modo de pensar e viver, além de servirem aos propósitos do processo educativo e evangelizador da Igreja em todo cenário nacional. 3 O objetivo desse texto é descrever e analisar as relações de poder desenvolvidas entre a liturgia e as comemorações populares como pontos que circunscrevem à figura política dos governantes e povoam o imaginário político e religioso da Procissão do Senhor Morto na construção de um novo modelo de cidadão. De fato, na Bahia, a Procissão do Senhor Morto ou do Enterro, tem uma história marcada por aspectos diferentes, que vão desde o aspecto religioso, envolvendo disputas entre as irmandades com suas particularidades até o olhar de cada indivíduo que acompanha ou já participou da procissão. Dentro do contexto da festa, há a presença de elementos que contribuem para a continuidade de uma tradição religiosa e social, a exemplo da experiência de vida dos espectadores que, aos olhos da religião, permitem consentir à Sexta-Feira Santa o “verdadeiro” caráter de fé, que ao longo dos anos serviu como condutor do imaginário baiano e integra seu patrimônio histórico-cultural. Realmente, conforme o historiador João da Silva Campos, essa festa já era realizada em Portugal e a população de Lisboa comparecia numerosamente para festejar e depositar na “sala dos milagres”, os ricos donativos “por muitos de milhares de pessoas de todas as províncias do país devido aos milagres que lhes são atribuídos (...)”.4 As celebrações da Semana Santa eram, nesse período, por conseguinte uma oportunidade para aqueles cristãos que precisavam acalmar sua consciência e se entregarem à redenção religiosa, de forma que deixassem suas almas e corpos no caminho da salvação, mais próximas da Igreja e de suas aspirações voltadas para a sociedade baiana. Para além do caráter religioso, as celebrações da Semana Santa e, principalmente, a Procissão do Senhor Morto atuavam como personagens que tinham como cenário um espaço sócioeconômico ambientalizado pelo confronto sempre presente entre “poderosos” e “pobres”, onde, no campo dos vencidos, estavam as permanentes vitórias dos ricos e da elite baiana. Valter Fraga Filho nos oferece uma visão sobre as atitudes de parte da sociedade baiana frente aos mendigos no século XIX: Desde a Idade Média, a imagem dos pobres pedintes estava impregnada de simbologia sagrada. A mão da caridade para eles estendida extinguia os pecados e assegurava a salvação da alma após a morte. Era como se eles tivessem de existir para proporcionar a salvação dos mais afortunados.(...) Por isso mesmo, dar esmolas aos mendigos era ato que as pessoas buscavam cultivar no seu cotidiano e de forma especial nos momentos mais importantes da vida.5

Este trecho nos remete a fazer algumas inferências no campo da identidade que se buscava ter por parte das diversas classes sociais que ali se reuniam, cada uma com uma finalidade e uma percepção para com a festa e seus significados; o domínio do imaginário, portanto, denunciava uma mistura dos diferentes grupos no cenário da festa: beatas, mendigos, vadios e governantes.

