Histórica

Page 1


O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu

Profa Dra Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner

O

av anç o atual

da c ib erné tic a p roduz

estranh as figuras al iení genas,

feras

p ensantes, rob ô s h um aniz ados, h eró is h um anó ides, e estas estã o p resentes em

todo univ erso c ontem p orâ neo, desde as difundidas p el o c inem a até a m ais rem ota im aginaç ã o J unto c om

p op ul ar.

os c h am ados " efeitos esp ec iais" , faz

m uito suc esso um a p orç ã o de

figuras deform adas resul tantes de ap l ic aç õ es c ientí fic as ou fenô m enos da naturez a. T udo isso p arec e tã o nosso,

tã o c ontem p orâ neo!

E ,

no entanto,

m odernidade só faz dar c ontinuidade a im agens q ue rem ontam O

nossa h istó ria, c atal ogadas p el o B estiá rio E urop eu.

B estiá rio era um a esp é c ie de registro onde estav am

toda essa

aos p rim ó rdios de

desc ritos, j unto c om

os

anim ais da Criaç ã o, os inv entados p el a fantasia e ac eitos p el a c redib il idade dos c ontadores de p rosa e dos p oetas q ue h av iam I dade M é dia. Ap arec iam

em

p erp etrado o esp í rito p op ul ar da

v á rias ob ras esc ritas, infl uenc iadas, sob retudo, p el o

c onsagrado “ L iv ro das M arav il h as” de J ean de M andev il l e1, p ioneiro na rev isã o da

fauna fab ul osa, h í b rida e ex ó tic a.

Fig. 1 – O S B E S T I Á R I O S

A) Figura do Bestiário inspirado no Livro das M aravil h as de M andev il l e. Aq ui um

ex em pl o de raç as

h um anas m uito estranh as. S egundo a desc riç ã o do autor: “ b esta m onstruosa produz ida pel o

c asam ento do touro c om

asno. T em

é c apaz de im itar a v oz h um ana” .

a c ab eç a de um

asno e c orpo de h om em . P arec e f al ar, m as nã o

1


M AE T E R L I N C K , L . Le G e n re S at iriq u e dan s l a P e in t u re F l am an de , G and : 1 9 0 3 , p. 1 5 8 , f ig. 1 2 4 . B)Anim al c om

c ab eç a de dem ô nio q ue m orde o pró prio rab o, q ue c h ega à

C ) Anim al c om

c ab eç a h um ana, c ab el os c om pridos, de q uatro patas rac h adas e rab o preso num a

orel h a. S eu c orpo tem

tranç a.

as v é rteb ras aparentes.

b oc a perpassando a

D ) Anim al c uj as patas sã o m em b ros h um anos: atrás, pernas e pé s; na f rente, b raç os e m ã os.

E ) Anim al c onh ec ido c om o “ M onge M arinh o” , c om

c ab eç a h um ana, c erc ada por um

c apuz

de

m onge, e c orpo de um

grande peix e. Figura no l iv ro de Al b ert de Bol l stadt, D e n at u ra an im al iu m ,

M AE T E R L I N C K , L .

G e n re

c om

o nom e de p is c e m on ac h i h ab it u

1 3 3 ;1 3 4 ;1 3 5 ;1 3 6 .

Le

( nota 1 ).

S at iriq u e

Desde a é p oc a m erov í ngia ( V

dan s

l a P e in t u re

F l am an de ,

G and :

1 9 0 3 ,

f igs.

- V I I I d. C. ) , o B estiá rio tom ou c onta do im aginá rio

oc idental traz endo fá b ul as, m itol ogias e as teogonias m ais div ersas. O b á rb aro, franc o, v isigodo e outros tantos tam b é m inv enç õ es aná l ogas,

p. 1 6 1 ,

foram

v oc ab ul á rio

fontes ab undantes de

traz endo fauna ex trav agante e l egendá ria.

O s p rim itiv os

desenh istas de c av ernas, rep resentaç õ es de rituais totêm ic os, p inturas rup estres e o im aginá rio rel igioso do O riente, c ontrib uí am

c om

a m aior p arte dos m onstros

m ediev ais m ais c onh ec idos, tais c om o os dragõ es e as q uim eras. M as é real m ente o Ap oc al ip se de Sã o J oã o a fonte m ais esp etac ul ar usada p el o c ristianism o desde o sé c ul o X I , v é sp era da c h egada do ano m il , c om sup osto fim

todo o terror q ue se ap ostav a no

do m undo. A p artir daí inic iam -se as inú m eras v ersõ es a resp eito das

rev el aç õ es de Sã o J oã o, e a im aginaç ã o p op ul ar se riv al iz ou na fertil idade de c om p ô -l as, e a arte, na forç a de traduz i-l as, de il ustrá -l as:

2


Fig. 2 : « O

S o m

d a

S e gu n d a

T r o m b e ta . M o n ta n h a

e m

c h a m a s

é

la n ç a d a

Ap o c a l ip s e N o r m a n d o , S é c u l o X I V , c a 13 2 0 , T e m p e r a e f o l h a d e o u r o e m ½

x 9 p o l e ga d a s ) , The Cloisters Collection, 1968, (68.174, folio 13 recto).

n o

m a r »

p e r ga m in h o ( 12

Ao Ap oc al ip se j untam -se outras p assagens da E sc ritura onde b ons e m aus entram em

aç ã o. Satã

e outros dem ô nios q ue se m ul tip l ic am

sã o m ostrados em

seu

asp ec to terrí v el e im undo, p rinc ip al m ente nas I l um inuras, m iniaturas e il ustraç õ es m arginais. Assim , as v isõ es ap oc al í p tic as nã o ab dic am o esp í rito h um ano seguindo até fantá stic o, agregada à

do p oder q ue ex erc em

sob re

a Al ta I dade M é dia, e a tradiç ã o do surreal , do

al m a rel igiosa, só

se interrom p e no m om ento em

dev oç ã o se faz m ais í ntim a, m ais indiv idual e m ais terna.

q ue a

A m itol ogia das á guas, v inda dos p aí ses germ â nic os, foi m uito p ró sp era até m eados do sé c ul o X V I . A m istura dos c om p onentes desta m itol ogia e de outras esp é c ies c ontidas no B estiá rio fez insp irassem

Fig.3 :

c om

q ue os p oetas artistas e esc ul tores m ediev ais

suas c onc ep ç õ es e v ariassem

S e r e ia . E s c u l t u r a

e c l e s iá s t ic a

n a

seus p rotó tip os.

C a te d r a l

d e

B â l e . P .C H .C AH I E R ,

N ou v ea u x

M é la ng es d ’ A rché olog ie d ’ H istoire et d e L itté ra tu re. Cu riosité s M y sté rieu ses, P a r is , L ib r a ir ie d e Fir m in D id o t Fr e r e s , Fil s e t C

: 18 7 4 , p .14 2 , f ig. C .

Q uanto à s narrativ as dos v iaj antes, estas se sup eraram dos b estiá rios, e p ode-se diz er q ue até

h oj e é

c riaç õ es q ue o esp í rito h um ano p roduz iu em I dade M é dia.

em

audá c ia na desc riç ã o

v ista um a das m ais esp antosas

term os de im agem

durante toda a

3


Fig. 4

Fig. A: C h e s t l e l ivre de t ou t e s l e s k e u re s de l a V il e d’ Y p re . S é c ul o X I V .

A T rindade está representada por um a personagem

um a adaga e na outra um

S ob re um dispõ em

c om

ob j eto redondo q ue parec e ser um

pernas l ongas e pel udas, tendo na m ã o peq ueno esc udo.

pesc oç o desm esurado, v ê -se reunidas trê s c ab eç as sob

de f orm a q ue os dois ol h os da f igura sã o v isto de perf il e um

um a m esm a c oroa. f rontal .

