As origens do cão

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D Etologia

As origens do cão A origem do cão tem sido abordada por diversos autores ao longo do tempo, sendo um assunto muito debatido e controverso, mesmo nos dias de hoje. Para tal, em muito tem contribuído a enorme diversidade morfológica que a espécie apresenta, superior à de qualquer outro canídeo ou outra espécie doméstica, bem como às suas grandes diferenças comportamentais intra-específicas. Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

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m 1758, Lineu (o naturalista sueco que criou o sistema de classificação de espécies que ainda hoje é utilizado), definiu o cão como sendo uma espécie diferente dos restantes canídeos, com base na sua cauda recurvada. No séc. XVIII, os naturalistas acreditavam que cada raça de cão tinha sido criada separadamente. Em meados do séc. XIX, Saint-Hilaire (naturalista francês) afirma que a maioria dos cães descendia do chacal e alguns outros do lobo. Darwin, autor da teoria da evolução, acreditava que uma parte das diferenças entre as raças de cães provinha da sua descendência de espécies distintas, bem como de cruzamentos entre elas. Já no início do séc. XX, era popular a ideia que o cão

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teria sido domesticado a partir de uma pequena espécie de lobo que se teria posteriormente extinguido; porém, uma vez que nunca foi encontrado qualquer vestígio de tal espécie, esta hipótese caiu em descrédito. Em 1930, pensava-se que o cão seria descendente do cruzamento de espécies de chacais com outros canídeos silvestres, quer ainda existentes, quer extintos. Duas décadas mais tarde, Konrad Lorenz (o “pai” da etologia – o estudo do comportamento animal) defende que algumas raças caninas seriam descendentes do lobo, enquanto outras seriam descendentes do chacal; porém, mais tarde, apercebendo-se das diferenças no repertório vocal entre o chacal e cães ou lobos, abdicou desta opinião. Estudos poste-

riores incidindo na morfologia dentária destas espécies também excluíram o chacal da ascendência do cão. Na década de 1980, considerava-se que não existiam dados conclusivos, quer a nível morfológico quer comportamental, que permitissem provar que todos os cães domésticos descendiam de um único ancestral, mas re-

Coyote in Cades Cove, Great Smoky Mountains National Park.

Chacal.

conhecia-se que o lobo aparentava ter contribuído significativamente para a sua origem. No entanto, já na década de 1950, Scott (co-autor de alguns dos mais importantes estudos sobre comportamento canino feitos até há data) referia que todos os indícios anatómicos apontavam para que o cão fosse

uma variedade doméstica do lobo, e que os dados existentes para apontar outras espécies (como o coiote e o chacal) como ancestral dos cães ou de algumas das suas raças seriam devidos principalmente a semelhanças superficiais no tamanho, e que exames detalhados a crânios e dentes não confirmavam estas ideias.

Afinal, quem é o ancestral do cão?

Desde a segunda metade do séc. XX têm vindo a ser desenvolvidos numerosos estudos sobre o comportamento, vocalização, morfologia, biologia molecular e genética de canídeos, indiciando que o lobo será o ancestral do cão doméstico. Em 1997, dois

estudos independentes em genética confirmaram que o lobo cinzento holártico é de facto o ancestral do cão, tendo sido posteriormente corroborados por outros. Existe ainda divergência de opinião relativamente ao facto de se apenas uma única subespécie de lobo terá sido domesticada, tendo ocorrido posteriormente infusão de outras populações lupinas no decurso da expansão do cão pelo mundo, ou se a domesticação terá ocorrido em diferentes partes do mundo independentemente. Sendo actualmente aceite que o lobo é o ancestral vivo mais próximo do cão, o local e período nos quais a domesticação terá ocorrido continuam um assunto relativamente controverso. Isto é devido em grande parte aos registos arqueológicos incompletos e à grande dificuldade em determinar se os ossos encontrados pertencem de facto a cães domésticos ou silvestres, devido à grande semelhança a este nível entre a maioria das espécies de canídeos. Actualmente, parece consensual que o cão foi a primeira espécie domesticada. Num estudo muito publicitado, publicado em 1997, os investigadores concluíram que o cão se terá tornado geneticamente distinto do lobo há cerca de 135000 anos, ou seja, aproximadamente na mesma altura em que aparecem no registo fóssil os primeiros vestígios do homem moderno. Porém, outros estudos indiciam que tal terá ocorrido num período muito mais recente, há cerca de 15.000 anos. Também os primeiros registos fósseis de canídeos morfologicamente semelhantes a cães, encontrados na Alemanha e na Suíça, datam aproximadamente desta altura. Conjugando os seus dados genéticos com as evidências arqueológicas, os autores do

estudo sugerem que o cão não seria morfologicamente distinto do lobo até há cerca de 15-10.000 anos, altura na qual a transição do homem de caçador nómada para agricultor mais sedentário terá imposto novos regimes selectivos nos cães, que teriam então resultado em marcada divergência morfológica relativamente aos lobos.

Onde ocorreu a domesticação?

Quanto ao local onde primeiro apareceram os primeiros cães, existem vários sinais que indiciam que terá sido na Ásia Oriental. Apesar de o Próximo Oriente ser o mais antigo centro de domesticação e difusão dos principais animais domésticos, desde há 10.000 anos – caprinos, ovinos, bovinos e suínos – e de a maioria dos vestígios fósseis de cães ter sido encontrada na Ásia Ocidental e Próximo Oriente (datados de há 12.000 anos), evidências morfológicas (uma características óssea que permite identificar os cães que também é encontrada nos lobos chineses) e, cada vez mais, genéticas, indicam a Ásia Oriental como sendo o provável local de origem do cão doméstico. É nesta zona que se tem localizado a maior diversidade genética nas populações caninas, o que normalmente está associado com as populações originais, uma vez que, à medida que as espécies se vão expandindo para outros locais, apenas um número limitado de animais o faz, levando assim consigo, necessariamente, apenas uma parte da diversidade genética existente na totalidade da população. Porém, estudos genéticos recentes abordando a diversidade genética de cães africanos encontrou valores de Cães&Companhia 43

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As origens do cão by Carla Cruz (Aradik) - Issuu