Educação
Carla Cruz
Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal (www.aradik.net) Fotos: Shutterstock
Quantas vezes se enerva com a “teimosia” do seu cão, porque lhe ensinou certos comportamentos, mas ele só os faz às vezes? Será que ele está a escolher ignorá-lo só para chatear?
N
“O meu cão é mesmo
teimoso!” II
Desafios na educação de que nem nos apercebemos
SIM!!! ! á c a And
NÃO!!!
Dá a p ata!
! a t n Se
Deita!
Quieto!
Fica!
o mês passado vimos com uma simples mudança de mentalidade pode fazer muito pela relação com os nossos cães. Em vez de pensar “como é que o meu cão deixa de fazer isto” (ideia negativa), basta pensar “o que quero que o meu cão faça em vez disto” e ensiná-lo (ideia positiva), o que permite uma resposta pró-ativa para a resolução do problema. Mas isto, muitas vezes, leva a uma resposta ainda mais veemente de “ele é mesmo teimoso”, porque “ele até sabe fazer o que lhe peço, mas na maioria das vezes não o quer fazer” ou “só faz se eu tiver um biscoito na mão”. Será mesmo, mesmo assim? Normalmente… Sim e não. Confuso? É natural, tendemos a achar que os cães pensam e reagem como nós quando confrontados com as mesmas situações. Logo, quando não se comportam da mesma forma como nós o faríamos, seguramente é por teimosia, por birra ou por vingança. Mas apesar de todas as semelhanças que os cães têm connosco, têm também vários aspetos que os tornam muito diferentes. Vejamos como isso influencia a sua educação e treino.
Ele tem de fazer para me agradar
Um dos maiores entraves a um correto ensinamento dos nossos cães tem a ver com o pressuposto que os cães devem fazer o que lhes pedimos simplesmente pelo prazer em nos agradar. Esta conceção terá talvez origem no facto de eles gostarem de interagir connosco, mas está fundamentalmente errada na sua base. Nos humanos, a recompensa social é muito importante, fazemos muitas vezes coisas, não pelos benefícios materiais, mas para obtermos o reconhecimento dos nossos pares, para nos sentirmos integrados no nosso grupo social – inclusive coisas estúpidas como nos grupos de adolescentes, em situações de multidões ou de gangues. Mas nos cães, o reconhecimento pelos pares não tem este relevo, face a gratificações concretas. Um estudo publicado no ano passado evidenciou que os cães até estão dispostos para executar uma pequena tarefa (puxar um tabuleiro) para permitir que um cão conhecido tenha acesso a comida (apesar de eles próprios não obterem essa recompensa). Mas tendiam a não o fazer quando o beneficiário era um cão desconhecido – apesar de facilmente o fazerem para eles próprios obterem a recompensa, mesmo na presença dos cães estranhos. Ou seja, o seu “propósito” não era a satisfação do outro em si. E, de qualquer forma, este comportamento permite a obtenção de um resultado concreto – o cão pode ver que o outro beneficia em receber comida. Sob o ponto de vista dele, em que beneficiamos nós quando lhe pedimos para se sentar ou deitar?
Qualquer cão consegue aprender, mesmo que seja muito novo. Quanto mais cedo começar o treino (basta adaptá-lo à idade e capacidade de concentração do cachorro), maior a probabilidade de sucesso.
Os cães não nascem ensinados, e muito do que lhes pedimos em várias situações entra em conflito com o seu comportamento natural não é o ordenado ao fim do mês? Continuaria a trabalhar se deixassem de lhe pagar? Possivelmente até continuaria mais uns 2 ou 3 meses, na esperança que a situação se resolvesse e voltasse a ter o seu salário regular, mas o que aconteceria quando percebesse que deixava de receber? Seguramente deixaria o emprego a favor de outro, talvez menos motivador, mas que lhe pagasse, não? E, no entanto, a grande maioria das pessoas espera que os seus cães trabalhem de borla, sem serem recompensados pelas suas ações – e a gratificação de nós ficarmos contentes muitas vezes não é suficiente, sobretudo nas fases iniciais do treino. Daí a importância de saber usar recompensas quando estamos a ensinar algo aos nossos cães. Uma vez que não lhes podemos explicar que “se fizeres
isto, vais ter mais comida no jantar logo à noite”, nem eles têm os processos mentais que lhes permitam perceber este tipo de relações causa-efeito em longos períodos de tempo, a recompensa deve ser imediata. Aliás, há estudos que mostram que entre terem comida à disposição ou trabalharem para a obter, muitos animais, incluindo os cães, optam por fazer algo para obter essa recompensa. Por que não aproveitar esta vontade intrínseca?
