MUZORAMA: uma reflexão audio-visual
ARTIGO nº 1 | 2013 www.apublicada.com
Mariana Magri Rodrigues Estudante de Licenciatura na Faculdade de Artes Visuais, da UFG. Formada em Fotografia Básica e Profissionalizante na Canopus Escola de Fotografia em Goiânia. E-mail: marianinha.magri@gmail.com
Resumo
Este trabalho visa uma reflexão narrativa de um processo construtivo de percepção visual, sensível e de produção de sentido da animação MUZORAMA, do desconhecido internauta e autor com pseudônimo de MUZO. Minha interpretação é calcada nas três categorias básicas da semiótica, a saber, a primeiridade, secundidade e terceiridade. Reflito sobre a sequência de um conflito de valores psíquicos e de símbolos criados pela abordagem do filme e considerados intencionalmente distorcidos quando abalizados pelas animações tradicionais. O que faz com que nós, expectadores tenhamos certa estranheza da percepção visual de mundo proposto pelo autor que prioriza o surreal sem desconsiderar que a percepção visual é também, processo do inconsciente que pulsa na região sensorial de nosso consciente. Este percurso de produção de sentido se constrói com destaque em alguns recursos como os meios de estudo de percepção da animação.
Palavras-chave
Cinema, metalinguagem, inconsciente, tempo, espaço.
Introdução “As câmeras começaram a duplicar o mundo no momento em que a paisagem humana passou a experimentar um ritmo vertiginoso de transformação...” (SONTAG, 2004, p. 26 )
Figura. 01 - esquerda Cena da animação Muzorama. Mulher comendo flores
Figura. 02 - direita Cenas de cabeça na animação Muzorama
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Impressões sensoriais nos tomam o corpo quando por observância direcionamos o primeiro olhar, ainda que muito superficial, ao domínio imagético e sonoro da animação Muzorama, de Muzo. O magnetismo inicial do barulho do relógio que se constrói na mesma velocidade da cena ou da cena formulada na mesma velocidade do áudio do relógio, dão um impulso involuntário, surrealista dos acontecimentos. Uma angústia decretada pelo estranhamento diante do que não é de natureza comum causa um distanciamento muito grande entre o observador e a obra. Concentrar-se no sequencial de fatores torna-se um passatempo de raras identificações e incômodos sutis para o observador. A sensibilidade urbana que o autor traz é quase uma captura da nossa insensibilidade. As relações humanas se constituem em uma ruptura do que tendemos a considerar
certo e errado. O movimento é constante, de cada elemento principal, sempre correm contra o tempo, até mesmo, aqueles que para nós, são totalmente inanimados. Percebe-se uma mudança simbólica dos instrumentos de desejo e cerimoniais dos personagens. Como por exemplo, as flores oferecidas à mulher são depreciadas ou apreciadas (?) pelo paladar não somente pelo olhar.
Uma realidade alheia de um conjunto de pretensões que poderiam denunciar um perigo social demográfico em nossa cultura “realista”. Cabeças que giram e continuam com a voracidade da vida sem terem seus corpos acoplados à elas; e corpos que andam desalojados em busca de suas cabeças. A cena é tratada no filme com muita naturalidade,ou seja, é comparada igualmente com a nossa perda comum, cotidiana, de um objeto de importante valor. Ha nesta cena que percorre todas as entranhas das outras cenas do filme, uma questão muito intrigante que é direcionada à posição do limite existencialista da vida em uma realidade subjetivada. Afinal, o corpo como a condução material e APUBLI[CADA] ∙ ARTIGO ∙ Nº 1 ∙ 2013
Figura. 03 Cena da animação Muzorama
grosseira da estética humana, carrega em si um princípio inteligível, muito além dele próprio. O mundo se torna mental. A vida está em uma individualidade compreensiva a conjuntura de sentido que cada um constrói em seu pensamento, na interação de sua vida interna e externa. O personagem/homem da animação existe, mesmo tendo seu corpo por pedaços simbolicamente deflagrado. Ele ainda existe em um corpo de sentimentos e pensamentos, um corpo além do corpo.
Surrealismo, subconsciente e non sense. “Na primeira fase da poética surrealista, a arte possui justamente um caráter de teste psicológico, mas, para que este seja autêntico, é preciso que não haja intervenção da consciência...” (ARGAN, 1992, p. 360).
