Fazer o ADN?

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D Genética

“Fazer o ADN”? A Genética como uma ferramenta de trabalho

A genética é a solução para tudo! A acreditar no que se ouve nas ruas, a genética irá permitir resolver todos os nossos problemas… Quando ocorre qualquer dúvida relativamente a um indivíduo, uma raça, ou uma população pretendendo adquirir o estatuto de raça, uma ninhada, etc., uma das primeiras coisas que se ouve é “faz-se o ADN”! Mas o que significa isto? Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock 46 Cães&Companhia

O

ADN não se faz, existe em todo e qualquer indivíduo vivo, animal ou planta. A sigla ADN significa Ácido Desoxirribonucleico, que é a molécula que contém a informação genética de cada indivíduo. As moléculas de ADN organizam-se em cromossomas, que existem no núcleo de cada célula de um organismo. Nos animais, os cromossomas organizam-se em pares; em cada par, um cromossoma é herdado do pai, o outro é herdado da mãe. Nos cromossomas localizam-se os genes, que são a unidade básica contendo a informação genética, que se irá expressar, em última análise, nas características que definem o indivíduo. Mas afinal, o que querem as pessoas

dizer com “faz-se o ADN”? Bem, depende da situação...

Teste de paternidade

Para algumas pessoas, significa efectuar um teste de paternidade. Mas para fazer um teste de paternidade, não se usa todo o genoma (o conjunto da informação codificada em todos os cromossomas da célula); apenas se comparam várias pequenas secções de ADN, em número variável de acordo com a metodologia utilizada, entre os filhos e os potenciais progenitores. É pela concordância entre esses pedaços entre progenitores e descendentes que se confirma ou não a paternidade. Por exemplo, se um filho tiver um ou mais “fragmentos” que não existam em


Os testes e despistes de patologias de base genética são extremamente importantes num plano de criação sério e responsável.

raças, enquanto populações (e não a nível individual), são baseados em microssatélites, minissatélites ou SNPs. Resumidamente, estes nomes designam pequenas regiões repetitivas no ADN, mas o mais importante é que estes marcadores não codificam para nada conhecido, e como tal são pedaços de ADN que, tanto quanto se sabe, não estão sujeitos a pressões selectivas. Não sendo seleccionados, podem variar por mutações sem constranginenhum dos potenciais progenitores, então o pai e/ou a mãe não são os que se pensava ou declarou, uma vez que toda a informação genética do indivíduo provém dos seus progenitores.

Distinguir raças

“Fazer o ADN” é o que permite distinguir em laboratório uma raça de outras. Actualmente existem até algumas empresas que comercializam testes que supostamente permitirão dizer, a partir de uma amostra de ADN de um cão de ascendência desconhecida, quais as raças dos seus ancestrais. Porém, a credibilidade dos resultados é, na minha opinião, muito debatível. Por um lado, a possibilidade desta “determinação” depende da quantidade de raças que a empresa analisou previamente, para permitir extrapolações, daí normalmente apresentarem uma lista de raças que poderão analisar. Porém, a minha principal objecção vem da metodologia utilizada nestes testes. Tipicamente, a maioria dos estudos que têm vindo a ser efectuados sobre a variabilidade genética de

mentos. Logo, comparando o grau de diferenciação entre e dentro das populações, estes marcadores tornam-se ideais para, por exemplo, estudos de variabilidade genética intra e interracial, análises de consanguinidade ou detecção de áreas de origem de diferentes grupos populacionais. Porém, o que define uma raça e a distingue de outras são precisamente traços fenotípicos (morfológicos, produtivos, etc.) que são sujeitos a selecção (como, por exemplo, a cor ou comprimento do pêlo em cães, ou a qualidade ou quantidade de leite em vacas). Assim, para se procurar o que caracteriza cada raça a nível genético, e logo o que a distingue das restantes, terá de se procurar em segmentos do genoma que codifiquem algo que esteja a ser seleccionado. E isto não é que o é analisado na maioria dos casos. Por enquanto, ainda se estão a dar os primeiros passos nesta direcção, pelo que conseguir efectivamente caracterizar uma raça a nível genético, e efectivamente distingui-la das restantes, ainda irá demorar tempo. A complicar ainda mais esta análise, virtualmente todas as raças, num passado mais ou menos recente, foram sujeitas a cruzamentos com outras raças, com o objectivo de as recuperar de uma extinção mais que provável (pensemos por exemplo nos períodos pós-guerra) ou de as melhorar, complicando a determinação do que distingue das outras de um ponto de vista genético. Cães&Companhia 47


