Histórica

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Instrumentos científicos como fonte para a história da ciência: uma história possível Janaína Lacerda*

Desde a reformulação da historiografia promovida por Marc Bloch e Lucien Febvre no final da década de 1920, a história se desvinculou da narrativa e do factual e passou a ser conduzida por hipóteses. Novos objetos e novas metodologias foram propostos, e as fronteiras disciplinares que separavam a disciplina das demais ciências sociais foram flexibilizadas e a história se aproximou da geografia, da economia e da psicanálise, dentre outras. Todo este movimento possibilitou a introdução de novas fontes para o historiador, e não apenas os documentos escritos. A iconografia, os números estatísticos, a pictografia, os relatos orais e os objetos do cotidiano passaram a ser tratados como documentos também. Como conseqüência deste movimento, houve uma pulverização do campo histórico, possibilitando uma história cultural, uma história das mentalidades, outra demográfica e, uma - que nos interessa particularmente – a história da cultura material. Segundo Jean-Marie Pensez o tema cultura material já existia desde o século XIX, mas de maneira indefinida. O movimento de Annales de Bloch e Braudel foi o percursor de uma História da cultura material. Marc Bloch, por exemplo, estudioso da medievalidade francesa, indagava que, sendo a população medieval essencialmente formada por camponeses produtores, seria importante, do ponto de vista da historiografia, indagar o que eles produziam, em que quantidade, com quais utensílios e técnicas. A história da cultura material, então, estudaria os objetos materiais em sua interação com os aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domínios históricos que vão dos utensílios ao estudo da alimentação, do vestuário, da moradia e dos objetos de ciência. Contudo, obviamente, deve-se examinar não o objeto tomado em si mesmo, mas sim os seus usos, as suas apropriações sociais, as técnicas envolvidas em sua manipulação, a sua importância econômica e a sua necessidade social e cultural, afinal, não se pode perder de vista a noção de cultura de cultura material (BARROS, 2001, pp. 21). Mas de que maneira isto se aplicaria aos objetos de ciência e tecnologia? Nenhum destes autores teorizou a respeito de uma cultura material das ciências. Sabemos que o historiador da cultura material deve estar atento não ao objeto em si, no caso, o objeto de C&T, mas às diferentes técnicas e tecnologias que estão contidas naquele objeto. Deve estar atento a quem construi o objeto, para quem, com que finalidade, qual o seu uso, se o uso corresponde à finalidade, ou se ele foi utilizado para aquilo que originalmente foi construído e qual a relação deste objeto e a ciência da época. Alguns filósofos e historiadores, sobretudo anglo-saxões, já discutem este tema desde a década de 1980. Filósofos e historiadores, quando tratam do desenvolvimento do conhecimento científico, falam apenas em termos de teoria, pois, segundo alguns autores a filosofia pós-positivista da ciência tendeu a focar os aspectos teóricos e a negligenciar a contribuição do experimento e dos instrumentos no desenvolvimento das ciências.1 No início dos anos 80 esta negligência ao experimento e ao instrumento foi criticada por historiadores e filósofos da ciência, sobretudo por um grupo da Universidade de Edimburgo, na Escócia, formado por Barry Barnes e David Bloor, na parte teórica, e Steven Shapin, na historiografia, dentre outros.(GOURDAROULIS, 1994, pp.161-8) Um destes filósofos foi Ian Hacking que criticou a idéia de que a experimentação estaria subordinada à teoria, e chamou a atenção para o estudo de uma cultura material das ciências através da qual seria possível aprofundar nosso conhecimento da prática científica. Hacking afirmava ainda que, sem sombra de dúvida, os

Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, pesquisadora do grupo “Bens culturais e patrimônio” do Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST- Rio de Janeiro, e pesquisadorabolsista da Coordenação de Museologia do MAST (www.mast.br). Contato: janaína@mast.br. 1


