Cães de Rebanho II

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D Etologia

Comportamento

predatório Em diferentes tipos de cães domésticos

O ancestral do cão e do lobo era um animal essencialmente carnívoro, ou seja, para sobreviver, a base da sua alimentação eram animais que caçava e comia. Isto significa que os comportamentos relacionados com a predação constituem uma parte importante do repertório comportamental do cão. Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal

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o mês passado, vimos como dois tipos de cães respondem ao mesmo estímulo – animais vivos –, apresentando comportamentos totalmente distintos: os cães de gado consideram-nos parte da sua “família” e protegem-nos, os cães de pastoreio conduzem-nos entre locais. Os cães de caça e os cães de rebanho apresentam comportamentos diferentes perante o mesmo tipo de estímulos; e, inclusive, distintos tipos de cães de caça (cães generalistas ou especialistas, como por

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exemplo, sabujos, perdigueiros e retrievers) reagem de formas diversas. Como é que a partir de um ancestral “generalista” se conseguiram obter diferentes comportamentos perante o mesmo estímulo? Os professores americanos Raymond e Lorna Coppinger, com base em décadas de investigação em comportamento de cães, nomeadamente, em cães de gado e de pastoreio, formularam uma hipótese que parece bastante consistente para explicar estas diferenças, e que tem a ver com o tipo de selecção (consciente ou

inconsciente) que terá ocorrido ao longo do tempo nos cães. Este artigo é baseado na sua teoria, interpretação e aplicação a diferentes tipos funcionais de cães e ao que se passa nos nossos cães de companhia.

Ancestral do cão

Consideremos o comportamento de caça de um canídeo silvestre como exemplo do que seria o comportamento de predação do ancestral do cão. O animal procura uma presa, orienta-se na sua direcção,

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persegue-a e, caso a caçada corra bem, agarra-a, abate-a, abre-a e consome-a [ Gráfico 1 ]. Este é o padrão comportamental básico que permite que um animal tenha sucesso em conseguir alimentar-se por si próprio. Os vários comportamentos apresentados funcionam em série do princípio ao fim. Ou seja, caso a sequência predatória seja interrompida, não é possível continuá-la do ponto em que foi interrompida, terá de ser reiniciada desde o primeiro passo.

O Podengo Português é um exemplo de um cão de caça generalista.

Cães de caça

Os cães de caça mais generalistas, como por exemplo os Podengos, apresentam esta sequência na sua forma original, ou muito pouco alterada. Já raças que se especializaram em diferentes funções da caça apresentam variações nesta sequência, devido a alterações na sequência predatória que foram sendo seleccionadas ao longo do tempo.

Cães de parar

Vale do Trevo

Num cão de parar, a fase da detecção e aproximação à presa foi altamente enfatizada, procurando suprimir-se os comportamentos de perseguição e de abate do animal [ Gráfico 2 ].

Cães de cobro

Num retriever, cão de cobro, foram enfatizadas as fases da orientação em relação à presa (permitindo a sua detecção) e sobretudo a da mordida de agarre, permitindo o seu cobro. O facto de (idealmente) se ter suprimido a mordida de abate explica a chamada “boca macia” destes animais, em que os cães vão cobrar uma peça, mesmo que esta tenha sido

Num cão de parar, a fase da detecção e aproximação à presa foi altamente enfatizada apenas ferida e não abatida, e trazem-na de volta ao proprietário sem danos [ Gráfico 3 ].

Gráfico 1 olhar-aproximar

orientar

perseguir

mordida de agarre

mordida de abate

rasgar

consumir

Gráfico 2 orientar

olhar-aproximar

perseguir

mordida de agarre

mordida de abate

rasgar

consumir

olhar-aproximar

perseguir

mordida de agarre

mordida de abate

rasgar

consumir

olhar-aproximar

perseguir

mordida de agarre

mordida de abate

rasgar

consumir

perseguir

mordida de agarre

mordida de abate

Gráfico 3 orientar

Gráfico 4

orientar

Gráfico 5 olhar-aproximar

orientar

Investigação

Solicitar cuidados

Submissão

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Saltar

Convite ao jogo

Perseguir

Patada-jogo

rasgar

Morder

Aproximar-jogo

Lutar

consumir

Cão de pastoreio

No caso de um cão de pastoreio, a sua capacidade em cumprir a sua função deriva também de várias modificações ao comportamento predatório. Por um lado, pretende-se que as mordidas de agarre e de abate estejam suprimidas, de forma a não causar danos ao gado (apesar de, por vezes, ser necessário o cão mordiscar animais recalcitrantes, de forma a conseguir que se desloquem para o local pretendido). Por outro lado, e uma vez que a postura corporal que os canídeos assumem durante a aproximação e perseguição predatórias induzem os presas a movimentarem-se, afastando-se do predador, pretende-se que os cães pastores apenas apresentem essas fases da sequência predatória, mas encadeadas num loop – ou seja, é a repetição das fases de orientação, aproximação e perseguição que leva a que o gado, ao afastar-se do cão, se desloque para o local pretendido [ Gráfico 4 ].