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Dessa forma, dois espaços dividem fundamentalmente a festa: a igreja e as ruas. As ruas que ambientam os rituais das procissões, em geral, ficavam perdidas no contexto absorvido pela divisão lógica das práticas eclesiásticas e laicas. Esse espaço termina por se enveredar entre caminhos que encerram contradições e ambigüidades pertinentes às ações religiosas: um lugar profano servia de palco para as celebrações sagradas da vida cristã. Estas, por sua vez, permeiam o cotidiano da festa; entenda-se nesse caso, que a liturgia se define como um culto público e oficial instituído pela Igreja apresentando-se com variações presentes nas saudações, atos penitenciais, leitura de evangelhos, entre outros. No contexto do espetáculo, cada devoto tinha seu papel e lugar definido, com controle temporal dos rituais, que ora ditava o tempo para rezar, ora ditava o momento de choros e cânticos. A própria escolha das pessoas para cada papel estava vinculada à categoria social que se enquadrava ao novo ideal de cidadão. A prostituta Madalena sempre era representada por negras ou mestiças devido à “realidade” que se desejava alcançar durante a encenação. Em contrapartida, o viajante inglês Henry Koster que, por recomendações médicas veio ao Nordeste Brasileiro curar-se de tuberculose, parece admirado por não haver “diferenças” entre a classe feminina em Recife. “As mulheres ao entrar, sejam brancas ou de côr, ficam junto a essa grade, sentando-se no chão, no grande espaço aberto no centro.”6 A vigilância hierárquica, por sua vez, demonstrava a necessidade de centralizar a figura do imperador na imagem de Cristo. Sempre presente nas comemorações, Dom Pedro I e família impunham suas participações com o objetivo de vigiar e analisar a disciplinas que exigia a ocasião e o dever do bom cristão e cidadão, tendo o exame como última etapa organizadora do dia, pois, era “o culto religioso, considerado no Brasil, pretexto de reuniões públicas nas quais o amor próprio rivaliza com a devoção (...)”. 7 Essas normatizações atendiam, de certa forma, às aspirações civilizatórias defendidas pelos liberais durante o período imperial. Uma boa “educação social” era pleiteada por aqueles que compravam e seguiam os manuais de boas maneiras que incluíam novos cuidados com a higiene pública e privada, para não falar da reforma que os costumes praticados nas festas e procissões sofreram com a ação das idéias francesas trazidas pela Corte e brasileiros letrados que haviam aprendido os “hábitos corretos” e ideais de convivência social 8 No campo político, as constantes discussões travadas entre liberais e monarquistas mostram que os princípios de controle e disciplina aparecem nos festejos da Semana Santa. Já que os acontecimentos pertinentes à morte podem nos dizer muito sobre a realidade que contextualiza os sistemas simbólicos ao qual se refere Pierre Bourdieu9 às práticas políticas e litúrgicas da festa que afinal, nos dizem qual a “imagem que uma sociedade tem de si mesma”.10 Segundo a historiadora Martha Abreu, os liberais viam as festas religiosas como atraso frente ao desenvolvimento do país graças a um intenso grau de superstição da população. Do outro lado, os radicais bradavam a separação entre Estado e Igreja, ao passo que os moderados temiam o perigo que essa separação poderia trazer ao permitir que a igreja ganhasse uma certa liberdade.11 A Bahia seguiria os mesmos caminhos que as províncias brasileiras adotaram com a vinda e morte de Dom João VI: uma maior intensidade nos festejos no império. Esse aumento foi expressivo em todo o território nacional e caracterizado em ambas as ocasiões por objetos principais das festas: o rei e a morte. Não seria exagero afirmar que entre as relações de poder neste cenário, estabelecido os limites entre público e privado, e até onde essas duas instituições se misturam, há uma forte tendência de exclusão social em ambos os grupos envolvidos, cada um a seu modo. Essa exclusão busca uma explicação nos atos espontâneos diante da imagem, ou melhor dizendo, do corpo. O beijar os pés, o toque no corpo redime os pecados cometidos ou pensados, garantido a absolvição temporária. Se pensarmos sobre todos os aspectos e ritos praticados durante a festa, é fácil realizar analogias ou referências sem meio termo às práticas litúrgicas, sejam administrativas, políticas ou financeiras.

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O que nos interessa, no entanto, se refere ao jejum obrigatório e a abstinência da carne ordenada pela Igreja aos fiéis durante a Quaresma com término somente ao meio-dia do Sábado de Aleluia com o toque dos sinos. Com efeito, em carta a D. Fernando José de Portugal, D. Rodrigo de Souza Coutinho relata um acontecimento durante a Semana Santa no ano de 1798. O documento denuncia as supostas idéias liberais do Padre Francisco Agostinho Gomes e os primeiros indícios dessa “loucura incomprehensivel (sic) e por não entenderem seus interesses se achão infectos dos abominavis principios”. Esse comentário feito pelo próprio D. Fernando foi transmitido por D. Rodrigo acerca de um banquete oferecido a vários personagens partidários da mesma ideologia, em plena Sexta-Feira Santa, com farta carne vermelha à mesa. Sua majestade ordena que VS. examine logo este ultimo facto e achando-o verdadeiro, faca prender tanto a elle como aos seus Amigos sectarios dos mesmos principios e os faca logo julgar com toda severidade das Leis para que o castigo de taes Reos seja verdadeiramente exemplar e contenha semelhantes criminosos. Ripito (sic) novamente a VS., de ordem de S. Majestade que premio e castigo são dois Polos sobre que se estriba toda a Machina Politica e que no momento presente toda a vigilancia contra os máos he indispensavel(...).12