instrumentos e as técnicas instrumentais devem ser considerados fontes valiosas para a história da ciência. (HACKING apud GOURDAROULIS, 1994) Outro autor que também defendeu estudos de cultura material da ciência foi Peter Galison. Galison também propõe uma história da cultura material da ciência, porém, ressalta que “não se trata de uma história de uma coleção de instrumentos mortos e descartados [...] uma história da maneira como os cientistas desdobram os instrumentos [...] uma história da fabricação do instrumento ligada a uma história da tecnologia”. (1988, p.197-212) Outro nome importante desta geração foi Derek de Solla Price (1980 apud TURNER, 1993) que ataca firmemente o que ele chama de “ingênua insistência de que os instrumentos científicos são meras ferramentas de medição”, ingênua, pois, argumenta Price, este é um dos muitos mitos que foram propagados a partir da segunda metade do século XIX acerca da natureza da ciência, e se os instrumentos realmente desempenharam um papel limitado no desenvolvimento científico, foi porque foram desenvolvidos ao longo da história e porque havia construtores especializados para fazê-los. Uma das mais importantes consequências da crítica da dominação da experimentação pela teoria foi o entendimento que a ligação entre teoria e experimento é condicionada por práticas técnicas e sociais. A cultura, prática de laboratório, e a cultura, da vida de laboratório, tornaram-se essenciais para a produção de conhecimento. Na realidade, muito antes do grupo da Universidade de Edimburgo elaborar uma crítica à negligência por parte dos filósofos e historiadores aos objetos da ciência e à experimentação, e proporem uma história social da prática científica, outros se debruçavam sobre o tema. Maurice Daumas, por exemplo, estudou os instrumentos científicos e seus construtores nos séculos XVII e XVIII ainda na década de 1950. Henri Michel e seu Scientific Instruments in Art and history data de 1967 e Gerard Turner, desde a década de 1960, dedicava-se a histórias dos instrumentos. Porém, enquanto Daumas considerava a história dos instrumentos científicos como uma área distinta da história das ciências, e Michel e seu “museu imaginário”, como ele próprio define, não se preocupa com isto se interessando em olhar o instrumento como obra de arte, Gerard Turner (1990) acreditava que historiadores da ciência poderia e deveriam se dedicar ao estudo dos instrumentos e da prática científica. E foi ao longo das décadas de 80 e 90 que um número cada vez maior de historiadores começou a atender o apelo de Turner. Um deles foi o historiador James (Jim) Bennett, pesquisador e diretor do Museu de História da Ciência de Oxford, que estudou instrumentos matemáticos dos séculos XV ao XVII, propõe em seu artigo “The english quadrant in Europe”, de 1992, por meio da reconstrução dos contextos histórico, cultural, intelectual e econômico, mostrar de que maneira um instrumento, um quadrante, naquele determinado momento histórico, dentro daquelas circunstâncias, ajudou a criar uma comunidade, que ele não chama de astronômica ou científica, mas de working community, e criar um consenso da prática astronômica na Europa no século XVIII. Albert Van Helden, professor de História da Universidade de Rice, cujo foco das pesquisas é Galileu Galilei, discute o conceito de instrumento científico moderno em seus trabalhos. Thomas Hankins, do departamento de História de Harvard, direciona seus trabalhos para a análise dos objetos anteriores a denominação instrumentos, dentre eles a lanterna mágica e o relógio de sol (HANKINS e SILVERMAN, 1995). Juntos, Helden e Hankins editaram um número especial do periódico Osiris no ano de 1994, dedicado à história das ciências e à historiografia dos instrumentos, reunindo alguns dos principais estudiosos do assunto, dentre eles Jan Golinski, professor da Universidade de New Hampshire, e estudioso da química e seus instrumentos na Inglaterra do século XVIII, e Deborah Jean Warner, historiadora do Instituto Smithsoniam de Chicago que mostra, através dos instrumentos de magnetismo, como duas platéias distintas, filósofos naturais e matemáticos, usam de fato os mesmos instrumentos para propósitos semelhantes. Também faz parte deste volume outro nome importante nesta recente historiografia dos objetos de ciência: Simon Schaffer. Schaffer, em 1989, escreveu junto com Steven Shapin, outro integrante da geração de 80, o livro Leviathan and the air pump: Boyle, Hobbes and the experimental life, no qual, a partir do debate entre Robert Boyle e Thomas Hobbes a respeito da bomba de ar, os autores propõem que as

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“soluções para problemas de conhecimento são soluções para problemas de ordem social” e a partir da leitura do experimentalismo de Boyle como programa social e o Leviathan de Hobbes como programa epistemológico convertendo ambos em programas simultaneamente políticos, sociais e científicos. Sem deixar de prestar atenção aos instrumentos sempre como parte constitutiva da construção do conhecimento.2 No Brasil, desde meados da década de 1980, surgiram trabalhos que centravam a análise na temática das exposições nacionais e universais do século XIX, e não especificamente na temática dos instrumentos e objetos de ciência. A exceção talvez seja o texto de Almir Pitta de 1986, que trata das oficinas de José Maria dos Reis e José Hermida Pazos, e analisa a importância dos instrumentos científicos construídos para uso do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, bem como a apresentação dos mesmos em exposições nacionais e internacionais e um panorama da trajetória dos responsáveis pela oficina (FREITAS FILHO, 1986, apud HEIZER, pp.15). A pesquisadora Alda Heizer desenvolve suas pesquisas na análise do lugar dos objetos de ciência do Brasil e da América Latina nas exposições universais, particularmente na Exposição Universal de 1889, em Paris (2005, pp.12). Segundo Heizer, os instrumentos e máquinas expostos no pavilhão brasileiro nestas exposições ao retornarem para seus locais de origem não originavam coleções de museus -caso, por exemplo, do Science Museum de Londres, e sim, ficavam sob a guarda de diferentes instituições e sem o tratamento adequado, caso este que se repetia na América Latina como um todo (idem). Então, para se iniciar qualquer tipo de estudo sobre instrumentos científicos no Brasil deve-se recorrer à documentação sobre as exposições da segunda metade do século XIX. Em um dos capítulos de sua tese de doutorado, a pesquisadora fez a análise de um instrumento, o Alt-Azimut, construído pelo astrônomo e diretor do Observatório Nacional Emmanuel Liais, escolhido para ser exposto na exposição de 1989. Partindo da leitura proposta por Van Helden e Hankins de que um instrumento é definido a partir de duas coisas (para que ele foi construído e o seu uso), no caso do instrumento construído por Liais e exposto em 89, o objetivo era o de evidenciar um discurso, fornecer prova material de que o Império do Brasil era uma nação moderna e civilizada, e seu passado colonial e atrasado estava definitivamente enterrado. Através dos objetos, dos instrumentos científicos, o Brasil confirmava seu lugar junto aos países civilizados (HEIZER, introdução e pp.158-9). Todos estes trabalhos3 preocupam-se em discutir o papel central dos instrumentos na construção do conhecimento científico e para tanto partem destes objetos como fonte documental principal em seus trabalhos, seja dentro de aspectos da cultura material da ciência, das interações entre a estrutura dos fabricantes de instrumentos do século XIX e a história econômica, da análise dos gabinetes de curiosidades do século XVIII, dos manuais dos instrumentos ou da análise dos usos destes instrumentos nos diferentes locais e para diferentes audiências. Para concluir, é fato que alguns instrumentos já estão intrinsecamente ligados ao nosso entendimento dos principais tópicos da história da ciência, como a importância do telescópio para a astronomia do século XVII, o espectroscópio para a astrofísica do século XIX, o acelerador de partícula e a física do século XX. Porém, o estudo dos objetos de ciência pelo historiador, sobretudo no Brasil, ainda encontra certa resistência, uma vez que para estudá-los o historiador precisaria se voltar para um outro local de pesquisa, além dos arquivos e bibliotecas - o museu. Isto porque ao estudar os museus e suas coleções o pesquisador passa a ter acesso aos diferentes contextos das práticas científicas, uma vez que os museus refletem a ordem social e intelectual de seu tempo (BENNETT, 2005, pp. 603). Estudar a “vida” destes objetos torna-se então uma poderosa ferramenta para o entendimento de uma série de questões, como por exemplo: entender as suposições, ambições e crenças que um determinado museu personifica e de que maneira as mesmas mudam no decorrer do tempo. Ou utilizando as palavras de Simon Schaffer: para se entender o significado da ciência em um determinado lugar e tempo, basta entender as diferentes imagens adquiridas pela ciência, construídas ao longo do tempo, bem como as funções destas imagens e os locais onde foram forjadas, e um destes locais é, sem dúvida, o museu de ciência (SCHAFFER, 1997, pp. 28).