Cão de gado

Um cão de gado deve ter a confiança dos animais que protege, para conseguir desempenhar correctamente a sua função. Assim, estes cães não devem apresentar com o rebanho um comportamento predatório definido e completo. A sua aproximação ao gado consiste numa mistura de comportamentos exploratórios, submissos e de jogo; poderão incluir alguns componentes do comportamento predató-

Nos cães de cobro a mordida de abate foi suprimida, o que explica a “boca macia” dos cães que cobram a peça e a trazem de volta ao dono sem danos rio, mas fora de contexto, e não a sequência completa [ Gráfico 5 ]. Como resultado destes comportamentos descontextualizados, a sequência de caça do predador é interrompida, pelo que terá de ser re-iniciada. Assim, frequentemente fica energeticamente mais económico para o predador tentar caçar outro tipo de animais do que um rebanho guardado por cães de gado eficazes. Esta situação também explica os relatos de vários pastores, que referem que quando um cabrito ou borrego lhes morre no curral (durante o parto, por exemplo), o cão nem lhe toca, mas depois de uma pessoa esquartejar o animal, o cão de imediato o come – uma vez que o cão não apresenta as mordidas de agarre ou de abate como parte de uma sequência predatória, não tem tendência para ir comer um animal que encontre morto sem danos.

Existem excepções

Poderá argumentar-se: mas existem raças de cães de gado (como por exemplo o Rafeiro do Alentejo ou o Cão de Gado Transmontano, em Portugal) que são usados em matilhas de Caça Maior, ou que, inclusive, caçam espontaneamente alguns animais silvestres. Efectivamente isto acontece. Os diferentes elementos do comportamento predatório ocorrem neste tipo de cães, não estão é normalmente organizados numa sequência eficaz. Mas os cães podem aprender a organizá-los, através da Cães&Companhia 33

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Variabilidade individual

A abordagem de um cão de gado consiste numa mistura de comportamentos exploratórios, submissos e de jogo

Naturalmente, em tudo o atrás exposto, está-se a falar de tendências gerais em relação a cada tipo racial, existindo ainda uma certa variabilidade comportamental dentro de cada um. Efectivamente, uma das principais causas de insucesso em cães de pastoreio é o de apresentarem uma sequência predatória mais completa, levando-os às fases de mordida e inclusive abate do gado, naturalmente um traço indesejado para a sua função de auxiliar no maneio do gado. Também em diferentes tipos de cães de caça, a ocorrência desta sequência de uma forma funcional poderá levá-los a abater e de imediato consumir as presas, em vez de a trazer de volta ao dono.

Um predador em casa

adulto, o mesmo acontecendo com o comportamento: verifica-se que algumas das componentes predatórias (orientação, aproximação, perseguição) estão já presentes e organizadas, enquanto que outras (captura), características da fase adulta do ancestral, estão ainda ausentes ou menos desenvolvidas.

imitação de outros cães ou por experiência própria – por exemplo, se na brincadeira conseguem apanhar um animal e acidentalmente o matarem. Neste último caso, os cães frequentemente não exibem a sequência predatória completa, mas apenas segmentos que, devido ao grande porte do cão e reduzido tamanho da presa, normalmente resultam na morte desta.

Alteração do comportamento predatório original

E como é que se conseguiu apurar cães com tantas modificações em relação ao comportamento predatório original? Para o entender, é preciso compreender o conceito de neotenia. De uma forma simplificada, a neotenia consiste na retenção de características juvenis no indivíduo adulto; ou seja, corresponde a uma redução no desenvolvimento, pelo que o adulto assemelha-se a um estádio juvenil do seu ancestral. De uma forma geral, considera-se que os animais domésticos são “descendentes” neoténios das espécies que lhes deram origem. De acordo com as hipóteses formuladas pelo casal Coppinger, e seus colaboradores, a diferentes tipos raciais de cães corresponderiam diferentes fases neoténicas em relação ao seu ancestral. Por exemplo: os cães de gado completariam o seu desenvolvimento numa fase que corresponderia ao estádio juvenil (“adolescente”) do ancestral silvestre, mantendo desta forma um comportamento (e mesmo um aspecto 34 Cães&Companhia

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Nos cães pastores ocorre a repetição das fases de orientação, aproximação e perseguição, levando o gado a deslocar-se para o local pretendido.

corporal a nível de formas gerais e principalmente da forma da cabeça) essencialmente juvenis, com reduzida frequência de comportamentos predatórios organizados (que normalmente apareceriam alguns meses após o nascimento no canídeo sil-

vestre, primeiro como comportamentos isolados e desorganizados). Pelo contrário, os cães de pastor terminariam o seu desenvolvimento numa fase mais tardia, apresentando assim um aspecto mais próximo do ancestral

No caso dos cães de caça, diferentes “especialidades” corresponderiam a diferentes graus do fim do desenvolvimento em relação ao ancestral, no qual algumas fases do comportamento predatório já teriam aparecido e outras ainda não, não estando ainda encadeadas numa sequência completa e funcional.

Apesar de, na maior parte dos casos, não nos apercebermos, temos diariamente em casa exemplos do comportamento predatório dos nossos cães. O cão que gosta de perseguir, roer e esventrar os seus bonecos de peluche está simplesmente a direccionar o seu comportamento predatório para a presa que consegue encontrar. A bola que se atira para ser cobrada é um jogo muito apreciado pelos donos e pela maioria dos cães, que utilizam nessa “presa” a sua sequência predatória. Percebe-se também assim porque é que a maioria das raças de cães de gado não é particularmente entusiasta deste jogo – que requer uma sequência predatória minimamente funcional, que um indivíduo comportamentalmente típico não deve apresentar. D Nota do autor: Gráficos adaptados de: LGDA (1992) What makes a good guarding dog? DogLog, III (3): 2; Coppinger & Coppinter (2001) Dogs. A startling new understanding of canine origin, behaviour and evolution. New York: Scribner.

Um cão de companhia que gosta de perseguir, roer e esventrar os seus bonecos de peluche, está a direccionar o seu comportamento predatório para a presa que consegue encontrar

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