O meu cão é mesmo teimoso! Parte 1

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Educação

Carla Cruz

Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal (www.aradik.net) Fotos: Shutterstock

Um bom comportamento não nasce, é ensinado. Se não gosta de algo que o seu cão faz, ensine-lhe o que quer que ele faça nessa situação.

“O meu cão é mesmo

teimoso!”

Experimente uma nova forma de pensar e confirme se é mesmo assim

Nos nossos animais de companhia, é comum confundir-se situações pontuais com traços de personalidade gerais. Quando o cão não faz aquilo que esperamos dele, é imediatamente rotulado de teimoso, desobediente, ou pior. Mas alguma vez experimentou mostrar-lhe o que pretende que ele faça nessa situação? Experimente, e verá uma grande diferença!

Q

uantas vezes não nos viramos para um amigo e lhe dizemos “és mesmo parvo”? Será que acreditamos mesmo que o nosso amigo “é” parvo? Escolheríamos associar-nos com uma pessoa palerma, que achássemos que era incapaz de se relacionar adequadamente connosco, ou com os outros? Claro que não, sabemos que é uma situação pontual, por brincadeira, stress, etc., e que se irá modificar. Sabemos que não é isso que define a sua personalidade. No entanto, quando falamos dos/com os nossos cães, quantas vezes não dizemos “és mesmo desobediente”, “ele é um cão teimoso”, “ele é dominante”, perfeitamente convictos que isso define a sua personalidade? Mas será mesmo assim? Será o seu cão diferente (neste aspeto!) do seu amigo? Este tipo de abordagem tem vários problemas.

Quando temos um comportamento que não nos agrada, é importante perceber a razão deste, para nos ajudar a encontrar alternativas O facto de o cão se portar “mal” em certas circunstâncias não quer dizer que o faça sempre. Pense em que situações que gostaria que ele fizesse outra coisa. Esse é o seu primeiro passo para uma melhor relação com o seu cão.

Sentimo-nos impotentes

Em primeiro lugar, seguramente que consegue ver que, tal como no caso do seu amigo, o seu cão não “é” sempre assim. Pense bem… De certeza que consegue pensar em várias situações em que o seu cão não se está a comportar de forma desobediente, teimosa, etc. Certo? E seguramente que consegue identificar as situações específicas em que ele age dessa forma. Afinal, parece que o animal não “é” teimoso, só às vezes é que se comporta assim – mesmo quando o “às vezes” parece ser muito frequente, nestas situações temos maior tendência para nos lembrarmos do mau do que do bom. Além disso, o pensamento interiorizado de que o animal “é” assim ou assado leva a uma sensação de impotência – não adianta fazer nada porque está na natureza do cão ser assim mesmo, e não é pos4 Cães&Companhia

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fazer nessa situação? Facilmente consegue ver que se torna uma situação estranha e frustrante para todos, duas (ou mais) pessoas presentes sem que nada aconteça entre elas para darem sinal que se aperceberam da sua presença e iniciarem a interação. Criou-se um vazio comportamental, não se exibe nada numa situação que requer algo. Com os nossos cães acontece precisamente a mesma coisa. Ao limitar-se a castigar um determinado comportamento, o animal até pode aprender a deixar de o exibir para evitar a punição, mas não aprende o que fazer nessa situação. Cria-se uma situação de vazio comportamental e de frustração (que muitas acaba por se manifestar noutras situações, enquanto comportamento desviado). Agora imagine que em vez de o castigarem, lhe explicam que a forma socialmente correta de cumprimentar as pessoas é, muito simplesmente, dar-lhes um aperto de mão. Bastante mais simples e eficaz, não?

Um cão que puxa a trela não é “dominante” ou “teimoso” - é simplesmente um cão que aprendeu que é assim que chega onde quer. Não gosta que ele faça isso? Ensine-o a andar calmamente com a trela solta, e que quando puxa deixa de conseguir ir onde quer.

Os cães não vêm pré-programados para adivinhar os nossos desejos. Ensine ao seu cão o que quer que ele faça, em fez de se limitar a castigá-lo quando faz algo “errado”. Verá que serão ambos bastante mais felizes.