Dois pontos a serem analisados: o próprio fato do desrespeito às leis eclesiásticas e a afronta de uma figura da Igreja à soberania do monarca e à sua imagem. O que está em jogo nesse caso, compromete mais do que uma desobediência ao jejum quaresmático, mas o confronto entre a nova ordem política em crescimento e a resistência do poder que a continuidade monárquica manteria para os seus seguidores, demonstrando a forte relação estabelecida entre Igreja e Estado. Contradições à parte, o fato é que, o árduo trabalho realizado pelos propagandistas do Império encontrava um forte entrave na campanha elaborada pelo grupo liberal que clamava pelo fim das superstições no imaginário popular e o início do desenvolvimento urbano no país. Os relatos dos viajantes estrangeiros ao Brasil durante o século XIX deixam claro que a aversão e admiração deles ao constatar que nas terras de Dom João e depois Dom Pedro I, as pessoas continuavam a cometer atos revolucionários e crendices bárbaras. Na descrição do pintor francês Jean Baptiste Debret, a Procissão do Senhor Morto, examinando de sangue frio, todos esses detalhes não se pode deixar de verificar o estilo barbaro e já agora grotesco do século que os criou. Como não sorrir ante estas incoerencias ridiculas tão religiosamente conservadas, se esquece-mos que os inventores dessas cerimonias foram forçado a tais exageros para impressionar os povos ignorantes, que julgavam apenas com os olhos?13

Enquanto Debret encarregou-se de “civilizar” os festejos culturais locais, Koster entre 1810 e 1813, em sua viagem traz anotações primordiais do cotidiano comemorativo nos domínios de D. João VI. No dia seguinte, Sexta-Feira Santa, a decoracao das igrejas, o traje das mulheres e mesmo a maneira dos dois sexos mudaram. Tudo sombrío. (...) a cortina caiu imediatamente, deixando ver uma cruz enorme.(...) Um homem, de cabeleira curta e tunica verde, era S. Joao, e uma mulher, de joelhos a pe da cruz era Madalena. Informaram-me que, para manter o carater, os costumes da mulher não eram muitos puros.(...) Ficara completamente assombrado. Pensei que haveria de ser algo surpreendente, mas nunca a ideia de que levariam tao longe a representacao.

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Para além da atmosfera religiosa, as festas refletem em grande parte a situação política imperial. Em 1831, o imperador decreta uma lei que modifica o horário da procissão, antes realizada entre oito e nove

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horas da noite, e a partir de então sai durante à tarde por volta das quatro horas. Isso se deu graças às revoltas populares e de escravos quilombolas constantemente presentes nas principais províncias desde a época da independência e que seriam estratégias de controle da possível disseminação de idéias liberais que acometiam a população fiel e cristã dos princípios monárquicos e decentes. Em Salvador, o Diário da Bahia publica uma carta do administrador do teatro público ao governador alertando o prejuízo que as finanças sofreriam com a suspensão das peças durante os dias comuns, só sendo realizadas em datas cívicas e santificadas. Na mesma semana, o jornal noticia a fuga e captura de um grupo de Galés do Arsenal da Marinha, evidenciando que a decisão anterior do governo, relativas às manifestações culturais na cidade se tratava de uma medida coercitiva a qualquer motim ou rebelião e uma facilitação do trabalho policial nas ruas baianas. 15

Realmente, ao que parece, seria muito mais cômodo e seguro às forças governamentais esse tipo de calendário, já que só precisariam reunir e reforçar a Guarda Nacional nesses dias, coisa que comumente acontecia já há um bom tempo. Por outro lado, além do elemento segurança pública, a figura do imperador também necessitava de cuidados. A disputa entre a identidade social e jurídica dos governantes caminhava pelo âmbito da sujeição de um pacto entre o discurso e a prática. Por fim, os aspectos aqui discutidos, nos apresentam a pessoa mista do imperador. Assim, era preciso manter a fé popular em sua pessoa, garantindo a campanha que a morte e Deus faziam durante as procissões e cortejos. Segundo Iara Souza, esse era o momento que o poder monárquico tinha para se comunicar com o povo através de “mecanismos sociais”.16 O que nos mostra a Procissão do Senhor Morto, com suas lamentações e encenações, se encontra no jogo dos limites da festa, sobre a contradição que ele instaura entre a ordem e a espontaneidade, sobre as resistências do imaginário à implantação dos novos hábitos cerimoniais e na conduta do novo cidadão brasileiro. Dessa forma, Salvador reflete, entre tantos aspectos comuns e contraditórios às províncias imperiais, o controle político e social que os órgãos administrativos e clericais exerciam no século XIX, apoiados nos hábitos do dia-a-dia coletivo, no trabalho de plantar nas mentalidades e coração do povo um modelo de cidadania ideal calcada no combate à vadiagem, na defesa da moral, da civilização e em nome de Deus e do imperador.