As f ac es se

M AE T E R L I N C K , L . Le G e n re S at iriq u e dan s l a P e in t u re F l am an de , G and : 1 9 0 3 , p. 6 5 , f ig. 5 3 . Fig. B : B ib l e du M u s é e B rit an n iq u e B ib l iog rap h ic a. L ondres, 1 9 0 0 , part. V I I , p. 3 9 4 . N a f igura v em os um

c om

m onge c om

c ara de papagaio ex erc endo sua el oq ü ê nc ia diante de um

rosto de m ac ac o q ue o ab enç oa,

representando, tal v ez , suas ov el h as.

b ispo

enq uanto q ue ao redor del es estã o seres b iz arros

M AE T E R L I N C K , L . Le G e n re S at iriq u e dan s l a P e in t u re F l am an de , G and : 1 9 0 3 , p. 1 4 1 , f ig. 1 1 7 . Fig. C

: A f igura está c ontida no m anusc rito de Y pres intitul ado “ Aq ui está o l iv ro de todas as c oisas

da v il a de Y pre” . Faz f orte ref erê nc ia à rel igiosidade da regiã o.

M AE T E R L I N C K , L . Le G e n re S at iriq u e dan s l a P e in t u re F l am an de , G and : 1 9 0 3 , p. 1 4 6 , f ig. 1 2 1 . Fig. D : N a f igura v em os um a av e portando sua f am í l ia dentro de um

c esto pendurado nas c ostas e

seguido por um a f orm a m onstruosa c onstituí da de el em entos b iz arros e f antástic os. M an u s c rit n . 1 0 3 de l a B ib l iot è q u e de C am b rai.

4


M AE T E R L I N C K , L . Le G e n re S at iriq u e dan s l a P e in t u re F l am an de , G and : 1 9 0 3 , p. 7 5 , f ig. 6 9 .

B aseado em

um

outro “ L iv ro das M arav il h as”

2

foram

el ab oradas as I l um inuras de

J ean de B erry , nos p rim eiros anos do sé c ul o X V , onde se v êem

c om b ates de seres

m onstruosos e div ersos dragõ es v oadores asiá tic os, p rov av el m ente insp irados nas desc riç õ es fantasiosas de M arc o Pol o ( 1 2 5 4 -1 3 2 3 ) .

E ste m esm o “ L iv ro da

M arav il h as” sugere a ex istênc ia de raç as h um anas m onstruosas, c om o h om ens de orel h as v astas, ou, im agens il ustradas sob um

p aisagism o m ostrando o E tna, c om

a ap ariç ã o de dragõ es-serp entes q ue dev orav am entre outras c oisas.

Fig. 5

A) Figura sem

c ab eç a, m as seus ol h os estã o postos nas c ostas, entre os dois om b ros.

B) Figura desc rita c om

um

M AE T E R L I N C K , L . Le

G e n re

C ) Figura de um

as c rianç as “ nasc idas do m al ”

h om em

1 2 7 ;1 2 8 .

c om

pé desc om unal .

trê s pares de b raç os, c om o desc rita no m anusc rito de Bruges. S at iriq u e

dan s

l a P e in t u re

F l am an de , G and : 1 9 0 3 , p. 1 5 9 , f ig. 1 2 6 ;

Do registro p rofano ao registro rel igioso, a c renç a, q ue c am inh a j unto c om

o

c onh ec im ento, se entrega à s m esm as esp ec ul aç õ es e fantasias. Por v ol ta de 1 5 0 0

o O c idente foi ac om etido de um a esp é c ie de grande p â nic o. As

c onstruç õ es intel ec tuais da I dade M é dia se arruinaram . R enasc enç a e R eform a uniram

os fundam entos de um

grande p ensam ento p erdendo p ouc o a p ouc o a

5


seguranç a q ue os al ic erç av a.

O s p rob l em as soc iais surgiram

num a E urop a

desc ontente, onde a rev ol ta aum entav a de form a c onstante. A arte p assou a ex p rim ir, a sua m aneira, um ressusc itando tem as q ue h á I grej as. N este fim

deseq uil í b rio esp iritual e um a im ensa inq uietude,

m uitos anos atrá s h av iam

il ustrado os p ó rtic os das

de sé c ul o c om eç ou-se a enc arnar as sup erstiç õ es m ais ab surdas

e as l ouc uras m ais angustiadas. As dem onstraç õ es artí stic as desta é p oc a sã o as m ais p uras ex p ressõ es da fantasia. M as fantasia é daq uel es q ue sab em h á

c om unic aç ã o em

v er, traduz ir e transform ar em arte sem

um a l inguagem

um

p riv il é gio h um ano e dote

arte um a b oa ex p eriênc ia. N ã o

c om um . O

efeito surp resa dep ende

Para os Fl am engos, a ob serv aç ã o da v ida sem p re foi um

ex erc í c io c riterioso; nã o

da ex p ec tativ a q ue a arte c ria. N ã o foi a c onsc iênc ia c ol etiv a q ue c riou o estil o da arte, m as a m aneira de transm iti-l a. im p orta se a ol h o nu ou c om

l up a.

E ram

ab sol utam ente v isuais,

ob serv aç ã o c onstruir sua arte;

transform ar-se,

v isioná rios, m ais q ue p ensadores ou fil ó sofos. E

v identes,

foi este c rité rio q ue fez

deform ar-se,

esta

sub m eter-se ao

esp í rito do fantá stic o, do m arav il h oso, ou do sim b ó l ic o. N ada de arb itrá rio, nada de

p uram ente gratuito na inv enç ã o deste “ outro m undo” : inferno e p araí so se c onstituí am

à sem el h anç a do m undo sensí v el , ap oiando-se som ente no al ic erc e de

suas p ró p rias ap arênc ias. A ab straç ã o nã o faz ia p arte do m enu dos m estres desta esc ol a de arte. Pode-se diz er q ue nenh um

Fl am engo dav a p referênc ia à

detrim ento do ob j eto, ou p riv il egiav a o c onc eito em

rel aç ã o à

I dé ia em

form a ou à

c or.

Ap oiav am -se fortem ente no m undo ex terior e era p or m eio da disp osiç ã o dos O

el em entos ex traí dos da naturez a q ue seus sonh os ou p esadel os se m aterial iz av am .

gênero fantá stic o enc antav a sob rem aneira o p ov o, satisfaz endo-l h es o gosto

atrav é s do m arav il h oso e das m anifestaç õ es q uim é ric as. m arav il h oso dav am -se, m uitas v ez es, sem m uito em b ora surgissem

rel aç ã o c om

sem p re no m eio del a. É

As ap ariç õ es do

a real idade c otidiana,

tal v ez isso o q ue h á

de m ais

inq uietante neste m arav il h oso m ediev al fl am engo: j ustam ente o fato de ningué m se interrogar sob re sua p resenç a c om p l etam ente sem

nex o em

p l eno c otidiano.

6


Fig. 6 : « A B a l e ia

P e r fu r a d a , o u

J h e r o n im u s B o s c h . O

o s

o r igin a l d e s t a

gr a n d e s

e s ta m p a

p e ix e s

s e e n c o n tr a

e s t a m p e s d e l a B ib l io t h è q u e r o y a l e d e B r u x e l l e s . M AE T E R L I N C K , L . L e G enre S a tiriq u e d a ns la 15 5 .

c o m e m

e m

o s

p e q u e n o s », e s ta m p a

B r u x e la s , n o

d e

C a b in e t d e s

P eintu re F la m a nd e, G a n d : 19 0 3 , p .2 3 1, f ig.

Foi na I dade M é dia q ue este c entro europ eu se sup erou no ex erc í c io da tem á tic a do fantá stic o retom ando-o sem

c essar no c urso de sua ev ol uç ã o, reanim ando form as

p rim itiv as ou as enriq uec endo p or m eio de nov os sistem as. O

fantá stic o era um

tip o de insp iraç ã o q ue c h egav a ao esp í rito p or m eio do ol h ar; a im aginaç ã o se al im entando da ob serv aç ã o, se nutrindo do c onc reto, do p al p á v el , do v isí v el e dep ois os ul trap assando. M ec anism os artific iais da im aginaç ã o c onc eb iam q ue fugiam esc ap av am

à

ao c ontrol e da raz ã o m ais sensata, gerav am l ó gic a, c riav am

figuras c uj as form as

faunas e fl oras m onstruosas ou m arav il h osas, anj os

ou b estas, m ontanh as ou v egetaç õ es b iz arras q ue se entrem eav am c om

c riaç õ es

p ersonagens h um anas e anim ais c om p ondo todo p aisagism o.

ou se fundiam

7


Fig. 7 : A p a r t ir d e u m

d e s e n h o

d e P ie t e r B r u e ge l , o

V e lh o : “ T e n ta ç õ e s d e S a n t o

G r a v u r a , in: C AS T E L L I , E . I l D em ononia co nell’ A rte, M il a n o : 19 5 2 , p . 13 8 .