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Bibliografia: BARROS, José D´Assunção. O campo histórico. As especialidades e abordagens da História. Rio de Janeiro: A Cela, 2002. BENNETT J.A. “Museums and the History of Science: Practitioner’s Postscript”. ISIS. 2005. __________ “The English Quadrant in Europe: Instruments and the Growth of Consensus in Practical Astronomy”. Journal of History of Astronomy. Vol. 23, Part 1, n. 71, Feb., 1992. GOURDAROULIS, Yorgos. “Can the History of instrumentation tell us anything about Scienctific Practice”. In Gavroglu, Kostas et al. (eds.) Trends in the Historiography of Science. Netherlands: Kluwer Academic publishers, 1994. HANKINS, T. L. e SILVERMAN, J. Instruments and imagination. Princeton: Princeton University Press, 1995. HEIZER, Alda L. Observar o Céu e medir a Terra: instrumentos científicos e a participação do Império do Brasil na Exposição de Paris de 1889. Campinas, SP, 2005. Tese (Doutorado) - Universidade Estudual de Campinas. Instituto de Geociências. Pós-graduação em ensino de História e Ciências da Terra. SCHAFFER, Simon. Leviathan and the air-pump: Hobbes, Boyle and the experimental life. New Jersey : Princeton, University Press, 1985. __________. What is Science. In Science in the twentieth century. Amsterdam: Harwood Academic Publ.,1997. TURNER, Anthony J. Interpreting the history of scientific instruments. In ANDERSON, R.G.W, BENNETT, J.A, RYAN, W.F(edit.) Making Instruments Count. Essays on Historical Scientific Instruments preseted to Gerard L. Turner. Vermont:Variorum, 1993.

NOTAS 1

Na década de 1970, surgiu na Escócia um grupo auto-intitulado Social Studies of Science, cujo objetivo era a crítica ä visão internalista da ciência que se ocupava apenas dos conteúdos cognitivos da própria ciência, deixando os aspectos sociais fora da análise. Simon Shapin e seu grupo, na década de 1980, propunham justamente uma terceira via: reunir os dois aspectos, fatores internos e externos, em uma mesma explicação. Sobre este assunto existe vasta bibliografia. Um texto introdutório bastante interessante é do próprio Shapin “Discipline and bounding: the history and sociology of science as seen through the externalism-internalism debate”. History of Science, vol. 30, 1992, pp. 334-69. 2 Recomendo a leitura do artigo de Ricardo Roque publicado na Revista Manguinhos, em 2002. ROQUE, Ricardo. “A revolução científica: um olhar sociológico sobre a história das ciências”. Revista Manguinhos. Vol. 9, n. 3, 2002. 3 Estes são apenas alguns dos autores de uma lista extensa que inclui: Robert Bud, Jonh Heilbron, Penelope Gouk, Stephen Jonhson, Christine Blondel, William Hackman, dentre outros.

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Propaganda em pรกgina da revista A Cigarra nยบ 3 de abril de 1914.

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Propaganda em pรกgina da revista A Cigarra nยบ 3 de abril de 1914.

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Propaganda em pรกgina da revista A Cigarra nยบ 60 de fevereiro de 1917. 7


Propaganda em pรกgina da revista A Cigarra nยบ 301 de maio de 1927.

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Propaganda em pรกgina da revista Vida moderna nยบ 221 de maio de 1914.

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Trajetória da luta operária em Sorocaba: a greve de 1917 Isabel Cristina Caetano Dessotti*

O presente artigo trata de um dos momentos mais significativos da trajetória de luta dos operários no Brasil: a greve de 1917. Esse movimento teve início a partir das reivindicações dos operários das fábricas por aumento de salário, e acabou por transformar-se num movimento social, traduzindo todo o sofrimento das classes populares, que não suportavam mais o alto custo de vida. Diante desse quadro, a adesão dos operários foi maciça, bem como a propagação de um ideário contra esse estado de exploração. Optou-se por retratar o ocorrido em Sorocaba com destaque na Fábrica de Tecidos Votorantim, que na época era a maior fábrica de Sorocaba, e por ter enfrentado outras dificuldades além da greve. A abordagem do assunto se fez pela ótica do jornal Cruzeiro do Sul de Sorocaba.

I – A greve chega em Sorocaba Em 17 de julho de 1917, o jornal Cruzeiro do Sul traz uma reportagem de mais de uma página com a manchete: “A greve nesta cidade”. A matéria relata que cerca de 10 mil operários ainda se encontram parados, pois “querem aumento de salário” e que os bondes estão paralisados e o comércio encontra-se com as portas cerradas. Para o jornal a declaração de greve por parte dos operários não era “surpreza”, já que a situação dos trabalhadores em Sorocaba era semelhante aos da capital. O encarecimento rápido e crescente dos generos de primeira necessidade e o decrescimo de salarios, realisado em alguns estabelecimentos concorreram, além de outros motivos de ordem secundaria, para levar os operarios à greve. De facto, não era possível que as coisas continuassem no pé em que estavam. A miséria negra e horrivel ameaçava centenas de lares. Ao trabalho exhaustivo de horas excessivas, não correspondia uma alimentação generosa e bôa, pois a começar do pão, todos os artigos subiram muito o preço e os operarios eram coagidos a reduzir ainda mais o seu parco “menu”. Os operarios em parede pacifica procuram nem mais nem menos do que conseguir um pequeno augmento de salario. Foi para esse fim que se declarou A GREVE. (Cruzeiro do Sul, 17 jul. 1917, p. 01)

A reportagem passa a descrever com detalhes os procedimentos e itinerários adotados pelos grevistas. No entanto, os grevistas se depararam com a recusa de adesão por parte dos operários da Fábrica Santo Antonio, que não estavam descontentes com seus patrões, já que no mês anterior (junho) receberam uma gratificação em 25% de seus ordenados e a promessa de melhorá-los ainda mais. Por fim, acabaram estes por aderir ao movimento em consideração aos colegas. Desta fábrica dirigiram-se os grevistas para as oficinas da Sorocabana Railway, onde os operários aderiram ao movimento maciçamente seguindo-se já em numeroso grupo para a Fábrica de Chapéus Souza Pereira.