Testes para detecção

Para outras pessoas, “fazer o ADN” quer dizer efectuar testes para detectar patologias, anomalias ou características com uma base genética. Pretende-se com isto determinar quais os animais afectados ou portadores assintomáticos (ou seja, animais que não manifestam a doença, mas que possuem informação genética para tal, que poderão passar à descendência). Tipicamente, o objectivo será afastá-los da reprodução, evitando a produção de animais afectados, e eventualmente levando à erradicação da patologia. Por muito meritória que tal filosofia possa ser na teoria, na prática a situação não é assim tão simples. É que esta questão não é linear…

A anemia hemolítica no Basenji

Tomemos como exemplo o que aconteceu no Basenji. Estes cães eram muito propensos à anemia hemolítica. Nos anos 70, veio a descobrir-se que esta patologia era devida a apenas um gene e dois alelos (ou seja, o gene apenas apresentava duas variantes), sendo que um animal apenas ficava doente se herdasse duas cópias “afectadas”. Com o propósito de erradicar esta doença da população, e aproveitando a existência de um teste genético, optouse por retirar da reprodução (numa população já de si relativamente pequena) 48 Cães&Companhia

Alguns destes problemas são minorados nos animais sem raça definida, uma vez que a existência de consanguinidade é tipicamente muito reduzida, mas não deixam de ocorrer

quer os indivíduos afectados, quer os indivíduos portadores da doença (ou seja, que possuiam um alelo para a doença, mas que não a apresentavam). Com isto conseguiu-se, efectivamente, reduzir a anemia, mas teve um efeito secundário inesperado. Por fenómenos do acaso (que são tanto maiores quanto mais pequena for a população) nos indivíduos não afectados e não portadores havia animais com o Síndroma de Fanconi, uma doença na qual os rins não conseguem reabsorver electrólitos e nutrientes. Ora, uma vez que estes indivíduos isentos de anemia foram preferencialmente reproduzidos, acabou por se aumentar drasticamente a incidência desta última doença – para a qual não existe cura eficaz, apesar de se detectada atempadamente poder ser controlável, e apenas muito recentemente foi desenvolvido um teste genético para a sua detecção! Isto foi o que aconteceu numa situação simples do ponto de vista genético. Porém, são poucas as patologias de base genética que se devem a um único gene, o que tornaria a sua erradicação relativamente “fácil”.

Base genética das patologias

A maioria é devida a vários genes, que interactuam entre si para produzir, ou não, a doença. Ou seja, mesmo que um indivíduo seja portador de alguns genes que propiciam a doença, se não tiver a combinação certa pode não a apresentar, e a sua descendência pode nunca


ser afectada, se os genes que o outro progenitor tiver (mesmo que também propiciem a doença) não originarem a combinação certa. Além disso, a maioria das patologias tem uma penetrância e expressividade variável, o que quer dizer que mesmo que o indivíduo seja portador de todos os genes que levem à doença, poderá não a manifestar, ou manifestá-la num grau inferior ao expectável, enquanto outros indivíduos a poderão expressar em grau superior ao que seria de esperar. Há ainda a questão de a mesma sintomatologia (a mesma “doença”) em diferentes raças poder ser devida a diferentes genes. Este fenómeno não é de todo incomum, pelo que a identificação do(s) gene(s) numa raça não implica necessariamente que tal seja extrapolável para todas as raças. É o que acontece, por exemplo, com a Atrofia Progressiva da Retina – tem-se constatado que em diferentes raças a atrofia é causada por diferentes genes; em algumas raças mais numerosas, já foi inclusive detectado mais do que um gene.