Q uanto ao esp í rito sim b ó l ic o,

em

todo p ensam ento m ediev al

An t ã o .

a seduç ã o do

h orrí v el era a b ase do estí m ul o do dem oní ac o, q ue era este “ nã o ser” q ue se m anifestav a c om o p ura agressã o, j ustam ente p or ser desfigurado. O

dem ô nio era

rep resentado c om o a inc onsistênc ia de um a naturez a h um ana, p ois a b esta nã o era senã o um

asp ec to do ser h um ano, um a total idade c orp oral destituí da de

intel igênc ia, m as ab sol utam ente p assional p ara a destruiç ã o. E ra um

tip o de

agressã o q ue p redom inav a entre as figuras dos Santos nas p inturas al em ã s e fl am engas. O s dem ô nios das grav uras al em ã s do sé c ul o X V

tinh am , todos el es,

situados os ó rgã os sex uais, ap arec ia um a fac e, um

outro ap arec ia, p or

ou q uase todos, um a dup l a fac e. N o l ugar onde, na naturez a h um ana, estav am ex em p l o, nas c ostas; um

rosto. U m

terc eiro, na al tura do estô m ago. E sta b ifrontal idade ou

trifrontal idade nã o era senã o um a m aneira de rep resentar o q ue nã o ex istia p ossib il idade de ex p rim ir q ue tiv esse c onsistênc ia.

8


Fig. 8 : M e s t r e

d a

L e n d a

d e

S a n ta

B á r b a r a . D e ta lh e

d a

H is t ó r ia

d e

J ô , C o l ô n ia , M u s e u

W a l r a f f R ic h a r t z , in C AS T E L L I , E . I l D em ononia co nell’ A rte, M il a n o : 19 5 2 , p . 9 0 .

N a b á sic a l iç ã o de m oral dos Fl am engos, p or trá s do sí m b ol o da l ux ú ria ou da p reguiç a, c om p reendia-se v el adam ente q ue todas as p erm issõ es p ara os ex c essos h um anos eram

c onc edidas p el o dem ô nio à q uel e q ue estiv esse disp osto a l h e

oferec er a al m a,

e p roc urav a-se rep resentar a tentaç ã o deste dem oní ac o

rep roduz indo o sentido do h orrí v el indefinido, ou sej a, rep roduz indo al go sem

naturez a determ inada, q ue p odia ser c h am ada sim p l esm ente de desnaturez a. O s rep resentantes

do

deform ados, rem etem desfiguraç ã o v em

B estiá rio

assum em

as

m ais

div ersas

form as.

Sem p re

à idé ia de fl agel adores. Al ados ou h í b ridos, o fantá stic o c om o

ex p ressar a inv estida im p etuosa do dem oní ac o sob re o h om em ,

c om o p or ex em p l o, p or m eio do im p ul so ( cupiditas) , este p oderoso ingrediente h um ano q ue ex istia na m edida em nec essitasse, ou da v ol ú p ia, deseq uil í b rio.

q ue h av ia a ausênc ia de al go de q ue se

do ex c esso ( v o l uptas) ,

ex tensã o do sensí v el ,

um

9


Fig.9 : E s c o l a d e C o l ô n ia ( p o r v o l t a d e 15 0 0 ) : “ C r u c if ic a ç ã o ” ( p a r t .) . M u s e u C AS T E L L I , E . I l D em ononia co nell’ A rte, M il a n o : 19 5 2 , p . 9 1.

d e B r u x e l a s , in

Para tal , o rem é dio adeq uado era a m ortific aç ã o da c arne. Com o, na é p oc a, a im agem

rel igiosa era a l iteratura do p ov o, os sac rifí c ios m oná stic os v iraram

tem a

dom inante na arte e nas p redic aç õ es m ediev ais, natural m ente ac om p anh ados de

j ej uns c ontí nuos c om o c ontrap onto, o q ue p or v ez es ac el erav a o sentido v isioná rio.

N as p inturas dos v í c ios, os Fl am engos em p enh aram -se em

reb usc ar os ex c essos.

E sta fantasia, q ue tom ou c onta da arte da é p oc a, nã o deix ou de ser um a p intura didá tic a, ou sej a, um a l iç ã o de p ersuasã o, um a dem onstraç ã o da c ura do v í c io

p el a v irtude. Para v í c ios l ev es, c om o a gul a, l ux ú ria, etc . , nã o tã o p rej udic iais no ex erc í c io de seus antô nim os, a c ul p a im p l antada p el as p redic aç õ es j á p uniç ã o sufic iente, m as p ara v í c ios signific ativ os, um a im agem o m el h or p rotesto.

era um a

esc arnec edora era

10


Fig.10 : U m a s á t ir a d a c a v a l a r ia , Á gu a f o r t e d e J h e r o n im u s B o s c h . M AE T E R L I N C K , L . L e G enre S a tiriq u e d a ns la

P eintu re F la m a nd e, G a n d : 19 0 3 , p .2 2 7 , f ig.

Sem p re

reform ul ando-o,

15 3 .

faz endo

uso

do

B estiá rio,

ap erfeiç oando-o,

inc rem entando-o, a arte das esc ol as do norte europ eu m arc ou um e de l á

p ara frente, as im agens q ue ev entual m ente v ieram

antigo B estiá rio m ediev al raram ente se c om p araram

a el a.

ou

l ongo p erí odo,

a faz er sugestã o ao

NOT A S 1

o

N .A.: J e a n E git o , a

d e M a n d e v il l e e r a in gl ê s . D e ix o u

Á s ia , p e r m a n e c e u

m u it o s a n o s n a

s e u

C h in a

a u s ê n c ia . A r e l a ç ã o d e s u a s v ia ge n s , r e d igid a e m p a ra

o

in gl ê s , f o r m a

h í b r id o s , h u m a n o s c o m

2

u m

c o m p ê n d io

d e z b r a ç o s , o u

p a ís e m

e v o lt o u

à

E u r o p a

a T e r r a S a n ta ,

a p ó s 3 4

a n o s d e

l a t im , d e p o is t r a d u z id a p a r a o f r a n c ê s e

e x t r a v a ga n t e c o m

13 2 2 , p e r c o r r e u

d e

c o n fr o n ta ç õ e s

c o m

t ip o s

o r o s t o v ir a d o p a r a a s c o s t a s , e t c .

d e

s e re s

N .A. ( B ib l . N a t ., P a r is , 2 8 10 ) . ...........................................

11


Alberto Santos Dumont: A História da Invenção do Avião.