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Acredito que pela habilidade de se vincular ao Manifesto Surrealista e na temática escondida por trás das obras surreais, está sempre o inconsciente como escultor deste APUBLI[CADA] ∙ ARTIGO ∙ Nº 1 ∙ 2013
processo. Familiaridade primeiramente sentida na obra Muzorama com seu autor. Tratado denotativamente como a intervenção que é feita sem pensar, sem reflexão, uma intervenção que está além da vontade consciente do indivíduo, podemos pensar em uma atividade psíquica bem presente na obra. Se pensar no sentido de racionalizar, pois a criação segue livre em sem sentido associativo.
As ações simultâneas e contínuas dos personagens, muitas vezes padecem de um aspecto de medidas sem consciência. O que não significa que a própria obra seja de cunho inconsciente, uma vez que a função problemática do autor não é nada ingênua. Percebe-se a proposital objetividade e intenção no seqüencial de suas ações. Essa falta de sentido, essas ações impulsivas e aparentemente desordenadas que separadas nos parecem muito inconscientes diante da simetria de ações que constituem a simétrica função humana da consciência, é um marco do filme. É uma questão que se desencadeia diretamente no Surrealismo. Um aspecto além do real, uma profunda avaliação de tempo, na qual
Figura. 04 Abertura da animação Muzorama. Tomada de câmera em ângulo elevado.
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podemos imaginar ter fechado os olhos e ter vivido, por um momento retraído de nossa imaginação, todo aquele cenário, todas aquelas vibrações do filme. Quando acordamos, o mundo estava em seu lugar, à sua maneira.
Portanto, não precisamos que a obra fizesse total sentido. Só precisou ser vivida naquele estreito museu da mente, movimentado de signos e símbolos, e de natureza sensível que autorizasse uma liberdade de criar dentro, o que não se vivia fora. “O inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica, explorada com maior facilidade pela arte, devido á sua familiaridade com a imagem, mas é a dimensão da existência estética e, portanto, a própria dimensão da arte,” afirma Argan (1992, p.360). Neste trecho a respeito do Manifesto Surrealista, Argan fala da potencialidade existencial que condiciona a arte á este ambiente vívido de criação mental, onde as referências imagéticas são base de significados que foram para o artista muitas vezes tão ou mais importantes que a realidade padrão. E sendo a arte comunicação e representação vital, Muzorama afirma uma vitalidade de originalidades energéticas de um mundo imagético que, apesar de ser real e além de ser somente realidade, é parte de um conjunto de imagens que foram interpretadas em um sentido pessoal. APUBLI[CADA] ∙ ARTIGO ∙ Nº 1 ∙ 2013
As noções de descontrole dos fatos desencadeiam-se em uma duplicata tratada por estudos da arte em uma distribuição interminável de falta de sentido, non sense. Interminável eu diria, pois o final do filme me parece sem fim, se liga diretamente com o início, e quando se procura sentido firme desta ligação, não o encontra. Se perdeu pelo caminho dos fatores das imagens. Desperta em nós um humor perturbado pela operação impactante com a memória que nos faz pensar: isso não faz sentido algum! E todo o sentido, se encontra nesta falta de sentido. É a representatividade de uma sociedade. Onde está a nossa produção de subjetividade diante das entrelinhas de nossas relações humanas? Talvez, não tão diferenciada.
Metalinguagem e linguagem audiovisual em um desdobramento de tempo e espaço “O termo metalinguagem é muito amplo, pois se refere a toda leitura relacional, equação, referências recíprocas de um sistema de signos, de linguagem...” (MONTEIRO, 2007, p. 8).
Figura. 05 Cena da animação Muzorama
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A modalidade linguística da animação de Muzo, diante das comparativas da metalinguagem, se respalda em um caractere luminoso da animação. Tomemos o casamento entre a animação e a metalinguagem dela própria. “Se uma mensagem organiza-se de modo a provocar reconhecimento de conceitos e formas já adquiridos pelo receptor porque fazem parte do senso comum da cultura, o público se amplia, na medida em que este conhecido repele o novo e trás a tona o velho”(CHALUB, 1988, p. 15). A animação atualmente tem esse aspecto do novo, que está em processo de ser velho, então, já ser aceito como uma linguagem de expressão e comunicação culturalmente comum em nosso meio. O filme se utiliza vivamente deste recurso em uma edição dinâmica diretamente relacionada ao áudio, e com uma astúcia de cores muito marcante. A animação em 3D tem em seu meio de atuação a síntese de dar vida a objetos e elementos estáticos. Essa questão é muito bem explorada em Muzorama, uma vez que não só os personagens que representam os seres humanos ganham vida, mas há uma vivacidade, uma alma oculta também em vários objetos. Como por exemplo, nos prédios que se erguem e voltam á superfície solar como meio de circulação do trânsito. O caos da obra se dá além de todo APUBLI[CADA] ∙ ARTIGO ∙ Nº 1 ∙ 2013
o estranhamento já citado anteriormente. Nessa questão a animação pode permitir ser tão bem explorada pelo seu criador. Esse gênero se desencadeia na produção de metalinguagem das cenas, uma vez que o aspecto revigorante despertado na criação animada acaba por demonstrar e falar através da própria imagem sobre a construção de repertório dela mesma. È a linguagem da animação falando sobre si própria.
