Problemas de separação nos cães

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D Etologia A situação é temida por numerosos donos de cães, e no entanto repetida diariamente. A pessoa prepara-se para sair de casa e o seu cão começa a dar sinais de estar a ficar stressado, não sai debaixo dos pés do dono e põe o ar mais infeliz do mundo. Assim que vira as costas e sai de casa, o animal começa a ladrar em contínuo e/ou a uivar de uma forma capaz partir do coração mais duro, saltando desesperadamente na porta da rua. Quando o dono regressa a casa, minutos ou horas depois, o cenário é dantesco – sofás esventrados, roupa ou tapetes roídos, a porta da rua toda esgravatada, urina e fezes espalhadas pela casa… E queixas dos vizinhos pelo barulho que o cão fez!

Ansiedade por separação

Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

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maioria dos casos não será assim tão severa, mas a “ansiedade por separação”, como é popularmente chamada, é um problema sério que afecta a qualidade de vida de numerosos cães e dos seus donos (e vizinhos!). Pode inclusive ser causa de abandono e/ou eutanásia de cães de outra forma saudáveis. Em clínicas especializadas em comportamento, a ansiedade por separação tem sido diagnosticada em 14 a 39% dos casos de animais apresentados a consulta.

O que é a ansiedade por separação?

A ansiedade por separação pode ser definida, de forma ampla, como o comportamento problemático 28 Cães&Companhia

motivado por uma ansiedade que ocorre exclusivamente na ausência (real ou virtual) do dono. Tradicionalmente, considera-se que a ansiedade por separação é derivada de uma grande ligação do cão a uma pessoa (normalmente o dono), a ponto de não conseguir lidar com a sua ausência; quanto maior a ligação entre o cão e a pessoa, maiores seriam os problemas. Quando fica sozinho em casa, o cão pode exibir uma grande diversidade de comportamentos, nomeadamente, destruição de diferentes objectos, tentativas de escavação no local por onde o dono saiu, vocalização excessiva (ladrar continuado, uivos, gemidos), urinar e/ou defecar em casa (mesmo que o cão saiba ser limpo dentro de casa em situações “normais”).

Outros sintomas que poderá exibir, não tão salientes mas também indicadores de uma alteração do seu bem-estar incluem isolamento, falta de apetite, hiperventilação, salivação, tremores, problemas gastrointestinais (vómitos/diarreia), actividade motora aumentada e repetitiva (como andar de um lado para o outro, andar às voltas) e comportamentos repetitivos (como excesso de comportamentos de limpeza ou auto-mutilação).


Uma vez que as pessoas, quando se preparam para sair de casa, tendem a cumprir uma série de rituais, mesmo que deles não se apercebam – por exemplo, desligar a televisão, vestir o casaco, pegar na carteira e nas chaves – os cães aprendem a associar estes estímulos com a saída iminente do dono, começando desde logo a ficar ansiosos, agitados, eventualmente deprimidos; alguns chegam mesmo a tentar evitar a saída do dono de forma agressiva.

Ansiedade e medo

Popularmente, equacionamos a ansiedade a um estado de medo ou receio. Porém, estes dois estados são diferentes. A ansiedade pode ser caracterizada como uma resposta a um perigo potencial (ou seja, pode ser independente de um estímulo específico), enquanto o medo será uma resposta a um perigo presente [figura 1]. O medo leva o organismo a reagir de forma reflexa em resposta a esse estímulo, afastando-se dele e evitando-o. A variante patológica do medo será a fobia, na qual o medo em relação à situação específica é tal que o cão deixa de conseguir fazer decisões conscientes sobre como lidar com a situação, podendo mesmo exibir comportamentos que o coloquem ainda mais em risco ou exibir acções reflexas de pânico; na fobia o medo não desaparece com a exposição gradual à situação que a originou, pode mesmo aumentar ao longo do tempo.

estímulos ou sinais remotos, ou constituindo “associações internas”

Estímulos ou sinais próximos e iminentes

Processos de atenção

Medo

promove comportamentos que removem o animal da fonte de perigo

Avaliação de risco Activação do sistema de defesa acçao imediata

Ansiedade

promove comportamentos que permitem que o animal se aproxime da fonte de perigo

Resultado reflexo autonómico e somático Figura 1 – Distinção entre medo e ansiedade (adaptado de Ohl, F., S.S. Arndt, & F.J. van der Staay (2008) Pathological anxiety in animals. The Veterinary Journal, 175:18-26).

