Histórica

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A família do Sion: Memórias de mulheres católicas Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti∗ “Recordar é acordar a memória” Maria da Conceição Jardim, ex-aluna de Sion. RESUMO O objetivo deste artigo é enveredar pelo universo feminino católico entre as décadas de 1920 e 1940, descortinando as representações de mulheres a partir de suas memórias e egodocumentos. A análise de instituição de ensino confessional proporciona matizes da vida cotidiana e da identidade construída socialmente, revelando o cumprimento de papéis funcionais e de modelos a serem seguidos como exemplo de família, valores e qualificação. Palavras-Chave: História – Memória – Mulheres – Família O percurso da memória: povoando o passado “As minhas lembranças não datam de tão longe. São velhas, porém, são velhíssimas, dirão as pessoas de hoje. Concordo que o sejam. Parecem-me, por vezes, de ontem, tão frescas, vivas e buliçosas se conservaram, imorredouramente, em mim. Tenho por elas o carinho emocionado da criança pelos seus bonecos. São os brinquedos da minha saudade ... O meu velho Sion ... Não sei se todas o verão como eu o via. Sei, porém, quando, no desencanto e na experiência da minha maturidade, uma onda maior de ceticismo e de amargor ameaça submergir-me toda crença e toda esperança, é para a capelinha deste passado Sion, agora mudado, transformado, engrandecido e modernizado, que, insensivelmente, me volto. (...) Um perfume de incenso erra no ar, as flores do altar se esbatem numa penumbra cheia de unção, no alto, a Virgem de Sion apruma o vulto claro sobre as procelas do mundo. IN SION FIRMATA SUM. Crer. Esperar. Amar. Foi de ontem. É de hoje ainda. Será de sempre”. (CELSO, p. 100)

Invocações que parecem recentes pertencem, de fato, a tempos muito velhos. Lembranças de dias antigos se misturam inapelavelmente nos acontecimentos de ontem, de hoje, até mesmo nos de amanhã. Que tempos são esses, os tempos da memória? Nas reminiscências de Maria Eugênia Celso fazem-se presentes tempos de melancolia, outros de promessas que não se cumpriram, assim como se revelam, ainda, duradouros laços de uma relação familiar intensa, criada entre os membros do Colégio Sion, em São Paulo. Tudo parece interligar múltiplas temporalidades: passado, presente e futuro. A representação individual se ancora em construções de uma memória mais ampla, expressas pelas meninas que freqüentaram este ambiente educacional e, posteriormente, retornam no imaginário com lembranças saudosas - “os brinquedos da minha saudade” - dos tempos passados, povoados da cumplicidade, das relações imbricadas a cada instante dentro daquele universo. A autora tece a urdidura da memória carregando-a de condicionais, de tempos pretéritos que se entrelaçam, confusa ainda sobre seu papel neste mundo novo que se descortinava através dos ensinamentos cristãos, do perfume de santidade que envolve a Virgem Maria, modelo de Mãe, de mulher, de fé e de resignação para as jovens a quem a Fé (“crer”), a Esperança (“esperar”) e o “amor”, traduzido pela Caridade, têm a eternidade sacralizada do dogma: “Foi ontem. É de hoje ainda. Será de sempre”, numa certeza feita de esperanças de que o mundo fora do Colégio seja tão aninhador e tão disciplinado como o recôndito silêncio da “capelinha” do “meu velho Sion”. A experiência feminina que mal começa a se constituir através de furtivos clarões naquele claustro de saber escolástico é prenhe de questionamentos. Ao selecionar e recuperar algumas memórias e tentar apreender instantes de tempos vividos nos interiores do Sion, captando o evento, fundindo os horizontes (meu e das memorialistas), numa experiência hermenêutica de reconstrução histórica, valho-me de


referenciais metodológicos de amplo espectro, uma vez que a própria temática assim o exige, sem delimitações por esta ou aquela tendência historiográfica, acolhendo idéias assim como colho lembranças, utilizando os métodos mais compatíveis com as fontes que se entrelaçam neste estudo. Num contexto em que a educação mostra-se como uma forma de distinção ou meio de ascensão social, um dos instrumentos privilegiados que utilizo para dialogar com as representações é a memória, “propriedade de conservar certas informações” (LE GOFF, 1984, p.11). Lembrar direciona o olhar, o sentimento, a razão, além de ser responsável pela atualização de experiências vividas, de impressões, de informações passadas. “A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos... A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna prosaica”. (NORA, 1993, p. 9)

Recobrando as memórias das personagens sionenses que preservaram os “restos selecionados” de um passado que vivenciaram, emprestando valor a fatos que em outro contexto seriam meros acontecimentos triviais, reconstruindo momentos que marcaram vidas, escutando os sons que povoaram os silêncios do senhorial casarão da Avenida Higienópolis, onde estiveram presentes ao longo de quase um século de atividades e benfeitorias oferecidas pelas religiosas à comunidade paulistana, é possível descortinar a própria urdidura da história movediça da cidade em um momento de tensões sociais. A mesma cidade - espaço de valores e posturas mais burguesas - que separou ideologicamente os papéis sociais em apropriadamente masculinos e femininos, prescreveu deveres às mulheres de modo a confiná-las em esferas específicas de atuação conveniente: o lar, a família. Lembranças, sejam elas femininas ou masculinas, que no crivo do sujeito memorizador mereceram ser preservadas são, antes de mais nada, vivências selecionadas, ou seja, uma escolha pessoal do que vai ser lembrado e esquecido. Conforme indicou Moses Finley, preservar e transmitir lembranças não é um ato “espontâneo e inconsciente, e sim deliberado, com a intenção de servir a um fim conhecido pelo homem que o executa". O resgate da memória trabalha com as possibilidades de que os dados "individuais da tradição eram confundidos, modificados e, às vezes, inventados (...). E, quando a tradição é inteiramente oral, torna-se bem mais simples confundir e falsificar. Na realidade, isso é inevitável". 1 A memória é saturada de construções imaginárias e de projeções de "ego"2 que na maioria das vezes não se coadunam com a “veracidade” dos fatos, embora postule um compromisso com o que de fato aconteceu. Lembrar implica um duplo movimento, conforme escreveu Marina Maluf: “(...) acionar a memória para recapturar o passado e selecionar os eventos vividos. (...) Além disso, o ato pessoal de pensar o passado - de contar uma vida - está enganchado na trama coletiva da existência social. E a memória pessoal transforma-se em fonte histórica justamente porque o indivíduo está impregnado de elementos que ultrapassam os limites de seu próprio corpo e que dizem respeito aos conteúdos comuns dos grupos ao qual pertencem ou pertenceu”. (MALUF, 1995, p. 82)