Tempo, espaço e construção subjetiva. “Vive o ser humano preso, bloqueado pelas três dimensões cartesianas, em que os valores de espaço e de tempo são dominantes...” (AZEVEDO, p. 27) Suspeita o homem por acaso saltar fora dessas dimensões de espaço e tempo? Há para nós, uma possibilidade que nem percebemos cotidianamente de movimento e reconstrução das coisas que nos cercam. Ela está alojada na presença do tempo e de formações de situações e vivências dentro de nosso pensamento. É um tempo mental, atemporal, que está fora do aspecto de parâmetros do tempo casual, das vinte e quatro horas que temos de experiências e
Figura. 06 Cena da animação Muzorama
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de instituição como horas correspondentes a um dia. Paralela a elas, temos mais um sequencial de tempos redimensionados, vivências, interpretações e criações dentro de nossos sentimentos e reelaboração mental. O que constitui uma dialética que caminha também conosco e nos implica ressonâncias de convivências diferentes das que temos lá fora, no mundo exterior à nossa realidade psíquica e construção subjetiva.
E quer melhor maneira de se perder na realidade do tempo do que em Muzorama? Primeiramente me perdi no tempo de conexão da minha própria compreensão do que a imagem que eu via podia me dizer. E posteriormente pela própria análise que nos é atroz e ora nos desenfreia pela percepção da questão de vários tempos tratados de maneira muito contestante no roteiro do filme. O barulho pesado do relógio, a cena do início que tem uma junção com a cena do fim, quase como um filme do Quentin Tarantino, fazem com que a ideia do nó espaço e tempo seja sacudido e desamarrado em nossa mente. Não se sabe ao certo o início e o fim da cidade Muzorama de Muzo. Talvez, ela mesma não saiba disso em si, nem seu criador pois, não ha nem começo nem final. Ha somente sua existência em um espaço de tempos APUBLI[CADA] ∙ ARTIGO ∙ Nº 1 ∙ 2013
entrecruzados, mental.
De fato, a animação foi dirigida por várias cabeças: Laurent Monneron, Elsa Brehin, Raphaël Calamote, Mauro Carraro, Maxime Cazaux, Emilien Davaux e Axel Tillement, em apenas seis semanas. O Muzorama é um filme de animação curta experimental: através do universo de uma autoria, os estudantes fizeram um universo animado. Supõe-se que o estranho universo de Muzo, seja do ilustrador surrealista francês JeanPhilippe Masson.
Muzorama está construída no lampejo do sonho, da construção imagética e simbólica de signos que se interagiram e usaram a liberdade da criação a seu favor. Romperam então um conceito de realidade que se firmava em um espaço comum e inesgotável de situações esperadas. Muzorama se anexou a um tempo tão passageiro como o ultimo sonho antes do despertar. A desconexão factual dos acontecimentos em meio a desconstrução de um mundo com sentido e por nós identificado como tal, faz com que esses acontecimentos vão e voltem a um mesmo ponto. Um eterno retorno? Uma caminhada na mão e contra essa mão, que ao certo, eu caminharia até o fim do dia.
Bibliografia ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Tradução Denise Bottmann e Frederico Carotti. 2ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 1992. AZEVEDO, José Lacerda de. Espírito/Matéria: novos horizontes para a Medicina. Porto Alegre: VEC, 2002. CHALUB, Samira. A meta-linguagem. São Paulo: Àtica, 1988.
MONTEIRO, Marco Antônio. A Metalinguagem no cinema, Um estudo do discurso metalingüístico presente na obra de Woody Allen. Belo Horizonte, 2007. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia: Tradução Rubens Figueiredo. 1ª Edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Filme de animação: Muzorama. 3’.13’’.Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=V-0O2kEjl9U
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