Licenciada em História e Pedagogia, diretora de escola estadual, professora universitária, mestranda em educação pela Universidade de Sorocaba. 1


Prossegue a notícia de que o grupo de grevistas aumentava a cada fábrica visitada, seguindo para a Fábrica de Tecidos Santa Rosália. Rapidamente se generalizava a greve. Seguiram, então, para Fábrica Santa Maria. Também lá os operários já haviam tido aumento de salário, mas aderiram ao movimento em solidariedade e espírito de união. Aderiram ao movimento, conforme noticia o jornal ainda no dia 17 de julho de 1917, a Fábrica de Estamparias São Paulo, a fábrica de Arreios de Ferreira & Cia, Fábrica de Calçados Soares, Fábrica de Tecidos Votorantim e Fábrica de Calçados “Fausto”. A maioria das casas de comércio teve que fechar suas portas diante da atitude dos grupos de grevistas que assim exigiram. Os bondes deixaram de correr desde o dia anterior e os motorneiros e condutores foram forçados a deixar o trabalho. A polícia local recorreu às forças da capital a fim de controlar e reprimir o movimento grevista que se generalizava com rapidez. A ação da polícia nas manifestações dos trabalhadores foi registrada pelo jornal Cruzeiro do Sul: A policia agia com calma e reflexão de modo a merecer elogios. O sr. Dr. Lima Camargo delegado de polícia e seus auxiliares foram incansáveis na regularização do trabalho nesta cidade, já servindo de mediadores entre os operarios e os patrões com o nobre fim de concilial-os, já tomando medidas para que a ordem pública se não subvertesse. A força policial vinda da capital teve ordens de dispensar uma agglomeração de populares que, desde cedo, estacionava na praça Cel. Fernando Prestes. Intimou, pois, por três vezes, o povo que se dispersasse. Como não fosse attendida e não tivessem os operarios licença para realizar o comicio em que fallava o sr. Bandoni – a policia fez uso dos espadins, chegando mesmo a cometer excessos lamentaveis e ferindo pessoas de representação da nossa sociedade que nada tinham com a greve e se achavam misturadas por curiosidade com os operarios. O dr. Alonso Negreiros (delegado) sabedor desse facto lamentou-o muito e promptificou-se a dar explicações aos queixosos. (Cruzeiro do Sul, 17 jul. 1917, p. 01)

Os industriais de Sorocaba, temendo que a greve na cidade tomasse os rumos que acontecia na capital, acharam por bem conceder alguns benefícios aos operários. Assim, reunidos na residência do senhor Jorge Kenworthy, resolveram conforme noticiado pelo jornal Cruzeiro do Sul: O que resolveram os industriaes: Como dissemos os industriaes daqui subscreveram as resoluções tomadas pelos da capital com o fim de dar uma solução à greve que agitou São Paulo a acta de reunião dos nossos industriaes. “Os industriaes de Sorocaba abaixo-assignados, reunidos hoje nesta cidade resolveram fazer aos seus operarios as mesmas concessões feitas ao operariado da capital pelos industriaes dalli e que são as seguintes: a – augmento de 20% sobre os salarios em geral b – não dispensar do serviço qualquer operario que tenha tomado parte da presente greve c – respeitar “in totum” o direito de associação dos seus operarios d – effectuar o pagamento dos salarios dentro da primeira quinzena que se seguira do mez vencido e – acompanhar com a maxima boa vontade as iniciativas que forem tomadas no sentido de melhorar condições moraes, materiaes e economicas do operariado de Sorocaba Estas condições serão postas imediatamente em vigor, desde que os operarios recomecem amanhã seu trabalho” Sorocaba, 16 de julho de 1917 Os industriaes. (Cruzeiro do Sul, 17 jul. 1917, p. 01)

Ao término desta reunião, o delegado de polícia de Sorocaba emite o seguinte boletim publicado pelo jornal Cruzeiro do Sul de 17 de julho de 1917, respaldando sempre a atuação dos industriais. Ao povo Em reunião os industriaes desta localidade resolveram adaptar as concessões do operariado da capital, hoje publicadas

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pelos jornaes A policia esta preparada para garantir as pessoas a propriedade e o trabalho da população ordeira de Sorocaba, bem assim para agir no caso de qualquer excesso por parte dos elementos perturbadores da ordem pública contando com a calma e prudencia de todos os habitantes desta culta cidade Sorocaba, 16 de julho de 1917 Alfredo de Lima Camargo Delegado de Policia. (Cruzeiro do Sul, 17 jul. 1917, p. 01)

II – A Fábrica de Tecidos Votorantim

Os operários Votorantim, muito antes da greve deflagrada em julho de 1917, já passavam por grandes necessidades. Em 17 de julho de 1917, o jornal Cruzeiro do Sul, ao noticiar o movimento grevista das fábricas de Sorocaba, também informa sobre a situação na Fábrica Votorantim:

A Fabrica Votorantim estava em greve há quase um mez. Há poucos dias, porem, foi arrendada a dois capitalistas que resolveram fazer funcional-a hontem. Assim iniciou-se o trabalho na parte a que chamam “fabrica velha”. Mas sendo reclamada a adhesão dos seus operarios, a fabrica paralysou-se. (Cruzeiro do Sul, 17 jul. 1917, p. 01)