No corpo documental pesquisado, manifesta-se a preocupação com o lembrar, tornar presentes os momentos que grifaram as experiências cotidianas daquelas moças que, resguardadas pelos muros de pedra do colégio, preparavam-se para a vida iniciando-se no desempenho dos papéis sociais a elas destinados, trocando confidências, armazenando no baú das recordações os fatos que, assumindo cores de um passado feliz e descompromissado, seriam muitas vezes transmitidos às suas filhas e netas, revivendo-os como reviviam a juventude perdida, as tranças infantis substituídas pelo outono nos cabelos e nas almas, a segurança do Colégio trocada pelas incertezas do mundo “moderno”, modo como se referiam as meninas aos novos tempos. Maria Eugenia Celso ao regressar ao “velho Sion”, afirma não saber “se todas o verão como eu via”, indicando um certo saudosismo e a possível dúvida com relação aos ensinamentos apreendidos. Um outro aspecto da memória coletiva deste grupo é o fato de, regularmente, utilizarem o plural para fazerem referências ao passado comum - “(...) O nosso coração se enche de entusiasmo e alegria...” e ao ”tempo feliz de nossa adolescência estudiosa” -, como se isto justificasse a aplicação de normas, de costumes, do dever ser homogeneizador para estas mulheres em formação. Vitória Helena de C. Ramos, antiga aluna, me permite adentrar nos tempos colegiais: “Preciosas horas felizes... O nosso coração se enche de entusiasmo e de alegria, na certeza de que em breve, terminado o nosso curso, na dispersão inevitável de colegas que cresceram, estudaram, e viveram juntas tantos annos, a amizade dos bancos do colégio há de perdurar e iluminar a nossa estrada”. Ao encerrar, recomenda às parceiras: “guardaremos, como as antigas, recordação indelével do tempo feliz de nossa adolescência estudiosa; assim, traremos um dia as nossas filhas, para continuarem a cadeia ininterrupta, que liga a Sion cincoenta gerações de brasileiras”. (RAMOS, p.

134) Para criar essa idéia de continuidade - “cadeia ininterrupta” - e perseverança das ideologias vigentes (ou que se queriam implantar), era necessário construir aparatos disciplinares que visavam “não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição”, mas a formação de uma relação de obediência. O ambiente escolar é um dos espaços privilegiados onde a disciplina encontra lugar fértil para o seu desenvolvimento. Como exemplo disto, está a própria educação cristã, repleta de regulamentos, inspeções e vigilâncias elaboradas para serem divulgadas dentro das “cercas” dos colégios e dos conventos, “lugares determinados que se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil” (FOUCAULT, 2005, p. 126-8). As questões de ordem, disciplina e higiene estavam presentes já no momento da admissão das alunas nos cursos ginasianos, quando então se ditavam regras a serem obedecidas. No “Regimento Interno” aparece a efetivação destes ideais: o Colégio “admite alunas internas e semi-internas. Não recebe: a) portadoras de moléstias contagiosas ou infecto-contagiosas. b) alunas que necessitam de tratamentos especiais em consultórios médicos ou dentários que obriguem a saídas freqüentes ou prolongadas que prejudiquem os estudos”. Quanto à disciplina, observam-se as seguintes prescrições:


“A Diretoria e os Professores envidam esforços para que no Estabelecimento reine boa disciplina, condição indispensável para o desenvolvimento moral e intelectual das alunas. Esta Disciplina será sempre revestida de carinho, levando as educandas ao cumprimento do dever pela persuasão. (...) Para o bom êxito dos seus esforços a Diretoria procura obter uma intensa e inteligente colaboração com os Srs Pais” (Regimento Interno. 9 de novembro de 1940, fls. ½). Era importante estabelecer “as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos” (FOUCAULT, 2005, p. 126-131). Não é por acaso que, nas horas livres, as alunas de Sion estivessem sempre sob os olhares vigilantes e atentos das religiosas. “Era o sistema pedagógico criador de uma mentalidade nova, misto de disciplina e de afeto, tão absolutamente oportuno à nossa desordenada imprevidência e à prodigalidade excessiva de confiança de um povo jovem, a maneira direta de falar aos corações, de abri-los, de conhecê-los, de, principalmente, neles inocular os princípios das virtudes imprescindíveis”. (GONÇALVES, p. 152)

Contudo, os tempos de disciplinar as mentes e os corpos femininos não se restringiam aos momentos de lazer onde os movimentos e ações, aparentemente, estivessem livres. O dia, as horas, os minutos estavam organizados de maneira a manter a ordem e a disciplina. Deste modo, as normas da Igreja (que asseguravam a formação das “mulheres católicas” e das “boas cidadãs”) estariam em vigor continuamente. “O sino supria o relógio. Era pela sua advertência que, automaticamente, se regulava o mecanismo do Colégio: aulas, recreios, estudos, preces, refeições. Havia momentos em que a gente lhe odiava a injunção, outros, em que o seu bater representava uma libertação, ansiosamente, esperada” (CELSO, p. 124). A arte de dispor em fila dá início, já no século XVIII, à delimitação de espaços e às demarcações dos papéis cabíveis a cada indivíduo dentro dos ambientes escolares. “Filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas seguindo uma ordem de dificuldade crescente” (FOUCAULT, 2005, p. 134). Os dados apresentados por M. Foucault para o estudo de instituições do século XVIII apontam alguns elementos ainda vivos nas memórias das “enfants de Sion”, como é o caso de Lavínia Camargo, ex-aluna da turma iniciada em 1929, que relata: “Ao acordar, tínhamos uma série de obrigações e às 7:30 hrs deveríamos estar em fila na entrada do grandioso refeitório para a inspeção matinal. Era nessa hora que se observava, atentamente, a higiene, o asseio, o esmero dos uniformes e a ordem das meninas ... as que cumpriam suas obrigações, sempre eram mencionadas com distinção, servindo de exemplo às desordeiras e indisciplinadas” (grifos meus) (Depoimento

de Lavínia Ribeiro do Valle de Camargo. São Paulo, abril de 1995). Vida-missão: a construção de perfis e modelos familiares