Os cães não nascem ensinados

sível alterar a natureza intrínseca. Mas… acabámos de ver que afinal ele nem sempre se comporta dessa forma, só às vezes. Afinal se calhar há esperança, não estamos condenados a viver para sempre com um cão teimoso ou desobediente.

Mude a forma de pensar

Experimente fazer um pequeno exercício – pense numa situação em que o seu cão se está, concretamente, a comportar de uma forma que você não gosta. Fácil, seguramente existem várias situações dessas. Para o resto deste texto, vamos usar como exemplo o facto de o cão saltar para cima das pessoas, mas o processo é semelhante para qualquer outra situação. Ora bem, então temos o nosso cão a saltar para cima das pessoas. Não gostamos disso, e por isso ralhamos com ele para deixar de saltar. As “soluções” classicamente propostas para este tipo de problemas envolvem virar-lhe as costas, cruzar os

Ao limitar-se a castigar um determinado comportamento, o cão até pode deixar de o exibir com medo da punição, mas não aprende o que pode fazer nessa circunstância braços para ele não consegui saltar-nos, ou mesmo dar-lhe com o joelho no peito quando ele salta, para o magoar e ele deixar de saltar. Mas nada resulta. Resultado: Ele é sem dúvida um cão teimoso que só faz o que ele quer, não o que nós queremos, e faz isto porque sabe que ficamos chateados com ele. Será mesmo assim?

Entenda a razão

Antes de mais, quando temos um comportamento que não nos agrada, é importante perceber a razão para o comportamento, isso irá ajudar-nos a encontrar alternativas. Os cães têm muita dificuldade em generalizar comportamentos, pelo que quanto maior diversidade de situações fizer em cada nível, mais firmemente ele irá interiorizar o comportamento.

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Nos grupos sociais de cães, uma das principais saudações quando eles se reencontram é lamberem-se os focinhos uns dos outros, um comportamento talvez derivado de quando os cachorros lambiam o focinho da mãe a pedir-lhe comida que ela regurgitava. Ora, nós estamos num plano muito mais alto em relação ao nosso cão, ele não chega facilmente à nossa cara, logo tem de saltar para lá chegar. Por isso é que quando consegue ter acesso, o nosso cão nos deixa a cara toda “lavada” com as lambidelas.

E se fosse uma pessoa?

Ora, vamos agora fazer um pensamento paralelo. Por cá, a forma normal e socialmente correta de cumprimentar amigos e conhecidos é dando beijos na cara e/ou abraços. É isso que nos ensinam desde crianças – quem nunca passou pelo famoso “vá, dá lá um beijinho à tia/amiga/etc., não sejas envergonhado(a)”? Mas há culturas e países em que essa grande intimidade física não é apreciada e é mesmo repudiada. Suponha que emigra para um desses sítios sem saber disso. Naturalmente, a sua tendência será cumprimentar as pessoas assim, certo? Agora imagine que para lhe mostrar que isso não é aceitável, alguém lhe dá uma palmada ou um choque elétrico cada vez que o tenta fazer. Como se irá sentir? Provavelmente confuso, “porque é que me estão a castigar por este comportamento natural?”. Dado um número suficiente de punições, qual será a sua resposta? Muito seguramente, vai começar a evitar cumprimentar as pessoas, com medo de nova palmada ou choque, certo? Mas… o que é que aprendeu com esta experiência? Aprendeu como deve cumprimentar as pessoas? Ou limitou-se a “aprender” a não fazer nada, a inibir o seu comportamento, mas ficando sem saber o que

Ignorar um comportamento não desejado (a menos que ponha em risco a integridade física do cão ou de pessoas) é importante para não o reforçar – e ignorar significa não mexer no cão, não olhar para o cão, não falar com o cão; mesmo o ralhar é dar atenção ao cão, ele obteve o que queria. Mas se punir não nos resolve efetivamente a situação, o que fazer então? Experimente pensar “O que é que eu gostaria, concretamente, que o meu cão fizesse nesta situação?”. Voilá, já temos uma solução concreta para o nosso problema. Falta implementá-la. Muitas vezes as pessoas pensam “não quero que o cão salte, quero que fique parado no chão, com as 4 patas no chão”. É possível conseguir isto, é questão

de recompensar sempre que o cão não está a saltar. No entanto, apesar de para nós, pessoas, ser fácil de compreender isto, com os cães não há a vantagem de se poder explicar facilmente por via oral, como faríamos com outra pessoa. Torna-se então mais simples para todos escolher um comportamento específico, que envolva uma ação concreta, para que o cão entenda facilmente (uma vez que estar de pé é um estado muito natural para o animal) e para que seja claro para todos quando o cão está a fazer o que se pretende. Normalmente, as pessoas tendem a escolher uma de

duas opções – ou pedir ao cão para se sentar antes de receber as festas das pessoas, ou pedir ao cão para ir para um lugar específico (a sua cama, etc.) quando se está a receber as pessoas em casa.