A fábrica de tecidos pertencia ao Banco União, que se encontrava em sérias dificuldades financeiras, culminando com a falência após a greve de julho. Contribuíram para a falência o grande incêndio ocorrido nos depósitos de algodão da fábrica em 25 de fevereiro de 1917 e as dificuldades oriundas da 1ª Guerra Mundial. Os tecidos crus eram importados da Inglaterra para serem estampados na fábrica de chitas. Com a guerra nenhum navio podia cruzar o oceano. Começava a derrocada do grupo chamado Banco União. Sobre o grande incêndio noticiou o jornal Cruzeiro do Sul em 26 de fevereiro de 1917: Arde um deposito de algodão da Fabrica de Tecidos de Votorantim. Os prejuizos aproximam-se de mil contos de reis. O incendio começou as 18 h 45 min só foi contido de madrugada quando o corpo de bombeiros chegou. A fabrica de tecidos Votorantim pertence ao Banco União de São Paulo é um dos estabelecimentos industriaes de maior importância do Estado. Possue cerca de 1200 teares e neles trabalham calculadamente 3 mil operarios. No deposito existiam 3200 fardos de algodão, muitas barricas de soda caustica e potassa, grande quantidade de farinha de trigo; enumeras botijas de ácido para preparação de tinta etc. O fogo tomou proporções assustadoras. A população de Votorantim, composta em quasi sua totalidade de operarios affluiu ao logar o incêndio rapidamente tentando dominar as chamas, luctando com grande dificuldade por falta de numero suficiente de mangueiras e aparelhos extinctores de incendio no deposito. Do inquerito aberto ficou constatado que o incendio não foi proposital, sendo o mesmo atribuido a alguma fagulha desprendida por uma locomotiva fagulha esta que penetrou por abertura situada na parte superior do barracão. Os prejuizos subiram a quase 1000 contos de réis, estando o deposito de algodão da referida fábrica de tecidos seguro em 240 contos de réis.(Cruzeiro do Sul, 26 fev. 1917, p. 04)

Com o final da greve em julho de 1917, a Fábrica Votorantim não reabriu, pois o Banco União não podia pagar o aumento para os operários. E principalmente porque os salários já estavam atrasados.

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O jornal Cruzeiro do Sul noticia em 20 de julho de 1917: Centenas de operarios da importante Fábrica de Tecidos Votorantim estiveram hontem nesta cidade onde vieram pedir apoio à imprensa, às pretenções que tem de serem beneficiados com as concessões feitas ao operariado daqui. Uma commissão operaria procurou nesta cidade o sr. Soares Fernandes, gerente daquella fabrica, para inteiral-o dos desejos que alimentam os proletarios votorantinenses. Essa commissão não poude ser ouvida pelo sr. Soares que se acha na capital. Acontece, porém, que a Fabrica Votorantim parada por motivo de greve, continua fechada, não já por causa de greve mas por fallencia do Banco União ao qual pertencia. Só os syndicos da massa falida por enquanto poderão deliberar sobre o funcionamento da fabrica. Quanto ao augmento dos salarios do operariado e outras concessões apenas poderão resolver sobre o assumpto os novos proprietarios do estabelecimento fabril que se não sabe ainda quais sejam. Os operarios acham-se assim numa situação especiallissima em relação aos da fabricas de Sorocaba, numa situação dificil mesmo porque estão em sua maioria sem recursos pecuniarios ou têm de esperar de braços cruzados que reabra a fabrica o que não se pode dizer quando será ou têm de empregar a sua actividade na lavoura, nas outras fabricas ou do melhor modo que entendam. Do augmento de salarios é que por ora não podem tratar pela razão que apontamos. (Cruzeiro do Sul, 20 jul. 1917, p. 2)

A situação do operariado votorantinense agravava e o caso parecia não ter solução favorável. Em 26 de julho de 1917 publica o jornal Cruzeiro do Sul: Segundo informações que obtivemos de fonte insuspeita há familias no Votorantim, que, reduzidas à estrema miséria, padecem fome. Fechou-se o armazem fornecedor mas mesmo que estivesse aberto, os operarios faltos de recursos pecuniarios, nada poderiam comprar para matar a fome de seus filhos. É sempre collorindo com magua as suas palavras que os operarios do Votorantim nos contam o que vae por la. A fabrica de tecidos esta fechada, não tendo ainda sido resolvida a sua reabertura por varios impecilhos existentes. Ao que nos consta um commissão operaria precatoria vem a Sorocaba angariar recursos para socorrer os mais necessitados daquella população e minorar-lhes os padecimentos. Parece que é esse por ora, o melhor caminho a seguir. (Cruzeiro do Sul, 26 jul. 1917, p. 02)

Diante dessa situação a Fábrica de Tecidos foi arrendada por cinco anos a “capitalistas” de São Paulo e Rio de Janeiro por mil contos anuais. Em 27 de julho de 1917, o Cruzeiro do Sul publica: Uma agradável nova A fabrica de tecidos Votorantim reabriu-se hontem recebendo as quarenta familias que haviam sido despedidas numa das ultimas greves, augmentando dez por cento os salarios do operariado e concedendo-lhes 10 horas de trabalhos diarios. Ante-hontem ainda nos referiamos as dificuldades por que passavam alli os operarios sem trabalho, visto permanecer fechada a fabrica. Felizmente o caso teve uma solução e o nosso mais importante estabelecimento fabril funcciona. (Cruzeiro do Sul, 27 jul. 1917, p. 03)

Com a reabertura da fábrica, o operariado votorantinense, representado por uma comissão, coloca na seção livre do jornal Cruzeiro do Sul, edição de 28 de julho de 1917, um agradecimento às pessoas que contribuíram para um desfecho favorável do caso, enfatizando as agruras pelas quais passaram as famílias dos operários.