Ao lado da idéia de “vida-missão”, corre a noção de “pertencer a”, ou seja, de que a moça educada em um colégio congregacional faz parte de um grupo privilegiado de pessoas, encarregadas da transmissão e preservação de valores, crenças, regras, e até mesmo de uma certa cumplicidade juvenil que, como fio colorido retece as memórias, dando a elas uma semelhança de colcha de retalhos, momentos gravados no tempo que cumpre preservar do desgaste que o mundo fatalmente lhes imporá. É assim como se as “classes multicores” fossem confrarias de jovens, formadas pelos mesmos padrões, vivenciando as mesmas ansiedades, trocando experiências e segredos que as irmanavam para sempre. Em um trecho do “Caderno de Poesias”, datado de 1942, a ex-aluna Benedita Mendes Vieira, menciona um almoço ocorrido no aniversário da formatura da Classe Multicor de 1927; a seriação do Colégio Sion estava nomeada por cores e a classe referida correspondia ao último ano do ginásio. Neste informe, a autora elenca saudosamente todas as convidadas que estiveram presentes à reunião: Alices, Lúcias, Edites, Lauras, Camilas, entre tantas outras, que “não pode por deficiência de espaço, mencionar”, fazem parte desta imagem produzida num momento de “belas recordações”. “(...) Dia de história inesquecível! História bonita para contar à lareira, quando caírem sobre as meninas de Sion de hoje, as primeiras geadas do inverno. Quando saí, à luz doirada da tarde, pareceu-me notar que na fronteira do colégio, em seu nicho de pedra, morena pelo tempo, N.S. de Sion sorria satisfeita por ver de volta ao ninho antigo, como andorinhas aos beirais, tantas ‘florinhas’ que o vento forte da vida soprara para longe!”.

A função de transmitir experiências felizes está introjetada, indicando um acolhimento de um dos papéis que cabia à mulher - propagadora da missão católica e provedora do núcleo fundamental da vida feminina: a família, unidade sacralizada pela Igreja Católica. Apesar de muitas vezes afastada da grande família sionense pelo “vento forte da vida”, suas filhas retornam “ao ninho antigo” nos momentos de aflição e de alegrias para renovar ou firmar as normas por tantos anos ensinadas. A proposta de manter a identidade das alunas através de suas reminiscências é demonstrada na preocupação de mantê-las sem que mudanças de qualquer tipo pudessem abalar seus sólidos referenciais. Isto pode ser percebido nas interlocuções entre as meninas principalmente nas deixadas sob forma de cartas e diários dos tempos escolares que descrevem “os dias saudosos vividos sob o teto acolhedor de Sion...”3 aclamado como espaço de segurança, local de proteção e refúgio dos males que afligem o “mundo moderno”. Afinal, era necessário manter “o verdadeiro alento na formação da Congregação das Mães Cristãs, regeneradoras da família católica”, além do empenho e dedicação assíduos para “cultivar as almas e os corações das moças, reunidas na Congregação das Filhas de Maria” (NATUZZI, p. 45). Natureza e Cultura: a memória implantada e coletivizada A lembrança atinge outros sentidos: o olfato desencadeia um relembrar de missas, quando o incenso elevava “os corações ao alto” ao som de “tantun ergun sacramentun”; lembra ainda os passeios feitos a Atibaia ou Petrópolis, o cheiro da comida enfeitiçando os solenes refeitórios onde a “soeur” leitora, monotonamente, recitava uma edificante vida de santo ou passagem bíblica; lembra o chocolate quente nas manhãs de inverno; o cheiro dos corpos jovens, a “martinha” ajoelhada limpando os imensos corredores da memória, substituindo os odores da vida pelos do “sagrado” higienizado, lembrando velas acesas que tentam iluminar os caminhos para os céus para aquelas que teimavam em viver na terra.


“Momentos que ficarão perfumando o resto da vida, indifferentes ao desmoronar de todos os outros sonhos” (Ecos do Sion, n. 15, julho de 1936, p. 14). Estas recordações não são simplesmente partes integrantes de um passado, mas comportam “símbolos da família, dos laços de descendência, que podem ser transmitidos como bens que contem uma história”. Os valores e as virtudes apreendidas na formação sionense foram constantemente evocados nas lembranças: Sion é a representação ideal de família, da família do espírito, “aquela cujos liames, por mais sutis, não deixam por isso de ser menos profundos e correspondentes a um sentimento mais arraigado e mais contentemente nosso ... É mais que um laço de sangue, a explicar tendências similares e mais ou menos niveladoras. É o ambiente que ultrapassa as aspirações do indivíduo e em que encontram clima os anseios da personalidade, na diferenciadora capacidade de ascensão e na possibilidade de ser cada vez mais, num sentido de nobreza e de suprema dignidade humana” (GONÇALVES, p. 151). Nesta proposta de estruturar uma família, o papel singular e paradigmático da “Mãe” é representado por “Notre Mère”. Rememorado o cotidiano das classes repletas de jovens, tementes quando “tocava a sineta de oito horas, entravamos para as classes, e, feita a oração, ouvíamos o seu passo surdo e pesado, nas galerias. Vinha em cada classe, tomava conhecimento das notas diárias de procedimento e de aplicação. Depois, uma palavra enérgica de advertência às cabecinhas turbulentas, que andavam fora da lei; lindas palavras de animação às que trilhavam o caminho do dever. A mère, para nós, era uma força eterna” (BICALHO, p. 50). No âmbito da constituição da cidadania, a vigilância também aparecia com freqüência. Consoante Sampaio Dória, para ser um “bom cidadão” era fundamental estar atento às leis, às regras organizadoras da sociedade. Por isto a escola, considerada uma “espécie de república em miniatura”, devia instruir seus alunos para que, “ao deixarem aquela, encontrassem, na vida pública, uma ampliação daquillo a que se habituaram”, “um pequeno grande mundo” que deveria ser assim como um ensaio geral para se introduzirem - as moças - no mundo real e desprotegido da sociedade, onde deveriam viver aplicando, na vida cotidiana, os ensinamentos recebidos. Notas * Doutora em História pela Universidad de Leon, Espanha. Mestre em História pela PUC/SP. Professora e pesquisadora do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador. Membro da ANPUH e da Society of Latin American Studies. 1

FINLEY, Moses I. Uso e Abuso da História. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 21 e 23. Ver também THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro, Paz & Terra, 2002.