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NOTAS 1

Este artigo é fruto da Pesquisa intitulada “Verso e Reverso da Liturgia: cotidiano das práticas e representações culturais na

Procissão do Senhor Morto na Salvador Contemporânea” financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) e desenvolvida durante a graduação na categoria de Iniciação Cientifica em 2005, já concluída, sob orientação da Professora Dra. Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti. A primeira versão desse trabalho foi apresentada no XXIII Simpósio Nacional de História - História: Guerra e Paz, 2005, Londrina. 2

Graduada em História pelas Faculdades Jorge Amado e atualmente integrante do Projeto de Pesquisa “Família, Migração

e Educação: estudo comparativo de movimentos sociais pela terra (Alagoas, Bahia e Pará)” financiado pela FAPESB e desenvolvido no Curso de Pós-graduação do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador sob coordenação da Dra. Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti. 3

VERGER, Pierre. Notícias da Bahia de 1850. Salvador: Corrupio, 1999.

4

CAMPOS, João da Silva. Procissões Tradicionais da Bahia. Secretaria da Educação e Saúde. Publicação Museu da Bahia

(obra póstuma), 1941;.138. 5

FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São Paulo: Hucitec/Edufba, 1996:35.

6

KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. Tradução e Notas de Luis

Câmara Cascudo: .47-48. 7

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Tomo I, parte II, s.d. p.362.

8

SCHWUARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

9

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

10

REVEL, Jacques & Jean-Pierre Peter. “O corpo: o doente e sua história”. In: LE GOFF, Jacques & NORA, Pierre.(org.).

História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 11

ABREU, Martha. O Império do Divino - Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-1900). Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 12

AMARAL, Braz do. Acção da Bahia na obra de Independência Nacional. Bahia: Imprensa Official do Estado, 1923.

13

DEBRET, Jean-Baptiste. Op. Cit, p.379.

14

KOSTER, Henry. Op. Cit, p. 49.

15

Diario da Bahia. Sabbado, 24 de Setembro de 1836. Setor de Jornais Raros, Biblioteca Pública do Estado da Bahia.

16

SOUZA, Iara. “Liturgia real: entre a permanência e o efêmero”. In: JANCSÓN, István & KANTOR, Íris. (org). Festa –

Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec: EDUSP, 2001.

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Capa do “Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da Cidade do Salvador”. Tipografia Beneditina; Salvador, s/d.

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Página de rosto do “Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da Cidade do Salvador”. Tipografia Beneditina; Salvador, s/d. Esta obra compila alguns documentos sobre a capital da Bahia.

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Mapa da Cidade de Salvador no ano de 1600. “Livro Velho do Tombo do Mosteiro de São Bento da Cidade do Salvador”. Tipografia Beneditina; Salvador, s/d.