Ilton José de Cerqueira Filho

A cena: Paris, a “Cidade-Luz”, capital da França, exibindo suas aspirações e frutos de uma continuada e, ainda, efervescente Revolução Industrial e Cultural. O ano: 1906, o dia: 23 de outubro, às 16h45min; inúmeras pessoas, com os seus chapéus nas mãos, vibrando, acenando ao alto, extasiadas pelo que presenciavam, enquanto Santos Dumont cruzava, em vôo, o Campo de Bagatelle, com o seu Mais-Pesado-Que-oAr: o 14-Bis. Este relato descreve, de forma sucinta, o motivo de comemorarmos em 23 de outubro, o Dia do Aviador. Porém, sua importância vai além de representar apenas a data magna da Aeronáutica - aqui entendida como a Ciência da Navegação Aérea - e da Força Aérea Brasileira. Essa data é carregada de inquestionável valor histórico; porém para desfilarmos seus motivos, torna-se imprescindível falarmos do ilustre brasileiro Alberto Santos Dumont. Toda história teve início quando, aos 24 anos de idade, o jovem engenheiro de formação e ascendência francesa, Dr. Henrique Dumont conheceu a jovem Francisca de Paula Santos e, se casaram, a 6 de setembro de 1856, na cidade de Ouro Preto-MG. Em 1872, o Dr. Henrique Dumont foi contratado para trabalhar na construção da Ferrovia Pedro II, posteriormente conhecida como Estrada de Ferro Central do Brasil, que ligaria o Rio de Janeiro a Minas Gerais, particularmente o trecho localizado na Serra da Mantiqueira. Para não ficar longe da família, o Dr. Henrique trouxe sua esposa, os cinco filhos, instalando-se em uma casa próxima às obras, na Fazenda Cabangu, entre os Distritos de João Ayres e João Gomes; local onde nasceu, a 20 de julho de 1873, data em que o Dr. Henrique completava seus 41 anos, o sexto, dos oito filhos do casal, batizado como Alberto Santos Dumont. Concluída as obras em 1875, a família Dumont mudou-se para a cidade de Valença-RJ e, posteriormente, em 1879, para Ribeirão Preto-SP, onde se estabeleceu na Fazenda Arindeúva, ocupando-se com plantio e beneficiamento de café, através da empresa Dumont Coffee Company. Em 1891, Santos Dumont viajou com seus pais para Paris. Os dez últimos anos do século XX foram marcados por inúmeras evoluções tecnológicas, como o gramofone, a linotipia, a turbina a gás, o cinema e o cinerama. O motor a gasolina, ou seja, de explosão, também conhecido como motor de combustão interna, era a sensação do momento, fazia o maior sucesso e, devido a isto, exposições da época mostravam-no em múltiplas versões e funcionando sob os mais variados princípios. Ao visitar uma dessas exposições, o então jovem Santos Dumont ficou fascinado, pois sempre se viu interessado em entender aquele mecanismo. A família Dumont voltou para o Brasil e, juntamente, Alberto, mas não para ficar muito tempo, pois tinha em mente uma séria de idéias e concluíra que Paris seria o local ideal para colocá-las em prática. Seu pai, que além de engenheiro era fazendeiro e abastado cafeicultor, fez todo o possível para facilitar o empreendimento do filho. Além de emancipá-lo com apenas 18 anos, deu-lhe, antecipadamente, sua herança, composta de ações e títulos de renda que lhe permitiram viver folgadamente e financiar, sem ajuda de terceiros, todas as suas experiências. Em 1892, Santos Dumont voltou para Paris, disposto a aprender tudo sobre Mecânica e, em especial, sobre motores a explosão, objetivando colocar em prática um plano que vinha articulando desde criança. Embora não primasse pela originalidade, o projeto era arrojado: consistia em criar um aparelho que permitisse ao homem voar, controlando o seu próprio curso.

1


Podemos acrescentar que, a passagem do século XIX, até, aproximadamente, os dez primeiros anos do século XX, marcou Paris com uma idéia e vontade fixa de grande parte da população: voar! Várias pessoas tentaram a proeza e tiveram um resultado final funesto, outras, com melhor sorte, apenas não obtiveram os resultados esperados. Muitos continuaram a tentar das mais diferentes maneiras. Mas, até então, ninguém havia conseguido alçar vôo por seus próprios meios, manter-se no ar e, depois, retornar ao solo num aparelho dirigível, e era isso que Santos Dumont pretendia. Na realidade, o projeto de Santos Dumont não era novo, pois já existiam balões. Quando ainda menino, em Ribeirão Preto-SP, ele já ficava intrigado com os Sanhaços e Tico-Ticos que pousavam em seu quintal e depois ganhavam o ar, novamente, com a maior tranqüilidade, afinal - pensava ele – “as aves são pesadas e, se elas conseguem voar, por que não o homem?”. EXPERIÊNCIAS INICIAIS O primeiro balão construído por Santos Dumont não tinha motor, dependia do vento para deslocarse, mas acrescentou muito, no que tange o emprego de materiais, até então nunca utilizados. Ao vê-lo, houve muitos parisienses duvidaram do bom senso de Santos Dumont. O balão “Brasil”, como foi batizado, era diferente dos outros modelos conhecidos, tinha o formato esférico e um invólucro com diâmetro inferior a 5 metros, com capacidade para 113 m3 de gás; seu peso era de 15 kg e, a rede, que em outros balões chegava a pesar 50 kg, no “Brasil” não passava de 1.800 gramas; a barquinha, que geralmente pesava mais de 30 kg em outros balões, agora limitava-se a 6 kg, e como não bastasse toda essa economia de peso, até a âncora foi substituída por um arpão de ferro. Mesmo com todas as previsões pessimistas, por ocasião de seu primeiro vôo, o menor aeróstato do mundo ganhou altura valentemente, provando que Santos Dumont, embora estreante, sabia muito bem o que fazia em matéria de construção aeronáutica. O sucesso do “Brasil” foi somente o primeiro passo. A dirigibilidade dos balões era o que realmente interessava a Santos Dumont; porém, para chegar a ela, teria que utilizar balões com propulsão própria. Santos Dumont aprofundou seus estudos, concentrando-se, principalmente, em Mecânica e em motor de combustão interna, pelo qual se viu impressionado à primeira vista, tornando-o objeto constante de suas pesquisas, na busca de um motor ideal para propelir um veículo aéreo, com as seguintes características: pouco peso, muita força e o uso de combustível líquido, por ser mais fácil de ser transportado. O objetivo foi alcançado em 1897, quando construiu um motor de dois cilindros e o adaptou a um triciclo. Depois de muitos estudos e planejamento, mandou construir um balão que foi batizado como “Santos Dumont Nº 1”, o primeiro de uma série de balões com a forma de “charutos voadores motorizados”. O número foi colocado propositadamente, para diferenciá-lo dos outros que certamente viriam, com inclusão de outras melhorias técnicas. O novo balão foi criticado pelos especialistas da época. Segundo comentários, a seda japonesa utilizada na confecção do invólucro não era um material adequado para ser inflado com hidrogênio, um gás altamente explosivo. Além disso, instalar um motor a gasolina debaixo de um balão construído desta forma seria um verdadeiro suicídio, pois os gases quentes do escapamento fatalmente incendiariam o invólucro, fazendo explodir o hidrogênio. Mais uma vez Santos Dumont estava certo. A 20 de setembro de 1898, depois de uma tentativa frustrada, o brasileiro pioneiro da aviação subiu aos céus e alcançou a altura de 400 metros, no comando do peculiar veículo que concebera. Ao pousar no mesmo ponto de onde partiu, deu prova definitiva que é possível impulsionar e dirigir uma embarcação aérea, mesmo contra o vento, em condições de absoluta segurança. Estava concluída mais uma etapa da conquista dos ares, a Ciência da Navegação Aérea. Aberto o caminho, faltava explorá-lo, e Santos Dumont lançou-se com afinco à tarefa, construindo um balão após outro e realizando com eles, toda sorte de experiências, as quais lhe permitiram desvendar, gradualmente, os mistérios da navegação em veículos mais-leves-que-o-ar. A cada novo balão que construía, Santos Dumont acrescentava aperfeiçoamentos, cuja falta se fizeram sentir no modelo anterior e, assim, os seus aparelhos iam se tornando cada vez mais funcionais e seguros.