O valor da recompensa é o cão quem o define
Isto leva-nos a outra questão: O que usar como recompensa? Normalmente as pessoas pensam em comida,
Descubra o que motiva o seu cão. Esse será o seu “salário” para o recompensar no treino e no dia-a-dia.
A importância de recompensar
Pense no seu trabalho. Por que razão o faz? Por muito que goste do seu emprego, a sua motivação final 40 Cães&Companhia
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xar até ao chão; quando isto acontece, o cão é recompensado com esse pedaço de comida. O que muitas vezes falha é a fase seguinte – quando o cão já percebeu que deve seguir a mão e por o rabo no chão para obter a recompensa, começa a usar-se só o movimento da mão (sem biscoito) e o cão é recompensado com a outra mão – ou seja, só vê e obtém a recompensa depois de executar a ação. Isto permite precisamente evitar as situações em que os cães só fazem o que lhes é pedido à vista do prémio. A associação correta não é recompensa => comportamento, mas sim comportamento => recompensa.
A linguagem corporal é fundamental
Para os cães, sentarem-se na cozinha é diferente de sentarem-se na sala, no jardim ou na rua. Habitue-os desde cedo a trabalhar em diferentes locais, para os ajudar a perceberem que o resultado final é o mesmo.
Ao contrário de nós, os cães têm grande dificuldade em transpor comportamentos aprendidos para diferentes situações no seu dia-a-dia mas não precisa de o ser necessariamente, nem em todas as situações. Há cães que vibram mais com um bom jogo de ir buscar a bola, ou de puxar uma corda com o dono do que com comida; noutros é ao contrário e vidram quando vêm um pedaço de alimento. Mesmo no caso da comida, há muitas nuances. Descobrir qual a comida adequada – um biscoito, uma salsicha, um pedaço de queijo, frango, almôndega, etc. – é uma questão de gosto individual do cão, e da circunstância – quanto mais difícil é a tarefa em questão, mais apetente deve ser a recompensa. Uma pessoa pode achar que um filet mignon é a melhor coisa à face da terra, enquanto outra pessoa pode sentir-se no paraíso num bom frango de churrasco, enquanto que outra pode ainda achar que nada bate passar uma tarde na praia a ler um livro. Passa-se o mesmo com os cães. Por muito que pensemos que o cão gostaria disto ou daquilo, no final o valor da recompensa é o cão quem decide, ele é que sabe o que acha mais motivador. O dono precisa de fazer um pouco de exploração até conhecer as preferências do seu cão.
“Só faz com o biscoito”
Outro problema comum nos treinos tem a ver com a forma correta de usar a recompensa. Uma das frases mais comuns, e dos argumentos mais utilizados para não utilizar recompensas nos treinos, é a famosa “ele só obedece quando vê o biscoito/brinquedo”. Isto tem a ver com um erro comum na educação dos nossos cães – mostrar primeiro a recompensa e só depois pedir ao cão para fazer algo. Ok, este é um processo frequentemente utilizado no início do treino. Por exemplo: para ensinar um cão a sentar-se, uma forma simples é pegar num pedaço de comida e levantá-lo por cima da cabeça do cão; ao levantar a cabeça para seguir o movimento, a tendência no animal é a traseira bai42 Cães&Companhia
Pronto, já sabemos do que o cão gosta e como utilizar a recompensa, por isso o treino pode começar, ou continuar. E, de repente, tudo parece começar a desabar. “O meu cão é mesmo teimoso, tão depressa faz o que lhe peço como me ignora. Desisto, não há nada a fazer, ele é mesmo assim e acabou!” No treino há inúmeras subtilezas de que frequentemente nem nos apercebemos e que vão influenciar a capacidade do cão em reagir e aprender o que lhe queremos ensinar. Uma delas é a nossa linguagem corporal. Os cães são exímios em ler a nossa linguagem corporal, mesmo (e sobretudo) os sinais subtis de que nem nos apercebemos. Se estamos relaxados, é fácil perceber que o cão também o estará, logo está mais predisposto a prestar-nos atenção. Se estamos stressados (mesmo que seja inconscientemente, porque “sabemos” que ele é “teimoso” ou “burro”), o cão vai ficar mais ansioso e nesse estado – tal como acontece connosco – a capacidade de atenção e aprendizagem é reduzida. Se exibimos uma postura de confronto e/ou agressiva… mais vale esquecer o treino enquanto estivermos assim, não há aprendizagem útil que ocorra quando transmitimos medo ao cão.