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O operariado de Votorantim Exulta. E com razão. Há um mez a fabrica fechou suas portas. Mais de 1500 operarios ficaram inativos na espectativa. Aos poucos os minguados recursos de cada um decresciam e a miseria e a fome se installava em cada lar acabando por descer e estender-se sobre a população deste bairro, exclusivamente operaria o tetrico veo da penuria e do desespero. Angustiosa situação. O proletariado de Votorantim resignado com a sorte soffreu o peso brutal do affictivo estado de cousas, sem um protesto e sem um lamento. No entanto para aqui era enviado o sr. Alferes Durval de Castro Silva com um contingente de soldados, prevenido por alarmantes boatos. O sr. Alferes perspicaz e arguto, em pouco tempo constatou o contraste flagrante entre o boato e a altitude pacata, ordeira e resignada do operariado. Isso tocou o seu coração resoluto como é, tanto para castigar como para premiar. Com abnegação e altruísmo tentou e conseguiu advogar com grande êxito a causa operaria, isto é, o reencetamento do trabalho, dez horas por dia, pagamento em cada quinzena do mez e augmento de 10% sobre o ordenado de cada um. Além do mencionado mais conseguiu: a readmissão dos que foram despedidos e a soltura de dois companheiros provada a sua innocencia. Eis ahi o fructo benemerito dum trabalho fecundo e animado pela scentelha do amor ao próximo e desinteresse. Justamente por isso que o proletariado de Votorantim com a publicação destas linhas torna patente o seu alto reconhecimento e gratidão ao sr. Alferes Durval tornando estensivo os seus agradecimentos ao Sr. Secretario de Justiça, Dr. Delegado de Polícia de Sorocaba Soares Fernandes, Pereira Ignácio e Comp. Capitão José A. Castanho cuja intervenção também foi muito eficaz Nicolau Scarpa e as demais pessoas que se interessaram pelo seu bem estar. Votorantim, 26 de julho de 1917 Pelo operariado A Commissão. (Cruzeiro do Sul, 20 jul. 1917, p. 02)

A fábrica de tecidos reabriu e com a nova direção aumentou a produção continuando a ser a maior fábrica de Sorocaba empregando grande número de pessoas. Entretanto, as condições de trabalho ainda eram precárias para o povo votorantinense.

Considerações finais Dos documentos, manifestos operários e até jornais dessa época aparece a descrição das fábricas como verdadeiros ergástulos. Concorriam para essa analogia as longas jornadas de trabalho, a indefinição para o dia de pagamento dos salários, as condições insalubres do trabalho, a mão-de-obra de mulheres e crianças, a desobrigação da fábrica em atender aos acidentados ou aqueles que eram vitimados por doenças próprias das condições insalubres. O operário continuava aprisionado mesmo fora da fábrica, pois morava em casa que pertencia à fábrica e por isso pagava aluguel, comprava gêneros alimentícios nos armazéns que pertenciam às fábricas, portanto, pagando o preço determinado por estas. A greve de 1917 não foi a primeira, nem podia ser a última para os operários, haja vista os depoimentos daqueles que vieram depois dela. Mas para os trabalhadores daquela época, ela trouxe ganhos, porém, insuficientes para a vida melhorar. Isso significava que a caminhada de luta ainda era muito longa. E isso todos sabiam...

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A Plebe (jornal), Sรฃo Paulo, 25/03/1933, nยบ 18, p. 1. Prontuรกrio 2303, A Plebe. DEOPS/SP. DAESP.

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QUESTÕES INTRODUTÓRIAS PARA UMA DISCUSSÃO ACERCA DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA Fabiano Junqueira de Freitas ∗ Paula Lou Ane Matos Braga ∗∗ O debate sobre a relação entre história1 e memória é uma das grandes discussões teóricas que têm se imposto a várias gerações de historiadores, pois estrutura os fundamentos e objetivos do fazer histórico. A memória não pode mais ser vista como um processo parcial e limitado de lembrar fatos passados, de valor acessório para as ciências humanas. Na verdade, ela se apóia na construção de referenciais de diferentes grupos sociais sobre o passado e o presente, respaldados nas tradições e ligados a mudanças culturais. A história não pode ter a pretensão de estabelecer os fatos como de fato ocorreram, e por isso coexistem, não obstante, várias leituras possíveis sobre a utilização da memória para a interpretação da história. A partir de uma perspectiva cronológica, a história, que tem sua gênese na Antigüidade, tradicionalmente associada a Heródoto (séc. V a.C.), apresenta-se diante de uma relação com a realidade que não é outra senão a baseada no testemunho e no relato, aspecto que se manteve sempre presente no desenvolvimento da ciência histórica, em oposição ao modelo de observação e investigação preconizado pelas ciências da natureza. “Heródoto só quer falar daquilo que viu ou daquilo que ouviu falar” (GAGNEBIN, 1992, p. 10), e redigiu a sua história “para impedir que o que os homens fizeram no tempo se apague da memória e que as grandes e maravilhosas façanhas realizadas tanto pelos gregos como pelos bárbaros percam renome” (HERÓDOTO apud SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 72). No século XVIII, com o surgimento do pensamento iluminista, ganha corpo uma concepção da história que instaura a supremacia da razão, propaga a crença na ciência como única forma de conhecimento e conduz a verdades objetivas e absolutas, a partir da idéia de progresso. Com o estatuto de ciência que ora se estabelece, a história vivida, “natural”, deixa de ser considerada fonte segura. Construída a partir da subjetividade, a memória, portanto, não era mais confiável para a produção do conhecimento científico. Em meados do século XX, a crença num progresso linear, contínuo e irreversível não pode mais ser sustentada, e tornam a se apresentar olhares mais críticos sobre a história, com a inauguração de um novo conceito de temporalidade colocado pelos Annales. Nesse momento se incorporam conceitos de outras ciências sociais como a filosofia e a antropologia, assim como dados da experiência individual e coletiva, inaugurando-se uma concepção do tempo a partir da observação de longos períodos, a “história de longa duração”. Incorporando as noções de tempo vivido, de tempos relativos e múltiplos em contraposição a um factualismo já insuficiente para a apreensão dos fenômenos históricos, estes serão, finalmente, problematizados em um contexto mais amplo de rupturas, transformações sociais e mudanças culturais. A temporalidade da historiografia tradicional, que compreendia os acontecimentos num espaço de tempo meramente cronológico, não seria mais suficiente para a interpretação da história: esta seria feita segundo diferentes ritmos. Em lugar do estrato superficial, mais importante seria o estudo em profundidade das realidades que mudam devagar. Concomitantemente à perspectiva da existência de diferentes durações históricas, assiste-se também a uma intensificação do desejo de colocar a explicação no lugar da narração, ao renascimento do interesse pelo evento, pela “micro-história” e pelo desenvolvimento de uma “história imediata”. O tempo histórico encontra, com mais refinamento, o tempo da memória, possibilitando uma transversalidade que Tucídides, o pioneiro na busca de uma “verdade histórica”, desconhecia. O universal, portanto, reside agora no fragmentário, restando obsoletas as formulações deterministas ou supra-culturais. Como corolário desses progressos epistemo-metodológicos, merece destaque a crescente revalorização da memória, tanto na esfera individual como nas práticas sociais, ao mesmo tempo em que a história convive com uma ainda insuficiente reflexão historiográfica. Mais recentemente, a partir dos anos 80, a historiografia adquire a noção de que a relação entre memória e história é mais uma relação de oposição do que de complementaridade, ao mesmo tempo em que empresta à história o estatuto de produtora de memó1