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ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NAS BARRAS DOS TRIBUNAIS Adriana Pereira Campos* Os processos judiciais vêm atraindo a atenção dos historiadores há, pelo menos, duas décadas. Dentre esses autos, destaca-se um valioso instrumento de que se valiam alguns escravos para pleitear a liberdade na Justiça. Curiosamente, aqueles seres coisificados conseguiam penetrar nessa majestosa arena que enfeixava um corpo de funcionários com reconhecida, até temida, autoridade. Esses documentos guardam preciosos elementos que podem abrir as portas para o passado da escravidão brasileira e informar aspectos ainda desconhecidos dessa imbricada e mitificada realidade. Embora, os processos de liberdade já tenham sido exemplarmente discutidos1 , considero possível ainda tecer algumas outras considerações acerca desse espetacular movimento que se realizou nas barras dos tribunais no Brasil. A concessão jurídica da liberdade na sociedade escravista brasileira constitui um rico campo de investigação sobre a prática efetiva do Direito Civil. A instituição da alforria obteve expressão legal por intermédio da Lei do Ventre Livre. Oficializava-se assim, entre os escravos, o costume de reunir uma soma em dinheiro para a compra da liberdade: “O escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para a indenização de seu valor, tem direito à alforria”, rezava a lei, em seu art. 4º. § 2º.. Anteriormente, entretanto, já existia um fundamento legal das alforrias baseado nas Ordenações Filipinas, livro 4º. Título 63. As alforrias eram, portanto, equiparadas às doações, pois lhes faziam a aplicação de idênticas disposições, sob a denominação geral de doações, por intermédio da qual estabelecia a regra geral contida em seu parágrafo 10. As cartas de liberdade carregavam consigo vários sentidos além da outorga da liberdade a um escravo. Muitas vezes, tal concessão transformava-se, na letra dos documentos, em uma espécie de compromisso tácito de lealdade entre o senhor e seu escravo. A efetividade desse mecanismo exigia o cumprimento dos atos pactuados. Cabia, então, ao sistema judiciário não apenas o reconhecer, como também e, principalmente, legitimar e proteger esses atos, no caso de serem desrespeitados por alguma parte ilegítima interessada em violar a vontade senhorial. As ações de liberdade, por sua vez, envolviam procedimentos jurídicos utilizados para a requisição da emancipação de algum cativo perante o Judiciário brasileiro da época. Os atos do processo de liberdade abarcavam grandes complexidades e sutilezas. Os aplicadores do Direito viam-se diante da difícil tarefa de equilibrar-se entre, de um lado, o reconhecimento das negociações entre escravos e senhores e, de outro, a preservação do Direito patrimonial. Um exemplo concreto desse problema nos é fornecido pelo próprio Conselho de Estado, quando, em 1853, decidiu que “não pode ser o senhor obrigado a alforriar o escravo contra sua vontade [do primeiro], mesmo dando àquele seu valor”, pois “a Constituição garante a propriedade em toda sua plenitude”.2 O princípio de obediência à vontade senhorial, acima referido, indica a dificuldade da tarefa dos magistrados ao enfrentarem, no cotidiano da Justiça, pleitos cada vez mais diversos e imprevistos. O reconhecimento da vontade de um senhor expressa em testamento, o descontentamento de um herdeiro com as disposições de um inventário, ou até mesmo o descumprimento de uma promessa de liberdade expressa publicamente, tudo isso criava sérios embaraços para os magistrados. Em várias ocasiões, o aplicador do Direito precisava refletir detidamente sobre a solução a ser empregada, para que a vontade senhorial e o princípio da propriedade privada não fossem maculados. Na Comarca de Vitória/ES, Venâncio Gomes Loureiro, por exemplo, quis beneficiar com a liberdade seu afilhado 1