2


No ano de 1900, o milionário francês Henri Deustsch de la Meurth, entusiasta e mecenas da aviação, lançou um desafio aos construtores de dirigíveis: quem conseguisse partir do Campo de Saint-Cloud, fazer a volta em torno da Torre Eiffel e retornar ao local de partida, no prazo de trinta minutos, sem tocar ano solo, faria jus a um prêmio 125.000 francos. Pilotando o seu mais recente balão, o “Nº 6”, Santos Dumont levantou vôo do Campo de SaintCloud, a 19 de outubro de 1901, em disputa do prêmio que recebeu o nome de seu idealizador: Deustsch. Antes do fim do prazo estipulado estava de volta. Dos 125.000 francos, distribuiu 50.000 entre os seus mecânicos e auxiliares. A outra parte, 75.000, foi entregue à polícia parisiense para ajudar os necessitados; ao autor da façanha coube, apenas, a satisfação de ter demonstrado, diante de uma assistência oficial, que o dirigível era um veículo perfeitamente manejável e seguro. Ainda, por ocasião deste feito, somou-se um outro prêmio, conferido a Santos Dumont pelo governo do Brasil, constituído de uma medalha de ouro assinada pelo então Presidente da República (1898-1902), Dr. Manoel Ferraz de Campos Sales (1841-1913); acompanhada do prêmio, em espécie, de 100 contos de réis, equivalente, na época, a 125.000 francos. Depois do “Nº 6”, Santos Dumont construiu vários outros balões: o “Nº 7”. Projetado e construído exclusivamente para corridas, era uma obra-prima de elegância: delgado, esguio, alcançava a velocidade de 80 km/h; entretanto, nunca chegou a competir, pois não apareceram concorrentes com disposição e capacidade para enfrentá-lo. O “Nº 8” não existiu, pois Santos Dumont era bastante supersticioso, e evitava este número devido ao acidente ocorrido com o dirigível “Nº 5”, no dia 8 de agosto (oitavo mês do ano); então, em decorrência disto, saltou do 7 para o “Nº 9”. O dirigível “Nº 9”, conferiu a Santos Dumont grande popularidade, pois abandonou sua antiga regra de segurança, passando a transportar pessoas de um lado para outro de Paris. Este gesto simpático, aliado à sua acanhada compleição física (1,50 m de altura e 50 kg), tornou-o carinhosamente conhecido como “Le Petit Santos”. Para não ter de esvaziar os seus dirigíveis após cada vôo, em 1905 projetou e mandou construir um grande hangar, em Neuilly, Paris, que foi, aliás, o primeiro do mundo, onde recolhia seus “charutos voadores”, até a experiência seguinte, economizando tempo e dinheiro a ser gasto, com hidrogênio, para inflá-lo novamente. O sucesso alcançado pelo “Nº 9” no transporte de pessoas, levou-o a projetar e construir um dirigível especialmente destinado para este fim. Surgiu, assim, o “Nº 10”, maior que todos os anteriores e chamado pelo próprio Santos Dumont de dirigível “Omnibus”. Seu invólucro tinha capacidade vinte vezes maior que a do primeiro balão, o “Brasil”, mas a potência de seu motor não ultrapassava 25 cavalos de força. Já convicto da superioridade do veículo mais-pesado-que-o-ar sobre o balão dirigível, assim como todos os aeronautas da época, Santos Dumont passou a estudar a constituição física dos pássaros, o formato dos seus corpos e os movimentos que as aves faziam durante o vôo. O 14-BIS Depois de empreender catorze projetos, alguns não tendo apresentado os resultados esperados, além de passar dezenas de horas em vôo, Santos Dumont concluiu que os aeróstatos - forma genérica que designava os balões e os dirigíveis - eram lentos demais e, que para vencer a resistência do ar e voar mais depressa, teria que criar um aparelho mais pesado que o ar. Então, Santos Dumont assim o fez: planejou, construiu o seu “Mais-Pesado-Que-o-Ar” e iniciou uma série de testes, que incluíram verificação de eficiência, comportamento no ar e estabilidade, feito por intermédio de um cabo de aço esticado entre dois postes e, após içar seu engenho, fê-lo deslizar sobre aquele, puxado por dois burrinhos. Cauteloso e prudente que era, Santos Dumont não quis levantar vôo, correndo riscos; entretanto, apesar de suas limitações, o balão ainda era o meio de transporte aéreo mais seguro que existia, de modo que o inventor aproveitou esta qualidade num aparelho misto, apenas para fins experimentais. Consistia no conjunto composto pelo dirigível “Nº 14”, ao qual foi atrelado o seu novo engenho, uma aeronave feita de

3


bambu, com ligas, interseções e cantoneiras de alumínio, revestimento de seda japonesa e, com as seguintes medidas: 11,5 metros de envergadura (medida das asas, tomada de uma ponta à outra), 10 metros de comprimento e 290 kg. Este conjunto foi denominado pelos amigos e pessoas que costumavam assistir às experiências de Santos Dumont, de 14-Bis. Mesmo tendo em mente o caráter provisório do conjunto, Santos Dumont o manteve, pois enquanto o balão “Nº 14” erguia o aeroplano, evitava acidentes e protegia de possíveis falhas durante a decolagem, aterrissagem e o mantinha no ar, permitindo que fossem realizados os testes de comportamento em vôo, sem riscos de queda. Em julho de 1906, o aeroplano de Santos Dumont foi emancipado do balão “Nº 14”, porém seu nome permaneceu: 14-Bis; ocorrendo após isto, seus primeiros testes. Pouco depois, seu construtor o inscreveu para disputar o Prêmio Archdeacom. Ernest Archdeacom, aficionado da aviação, estabeleceu um prêmio, no valor de 3.000 francos para o piloto que conseguisse voar 25 metros, com um aparelho mais-pesado-que-o-ar. O Aeroclube da França acrescentou mais 1.500 francos, como prêmio, para o piloto que conseguisse cobrir a distância de 100 metros em vôo. Ficou estabelecida a manhã do dia 23 de outubro de 1906, para a realização da prova do concurso. Apenas Santos Dumont se apresentou, juntamente com o seu 14-Bis; porém, como o aeroplano teve problemas de ordem mecânica em seu trem-de-pouso, nos momentos que antecederam a prova; esta foi adiada para a parte da tarde e, até lá, Santos Dumont empreendeu todos os seus esforços nos reparos de seu avião, não parando nem mesmo para almoçar. Chegada a tarde e, já tendo executado os ajustes necessários, Santos Dumont e o 14-Bis, realizaram o feito. Grande multidão que se encontrava no Campo de Bagatelle, assistiu à conquista do Prêmio Archdeacom, quando o 14-Bis, depois de tomar embalo e percorrer, em vôo, 60 metros a 80 centímetros do solo. Era a primeira vez, diante de uma comissão oficialmente constituída - a Comissão Fiscalizadora do Aeroclube da França - que um aparelho mais-pesado-que-o-ar se elevava do solo e tornava a descer, depois de ter cumprir um percurso previamente determinado, sem recorrer a outros meios, além de sua própria força motriz. A imprensa mundial aclamou a vitória do brasileiro e, a partir de então, Santos Dumont tornou-se tema de noticiários e comentários em toda a Europa. Logo, porém, apareceram descrentes de sua façanha, alegando ter sido, o vôo do 14-Bis, um “salto”. A estes, Alberto Santos Dumont respondeu no mês seguinte, a 12 de novembro, ao conquistar, também, o prêmio oferecido pelo Aeroclube da França e, desta vez, não deixou margem para dúvidas: dos seus 24 cavalos de seu motorzinho, o 14-Bis cruzou, novamente, no céu, a distância de 220 metros, erguendo-se à altura de 6 metros. Inaugurando assim, de forma inequívoca e definitiva, a Centenária Era da Aviação.

4


BIBLIOGRAFIA: ABRANTES, Daniel Teixeira. REVISTA AERONÁUTICA. 14-BIS. O Centenário Vem Aí... Rio de Janeiro - RJ. Edição nov/dez 2004 – nº 247. (artigo) BARBOSA, Cleverson Lélio. A Vida de Santos Dumont – O Gênio Brasileiro Que deu Certo. BIP Boletim dos Inativos e Pensionistas da Aeronáutica. Nº 49, janeiro, fevereiro e março de 2005. Diretoria de Intendência/Subdiretoria de Inativos e Pensionistas. Rio de Janeiro - RJ. (artigo) CARNEIRO, Sônia Maria de Oliveira. REVISTA AERONÁUTICA. Santos-Dumont e a Cultura Nacional. Rio de Janeiro - RJ. Edição mai/jun 2005 – nº 250. (artigo) HIPPÓLYTO DA COSTA, Fernando. REVISTA AERONÁUTICA. O Pai da Aviação. Alberto SantosDumont. 1ª Parte. Rio de Janeiro - RJ. Edição set/out 2005 – nº 252. (artigo) _________________, Fernando. REVISTA AERONÁUTICA. O Pai da Aviação. Alberto SantosDumont. 2ª Parte. Rio de Janeiro - RJ. Edição nov/dez 2005 – nº 253. (artigo) _________________, Fernando. REVISTA AERONÁUTICA. O Pai da Aviação. Alberto SantosDumont. 3ª Parte. Rio de Janeiro - RJ. Edição jan/fev 2006 – nº 254. (artigo) LINS DE BARROS, Henrique. Um Salto em Direção às Nuvens. REVISTA NOSSA HISTÓRIA. Julho de 2004. Rio de Janeiro - RJ. (artigo) MUSAL – Museu Aeroespacial. REVISTA AERONÁUTICA. Acervo. Rio de Janeiro - RJ. Edição set/out 2004 – nº 246. (artigo) NAPOLEÃO, Aluízio. Santos Dumont e a Conquista do Ar. Coleção Aeronáutica. Série Brasileira de Aeronáutica. Vol. I, INCAER – Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica. Rio de Janeiro-RJ. Itatiaia – Belo Horizonte-MG, 1988. REVISTA VEJA. São Paulo. Edição 1919 – ano 38 – nº 34 / 24 de agosto de 2005. (artigo) SANTOS DUMONT, Alberto. O Que eu vi, o Que nós Veremos. São Paulo: Hedra Ltda, 2000. __________ Os Meus Balões. Brasília - DF: Fundação Rondon, 1986.