semelhante, isto é, permite generalizar. Já nos cães, com um neocortex menos desenvolvido, esta capacidade de generalização é bastante mais reduzida. Eles acabam por se focar mais nos detalhes específicos de cada situação do que nas semelhanças entre situações diferentes. Assim, um cão que tem um “senta” perfeito na cozinha não o terá tão bom na sala, no quintal e ainda menos na rua – situações em que as circunstâncias ambientes são diferentes, os detalhes são distintos e constituem assim inúmeras fontes de distração. Daí a importância crucial de, ao longo da aprendizagem do cão, se treinar o mesmo comportamento em muitos locais distintos, caso contrário arrisca-se a que o cão aprenda que “senta” significa apenas “põe o rabo no chão da cozinha” e não “põe o rabo no chão, qualquer que ele seja”.
A importância da nossa posição
Na linha da secção anterior, vem-nos outro tipo de desafio que frequentemente passa desapercebido, é uma daquelas coisas que tipicamente nem nos apercebemos, e que leva a muitos dos argumentos de “teimosia”… O seu cão até pode ter um senta perfeito em qualquer local quando se posiciona de frente para ele para lho pedir. Mas o que acontece se em vez de estar em frente dele se colocar de lado ou atrás, ou se estiver sentado no sofá ou deitado na cama? Acabou-se a obediência? Não. Simplesmente, voltamos à dificuldade dos cães em generalizar. Se só pedimos ao cão que se sente quando ele está à nossa frente, o que lhe ensinamos é
que “senta” significa” põe o rabo no chão em frente ao dono”. Esta é também a razão por que muitas vezes os cães obedecem bem quando estamos a olhar para eles, mas não quando estamos de costas voltadas. Um estudo recente vem realçar esta dificuldade em generalizar, mesmo em situações muito simples. Alguns cães foram treinados a obedecer a um determinado pedido quando este provinha de trás do cão, e a outro pedido quando era emitido à frente do cão. Quando os cães estavam a obedecer consistentemente, trocou-se a posição da fonte dos pedidos. Ou seja, o que lhe era pedido atrás passou a ser pedido à frente, e vice-versa. O que aconteceu? A maioria dos cães executou o que estava habituado a fazer quando a fonte vinha da frente, ou de trás, e não ao pedido específico em si. A solução é a mesma que a da secção anterior – a partir do momento em que ele começa a perceber o que significa o pedido, começar a treinar com o dono e o cão em diferentes posições, para ajudar o cão a perceber o que o pedido significa, independentemente o local em que o dono está.
Comece por ensinar uma coisa simples e vá gradualmente aumentando a dificuldade – mude de posição, treine noutros ambientes, varie o tom de voz, etc.
Dificuldade em generalizar
Uma das principais razões para as pessoas pensarem que o seu cão “não quer” fazer o que se lhe pede tem a ver com o facto de, após ele ter aprendido a fazer o comportamento (sentar-se deitar-se, etc.), esperarem que ele o faça facilmente em qualquer sítio. É perfeitamente normal assumir isso, afinal nós próprios temos uma grande facilidade em generalizar. Quando aprendemos algo novo, rapidamente conseguimos aplicá-lo a diferentes situações e contextos, desde que vejamos uma semelhança com o que aprendemos. Por exemplo: depois de aprendermos a conduzir no carro da escola de instrução, conseguimos rapidamente e com pouco esforço, habituar-nos a conduzir outros carros, grandes ou pequenos, de passageiros ou carrinhas, ou quaisquer outros veículos com quatro rodas, pedais e volante, independentemente dos seus detalhes específicos. Isto acontece porque temos uma estrutura cerebral – o neocortex – bastante mais desenvolvida do que outras espécies. Esta estrutura especializa-se na aprendizagem das regularidades no ambiente. Congregando a informação disponível, o neocortex identifica as semelhanças entre eventos, permitindo adaptar a nossa experiência prévia a uma situação Cães&Companhia 43
Antes de reclamar, pense se treinou bem
A recompensa só deve ser mostrada e entregue depois de o cão cumprir com o que lhe foi pedido. Assim ensinamos o cão que o comportamento pedido resulta no biscoito que ele quer, e não que o biscoito significa que vai ter de fazer algo.