rias. Cabe esclarecer, entretanto, que esse antagonismo privilegia a função cognitiva da memória, enquanto instrumento de conhecimento do passado. Assim sendo, novas questões se apresentam: tem a memória histórica um estatuto teórico próprio? Seria ela diferente da memória individual ou da memória literária, por exemplo? Para além do debate literário – de que são contributivos Bérgson e Proust – , onde emerge uma relação imediata entre o tempo presente e as evocações do passado que remetem a uma subjetividade intransponível para o historiador, posto que situada na esfera do psíquico mais que no campo das realidades coletivas, uma importante questão da memória histórica dar-se-ia a partir de sua constituição à parte do terreno propriamente histórico. Postula-se, portanto, uma ruptura do monólogo da história, debruçada sobre si mesma, permitindo à problemática da memória avançar no terreno de seus impasses e da revalorização de suas práticas. Nos meandros dessas implicações historiográficas que dizem respeito à memória, há que se garantir que a historiografia não se torne um leito de Procusto da memória, conformando-a a um campo teóricometodológico predefinido que deixe de levar em consideração as suas especificidades de cultura em movimento. Em sua reconsideração da memória, a historiografia contemporânea estabelece com a sociologia seu diálogo preferencial, e ganham renovado interesse problemas que tangenciam a psicologia social, como a história dos ressentimentos e, extensivamente, a história do ódio e dos sentimentos. A partir de uma perspectiva originalmente nietzcheana, ampliada por autores como Scheler e Merton, Pierre Ansart levanta uma discussão que remete a novas interpretações das relações entre as classes e da história das sociedades. Em outras palavras, a questão dos ressentimentos nos coloca diante de um impasse permanente das ciências históricas: o de restituir e explicar o devir dos sentimentos individuais e coletivos. Márcio Seligmann-Silva pontua que: “a tarefa da memória deve ser compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva como também pelo registro (acadêmico) da historiografia” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 63). Nesse ponto, colocam-se novas indagações: que memória o indivíduo ou o grupo mantém dos ressentimentos daquele de quem foi vítima? Ansart distingue quatro atitudes possíveis atravessando ao mesmo tempo a memória individual e as memórias coletivas: a tentação do esquecimento, a tentação da repetição, a tentação da revisão e, enfim, a tentação da intensificação da memória dos ressentimentos (ANSART, 2004, pp. 15-34). Ao considerarmos os novos métodos, cabe particular atenção à utilização dos relatos orais na história. Colocados em questão desde a aceitação, já na própria Antigüidade, do documento como fonte formal e universalmente aceita da ciência histórica, a história oral volta a chamar a atenção dos historiadores. Novas leituras afirmam que a história oral compõe um processo ampliação de perspectivas no uso de fontes para a escrita da história, ao trazer para o âmbito do saber científico instrumentos que possibilitem ao pesquisador trabalhar com a subjetividade contida nos depoimentos, ajudando a romper com certa idealização em relação às fontes escritas existente entre os historiadores. Com a “nova história” e sua concepção de unicidade dos eventos históricos, aparece também a necessidade de aliar à explicação o relato, atentando o historiador para a existência, esquecida até o século XIX, de uma escrita da história. Para Pierre Nora, a história é uma atividade escrita, que organiza e reúne numa totalidade sistematizada as diferenças e hiatos da memória coletiva, já que esta, sendo primordialmente oral e afetiva, fragmentase em uma pluralidade de narrativas. Nora contrasta, portanto, a tradição vivida da memória à sua reconstrução intelectual, a história. Conclui com uma certa provocação ao afirmar que aquilo a que chamamos hoje de memória é, na verdade história (NORA apud SEIXAS, 2004, pp. 40-1). Com efeito, a memória coletiva sofreu grandes transformações ao longo dos tempos, fruto das contribuições ao modus faciendi da história enquanto disciplina. Dessa forma, a incorporação das ciências sociais desempenha aí um papel importante, cimentando a interdisciplinaridade entre estas, a história e a memória. A pesquisa, o registro e o retorno à memória coletiva se vale menos dos escritos que das palavras, imagens, gestos e rituais: é uma memória sobretudo simbólica. Voltando a Pierre Nora, é dele a afirmação de que, até nossos dias, história e memória praticamente se confundiram, e a história parece ter se desenvolvido “sobre o modelo da rememoração, da anamnese e da memorização” (NORA apud LE GOFF, 2003, p. 2