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Sobre a Ego-história Ver DEKKER, Rudolf M. Ego-Documents in the Netherlands 1500-1814. In: Dutch Crossing. A Journal of Low Countries Studies, n. 39, 1989; DUBY, Georges. A Vida Continua. Rio de Janeiro, Zahar/UFRJ, 2003; PERROT, Michelle. Entrevista. Projeto História, n. 10, dez. 1993; HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo, Cia das Letras, 2005. 3

Carta Pessoal de Benedita Mendes Vieira a Camilla Barbosa de Oliveira. São Paulo, 20 de janeiro de 1942 (manuscrito - Arquivo do Colégio Sion).


Referências bibliográficas:

BICALHO, Madalena Lacerda. “Notre Mere Angelina”. Reminiscências, vol. 1. CELSO, Maria Eugenia. Reminiscências, São Paulo, vol. 2. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2005. GONÇALVES, Suzana. Fidelidade. Reminiscências. vol. 2. LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: Enciclopédia Einaudi. 1. Memória - História. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984. MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995. NATUZZI, J. Monsenhor Macedo Costa. Reminiscências, vol. 1. NORA, Pierre. “Entre memória e História: a problemática dos lugares”. In: Projeto História, n.10. São Paulo, PUC-SP, dez. 1993. RAMOS, Vitória Helena de C. Reminiscências, vol. 2.


Educação, trabalho e juventude: Os Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional e o perfil do jovem ferroviário Maria Angela Borges Salvadori

Os Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional foram escolas técnicas criadas por diversas companhias férreas do estado de São Paulo, voltadas para a formação de jovens ferroviários. A Sorocabana foi pioneira nesse processo, enviando anualmente alguns alunos para a Escola Mecânica anexa ao Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. As primeiras iniciativas ocorreram em 1924 e os resultados levaram ao projeto mais amplo de criação dos Centros. Em 1931, começava a funcionar o Curso de Ferroviários na Escola Profissional de Sorocaba. Em pouco tempo, a iniciativa privada das companhias de trens contou com o apoio e subsídio do governo do estado de São Paulo: em 1934, por meio das Secretarias de Educação e Saúde Pública e de Viação e Obras Públicas, eram criados os Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional que rapidamente se expandiram pelo território paulista, servindo também de modelo para iniciativas do gênero em outras partes do Brasil. Em 1937, já existiam nove centros localizados nos municípios de Jundiaí, Rio Claro, Campinas, Araraquara, Bebedouro, Bauru, Pindamonhangaba, São Paulo e Sorocaba. Tais escolas mantinham cursos diretamente voltados para a formação do pessoal das oficinas (Diretoria de Recursos Humanos da Ferrovia Paulista S. A., s/d). Este texto traz uma análise preliminar das propostas e ações desses centros ferroviários de ensino e seleção profissional, articulando-as tanto às discussões sobre o movimento operário quanto à construção de mecanismos de medição e definição do perfil do jovem trabalhador ferroviário que implicaram em diferentes concepções de juventude, particularmente aquelas relacionadas à experiência dos jovens das classes populares. Em outras palavras, trata-se de pensar as relações entre juventude, trabalho e educação a partir das práticas de seleção e formação utilizadas por algumas das empresas ferroviárias paulistas. Neste sentido, pretende estabelecer um diálogo com o artigo de Bianca Barbagallo Zucchi relativo às ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, publicado na Revista Histórica n.º4, de agosto de 2005. Entender tais práticas - bem como as visões de juventude que elas, simultaneamente, veiculam e ajudam a construir - implica relacioná-las ao contexto mais amplo do mundo do trabalho, particularmente no final dos anos 1910 e início dos anos 1920. Os cursos de ferroviários nasceram ligados aos projetos de uma geração de engenheiros da Escola Politécnica que, influenciados pelos princípios tayloristas introduzidos no país pelo industrial Roberto Simonsen por volta de 1919, apostaram na preparação “racional e metódica” da mão da obra. Assim, por exemplo, o escritório de Ramos de Azevedo (por três décadas diretor do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo) foi um dos pioneiros na introdução dos padrões tayloristas de organização da produção levando-os conseqüentemente às propostas educacionais do Liceu. O engenheiro Roberto Mange, professor de desenho de máquinas na Escola Politécnica de São Paulo, um dos fundadores do IDORT (Instituto de Organização Racional do Trabalho) no início da década de 1930, foi por anos diretor da Escola Mecânica anexa ao Liceu, de onde nasceram, tempos depois, os Centros Ferroviários (MORAES, 2003). Nesse processo, Mange foi também responsável por estabelecer parcerias com o Instituto de Higiene de São Paulo,


particularmente com sua seção de psicotécnica, para a incorporação dos princípios da ciência psicológica e da psicometria nos métodos de seleção e formação profissional. O surgimento destas escolas voltadas à seleção e formação do jovem trabalhador ferroviário deve ser compreendido num contexto de acirramento dos conflitos sociais e como tentativa, por parte dos empresários, de esboçar uma resposta aos avanços e conquistas do movimento operário, particularmente intenso entre os anos 1917 e 1920. O próprio Simonsen, ao publicar seu Trabalho Moderno, em 1919, já salientava que o controle absoluto do processo produtivo - via mecanização e racionalização - seria um dos mais convenientes recursos para a repressão ao movimento operário, constituindo-se numa das primeiras falas de economia política no Brasil (DE DECCA, 1984). Organizar o trabalho, promover a saúde e propiciar a educação tornam-se, a partir da década de 1920, três questões básicas por meio das quais devem ser equacionados os problemas sociais brasileiros. As palavras de Maria Antonieta Martinez Antonacci podem bem sintetizar este projeto: [...] o domínio patronal se materializa na crescente divisão do trabalho, na hierarquização das funções, na burocratização/requalificação dos trabalhadores, na operacionalização da Psicologia, da Fisiologia, Higiene, Sociologia do Trabalho, etc. Todos estes recursos, destinados a simplificar e padronizar o processo de trabalho para reduzir as várias maneiras de executar uma tarefa a uma única forma, racionalmente determinada e facilmente controlável, foram apreendidos em sua historicidade. E as perspectivas uniformizantes que desencadearam, como meios para destruir processos de trabalho organizados com base no 'saber-fazer' do operário, nas formas de intervenção e adaptação autônomas dos trabalhadores, abriram espaços para reorganizações através de princípios e normas que, por serem 'científicos', eram externos aos trabalhadores. (ANTONACCI, 1993, p. 10).