SOBRE O AUTOR Ilton José de Cerqueira Filho é militar da ativa do Comando da Aeronáutica, Licenciado em História pela Fundação Presidente Antônio Carlos (Barbacena-MG); Especialista em História do Brasil pela Simonsen - Faculdades Integradas (Rio de Janeiro-RJ), docente do Curso Preparatório de Cadetes do Ar, na EPCAr – Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Instituição de Ensino Médio do Comando da Aeronáutica) em Barbacena-MG. Contato: ilton-filho@ig.com.br.

5


Caricatura de Octรกvio para o jornal Ultima Hora. 20/10/ 1952. (ICO-UH 01.02.17)

6


Progresso e civilização à luz ultramontana: jornais católicos no sul do Brasil - Porto Alegre, século XIX Mauro Dillmann Tavares

A partir do final do século XVIII, o Rio Grande do Sul deixou de ser uma província isolada do restante do Império e de sua época. Como uma província importante, foi disputada no período colonial com os espanhóis, detentora de grande escravaria, mantenedora de contatos com outras regiões através de tropeiros, foco de guerra separatista como a Farroupilha, local de fronteira geográfica estratégica para guerras como a Cisplatina e a do Paraguai. No campo institucional religioso, como em todo o Império, a falta de rendimentos, de paramentos e de igrejas sempre preocupou os membros da hierarquia eclesiástica. Porto Alegre, a capital, às beiras do rio Guaíba, desenvolveu-se eminentemente desde o limiar do XIX e, em meados do século foi criado o bispado do Rio Grande do Sul na tentativa de reorganizar o precário culto religioso institucional. Neste período, o ultramontanismo1 passou a nortear a política religiosa da Igreja Católica e os bispos buscaram cumprir fielmente as determinações do papa em Roma. As ordens romanas eram de combate a toda e qualquer doutrina de cunho liberal e uma série de coisas daí advindas, “consideradas erradas e perigosas para a Igreja”,2 além do liberalismo, as ciências, a modernidade, a maçonaria, o protestantismo, o cientificismo, o socialismo e a irreligiosidade foram condenadas pelo papa Pio IX. Para tal combate, em todo o Império, jornais eclesiásticos foram editados. Em contraponto às “heresias”, construíram-se idéias de modernização da sociedade, próprias do projeto de romanização, marcando um exemplo do poder de articulação da hierarquia eclesiástica. Na capital da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, circularam dois periódicos eclesiásticos, servindo ao bispo ultramontano Dom Sebastião Dias Laranjeira, em períodos distintos do século XIX: A Estrela do Sul – periódico semanal publicado entre 1862 e 1869, e O Thabor, publicado em 1881 e 1882. A partir de fontes pouco exploradas, ou ainda desconhecidas, como o jornal O Thabor, pretendemos contribuir com a historiografia dedicada à Igreja Católica no sul do Brasil,3 bem como complementar o entendimento da importância da imprensa católica como meio eficaz de divulgação de noções de progresso social à luz da religião.4 Logo, cabe a questão: como os jornais católicos se tornaram importantes mecanismos de divulgação das idéias católicas ultramontanas em Porto Alegre? Ou melhor, como o bispado utilizou esse veículo de comunicação para divulgar estas idéias? A lacuna existente entre o último exemplar publicado de A Estrela do Sul e o primeiro de O Thabor (doze anos, portanto), não impede uma avaliação coerente do pensamento católico e seu programa de ação no contexto do Rio Grande do Sul. A Estrela do Sul e O Thabor, cujos conteúdos, de acordo e em defesa da doutrina e culto católicos romanos, tenderam as mesmas condenações ressaltadas por Martha Abreu para o Rio de Janeiro.5 A uniformidade do pensamento ultramontano no Brasil foi importante para a Igreja implementar as diretrizes da Santa Sé. O povo católico deveria tomar distância de doutrinas liberais, maçônicas, racionalistas, protestantes, comunistas e materialistas. Os aspectos religiosos deveriam restringir-se ao sagrado de acordo com as emanações vindas do papa e os sentimentos dos fiéis necessitariam do comprometimento com os sacramentos, com a reverência a Roma, a santificação dos dias de domingo, a santificação das festas e de seus atos. No Rio de Janeiro, Martha Abreu demonstrou que o jornal O Apóstolo, além de divulgar “a ordem católica”, estava convencido de que o catolicismo era “motivo de progresso e civilização”6 e para tal, buscaria combater seus inimigos. Na Bahia, publicava-se O Brasil, periódico religioso consagrado a “rebater a propaganda herética” e Chronica Religiosa (1869-1874), que, segundo Kátia Mattoso, seguia “a mais estrita ortodoxia” defendendo “que a moral era o próprio princípio da autoridade e estava na própria base do trono imperial”7. Em Recife circulou A União, “de oposição quase que sistemática ao governo”8 e O Cathólico.9 Já no Pará, servindo ao bispo D. Macedo Costa, havia a publicação do jornal A Estrela do