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Eliminação em casa

Destruição

Vocalização

Má higiene em casa Submissão/excitação Marcação urinária Induzido por medo Ansiedade por separação

Jogo Cachorro a roer Reacção a estímulos excitantes Excesso de actividade Resposta por medo Ansiedade por separação

Reacção a estímulos externos Facilitação social Jogo/agressão Induzido por medo Ansiedade por separação

Tabela 1 – Diferentes comportamentos que podem suscitar sintomas classicamente também atribuídos à ansiedade por separação (adaptado de Appleby, D. & J. Pluijmakers (2003) Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, 33(2): 321-344

Em contrapartida, a ansiedade promove comportamentos que permitem que o animal se aproxime da fonte do perigo (apercebido), aumentando a atenção e a avaliação do risco, permitindo que no futuro, se afaste dele se necessário; ou seja, a ansiedade permite a adaptação às condições ambientais. Foi sugerido que a ansiedade surge quando existe uma discrepância entre a informação que o animal apercebe e a informação que tinha já armazenado previamente, ou seja, a ansiedade pode resultar de falsos alarmes na ausência de um perigo ou ameaça factual. Se as respostas devidas à ansiedade forem inadequadas, a capacidade de adaptação do indivíduo ficará seriamente comprometida, podendo mesmo atingir um estado patológico, no qual o comportamento devido à ansiedade é uma resposta a uma antecipação ou percepção dos perigos feita de forma exagerada, não correspondendo à situação real. Tanto no caso do medo como da ansiedade, os estados patológicos são normalmente adquiridos durante a vida do animal, possivelmente como resultado de distorções ou disfunções cognitivas. A identificação de um estado de ansiedade patológico é complicada, e devido à própria natureza da ansiedade, apenas é possível de diagnosticar se estiver presente uma motivação para a exploração, que é depois inadequadamente inibida por comportamento de evitação.

Figura 2 – Relação entre os factores que influenciam o comportamento por separação (adaptado de Lund, J.D. & M. Chr. Jøgensen (1999) Behaviour patterns and time course of activity in dogs with separation problems. Applied Animal Behaviour Science, 63: 219-236) 30 Cães&Companhia

Apesar de se considerar que a ansiedade e o medo são distintos, e podem ser causados por mecanismos distintos, estão provavelmente relacionados a nível neuroquímico.

Ansiedade por separação ou problema de separação?

Apesar de tradicionalmente se designarem por “ansiedade de separação” todos os problemas relacio-


nados com a separação, tem-se constado que estes podem resultar de causas não relacionadas com a ansiedade. Adicionalmente, os sintomas apresentados não são exclusivos desta patologia, são também característicos de diferentes outros comportamentos [tabela 1]. O que têm em comum é que, nesta situação, ocorrem apenas quando a figura com quem o cão criou laços está ausente. Assim, será mais correcto falar-se que existe um “problema por separação” em vez de “ansiedade por separação”. De uma forma geral, os problemas por separação poderão ser divididos em comportamento exploratório (1), jogo com objectos envolvendo elementos de comportamento predatório (2), comportamento destrutivo (3) e vocalização (4). Existem também comportamentos de eliminação, menos frequentes.

A destruição de objectos pode ou não ser um elemento do comportamento por separação, dependendo do contacto e restantes comportamentos apresentados.

Possivelmente, os primeiros comportamentos estarão relacionados com estratégias do cão para tentar recuperar o controlo e serão indicativos de um baixo nível de excitação, enquanto o defecar e urinar inapropriados serão indicadores de um nível de excitação maior, de ansiedade generalizada ou de resposta intensa a um estímulo ameaçador, e tenderão a ocorrer quando o cão sente que não tem controlo sobre o estímulo e não consegue encontrar uma estratégia de compensação adequada.

Que factores predispõem?