Em síntese, trata-se de analisar os Centros Ferroviários a partir de sua constituição em um contexto de construção de um modelo de modernidade para o país, particularmente para São Paulo, que se articula no entrecruzamento dos saberes médico, educacional e da engenharia e na aposta em um padrão de ciência racional, cartesiana e positivista. Assim, ao saber médico, especialmente em sua ênfase sobre as preocupações com a higiene, caberiam os cuidados com o corpo; à educação, caberia a tarefa maior de construção da nacionalidade a partir da formação moral e instrução técnica dos brasileiros e, finalmente, à engenharia, caberiam as preocupações com a organização dos espaços, desde os pequenos espaços - a moradia salubre, por exemplo - até os grandes espaços do trabalho - a fábrica - e de circulação de pessoas e mercadorias - as ruas, os bairros, as cidades (HERSCHMANN, PEREIRA, 1994, p. 13). Esta estreita relação entre saúde, trabalho e educação pode ser verificada em vários artigos publicados na Revista de Educação, ligada à Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo, em especial nos anos 1930. O volume VI, de junho de 1934, por exemplo, reproduzia a palestra feita por Juventina Santana no Centro de Cultura Intelectual de Campinas. Preocupada com a "complexidade do problema social" após a Primeira Guerra Mundial, a autora entendia que os conhecimentos médicos eram fundamentais para o bom andamento das sociedades, pois erros na escolha da profissão conduziam a problemas de "revolta" e mesmo ao crime e/ou à vadiagem. Assim, a medicina tanto deveria contribuir para o estabelecimento de condições físicas específicas exigidas por diferentes ofícios quanto, na vertente psiquiátrica, garantir uma análise objetiva das disposições mentais dos indivíduos em relação às profissões que, por ventura, viessem a escolher (Santana, 1934, p. 56).


Considera-se neste trabalho que é no interior desse projeto autoritário de modernidade - cuja implantação, contudo, não ocorre sem resistências - que devem ser pensadas as propostas de educação profissional em geral e de formação do ferroviário, em particular. A idéia do controle aparece em diferentes documentos relacionados aos Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional. Numa "Separata dos Relatórios referentes aos anos de 1930 a 1933", publicada pela Estrada de Ferro Sorocabana em 1934, especialmente dedicada à análise das ações educativas do Centro, afirma-se que, "em vista do caráter industrial desses dois últimos anos de instrução (caracterizada no texto como sendo de regime 'menos escolar e mais industrial'), o mestre instrutor não tem mais influência direta sobre a formação do aprendiz" (p. 10); no primeiro número da Revista Idort, Roberto Mange defendia os métodos dos Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional, baseados na nítida separação entre os espaços dos aprendizes e o espaço operário da fábrica e no uso das séries metódicas, em substituição à presença de um mestre instrutor; segundo ele, no modelo anterior de aprendizado, “[...] os aprendizes são jogados na oficina de trabalho, aprendem como querem e como podem e não raro copiam processos defeituosos de trabalho, adquirem vícios" (MANGE, 1932, p. 16). Observa-se, portanto, um esforço em isolar o aprendiz do contato com os demais ferroviários, entendendo este contato como nocivo, como ameaça de contágio. As falas dos envolvidos na criação e manutenção desses centros, aliás, são plenas de metáforas ligadas à saúde e ao corpo, metáforas que encontram na imagem da própria ferrovia enquanto sistema circulatório um de seus emblemas. Ainda de acordo com Mange, a saúde do "corpo nacional" dependia, assim, dos "portadores da ação vitalizadora - os glóbulos vermelhos", ou seja, os ferroviários. Daí a emergência dos esforços para a boa seleção e bom preparo do futuro trabalhador ferroviário (MANGE, 1936, p. 6). O historiador Alcir Lenharo, estudando os anos 1930 e, depois, o período do Estado Novo, entre 1937 e 1945, mostrou a recorrência desta aproximação entre corpo e sociedade ou, em outras palavras, o uso recorrente da metáfora do corpo para “diagnosticar e medicar a sociedade”, enfatizando o caráter conservador destas comparações: “quase sempre se visa a obtenção de métodos políticos apropriados à preservação da estrutura social tal como se encontra; poucas vezes tem-se em mira transformá-la” (LENHARO, 1986, p. 139). Olhar para as práticas desses Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional implica também em considerar as especificidades desta escola que, embora se diferenciasse das demais, de ensino "regular", chamava para si procedimentos que estavam vinculados claramente à educação naquele período: organização de classes homogêneas, seleção de alunos, orientação vocacional, seriação, exames, crença no papel regenerador da educação, vinculação entre escola, educação, higiene e saúde como vetores para a construção da nação e, em especial, a inclusão dos conhecimentos produzidos pela psicologia experimental então considerados alicerces de uma pedagogia científica. Simultaneamente, os Centros eram também fábricas nas quais os alunos, enquanto aprendiam, produziam peças que eram efetivamente utilizadas na ferrovia e nas quais os símbolos do trabalho fabril eram bastante evidentes: as máquinas, os uniformes de trabalho, os logotipos das companhias, a distribuição dos espaços, entre outros. E, ainda, estudar tais centros ajuda a pensar sobre os significados sociais atribuídos à juventude ou, antes disso, o modo como essa categoria foi pensada e construída naquele período, particularmente com a influência dos saberes médico, biológico e psicológico. A experiência de seleção de futuros alunos nos Centros Ferroviários de Ensino e Seleção Profissional indica que a psicologia, ou uma certa psicologia de forte influência nos