1


Norte.10 Este último periódico, fundado um ano após seu congênere A Estrela do Sul, evidencia o contato e união da hierarquia católica de norte a sul do Império. Todos os periódicos funcionaram como uma “organização adequada aos interesses da propaganda eclesiástica”11 e, freqüentemente, trocavam artigos, notícias e enviavam exemplares completos uns aos outros. No primeiro artigo de O Thabor consta a almejada “defesa dos direitos da universal igreja, da Santa Sé Apostólica e do Pontificado Romano em sua soberania temporal”. Os votos eram de que o jornal “possa (...) trilhar a gloriosa sendo do Apóstolo do Rio de Janeiro, que há dezesseis anos luta, braço a braço, com os mais ousados inimigos, desde o gabinete governamental transformado em congresso cesariano, até o inundo e caricato jornaleco!”.12 Enquanto A Estrela do Sul trazia no frontispício a comum inscrição dos jornais católicos: “consagrado aos interesses da religião”13, O Thabor, tendo como principal redator o padre José Antônio de Almeida e Silva, dizia-se “periódico para famílias: religioso, literário e noticioso”. Ambos foram meios eficientes de divulgação das idéias religiosas ultramontanas, do catolicismo como religião do Estado, dos pareceres do bispo em seus novos empreendimentos para a Igreja na diocese e das críticas ao Estado imperial e à política local. Entre as principais preocupações dos editores de A Estrela do Sul estava a “posição do clero brasileiro” diante da “irreligiosidade do século”. O periódico referia-se tanto à desvalorização do clero, funcionário do Estado, quanto à corrupção e imoralidade dos poucos padres existentes.14 Mas também publicava discursos do bispo Laranjeira, relatos de viagens e visitas pastorais, além de divulgar as atividades do Cabido e do Seminário em construção. O Thabor teve um curto período de existência e mostrou-se muito mais politizado que seu antecessor, condenando a maçonaria e o liberalismo, alertando quanto à “escravidão” da Igreja pelo Estado, criticando o avanço do protestantismo, e fundamentalmente sua nova grande preocupação: o positivismo. Nas notificações de boas-vindas à imprensa católica, publicou-se em O Brasil Católico15 o seguinte sobre O Thabor: “Arvorando galhardamente a bandeira católica, O Thabor propõe-se a combater o bom combate, afirmando os princípios eternos que são a base de toda moral social, política e cristã”.16 Continuava afirmando que “O Thabor não será estranho à política, porque a religião também não o é; entende que (...) a religião é a base da sociedade, e esta é a política do Thabor” (meus grifos). No primeiro exemplar, em 08 de setembro de 1881, esclarecia seu principal objetivo: registrar os fastos da igreja, refutar os erros, destruir os sofismas, atacar o respeito humano e proclamar bem alto que fora do espírito da igreja católica não há salvação, estreitar os laços de união entre o clero, o povo e o chefe da igreja é o alvo do Thabor.17 (meus grifos) Mais ainda, afirmava que “o direito de padroado que outrora prestou-lhe relevantes serviços [à Igreja], hoje é uma corrente de ferro que a Igreja arrasta, que lhe tira toda a liberdade de ação”.18 O desejo da Igreja Católica era de desvencilhamento do poder civil, de liberdade nos assuntos internos, procurando ser leal às diretrizes do pontícife romano. A Igreja, em sua autoconcepção de contribuinte para o avanço e evolução humana, publicava em O Thabor “as benesses” proporcionadas ao longo de sua história, por fim declarando: “muito resta ainda a dizer sobre os relevantes e inumeráveis serviços prestados à sociedade por essa Igreja, que hoje é considerada uma trave na roda do progresso”.19 A historiadora Martha Abreu percebeu entre as estratégias das “lideranças católicas romanas”, “a construção de uma concepção de progresso, civilização e ordem, coerentes com os princípios do catolicismo romano”. A defesa da ordem católica e da estabilidade do Império eram estratégias de moralização e progresso.20 Roberto Romano já havia advertido que a Igreja “longe de se entender como instituição autoritária e retrógrada”, “se pensa como fonte da verdadeira civilização e do progresso modernos”.21 De modo geral, a Igreja via a si própria como religião progressista. No decorrer dos dois anos de publicação de O Thabor, percebemos a reincidente afirmativa da Igreja católica como fator de progresso. Em 1881, afirmava: “a Igreja a que temos a felicidade de pertencer não é inimiga do progresso”, e “longe de 2


retardar o progresso bem entendido, anima-o e marcha na vanguarda”.22 Em 1882, destacava a relevância da religião: “a moralidade, a boa educação, o amor ao trabalho e à civilização é tudo; porém, estes predicados, constitutivos da verdadeira grandeza, não se compreendem sem o elemento religioso”.23 Num outro momento destacava o “mérito indiscutível” da “glória de ter feito com que a sociedade, guiada por ela [Igreja], tenha progredido rapidamente nos caminhos da civilização”.24 Em síntese, progresso e civilização deveriam ser construídos e promovidos por meio da religião. Em Porto Alegre, um crítico voraz da Igreja católica foi o jornalista e político liberal Karl von Koseritz, que em 1871 publicou Roma perante o século, condenando a “superstição” da Igreja ultramontana. Notese que esse acirramento entre a intelectualidade política e a igreja coincide temporalmente com a “questão religiosa”, em que os bispos do Pará, D. Antônio de Macedo Costa, e de Pernambuco, D. Vital de Oliveira, foram presos após fecharem irmandades que se negavam a excluir maçons de seus quadros de associados.25 Ressentida, a Igreja relembrava em 1882 através de O Thabor um fato instigante e peculiar: o corte das côngruas (pagamentos, salários de membros do clero) dos padres estrangeiros pela Assembléia Legislativa provincial em 1873; e afirmava sua leitura do posicionamento dos liberais frente à religiosidade institucional eclesiástica: “Por aqui se vê a má vontade ou o ódio que os nossos legisladores votam à Igreja e aos seus ministros, a ponto de negarem aos capelães e coadjutores dos católicos alemães a insignificante côngrua de 30$000 réis mensais!”.26 Aproveitando-se da ocasião reivindicatória de sustentação da Igreja e pagamento dos párocos, O Thabor tecia críticas ao protestantismo. Elevam as localidades à categoria de capelas curadas e de freguesias como fizeram ultimamente nas colônias alemãs; a nação promete aos imigrantes, pastores para o exercício de seu culto, e por fim deixam os colonos católicos sem coadjutores e sem capelães! E quem faz isto? Os políticos atuais que todos os dias gritam em todos os tons que o Brasil precisa de colonos. Que contradição, meu Deus! Os colonos católicos não merecerão a mesma consideração, os mesmos privilégios que os protestantes?27 Não é nosso objetivo caracterizar aspectos religiosos da imigração alemã no Rio Grande do Sul, mas pode-se dizer que o trecho acima demonstra o peso considerável do protestantismo entre esses imigrantes e, principalmente, a reivindicação de vantagens da Igreja católica, pois, como típica expressão de seu monopólio de religião do Estado, devia deter privilégios sem iguais perante outras confissões cristãs.28 No Rio Grande do Sul, a força do protestantismo entre os imigrantes germânicos tornou-se um caro desafio aos ultramontanos. Em questões de batismo, por exemplo, crianças alemãs recebiam esse sacramento católico, mas eram criadas no luteranismo. O bispo Laranjeira lamentou ao governo Imperial contra o presidente da província pelo fato deste aprovar a petição dos colonos alemães com objetivos de criar seus filhos “católicos” como protestantes, recebendo confirmação em suas igrejas. “Aquelas ‘criancinhas católicas’ - escreveu D. Sebastião - tinham sido trazidas ao batismo por seus pais que o fizeram de volição própria. O governo não tinha o direito de permitir que aqueles pais agora mudassem a religião das crianças, iniciando-as na Igreja Luterana”.29 Em sua essência, a ação do bispo possuía duas contestações: o reconhecimento e ingerência do protestantismo e a atitude do governo provincial, contrária à constituição imperial que mantinha a Igreja católica como religião nacional. A expansão do protestantismo esteve entre os descontentamentos da Igreja. “A religião católica figura apenas nas páginas da nossa constituição política, que há muito caiu em desuso”, dizia o Brasil Católico. Os protestantes seriam responsáveis pelo envenenamento das “fontes onde os povos vão beber os ensinos da verdadeira religião, da verdadeira ciência e do verdadeiro progresso!”,30 e seriam “apoiados pela imprensa livre pensadora e defendidos no seio da própria assembléia geral que se compõe de católicos; é fácil conceber (...) a que estado chegou entre nós a indiferença em matéria religiosa!”.31

3


Em relação ao “abandono” da Igreja, a conclusão era incisiva: “no Rio Grande temos já uma perfeita separação da Igreja e do Estado”.32 Embora constatada, a separação não era o desejo da Igreja. Esta pressionava e se opunha às ações do Estado, mas necessitava do apoio deste para suas ações e considerava a união necessária para manutenção da paz social. A religião é tão necessária à paz social como o ar aos viventes. Relaxai os vínculos da religião e bem depressa se converterá o amor em ódio, a harmonia em desordem, a obediência em revolta, a justiça em afeição e a civilização em barbaridade. Tirai a religião, e vereis o entendimento sem apoio, o coração sem freio, o vício sem temor, a virtude sem esperança, a desgraça sem lenitivo, a autoridade sem prestígio, a liberdade sem garantia, enfim, uma perfeita Babel.33 (meus grifos) Com estas palavras, a Igreja legitimava sua função essencial numa sociedade contraditória que desejava a ordem interna, conciliando liberdade sem grandes mudanças democráticas.34 Daí as palavras de alerta do editorial de O Thabor para o cuidado da política civil provincial para com a Igreja, instituição conciliatória e pacificadora das barbáries, das revoltas e dos vícios. Mas a sociedade era outra na década de 1880 e os liberais já não toleravam a presença da igreja na cena pública nem os argumentos favoráveis à pacificação e necessário controle da anarquia. De respeitada, “ela passou a ser invocada como poder conservador, passadista, reacionário e contra o progresso da Nação”.35 No Rio Grande do Sul, o partido liberal no poder fez representar um combate a olhos vistos com a Igreja, pois defendia a separação Igreja-Estado, os princípios de instituições livres – embora nem sempre o fim da escravidão, fato declarado pelos católicos ultramontanos: “Infeliz país em que os mesmos que hasteiam a bandeira da liberdade, forjam as cadeias da escravidão, afirmam que o poder é o poder, e em nome da liberdade de consciência declaram guerra à única e verdadeira religião.”36 Portanto, no século XIX, se os periódicos eclesiásticos de Porto Alegre, como veículos eficazes de divulgação das novas católicas entre o público letrado, seguiram a tendência nacional ultramontana de reforma do culto, do seu clero e da sociedade em geral por meio da religião católica romana, no restante do Rio Grande do Sul assumiram algumas peculiaridades. Suas concepções de progresso pela religião, publicadas nos periódicos andaram na contramarcha para com o pensamento político liberal e a liberdade religiosa, mas também foram, como ressaltou Karla Martins para outro contexto, “alternativas a outras propostas de sua época”.37 Por vários motivos e entre os quais aqueles aqui destacados – a expansão da religião protestante e a força do partido liberal na província – aqueles ideais ultramontanos divulgados nos jornais do século XIX seriam fortalecidos entre a cristandade apenas após o fim do regime de Padroado, adentrando o século XX. Daí já não existia mais a união da Igreja com o Estado.