Quando está sozinho, um cão com problemas por separação tende a ladrar durante longos períodos de tempo

Tipicamente, os primeiros sinais aparecem entre um e os dois anos de idade, que corresponde ao período de maturidade social, e no qual os sistemas neuronais passam por grandes alterações de desenvolvimento. No entanto, podem aparecer em animais mais novos ou mais velhos. Tem-se constatado que este problema ocorre mais em machos do que em fêmeas. Os estudos sobre o estado reprodutivo (animais inteiros ou castrados) parecem ser algo contraditórios, com estudos a indiciar que há maior probabilidade de ocorrência nos animais reprodutivamente intactos e outros a indicar o oposto. A importância da raça varia consoante os estudos; apesar de parecer haver uma maior prevalência em cães sem raça definida, obtidos em refúgios animais ou abandonados, estudos na população generalizada (em oposição à que é apresentada em consultas de comportamento) não parecem encontrar diferenças. Cães obtidos através de familiares ou pessoas amigas tendem a apresentar uma menor tendência para este problema que os adquiridos em lojas de animais ou em canis. Outros factores que têm sido indicados como causas para a ansiedade por separação são períodos pro-

longados sem separação do dono, um período prolongado sem o dono, períodos de estadia em canil, mudança de casa com o dono ou período passado num refúgio para animais.

Um modelo para os problemas por separação

A figura 2 esquematiza as relações que têm sido sugeridas entre os diferentes factores que influenciam o comportamento de separação, com base no pensamento clássico. Devido à sua ligação ao dono, todos os cães que são deixados sozinhos em casa sofrem um certo nível de stress e de frustração. Num cão normal, esta situação não causa problemas; porém, em alguns cães, este nível poderá superar um certo limiar, levando a que exibam certos comportamentos originados pela separação. A frustração leva à perda de inibição de certos padrões comportamentais, que serão então apresentados como actividades deslocadas (actividades fora do seu contexto normal) – por exemplo, o jogar com objectos apresentam elementos de comportamento predatório, mas será precedido por comportamento exploratório e irá levar a comportamento destrutivo, como roê-los ou rasgá-los. Adicionalmente, a frustração irá excitar o cão, o que tem como resultado diminuir o limiar de resposta a estímulos externos e aumentar o nível de actividade, incluindo o comportamento de exploração e o nível de vocalizações – em particular o ladrar. Poderá ainda haver reacções de medo, quer devidas directamente à ausência do dono, quer devido a frustração prolongada. Os sintomas de medo incluem o choramingar, o uivar e, em casos severos, salivação, hiperventilação e eliminação (urinar/defecar). Há quem pense que o saltar repetidamente para a porta de saída e esgravatar nela podem ser respostas de escape relacionadas com o medo. Cães&Companhia 31


Nível de actividade

a) Padrão básico de actividade

Tempo após a partida do dono

Estímulo externo

Nível de actividade

a) Efeito da excitação por um estímulo externo

Tempo após a partida do dono Figura 3 – Modelo do comportamento por separação ao longo do tempo: (a) padrão básico, com flutuações cíclicas que vão diminuindo de magnitude ao longo do tempo, (b) efeito de uma estimulação externa que irá voltar a excitar o cão, levando a um novo aumento na magnitude dos ciclos seguido de nova diminuição ao longo do tempo (adaptado de Lund, J.D. & M. Chr. Jøgensen (1999) Behaviour patterns and time course of activity in dogs with separation problems. Applied Animal Behaviour Science, 63: 219-236)

O risco de problemas de separação estará relacionado com as características individuais do cão, influenciadas pela sua raça e sexo e pelas atitudes do dono em relação ao cão. As características individuais, influenciadas pela raça e sexo, afectariam o comportamento por separação de duas formas: indirectamente influenciando a ligação do cão ao dono, e directamente influenciando o nível de medo sofrido ou o nível de excitação, reflectido pelo nível de actividade exibido após a saída do dono. O nível de medo que o cão sofre quando está sozinho pode ser influenciado pela raça, uma vez que há raças e linhas que parecem ser mais “medrosas” que outras.

A actividade ao longo do tempo

Se o comportamento por separação fosse devido ao aborrecimento do cão, seria de esperar que o nível de actividade aumentasse à medida que decorre tempo após a partida do dono. Porém, quando o comportamento é analisado durante um período suficientemente longo, verifica-se que, na realidade, o nível das diferentes formas de comportamento vai diminuindo ao longo do tempo. Esta diminuição não é linear, mas decorre em ciclos. O comportamento por separação começa a ser exibido nos primeiros 30 minutos após a partida do dono, frequentemente logo após ao cão ser deixado sozinho. Aumenta rapidamente de magnitude atingindo 32 Cães&Companhia

um pico e diminuindo em seguida, apesar de a vocalização poder ser relativamente constante. Este comportamento repete-se em ciclos de cerca de 20-30 minutos, que é a mesma duração de outros ciclos de actividade, como a actividade nocturna, sugerindo a existência de um relógio biológico no seu estabelecimento. Os sintomas podem persistir até ao dono voltar, mas o cão poderá relaxar mais cedo. Parece haver uma tendência para os ciclos irem diminuindo de intensidade ao longo do tempo (figura 3), apesar de poderem recuperar a magnitude se ocorrer um estímulo externo.