meios educacionais e escolares naquele período, e a psicometria promoveram uma leitura da juventude - de modo especial da juventude operária, já que assim podemos chamar esses jovens que prematuramente, logo após o término da escola primária, com cerca de 13 anos, ingressavam no mundo do trabalho, ainda que pela porta da escola - que buscava individualizar a experiência e desqualificar o sujeito a partir de sua sujeição a todo um sistema de classificação cujos critérios lhe eram exteriores ou alheios, porém impostos como verdadeiros já que oriundos de conhecimentos científicos. O que se observa é a valorização do diagnóstico do especialista - o médico, o psicólogo e o engenheiro - nos processos de recrutamento de futuros alunos em detrimento da vontade do sujeito, da sua escolha, o que significa pensar em estratégias de poder muito próprias da modernidade que, pautadas por um padrão iluminista de ciência e de racionalidade, justificam-se e ganham legitimidade. Assim, o princípio dessa nova formação era o apagamento da condição do trabalhador ferroviário em relação ao seu pertencimento a um grupo e um esforço por darlhe uma nova identidade que, construída a partir do ingresso nos CFESP, vinculava-se mais a atributos e qualidades individuais - dimensão do tórax, habilidades motoras, acuidade visual, rapidez de gestos, aspectos do desenvolvimento mental e emotivo, desenvoltura no tratamento com as séries metódicas - do que por uma experiência social compartilhada. Esta "sujeição do sujeito" buscava operar desde os processos de escolha dos futuros alunos até os cursos de aperfeiçoamento mantidos pela instituição. Neste sentido, cabem bem aqui as primeiras falas de Benjamin sobre a noção de experiência, em 1913, quando era ainda bem jovem. Àquela época, ele afirmava ser a experiência uma "máscara do adulto", "inexpressiva", "impenetrável", sempre a mesma. Benjamin (2002, p. 22) dizia que dois tipos de pedagogos se debruçam sobre os jovens: uns, cheios de experiências, complacentemente esperam que os arroubos juvenis sejam aniquilados pelas responsabilidades impostas pela idade adulta; outros, segundo ele ainda mais cruéis, "querem nos empurrar desde já para a escravidão da vida". Nos anos 1930, a proposta de formação profissional conduzida pelo CFESP pareceu aproximar-se mais desta segunda opção.

Referências Bibliográficas: ANTONACCI, Maria Antonieta Martinez. A vitória da razão (?). São Paulo: Marco Zero, 1993. BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34: 2002. DE DECCA, Edgar Salvadori. “A ciência da produção: fábrica despolitizada”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero, p. 47-79 (n.º 6). FEPASA (Diretoria de Recursos Humanos). A ferrovia no Estado de São Paulo e a capacitação profissional, 1930-1980. São Paulo: FEPASA, s/d. HERSCHMANN, Micael, PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. “O imaginário moderno no Brasil”. In. HERSCHMANN, Micael, PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (Orgs.). A invenção do Brasil moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 9-42.


LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986. MANGE, Roberto. Ensino profissional racional no Curso de Ferroviários da Escola Profissional de Sorocaba e Estrada de Ferro Sorocabana”. In: Revista IDORT, São Paulo, ano I, número 1, janeiro de 1932, p. 16-38. MANGE, Roberto. Formação e Seleção Profissional do Pessoal Ferroviário. São Paulo, Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, 1936 (Publicação n.º 1). MORAES, Carmem Sylvia Vidigal. A socialização da força de trabalho. Bragança Paulista, SP: EDUSF, 2003. SANTANA, Juventina. “A orientação profissional e o que neste sentido tem feito o S.P.A. do Instituto Caetano de Campos em São Paulo”. In: Revista da Educação. São Paulo: Diretoria Geral do Ensino do Estado de São Paulo, vol. VI, junho de 1934, p. 51-69. Palavras-chave: educação profissional – ferrovia – história da educação – trabalho juventude

Maria Ângela Borges Salvadori – Professora do Programa de Mestrado em Educação da Universidade São Francisco. Bacharel em História, Mestre em História e Doutora em Educação pela Unicamp. E-mail: maria_salvadori@uol.com.br


Decreto de criação do Curso de Ferroviários. AESP – CO 9453.


Decreto de criação do Curso de Ferroviários (continuação). AESP – CO 9453.


Registros de despesas de um Curso de Ferroviários. AESP – CO 9453.


Carta que trata das razões da criação do Curso de Ferroviário. AESP – CO 9453.


Carta que trata das razões da criação do Curso de Ferroviário. AESP – CO 9453.


Matérias lecionadas no Curso de Ferroviários. AESP – CO 9453.


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FARNESE: a alegria difícil André Luiz de Araújo

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No texto “Hábitos Estranhos”, Charles Cosac diz que “[...] na obra de Farnese de Andrade, em que a narrativa autobiográfica predomina, o exercício ocorre numa área volátil, frágil e arenosa [...]”2. Nesse sentido, iniciaremos apresentando algumas informações sobre o artista, que julgamos necessárias, como chave de entendimento para suas obras. Farnese de Andrade nasceu em Araguari, interior de Minas Gerais, em 1926. Não completou o secundário. Aos dezenove anos, matricula-se na Escola do Parque, Belo Horizonte, tendo como professor de desenho Alberto da Veiga Guignard, um dos maiores expoentes da pintura brasileira do século XX. Três anos depois, muda-se com a família para o Rio de Janeiro e começa a trabalhar como ilustrador para publicações como O cruzeiro, Manchete e Correio da manhã. Amigo e admirador de artistas do grupo neoconcreto, como Ivan Serpa e Almir Mavigner, Farnese passa intencionalmente ao largo do movimento. Opta por prosseguir sua pesquisa individual, rejeitando a idéia de uma arte explicitamente teórica. Nessa época, conhece o crítico Jayme Maurício, de quem recebe ajuda e orientação. Em 1964 realiza seu primeiro, A grande alegria. Em 1965, retoma o desenho, criando duas séries: Eróticos e Obsessivos. De 1952 a 1964, o artista participa diversas vezes do Salão Nacional de Arte Moderna e da Bienal de São Paulo. Em 1968, juntamente com Lygia Clark e Anna Letycia, representa o Brasil na Bienal de Veneza. De 1969 a 1975, passa a viver em Barcelona graças ao prêmio viagem concedido pelo XIX Salão Nacional de Arte Moderna. A primeira exposição de objetos, montagens e desenhos ocorre em 1966, na carioca Petite Galerie, de Franco Terra Nova. A partir dessa data, Farnese divide seu tempo entre os desenhos e a criação dos objetos, estes configuram a sua grande descoberta. Dedicou os últimos anos de vida à produção obsessiva desses objetos, ora ao desenho, por prazer, ora à pintura, por necessidade. Embora tenha exposto em Belo Horizonte poucos meses antes de sua morte, Farnese vivia quase em clausura, interrompida esporadicamente por exposições que se alternavam entre a Galeria Anna Maria Niemeyer e a Galeria São Paulo. Em 1970, Olívio Tavares de Araújo realiza, com singular virtuosismo o curta-metragem Farnese, primeiro registro sério sobre o 3 artista.