Sebastião, filho de Efigênia, escrava do finado Francisco Pinto Ribeiro. O padrinho do escravo, não obtendo o consentimento do tutor e curador geral dos órfãos, requereu, em juízo, o arbitramento do valor para depósito. O Juiz encarregado avaliou o ingênuo em cinqüenta mil réis e Venâncio juntou ao processo um talão de depósito da quantia ajuizada. Em 1851, a sentença foi favorável ao pleito: “Julgo por liberto ao menor Sebastião, filho de Efigênia, escrava dos órfãos filhos do finado Francisco Pinto Ribeiro”. Esses e outros processos depositados nos arquivos públicos do país indicam algumas pistas para a compreensão da luta travada pelos escravos. O elemento mais curioso nos processos de liberdade, não é demais ressaltar, constitui-se no fato de esses escravos possuírem recursos para cobrir o valor a cada um deles atribuído. O pecúlio, portanto, era um instrumento comumente utilizado na Comarca de Vitória, mesmo antes da Lei de 1871. Desse modo, a prática jurídica de reconhecimento desse instituto, bem como das promessas de liberdade, escritas ou não, abrangia também regiões menos populosas do Império, como evidenciado nos juizados de órfãos da Província do Espírito Santo. Nessa medida, podemos relacionar esse procedimento das instâncias judiciárias do país à cultura jurídica romana dos magistrados brasileiros. A formação romanista dos juristas proporcionava-lhes o conhecimento sobre o tradicional instituto do pecúlio proveniente da escravidão romana. A ausência de tal tradição, possivelmente, não impediria que fosse ele reconhecido judicialmente. Essa cultura legal, no entanto, permitiu ao Judiciário brasileiro a liberdade de acolher o instituto antes mesmo que uma lei ou precedente assim o determinasse expressamente sem maiores dificuldades.3 Além da dimensão legal, a alforria e o pecúlio partilhavam um aspecto importante como instrumento de negociação entre senhores e escravos. Para conseguir a liberdade, o cativo precisava corresponder à lealdade esperada por seu senhor. Nos registros de noventa e duas cartas de liberdade, abrigadas no Cartório do Segundo Ofício de Vitória/ES, encontramos o recurso freqüente ao instituto do pecúlio. Em tais documentos, pode-se constatar que o escravo, para obter as somas necessárias à compra de sua liberdade, mantinha-se estreitamente ligado aos seus senhores. Por meio dessa aproximação, o cativo lograva executar tarefas envolvendo rendimentos monetários. Outras vezes, o escravo buscava um homem livre, de suas relações, que pudesse lhe adiantar o valor requerido, colocando-se, em troca, sob a proteção dessa pessoa. A Lei do Ventre Livre procurou, inclusive, legitimar tais práticas, como verificamos em seu artigo 4º., parágrafo 3º., onde lemos: “É, outrossim, permitido ao escravo, em favor da sua liberdade, contratar com terceiro a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete anos, mediante o consentimento do senhor e aprovação do Juiz de Órfãos”. Todavia, juntamente com o registro do pecúlio, constava quase sempre a preocupação do senhor em fazer anotar a benevolência de seu ato. Sob esse aspecto, as notas cartoriais de liberdade extrapolavam uma simples troca comercial. Antes, elas carregavam consigo a mensagem de retribuição ou reconhecimento aos longos anos de lealdade e submissão no cativeiro.4 Todos os atos relacionados à alforria correspondiam à vontade privada do senhor. Após a promulgação da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, a negociação entre o senhor e o escravo para o acerto do preço da carta de liberdade continuava privativa das partes. A intervenção da Justiça somente se justificava em caso de impasse. Os autores das ações de liberdade, contudo, não se restringiam aos termos do negócio, isto é, a discordâncias relativas aos valores e condições para a compra da liberdade. Muitas vezes, os pleiteantes procuravam incluir argumentos capazes de sensibilizar o Juiz. Entre as justificativas, encontramos a união familiar como argumento apresentado em quatro ações de liberdade. A indissolubilidade da família foi, inclusive,

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usada como princípio para o reconhecimento do pecúlio pela Lei do Ventre Livre, em seu o art. 4º., parágrafo 8º.: “Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não comportar a reunião de uma família, e nenhum deles preferir conservá-la sob o seu domínio, mediante reposição da quota-parte dos outros interessados, será a mesma família vendida e o seu produto rateado”. Em geral, as ações de liberdade motivadas pela preservação dos vínculos familiares tinham como protagonistas os parentes livres mais próximos ou um escravo capaz de comprovar sua condição de arrimo de família. Senão, vejamos. Em abril de 1872, a escrava Josefina, pertencente à Santa Casa de Misericórdia, requereu sua alforria por ser mãe de oito filhos menores e por contar com quase cinqüenta anos, idade avançada para a época. No mesmo mês que Josefina, Valério José da Silva requisitou a liberdade de sua esposa, invocando, além da posse de um pecúlio, o fato de ter-se casado perante a Igreja. É significativo o uso do casamento religioso nesse último requerimento, pois esclarece como os diversos símbolos de uma vida socialmente aceitável eram empregados como artifícios de convencimento do julgador. De acordo com os processos de liberdade registrados na Comarca de Vitória, a idade tornou-se, com o tempo, um elemento importante nos pedidos de liberdade, indicando fortemente que a sociedade passara a julgar imoral a exploração dos mais velhos. Aqueles que contavam com idade superior a quarenta anos utilizavam-se disso nas petições, justificando sua debilidade para o trabalho por conta de doenças advindas da velhice. Como o limite ainda não estava colocado, verificou-se um uso indiscriminado das mais diferentes idades para caracterizar a velhice. Em março de 1872, a escrava Iria ingressou na Justiça sob alegação parecida. Além da avançada idade de 40 anos, sustentava a cativa que seus problemas gástricos e oftalmológicos, responsáveis por sua frágil saúde, eram incompatíveis com suas atividades de doméstica. Iria dizia não enxergar bem e não poder se expor ao calor constante característico de seu ofício de cozinheira. O Juiz acatou essas alegações e arbitrou um valor, condizente com as economias da escrava, para a compra de sua alforria. O pecúlio cumpria, mais uma vez, sua missão de ressarcimento da perda da propriedade, sem a qual o Judiciário teria muita dificuldade de se mover rumo à limitação dos excessos senhoriais. Em 1872, José Corrêa de Jesus ingressou em Juízo para requerer a liberdade de seu curatelado, Francisco, de 43 anos, argumentando que “como o senhor queira chegar a um acordo sobre o preço de sua liberdade, exigindo do suplicante quantia superior as suas forças e sua idade”. Em 1872, outro curador apresentou como argumento a idade do escravo Alexando que era “maior de 50 anos”. Posteriormente, como sabemos, a Lei dos Sexagenários fixou em sessenta anos a idade máxima para a exploração de um homem como escravo, após o que a liberdade deveria ser concedida. O debate sobre esse critério, entretanto, já estava posto na sociedade e, particularmente, no Judiciário, o qual criava novas interpretações do ordenamento para julgar os casos envolvendo “idosos”. A força inovadora da jurisprudência, visando adequar as leis às mudanças na ética e na moral da sociedade, parece ter, por diversas ocasiões, antecipado o conteúdo de novas legislações. As ações de liberdade impetradas após a vigência da Lei do Ventre Livre pertencem a uma época de crescente agitação abolicionista e de leis e decisões judiciárias indicativas da necessidade de reformas no sistema. Movidos pelo desejo, e, muitas vezes, pela necessidade de criar uma situação mais justa, os cativos exploravam com inteligência o espaço institucional disponível na busca de alternativas inexistentes na relação pessoal com seu proprietário. Atualmente, a historiografia reconhece a submissão e a subserviência como estratégias utilizadas pelos escravos para arrancar do senhor alguma vantagem.