473) típico da memória coletiva. Esta nova memória coletiva consolida seu saber com os instrumentos tradicionais, porém arranjados de forma diferente. A par desses movimentos, ocorre também uma valorização dos lugares de memória, comum não só a Nora, como a vários outros historiadores contemporâneos. No contexto dessa discussão, buscar uma definição da história enquanto ciência não é uma tarefa fácil. Paul Veyne tentou resumi-la quer como uma série de acontecimentos, quer como a narração dessa série de acontecimentos. Extensivamente, a história pode ter ainda o sentido da narração. O próprio Veyne, ao tentar esclarecer o sentido da historicidade, aceita a inclusão, no campo da ciência histórica, de novos objetos “não-eventuais”, como a história das mentalidades ou da loucura. Assim, “tudo é histórico, logo a história não existe” (VEYNE apud LE GOFF, 2003, pp. 18-9). São leituras possíveis. Mas seria possível afirmar que a memória de um ou mais grupos sociais, incluindo tradições, culturas, políticas, passíveis de expressão em depoimentos, pode ser simplesmente entendida como história? E, em sendo assim, qual seria a distinção entre memória e história? Se pensarmos numa história construída sob a forma de uma memória manipulada e imperfeita, ainda assim não estaríamos diante de uma melhor opção que sob a forma de um saber falível e discutível que se expresse sob a designação de científico? O desenvolvimento das sociedades na segunda metade do século XX esclarece a importância do papel desempenhado pela memória coletiva, ultrapassando a história enquanto ciência ao mesmo tempo em que revela uma luta pela continuidade dos seus símbolos como traduções de suas características mais arraigadas, constituindo elemento essencial na preservação de identidades individuais e coletivas. Este movimento vai com certeza muito além das pretensões ou da capacidade de compreensão da história formal, ainda que com os instrumentos fornecidos pela interlocução com outras ciências. Le Goff, apesar de rejeitar qualquer messianismo histórico, defende uma finalidade libertária para a memória: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 477). Em conjunto, a totalidade das contribuições à ciência histórica ao longo dos tempos possibilitou uma leitura racional da história, com a constatação da existência de certas regularidades em seu decurso, gerando como conseqüência a suspeição de todo modelo que se pretenda único e despertando para diferenças de sentido, significado e representação das diversas sociedades humanas. Entretanto, a história não deve esquecer que as estruturas por ela estudadas são dinâmicas, aplicando certos métodos estruturalistas ao estudo de documentos históricos, não à explicação histórica propriamente dita. Do mesmo modo, na atualidade o trabalho histórico e a reflexão sobre a história desenvolvem-se num ambiente de distanciamento e reserva diante da apologia do progresso e de possíveis fetiches ideológicos, assegurando que a produção que não guarde valor científico seja recebida sem nenhuma credibilidade pelos historiadores. Todas estas questões constituem reflexões que se apresentam a todo o tempo ao historiador, no momento mesmo em que ele se debruça sobre seu objeto de estudo. O entendimento da memória como fonte viva da história é resultado das transformações historiográficas que ocorrem constantemente, mas que, em contrapartida, também promovem esse processo, ao propor a introdução da subjetividade na história e, ato contínuo, ao instrumentalizar um discurso historiográfico mais narrativo e humano e menos expositivo e mecanicista. E por que hoje se discute tanto a memória, no sentido do resgate? Por que, ainda, os historiadores chamam a si a responsabilidade por estabelecer a verdade do passado? Certamente, pela historicidade presente nessa relação (presente-passado), que desafia a uma superação da problemática de uma adequação pretensamente científica entre realidade e narrativa e remete à questão mais profunda e incômoda de uma ação ética no presente. Para Seligmann-Silva, “a ética força a historiografia a repensar a sua frágil independência com relação à política e, mais especificamente, à política da memória” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 74).

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Bibliografia: ANSART, Pierre. “História e memória dos ressentimentos”. In BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. pp. 15-34. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. pp. 7-22; 127-46; 467-77. GAGNEBIN, Jeanne Marie. “O início da história e as lágrimas de Tucídides”. In Margem. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e dos Programas de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais e História da PUC-SP. São Paulo: Educ, no. 1, 1992, pp. 9-28. ______________. “Verdade e memória do passado”. In Projeto História. Trabalhos da memória. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: Educ/Fapesp, no. 17, novembro de 1998, pp. 213-21. SEIXAS, Jacy Alves de. “Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais” in BRESCIANI, Stella & NAXARA, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. Unicamp, 2004. pp. 37-55. ______________. Razão e paixão na política. Brasília: Ed. UnB, 2002. pp. 59-77. SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento” in SELIGMANNSILVA, Márcio. História, memória, literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. pp. 59-85.

NOTAS: *

Psicólogo e Historiador. Graduado em Psicologia pela Universidade de Uberaba e em História pelo Centro Universitário Newton Paiva. Especialista em Gestão Empresarial pela FIA/USP. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História e Cultura Política da FHDSS/UNESP, Campus de Franca, sob orientação do Prof. Dr. José Evaldo de Mello Doin. Professor do curso de Administração da Faculdade de Pará de Minas, FAPAM. ** Bacharel em Relações Internacionais pela FHDSS/UNESP, Campus de Franca. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História das Relações Internacionais da FHDSS/UNESP, Campus de Franca, sob orientação do Prof. Dr. José Evaldo de Mello Doin. 1 O termo “história” será tratado neste texto em letras minúsculas, em oposição à tradicional identificação de nosso objeto de estudo como disciplina acadêmica, convencionalmente grafada com inicial em maiúscula. Pretendemos com isso ser coerentes com o pensamento expresso pelos autores que sustentam nossas argumentações e, extensivamente, com as indagações suscitadas pelo artigo.

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Um dos muitos veículos da memória são as correspondências pessoais. Esta carta foi escrita pelo Imperador D.Pedro II ao cardeal Polidori, em 2 de março de 1884, agradecendo os cumprimentos natalinos. (APESP – Co 09870) 5


Carta da Imperatriz Thereza Christina, agradecendo os cumprimentos natalinos do cardeal Clarelli, em 24 de fevereiro de 1856 - uma amostra das relações pessoais dos membros da família imperial. (APESP – Co 09870)

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