Um passo de cada vez

“Ah, mas o meu cão é teimoso e desobediente, ele nunca vai conseguir fazer isto, ele fica muito excitado e incontrolável!” Recorda-se de quando aprendeu a ler e escrever? Não o fez de imediato, certo? Demorou alguns anos desde que começou a reconhecer as letras até con-

As regras da sociedade canina são diferentes das nossas. Castigá-lo por isso é confuso e frustrante. Ensine-lhe o que considera ser correto e encoraje-o a fazê-lo. A vossa relação irá florescer

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seguir produzir um texto coerente e com uma certa dimensão, certo? Entretanto passou por uma série de fases – juntar letras para fazer sílabas, juntar sílabas para fazer palavras, aprender as regras de construção de frases, aprender a juntar frases para formar parágrafos, etc. Com o treino e educação de cães passa-se a mesma coisa. Não faz sentido pedir um comportamento complexo que o seu cão não conhece, ou que tem dificuldade em implementar, se não lhe der as bases primeiro. Portanto, como vamos ensinar o nosso cão a sentarse ou a ficar no seu lugar quando temos visitas à

porta? Pense nos vários detalhes que perfazem esse comportamento, subdivida-o nas menores unidades possíveis. Depois, ensine cada comportamento em separado, comece a juntá-los e teste-os em diferentes situações.

O seu cão pede comida à mesa? Ensine-lhe que só tem direito se estiver tranquilo no seu lugar. É melhor que castigá-lo por um comportamento natural, não?

“O meu cão pede à mesa”

Exemplo prático

Suponhamos que quando vêm visitas a casa, gostaria que o seu cão se fosse sentar tranquilamente na sua cama enquanto recebe as pessoas. O que é que isto implica? Em primeiro lugar, o cão tem de (1) saber sentar-se a pedido e (2) saber ir para a cama a pedido (independentemente da posição que lá assume). Com estes dois comportamentos bem aprendidos, pode-se pedir ao cão para se sentar na cama. Quando ele souber isto, pode-se começar a pedir ao cão que o faça quando ouve a campainha da porta. Depois, pode-se pedir que vá para a sua cama quando se abre a porta. O passo seguinte é “recrutar” a ajuda de amigos e família para fazerem de visitantes enquanto se ensina o cão a ir para a cama, e ficar lá, quando vêm pessoas. Quando se conseguir estes passos neste ambiente controlado, pode-se alargar para outras pessoas e visitas inesperadas. Como vê, não é complicado, desde que se tenha um objetivo e um plano. O resto só exige dedicação e um pouco de tempo.

Generalizar o comportamento

Lembre-se de testar bem cada comportamento, com vários níveis de distrações, com o dono em diferentes posições, etc., antes de passar para o nível seguinte. Os cães têm muita dificuldade em generalizar com-

aumentar as distrações a que o cão está sujeito, pelo que deve inicialmente pedir-lhe menos passos de uma vez, para assegurar que ele tem sucesso na aprendizagem.

Pense no que gostaria que o seu cão fizesse numa determinada situação, e ensine-lhe isso portamentos (mesmo que seja algo aparentemente tão simples como a mudança de local do dono), pelo que quanto maior diversidade de situações fizer em cada nível, mais firmemente ele irá interiorizar o comportamento. Se o seu cão tiver dificuldade no encadeamento de comportamentos, dê um passo atrás, flexibilize um pouco o seu critério até ele conseguir fazer o que pretende, e depois trabalhe progressivamente até alcançar o objetivo pretendido em cada etapa. Neste tipo de treino, os seus amigos serão normalmente os seus piores inimigos. “Deixa-o lá saltar, não me chateio com isso, até acho piada”. Cabe-lhe a si explicar que está a educar o cão para ele não fazer isso, pelo que agradece a ajuda de cooperar no treino. Além de que, como é óbvio, ninguém gosta de, por exemplo, um cão molhado ou enlameado (após um banho ou passeio à chuva, por exemplo) a saltar-lhe para cima – e não há nada mais amigável que um cão molhado!

