D Etologia
O que se esconde
Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock
Os cães ladram! Dificilmente esta constatação causará surpresa a alguém. Certo, há algumas raças que têm tendência a não ladrar, ou a apenas o fazer muito raramente (como o Basenji, o Chow Chow, o Shar Pei), enquanto outras tendem a ladrar excessivamente (como os Sabujos e os Terriers), mas de uma forma geral, dificilmente poderemos escapar aos omnipresentes latidos caninos.
O
s cães ladram quando detectam um intruso, quando estão sozinhos, quando estão a brincar, quando querem ir à rua, quando querem comer, quando outros cães ladram, quando passam carros, quando vêm algo que os interessa ou que os assusta… às vezes parece-nos que ladram por tudo e por nada. Ladram frequentemente, em diferentes contextos comportamentais, e, por vezes, horas a fio. Até cães congenitamente surdos ladram! Curiosamente, e apesar de o ladrar ser algo que normalmente associamos aos cães, relativamente pouca atenção foi dada pela comunidade científica ao estudo destas vocalizações nestes animais; praticamente apenas nos últimos anos tem sido efectuada investigação visando caracterizar e compreender estes sons. Uma das razões poderá ser o facto de durante muito tempo se ter pensado que o ladrar nos cães era um comportamento não funcional, devido à aparente falta de contexto em que ocorre e à sua natureza hipertrofiada (ocorrência excessiva), pensando-se que era destinado apenas a atrair a atenção de outros indivíduos. Outra das razões terá a ver com a própria dificuldade do seu estudo, devido à enorme variabilidade no tamanho, anatomia e comportamento dos cães, que influenciam as características do seu ladrar.
O que é o ladrar?
Os sons são produzidos nas cordas vocais localizadas na laringe (denominada a fonte glotal), através de oscilações rápidas induzidas pela circulação de ar a partir dos pulmões, no sentido expiratório. A maior ou menor abertura das cordas vocais permite a modulação dessa circulação de ar, produzindo um sinal acústico que varia ao longo do tempo. Uma laringe estreitada, mas não oscilando, também é capaz de gerar ruído. Todos os mamíferos possuem também um tracto vocal supra-laringeal, pelo qual o som gerado na fonte glotal deve passar. A coluna de ar contida neste tracto vocal, tal
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como ocorre em qualquer tubo de ar, tem modos de ressonância que selectivamente permitem que certas frequências da fonte glotal passem e radiem para fora através da boca e das narinas. Qualquer pessoa facilmente constata que os cães produzem uma grande variedade de sons – latidos, rosnidos, gemidos, uivos, guinchos, etc. Há quem considere que funcionalmente são apenas variantes de um único tipo de sinal de chamada, porém mais geralmente são consideradas vocalizações distintas. Mas o que é, afinal, o ladrar? Apesar de intuitivamente o conhecermos quando o ouvimos, como o descrever, o caracterizar, o individualizar de outras vocalizações? De uma forma geral, o ladrar é um som repetitivo, com um início abrupto e no qual cada latido individual tem
uma duração muito curta (menos de 0,5 segundos), pode exibir um certo nível de tonalidade (vibração periódica, regular) e de ruído (vibração irregular), tem um tom relativamente elevado, está sujeito a modulação da frequência, e é relativamente alto. Apesar de o conjunto destas características definir o ladrar, existe uma grande variação no que diz respeito a várias delas, como resultado de diferenças anatómicas intrínsecas dos indivíduos ou de diferentes condições comportamentais e motivacionais. Tem sido demonstrado que o tom do ladrar é afectado pelo comprimento do tracto vocal, que pode inclusive ser modificado pelo próprio animal (ao abrir mais ou menos a boca, ao repuxar mais ou menos os lábios quando é emitida uma vocalização, o seu comprimento irá variar). Já outros parâmetros acústicos, como a relação harmónicas-para-ruído (ou tonalidade) e o pulso (ou intervalo entre latidos) parecem ser menos dependentes do tamanho e raça. A variação da relação harmónicas-para-ruído que descreve a tonalidade no ladrar é quase tão ampla como a variação de todos os outros tios de vocalizações juntos. Em geral, os cães ladram em série, emitindo vários latidos com um intervalo inter-pulsos muito curto, que pode variar na duração tanto entre animais como no próprio indivíduo.
Nos parentes silvestres…
Vários tipos de mamíferos são capazes de emitir vocalizações que se enquadram na descrição do ladrar, incluindo várias espécies de primatas, de cervídeos, de esquilos e de musaranhos. Em outros mamíferos, como a suricata, o texugo e o cão-da-pradaria, foram relatadas vocalizações similares ao ladrar, mas as descrições não forneciam suficiente detalhe para o confirmar. Até numerosas aves emitem sons que correspondem à descrição do ladrar. Quase todos os canídeos ladram, incluindo o lobo, o coiote, os chacais, as raposas, o mabeco (ou cão selvagem africano), os cães-do-mato, os dingos e os New Guinea Singing Dogs. Os latidos parecem ter essencialmente uma função territorial (por exemplo, nos. chacais, raposa do árctico e lobo) e em alguns casos (raposas) foi constatado que eram específicos do indivíduo e que poderiam assim desempenhar um papel no reconhecimento individual. Os lobos ladram principalmente em confrontos agonísticos com indivíduos que não pertençam à sua alcateia, estando o ladrar associado principalmente com a protecção de território e recursos. Nos canídeos silvestres, apesar de o ladrar ser virtualmente igual ao dos cães domésticos nas suas características acústicas,