Na arte contemporânea, a subjetividade do artista compõe a criação, que levada à dimensão do sensível é transformada em poética pensante, assim sendo material vital para construção de sua obra. No caso de Farnese, podemos registrar sua infância marcada pela morte dos irmãos, pelas suas crises de tuberculose, pelo seu horror a crianças, pela sua herança mineira, pela sua homossexualidade, pelas suas depressões, pela sua solidão e

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Mestrando em História Social pela PUC-SP. Bolsista CNPq. E-mail: andreharaj@gmail.com. COSAC, C. Farnese: Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. p. 15. 3 Texto do catálogo de apresentação da exposição Farnese Objetos do curador Charles Cosac. 2


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pelos conflitos com seus pais. O curador Charles Cosac escreve que “[...] ele dizia que os nove meses de gestação eram o hotel mais caro do mundo, e que se pagava pelo resto da vida. Dizia também que o momento que mais sofreu foi quando viu o pai morto no caixão.”4 Para Suely Rolnik, o artista contemporâneo vai além não só dos materiais tradicionalmente elaborados pela arte, mas também de seus procedimentos (escultura, pintura, desenho, gravura etc.). Ele toma a liberdade de explorar os materiais mais variados que compõem o mundo e de inventar o método apropriado para cada tipo de exploração5. Ele lança a subjetividade na obra. A técnica de colagem dos objetos desenvolvida pelo artista é entendida nessa pesquisa como uma arqueologia do presente, ou seja, a obra é feita de material orgânico capturado do mar, de objetos encontrados no lixo, de dejetos produzidos pela sociedade de consumo e, posteriormente, aprisionados em caixas de vidros e atomizados em poliéster (resina). Para o crítico de arte Frederico Morais, com esses objetos à mão, Farnese exercita sua memória, exorciza fantasmas, extravasa sentimentos, viabiliza sonhos, concretiza obsessões, revela recalques e repressões. Denominado por Frederico Morais como artista da corrente arqueológica da arte contemporânea, ou seja, da arqueologia existencial, sua matéria prima essencial é o tempo. O tempo que se revela nas matérias erodidas e carcomidas6. É nas escavações que o arqueólogo se realiza, é na descoberta da história enterrada que se constrói o sentido da vida. E o homem encontrado pelo artista está decomposto. É o anuncio do puro desmanche da figura humana, da natureza e da vida. A figura humana representada na obra de Farnese em forma de “boneca”7 remete-nos ao dualismo entre o que é orgânico e o que é morto. A construção perturbadora do artista faz pensarmos o homem como mercadoria contemporânea (coisa, mercadoria e ser). Nas obras “O anjo de Hiroshima” [1968-1978]; “Hiroshima” [1966-1972]; “Hiroshima” [1970], o material usado para compor as assemblages são bonequinhos e bebês de plástico incinerados, boneca de porcelana, ovo de madeira, caixa de madeira, tampo de vidro, resina, placa de alumínio e oratório. Sabemos que o bombardeio na cidade de Hiroshima no Japão ocorreu na manhã do dia 6 de agosto de 1945. O Enola Gay, um avião-bombardeio B-29 especialmente adaptado pelos americanos, levava em seu interior uma bomba de 4

COSAC, C. Farnese: Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. p. 21-23. ROLNIK, S. Subjetividade em obra: Lygia Clark, artista contemporânea. Revista Projeto História, São Paulo, n. 25, 2002. p. 45. 6 MORAES, F. Farnese de Andrade: transparências, opacidades. Revista do MAM, São Paulo, n. 2, dez. 1999. p. 17. 7 As bonecas eram usadas pelos surrealistas André Masson, Salvador Dali, Hans Bellmer e Man Ray para denunciar a desumanização e para propor novas formas anatômicas do corpo. Em suas obras, o corpo era apresentado fragmentado, dilacerado e era considerado artificial. Adaptado de: MORAES, Eliane R. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 66-67. 5


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urânio, batizada com o nome aparentemente inocente de Little Boy. Para os habitantes de Hiroshima era como se subitamente tivesse chegado a hora do Juízo Final. As pessoas que se encontravam nessa área foram instantaneamente incineradas pelo calor de milhares de graus Celsius8. Mais qual interesse de Farnese em resgatar, décadas depois, esse fato histórico e transformá-lo em obra? Provavelmente o mesmo interesse que o pintor Siron Franco teve não retomar a tragédia radioativa que assolou Goiânia, o vazamento do Césio-137. Em 1987, Siron Franco produziu uma série de trabalhos que problematizavam as dimensões da catástrofe que se abatera sobre a cidade e principalmente sobre o bairro onde vivera sua juventude. Assim, acreditamos que, na obra de Farnese, a figura humana seja sua maior preocupação. A dimensão levada por Farnese chega a ser universal. Depois da Segunda Guerra, continuaria a Guerra Fria no mundo e as ditaduras na América Latina. Esse estado de Exceção, essa atmosfera opressiva reverberou em Farnese, revelando o grande desencanto com a humanidade. Esses conflitos obrigariam o artista a remapear os sentidos. Isso significa que o poder de criação do artista se deslocaria do campo da representação para o campo da realidade. Farnese sentiria a necessidade de lembrar através da sua poética do estranhamento o ser sobrevivente. No mesmo ano da criação das assemblages, 1968, Farnese pinta a série “Fecundação”, composta por quatro quadros, essa série trata das etapas biológicas da procriação humana: o ato sexual (homem e mulher); a fecundação (esperma e óvulo); o embrião e o feto humano. Essa fase do artista revela-nos um otimismo para com o futuro da humanidade. Em seu texto “A grande alegria”, escrito em 1976, Farnese mostrava-se preocupado com a sobrevivência. Falava-se da temida hecatombe atômica. Ele dizia: Por que, aos que sobrevivem, será necessariamente degenerescente essa mutação? Por que não evolutiva? Um fio de esperança para quem não crê em sistemas políticos para melhorar a humanidade. O que tem de se aperfeiçoar em primeiro lugar é o homem. Estamos aí para testemunhar a existência das ditaduras de direita ou de esquerda, caso da soviética, e nos desenganarmos com seus equívocos, com sua violência, com a absoluta falta de respeito ao direito do ser humano poder ser o que deseja, pensar 9 como quer, e proclamar bem alto isso.