Para todos os tipos de comportamentos

Este tipo de abordagem é válida para qualquer outro comportamento que o cão exiba que gostasse de ver alterado. Basta pensar o que quer que o cão faça em vez disso e implementá-lo.

“O meu cão puxa na trela”

Por exemplo, ninguém gosta de um cão que puxa na trela, certo? Se o cão não o fizer por reatividade a outros cães/pessoas/etc. (o que implica uma abordagem ligeiramente diferente), o que fazer então? Pode-se (e

deve-se) parar de andar quando o cão começa a puxar (ignorar o comportamento; se estamos parados, o cão já não consegue ir para onde quer). Que comportamento quer que o cão exiba nesta circunstância? Quer que o cão não puxe na trela. O que é que isso implica? Que a trela esteja folgada entre a coleira e a sua mão. Como conseguir isso? Trabalhar e recompensar passo a passo (literalmente) para que o cão consiga andar com a trela formando um “J” (esteja solta) entre a coleira e a pessoa, e ir gradualmente encadeando em sequências mais longas, começando num ambiente com poucas distrações, como em casa, e ir gradualmente expandindo esta aprendizagem para outros locais. Lembre-se que cada vez que muda de sítio, está a

O seu cão pede à mesa? Simples, o que gostaria que ele fizesse em vez disso? Que ele fique tranquilo na sua cama? Ensine-o a ir para a cama, ensine-o a ficar lá (comece sem ser à hora da refeição) e, quando ele já souber muito bem ficar lá a pedido, dê-lhe ocasionalmente um bocadinho de comida da mesa, desde que adequada para cães. Parece contraintuitivo? Ao recompensar-se o cão com o que ele quer (comida da mesa) apenas quando ele está a fazer exatamente o que queremos, vamos aumentando a probabilidade que ele lá fique, a ver quando lhe vai cair na rifa um bocado de comida (é o princípio das slot machines dos casinos, que dão prémios de vez em quando para manter os jogadores agarrados às máquinas). Obviamente deve ignorar o cão quando ele vem pedinchar à mesa e pedir-lhe para ir para o seu sítio, recompensando-o aí.

Uma nova forma de pensar e agir – para o benefício de todos

Vê como é simples resolver a maioria das “teimosias” e “desobediências” do seu cão? Ele não nasce ensinado, não adivinha o que pretende dele (e muitas vezes é algo contra o seu instinto natural), por isso modificar o comportamento só depende de si e do seu empenho na educação dele. Basta cumprir estes simples passos: • Identifique o problema concreto que tem; • Pense no que quer que o cão faça, especificamente, nessa situação; • Divida esse novo comportamento que pretende obter no maior número de unidades independentes possíveis; • Ensine cada nova ação em separado; • Quando bem aprendidos, encadeie gradualmente os vários comportamentos até chegar ao resultado final. E pronto, aqui temos um novo comportamento, aceitável, no lugar daquele que não gosta. Basta apenas um pouco de dedicação no treino. Não adianta estar a “massacrar” o cão – e a si – com repetições ad eternum. 2 ou 3 minutos aqui, 5 minutos ali, de cada vez, são muito mais eficazes que 30 minutos de seguida, e consideravelmente mais fáceis de encontrar – enquanto espera que os miúdos de preparem para a escola, enquanto o jantar cozinha, no intervalo da sua série ou novela preferida, etc. Aproveite as férias que se aproximam para experimentar esta nova abordagem, verá que não irá voltar atrás. O seu cão e a vossa relação irão agradecerlhe por isso! n

O seu cão salta para cima de si quando quer a comida dele? Ensine-lhe um comportamento incompatível, como sentar-se (se está sentado, não consegue saltar), e apenas lhe dê a refeição quando ele fizer o que lhe pedir. Muito rapidamente terá um cão que irá aguardar sossegadamente pelo seu prato. 8 Cães&Companhia

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