4


NOTAS: 1

Termo usado para “descrever cristãos que buscavam a liderança de Roma (‘do outro lado da montanha’), ou que defendiam o ponto de vista dos papas”. VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: EdUnb, 1980, p. 32. Ultramontanismo e romanização são entendidos como sinônimos, referindo-se ao “movimento reformador da prática católica no século XIX (...) que buscava retomar as determinações do Concílio de Trento, sacralizar os locais de culto, moralizar o clero, reforçar a estrutura hierárquica da Igreja e diminuir o poder dos leigos organizados em irmandades”. Cf. ABREU, Martha. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 18301900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 312. 2 Id. Ibid., p. 33. 3 DREHER, Martin. Rostos da Igreja no Brasil Meridional. O cristianismo no sul do Brasil. _______ (org.). Populações riograndenses e modelos de Igreja. Porto Alegre: Edições EST, 1998; RAMBO, Arthur. A Igreja da Restauração Católica no Brasil Meridional. DREHER, Martin (org.). Op. Cit. 4 Veja-se: MARTINS, Karla Denise. “Civilização Católica: D. Macedo Costa e o desenvolvimento da Amazônia na segunda metade do século XIX”. Revista de História Regional. 7(1), p. 73-103, 2002. 5 Com a ressalva de que no Rio Grande do Sul, em termos políticos, a forte presença dos liberais na Assembléia Provincial proporcionou um maior embate – ou uma oposição em outros termos, peculiares – entre estes e a Igreja. 6 ABREU, Martha. Op. Cit., p. 311, 314. 7 MATTOSO, Kátia. Bahia, século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 326. 8 GÉRSON, Brasil. O Regalismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Cátedra, 1978, p. 195. 9 CASALI, Alípio. Elite Intelectual e Restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 65. 10 Uma excelente análise do jornal A Estrela do Norte, encontra-se em: MARTINS, Karla Denise. Op.Cit. 11 Id. Ibid, p. 84. 12 Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre - AHCMPA.O Thabor, ano 1, n.1, Porto Alegre, 08 de setembro de 1881, fl.1. 13 A mesma referência apareceu no jornal Chronica Católica, da Bahia. Cf. ALMEIDA, Ronnie Jorge Tavares. Religião, Ciência, Darwinismo e Materialismo na Bahia Imperial: Domingos Guedes Cabral e a recusa da tese inaugural “Funcções do Cérebro” (1875). UFBA, Dissertação de Mestrado, 2005, p.158. 14 AHCMPA. A Estrela do Sul, Porto Alegre, n. 1, ano II, 04 de outubro de 1863, p. 01-05. 15 Periódico católico publicado na Corte na segunda metade do XIX, com várias referências em O Thabor. 16 AHCMPA. O Thabor, ano 1, n.8, 29 de outubro de 1881, fl. 3-4. 17 AHCMPA. O Thabor, ano 1, n.1, 08 de setembro de 1881, fl. 1. 18 AHCMPA. O Thabor, Ib.Ibid., fl.2. O Padroado como ser entendido como “uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à Coroa de Portugal como patrona das missões e instituições eclesiásticas católicas romanas em vastas regiões da África, da Ásia e no Brasil”. BOXER, Charles. O Império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1969, p. 257. 19 AHCMPA. O Thabor, 19 de novembro de 1881, ano 1, n. 11. 20 Projetos defendidos pelo jornal O Apóstolo do Rio de Janeiro. ABREU, Martha. Op.Cit., p. 313, 314. 21 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p. 110. 22 AHCMPA. O Thabor, 19 de novembro de 1881, ano 1, n. 11. 23 AHCMPA. O Thabor,18 de março de 1882, n. 28, ano 1, fl. 1. 24 AHCMPA. O Thabor, 13 de maio de 1882. 25 GÉRSON, Brasil. O Regalismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Cátedra, 1978, p. 183. 26 AHCMPA. O Thabor, n. 36, 13 de maio de 1882. 27 AHCMPA. O Thabor, Idem. 28 ROMANO, Roberto. Op. Cit., p. 82. 29 Publicação em O Apóstolo, 31 de março de 1867, apud VIEIRA, David Gueiros. Op. Cit., p. 141. 30 Artigo de Brasil Católico, publicado em O Thabor, n. 28, ano 1, 18 março 1882, fl. 2. Note-se que em tempos de positivismo, a defesa do catolicismo passava pelo de ‘verdadeira ciência’. 5


31

Artigo de Brasil Católico, Id. Ibid. AHCMPA. O Thabor, n. 35, Memorial, Porto Alegre, 06 de maio de 1882. 33 AHCMPA. O Thabor, n. 28, ano 1, 18 março 1882. 34 COSTA, Emília Viotti. Da monarquia à república. Momentos decisivos. São Paulo: Brasiliense, 1987. 35 ROMANO, Roberto. Op. Cit., p. 115. 36 Artigo de Brasil Católico, publicado em O Thabor, n. 28, ano 1, 18 março 1882, fl. 2. 37 MARTINS, Karla Denine. Op. Cit., p. 100. 32

6


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ABREU, Martha.O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 18301900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ALMEIDA, Ronnie Jorge Tavares. Religião, Ciência, Darwinismo e Materialismo na Bahia Imperial: Domingos Guedes Cabral e a recusa da tese inaugural “Funcções do Cérebro” (1875). UFBA, Dissertação de Mestrado, 2005. BOXER, Charles. O Império colonial português. Lisboa: Edições 70, 1969. CASALI, Alípio. Elite Intelectual e Restauração da Igreja. Petrópolis: Vozes, 1995. DREHER, Martin. “Rostos da Igreja no Brasil Meridional. O cristianismo no sul do Brasil”. _______ (org.). Populações rio-grandenses e modelos de Igreja. Porto Alegre: Edições EST, 1998. GÉRSON, Brasil. O Regalismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Cátedra, 1978. MATTOSO, Kátia. Bahia, século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. MARTINS, Karla Denise. “Civilização Católica: D. Macedo Costa e o desenvolvimento da Amazônia na segunda metade do século XIX”. Revista de História Regional. 7(1), 2002, p. 73-103. RAMBO, Arthur. “A Igreja da Restauração Católica no Brasil Meridional”. DREHER, Martin (org.). Populações rio-grandenses e modelos de Igreja. Porto Alegre: Edições EST, 1998. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: EdUnb, 1980.

SOBRE O AUTOR:

Mauro Dillmann Tavares Mestrando em História na Universidade do Rio dos Sinos – Unisinos (São Leopoldo-RS), tendo como objeto de investigação a sensibilidade devocional nas irmandades religiosas de Porto Alegre em tempos de implementação do ultramontanismo da Igreja Católica, durante a segunda metade do século XIX. Professor da rede pública municipal de São Leopoldo. Contato: maurodillmann@terra.com.br

7


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.