A ligação ao dono

Na base da interpretação clássica dos problemas por separação está o considerar-se existir uma ligação excessiva do cão ao dono. Esta hiperligação pode ser primária, se o cão mantém o seu vínculo primário a um indivíduo para além da puberdade, e está correlacionada com outras características de imaturidade, ou secundária, se se desenvolver em qualquer idade, passando o cão a depender de uma ou mais pessoas do seu meio familiar. Este último tipo de ligação pode ser desenvolvido por um animal que sofra de um problema emocional, como fobia ou a perda da sua figura de ligação primária. As manifestações típicas da hiperligação correspondem àquilo que normalmente associamos ao comportamento com o dono de um cão que sofre de problemas de separação, como seja o cão centrar a sua

actividade nessa pessoa, seguindo-a por todo o lado, de divisão em divisão, mantendo-a sempre à sua vista, tentando manter um contacto muito estreito com ela, exibir manifestações de stress quando não puder estar junto do dono estando ele em casa e cumprimentá-lo efusivamente quando volta a vê-lo. Os vários comportamentos associados aos problemas por separação têm sido atribuídos a questões de hiperligação – a destruição orientada para portas por onde o dono saiu seriam frustração por barreira por não chegar ao dono, a destruição de objectos com o cheiro do dono seria uma desorganização do comportamento exploratório de procura do dono, a vocalização quando separado do dono (que é diferente da “normal”) seria sinónimo às vocalizações de um cachorro em stress e exibindo comportamento afiliativo. Porém, há indicações que a ligação excessiva não é uma condição necessária para os problemas de separação. Nem todos os cães que sofrem destes problemas exibem sintomas de hiperligação quando o seu dono está em casa. Os estudos relacionados a ligação dos cães ao dono com a ocorrência de ansiedade por separação são escassos mas um estudo comparando o comportamento de cães com e sem ansiedade por separação revelou que não havia diferenças entre ambos os tipos de cães, por exemplo no tempo que passavam junto ao dono ou junto à porta por onde o dono saiu de casa. Os resultados obtidos sugerem que a ansiedade por separação não está correlacio-


nada com a hiperligação do cão ao dono, mas que poderá antes ter a ver com um tipo de relação de ligação ao dono diferente, que não lhes permite mediar as suas respostas em situações stressantes.

Diagnóstico e tratamento

Não é objectivo deste artigo fornecer métodos de tratamento para os problemas de separação, pois estes devem ser considerados e aplicados caso a caso. O diagnóstico inicial, geral, é frequentemente (mas nem sempre) efectuado pelo dono do cão, que ao constatar o problema procura ajuda especializada. Uma listagem exaustiva dos sintomas irá fornecer informação sobre as possíveis causas do problema de separação e o nível de ansiedade exibido. Uma ampla gama de sintomas será indicadora de múltiplas causas e/ou de um elevado nível de excitação. Sintomas mais específicos (como por exemplo a destruição e/ ou vocalização) indiciam uma tentativa do animal em lidar com a situação e um menor nível de ansiedade; nesta situação é mais provável que seja haja apenas uma única causa subjacente ao comportamento.

O defecar e urinar, sozinhos ou em conjunção com outros sintomas, indicam um nível mais elevado e generalizado de excitação e o possível envolvimento de estímulos causadores de medo (como por exemplo fobia a barulhos). O tratamento será assim dependente da sintomatologia e dos factores subjacentes, levando tipicamente à alteração da situação em que o cão vive e ao tipo de relação com o seu dono. Deverá ser implementado de forma faseada, de forma a não levar a um inadvertido aumento de ansiedade devido a uma alteração radical das circunstâncias.

Não ignore!

Os problemas de separação afectam seriamente a qualidade de vida do animal e da pessoa, e podem ser fonte de conflitos com os vizinhos. Não devem ser “menosprezados”, através da formulação de “desculpas” e “justificações” para a perpetuação do comportamento, ou de tentativas de compensação que frequentemente limitam e condicionam o bem-estar de todos os envolvidos. Quando em dúvida, procure ajuda especializada!D

Os problemas comportamentais devido à ausência do dono são relativamente frequentes e não devem ser menosprezados, pois afectam seriamente a qualidade de vida dos cães

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