Isto aconteceu, por exemplo, no Dálmata, raça que apresenta um padrão de coloração da pelagem único entre os cães. Porém, um efeito secundário da selecção para este padrão foi a co-selecção de animais apresentando hiperuricosia e hiperuricemia (níveis elevados de ácido úrico no sangue e na urina). Naturalmente que esta última selecção não foi intencional, mas como ambas as características estão associadas a nível dos cromossomas, ao seleccionar-se a cor da pelagem, inadvertidamente foi seleccionada também a patologia.

A importância da variabilidade genética

Com o atrás exposto, não pretendo minimizar a importância dos testes e despistes de patologias de base genética. Considero que são extremamente importantes num plano de criação sério e responsável. No entanto, devem ser um dos factores a considerar, e não o exclusivo.

Irradicar o indesejável

Adicionalmente, será que aquilo que consideramos uma patologia indesejável o é efectivamente? Um exemplo clássico desta situação, mencionada em praticamente todos os livros de genética, é o da anemia falciforme em pessoas. Esta patologia, em que os glóbulos vermelhos do sangue, em vez de terem uma forma normal têm uma forma em foice, pelo que não são tão eficazes a transportar o oxigénio, é causada por um gene. Quando o gene está em homozigotia dominante (quando o indivíduo herda do pai e da mãe duas cópias afectadas), a pessoa sofre os efeitos da anemia; em homozigotia recessiva (quando as duas cópias são normais), a pessoa não tem problemas; porém, em heterozigotia (quando uma das cópias herdadas é normal e a outra codifica para as células afectadas), o indivíduo apresenta alguma sintomatologia de anemia, mas em contrapartida está mais protegido contra a malária!

Efectivamente, ao remover-se cada vez mais animais da reprodução, está-se a diminuir a variabilidade genética existente em cada raça, e inevitavelmente acaba-se, a curto ou médio prazo, numa consanguinidade muito estreita. Algumas das consequências da consanguinidade mais conhecidas e visíveis são a diminuição do tamanho das ninhadas, uma relação entre sexos desequilibrada, menos vigor nos cachorros, maior mortalidade neo-natal, menor esperança de vida, etc. Outra importante consequência, visível ao longo da vida do animal, é a diminuição das combinações possíveis nos genes do complexo major de histocompatibilidade, que regulam a resposta imunitária dos organismos, a auto-imunidade e afectam o sucesso reprodutivo. Logo, ironicamente, na procura de animais cada vez mais saudáveis através de uma estrita selecção com base em testes e despistes genéticos, pode acabar-se por criar indivíduos mais debilitados e menos

capazes de responder a agressões patogénicas. E quiçá mais sujeitos a outras doenças. Alguns destes problemas são minorados nos animais sem raça definida, uma vez que a existência de consanguinidade é tipicamente muito reduzida. No entanto, os seus genes são os mesmos que os dos animais com raças, pelo que neles também existem patologias de base genética, e animais por elas afectados. Porém, frequentemente, a sua ocorrência é subestimada, devido à raridade com que se efectuam os despistes que as permitem confirmar e planificar um plano de controlo e gestão individual adequado.

Como a genética me pode ajudar?

Os testes genéticos e/ou os despistes que permitam inferir a base genética das patologias são uma das numerosas ferramentas à disposição do criador, Médico Veterinário ou proprietário de um animal. Os avanços que a genética tem tido nos últimos anos tem sido espantoso e diariamente novas perspectivas são abertas. No entanto, não são uma fórmula mágica que permita resolver todos os problemas. Para tirar o máximo partido, é necessário conhecer as potencialidades e limites de cada técnica e, naturalmente, saber o que se pretende fazer. Assim, da próxima que estiver para pensar em “fazer o ADN”, pense antes em “o que é que eu pretendo fazer concretamente, e como é que a genética me poderá auxiliar”...D

Seleccionar o desejável

Existe também a situação inversa – ao estarmos a seleccionar uma característica que consideramos desejável, podemos estar inadvertidamente a coseleccionar características que não desejamos. Isto acontece por se tratarem de traços localizados muito próximos nos cromossomas, pelo que, ao favorecer a reprodução de indivíduos com um dado caracter, o outro irá associado.

Virtualmente todas as raças, num passado mais ou menos recente, foram sujeitas a cruzamentos com outras raças.

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