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Quando tais alternativas não alcançavam êxito, o Judiciário convertia-se numa instância de enfrentamento e desgaste da vontade senhorial. De modo geral, os escravos tentavam estabelecer, previamente, um ajuste consensual pela alforria. Apenas ocasionalmente, quando de um impasse, requisitava-se a intervenção do Juízo da localidade. Muitos magistrados, conscientes do valor de sua decisão, indeferiam imediatamente algumas petições com base em equívocos processuais ou, então, solicitavam explicações ulteriores sobre o pedido. Outras ações, contudo, prosperavam de modo a exigir uma decisão do Juiz. Embora nem todas as sentenças fossem favoráveis aos escravos, crescia, entre eles, paulatinamente, a percepção do Judiciário como um foro de pressão sobre seus senhores.5

NOTAS * Doutora em História Social pelo Programa de História Social do IFCS/UFRJ, pesquisadora do Centro de Estudos dos Oitocentos/PRONEX (pesquisa com financiamento da FAPES – Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Espírito Santo e CNPq) e professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo. 1 CHALHOUB, Sidney. Visões de liberdade: uma história das últimas décadas de escravidão no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 2 SCISÍNIO, Alor Eduardo. Dicionário da escravidão. Rio de Janeiro: Christiano Editorial, 1997. 3 Sobre o polêmico uso do Direito Romano no Brasil há diversas obras de grande importância tais como MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis, Vozes/INL, [1866] 1976 e PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2001. 4 Sobre o assunto há um interessante trabalho de BELLINI, Lígia. Por amor e por interesse: relação senhor escravo em cartas de alforria. In: REIS, João José. Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 5 O Palácio do Governo permaneceu durante todo o século dezenove na Igreja São Tiago, que sediava também os juizados da cidade.

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Recorte do Jornal Cruzeiro, do município do Rio de Janeiro, datado de 17 de Dezembro de 1882 onde é anunciado o ofício que garantiria libertação de duas escravas graças ao fundo de emancipação de escravos. Nº de ordem: 5534.

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Ofício que dá entrada a uma ação judicial com o objetivo de estipular o valor que deve ser pago, pelo fundo de emancipação de escravos, para a compra da liberdade de duas escravas. Nota-se que a Senhora dessas escravas não entrou em acordo sobre o valor das mesmas e por isso foi necessária a ação judicial. Nº de ordem: 5534. 6


7 Tabela do fundo de emancipação de escravos do Município de Riberão Preto com informações sobre os escravos libertos e os respectivos valores de pecúlio. Nº de ordem: 5534.


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