A atenção aos detalhes faz toda a diferença entre um treino bem sucedido e um cão “teimoso”. Ajude o seu cão a ter sucesso! Consistência entre gestos e palavras
A maioria dos cães aprende a executar o que lhes é pedido por duas vias distintas – pelo gesto e por palavras – até porque, tipicamente, o treino é feito com um gesto auxiliando e indicando ao cão o que se pretende e só depois adicionando o “nome” ao pedido. Mas qual a fiabilidade de cada uma dessas vias? Um estudo publicado este ano fornece alguma informação interessante. Numa situação experimental com cães treinados a obedecer tanto ao gesto como à voz, quando os donos davam uma indicação aos cães só com gestos, os cães estavam corretos nas suas respostas 99% das vezes; quando o pedido era feito só com voz, os cães responderam corretamente aos pedidos em 82% das situações – um bom resultado, mas substancialmente inferior à ajuda corporal. Mas o que aconteceu quando os donos faziam um pedido tanto com voz como com gesto, mas em que os sinais eram incompatíveis (por exemplo, quando o pedido verbal “junto” era acompanhado pelo gesto para “fica”, ou vice-versa)? Em 70% das situações (ou seja, mais de 2 cães em cada 3), os cães responderam ao sinal gestual, não ao verbal, quando ambas as indicações estavam em conflito. Isto tem importância no treino dos cães, pois, por vezes, estamos a pedir verbalmente algo aos nossos cães, mas nem nos apercebemos que com o corpo já estamos a pensar no que lhe vamos pedir a seguir, ou estamos distraídos com algo, e damos inadvertidamente uma indicação contrária ao nosso animal.
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Os cães são especialistas em ler a nossa linguagem corporal, e tendem a segui-la muito mais que as nossas palavras – o que faz sentido, sobretudo quando se considera que eles são uma espécie que depende muito mais da comunicação corporal entre os seus indivíduos do que da voz. Ao ensinar comportamentos mais complexos como o andar junto ao dono, recompense os vários passos individuais, sobretudo de início. Irá obter resultados mais rápidos e eficazes do que se lhe pedir muito demasiado cedo, ou se esperar que ele se engane para o punir.
Muita da teimosia imputada aos cães tem, normalmente, a ver com uma aprendizagem incompleta, ou um ensino inconsistente, porque os donos não se apercebem que, por muito que tentem, os cães não são pessoas de quatro patas, não têm a mesma capacidade de generalização nem lhes podemos explicar o porquê de lhes estarmos a pedir certas coisas. Os cães não nascem ensinados, e muito do que lhes pedimos em várias situações entra em conflito com o seu comportamento natural. Como espécie social, os cães normalmente tentam agradar ao dono. Mas muitas vezes, os donos têm expectativas demasiado elevadas, demasiado depressa, do que podem pedir aos seus companheiros. É preciso lembrarmo-nos que os cães têm alguns processos e estruturas cerebrais diferentes das nossas, e motivações distintas. Em vez de tentarmos que os cães cumpram com os nossos padrões e aprendizagem, é crucial termos noção das suas normas e limitações, para fazermos um ensino mais eficaz. Comece por ensinar uma coisa simples e vá gradualmente aumentando a dificuldade – mude de posição, treine noutros ambientes, varie o tom de voz, etc. Lembre-se que cada vez que introduz uma variação no que está a pedir ao seu animal, ele irá ter dificuldade em perceber que lhe está a pedir a mesma coisa, pelo que deve voltar sempre um passo atrás no nível de exigência, até o cão perceber que afinal é tudo a mesma coisa. Como diz o provérbio, “devagar se vai ao longe”. Se se dedicar realmente a ensinar algo ao seu cão, com calma e tranquilidade, sem queimar etapas, verá que o “ele é mesmo teimoso” rapidamente se tornará uma coisa do passado. n