Quando Clarice Lispector declarou, em seu livro A paixão segundo G.H., para seus possíveis leitores que a personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil, mas chamada alegria, é compreensível entender historicamente as palavras de Benjamin, que já em 1933 havia diagnosticado com precisão essa “pobreza de experiência” da vida moderna. 8

Adaptado de: DIAS JR, J. A.; ROUBICEK, R. O brilho de mil sóis. São Paulo: Ática, 1994. (Col. História em Movimento). p. 45-47. 9 COSAC, C. Farnese Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. p. 185.


4

A matéria-prima da experiência em Lispector dá-se na linguagem, nesse caso, no significado da palavra alegria e seu valor literário explodido em nossa contemporaneidade. Como se a dor, a solidão, a transformação fossem capazes de exorcizar os fantasmas de cada um. Textos em mutação, as narrativas de Lispector sublinharam a precariedade e o nomadismo da consciência e da existência, entre as aleluias e as agonias do ser. Cumplicidade de espíritos movidos pela inquietude da modernidade, temos os tormentos da vida postos nas obras de Clarice Lispector e Farnese de Andrade como elementos fundamentais da alegria contemporânea. Em entrevista ao jornal Ultima Hora, de 2 de maio de 1976, Farnese declarou que o ato de criação era um exercício de grande alegria. Para ele, a alegria estava em juntar, em montar e em formar um objetivo. A criação era um ato egoísta. Quando trabalhava, trabalhava para si. Se afetasse as pessoas, mal ou bem, isso para ele era secundário. O crítico e historiador da arte Rodrigo Naves, no texto “A grande tristeza”, busca no antagonismo o sentido de alegria para o artista, no entanto, em Farnese, essa relação é necessariamente paradoxal. No sentido benjaminiano10, sua obra remete-nos a pensar numa nova forma de miséria que surge com esse desenvolvimento de técnica de justaposição, nessa colagem de tempos, sobrepondo-se ao homem contemporâneo. Em Farnese, a poética do estrahamento fica entre a morbidez e a sobrevivência. Na reflexão de Rodrigo Naves, Farnese praticamente só recorria às coisas velhas, marcadas pelo uso ou pelo tempo. Ou então a artefatos rudimentares, objetos e imagens toscos: gamelas, ex-votos, oratórios populares. Eram objetos que o contato prolongado com os homens havia coberto de afeto e arredondado as arestas. Ou então cujas formas pouco elaboradas remetiam diretamente às mãos pouco hábeis mas fervorosas que os realizavam. As características altamente pessoais das peças com que o artista trabalhava acabavam por se transmitir às obras que o criava. E os arranjos, deslocamentos e montagens a que os submetia pareciam converter esse aspecto pessoal dos elementos que entravam em suas obras em índices de algo ainda mais pessoal – biográfico, digamos. Porque sua intervenção sobre eles conduzia à obtenção de construções singulares a partir de componentes já altamente 11 individualizados.

Em 1966, o crítico de arte Jayme Maurício12 chamava-o de Joseph Cornell brasileiro, no entanto, Farnese estava além do seu tempo e não foi compreendido pelos seus pares. Como disse Tadeu Chiarelli, Farnese poderia muito bem ser alinhado aos jovens artistas surgidos no final dos anos de 1980 e 1990. Chiarelli ainda acrescenta, “[...] somente em produções como aquelas do último José Leonilson, de Rosângela Rennó, Nazareth 10

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 115. 11 NAVES, R. Farnese de Andrade. São Paulo: CosacNaify, 2002. p. 12. 12 MAURÍCIO, J. Desafios aos artistas: a estética da caixa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 Nov. 1996.


5

Pacheco, Rosana Monnerat, Elias Muradi, Sandra Cinto, Iolanda Gollo Mazzotti e tantos outros, notam-se os mesmos elementos narrativos que enformaram as obras de Farnese de Andrade: repressão de todos os matizes, dor, solidão, castração.13 No fim de 1973, Farnese volta da Europa. Doze dias depois de ter chegado, cai numa depressão psíquica inexplicável. Diz o artista “[...] só quem sofreu essa doença sabe a diferença entre ela e uma simples fossa existencial. É de uma violência atroz, talvez o primeiro passo para a esquizofrenia.”14 O

transtorno

bipolar

de

Farnese

permitiu

que

sua

obra

comunicasse

simultaneamente com o são e com insano, transitasse na superfície e na profundidade do ser e do nada, como algo pleno. Assim como no mito grego em que Ariadne através de um fio conduz o caminho de Teseu pelo labirinto do Minotauro, as obras de Farnese levam-nos à obscuridade humana para sentirmo-nos mais humanos.

13

CHIARELLI, T. Farnese de Andrade no MAM. Revista do MAM, São Paulo, n. 2, dez. 1999. p. 8. ANDRADE,F. A grande alegria. In: COSAC, C. Farnese: Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. p. 185. 14


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Referências bibliográficas

ANDRADE, F. A grande alegria. In: COSAC, C. Farnese: Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. BENJAMIN, W. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHIARELLI, T. Farnese de Andrade no MAM. Revista do MAM, São Paulo, n. 2, dez. 1999. COSAC, C. Farnese: Objetos. São Paulo: CosacNaify, 2005. DIAS JR, J. A.; ROUBICEK, R. O brilho de mil sóis. São Paulo: Ática, 1994. (Col. História em Movimento). LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MAURÍCIO, J. Desafios aos artistas: a estética da caixa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 10 nov. 1996. MORAES, E. R. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002. MORAES, F. Farnese de Andrade: transparências, opacidades. Revista do MAM, São Paulo, n. 2, dez. 1999. NAVES, R. Farnese de Andrade. São Paulo: CosacNaify, 2002. ROLNIK, S. Subjetividade em obra: Lygia Clark, artista contemporânea. In: Revista Projeto História, São Paulo, n. 25, 2002.


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