Princípios da consanguinidade

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D Genética

No mês passado abordámos diferentes métodos de selecção à disposição do criador para o seu trabalho de melhoramento dos animais domésticos. A consanguinidade é outro dos meios possíveis para alcançar esse objectivo. Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

Notas para criadores II

Princípios da Consanguinidade A

primeira questão é: O que é a consanguinidade? A consanguinidade é um sistema de acasalamento em que se produzem descendentes através de pais que estão mais intimamente aparentados do que a média da população da qual provêm. Ou seja, os progenitores usados no acasalamento possuem algum parentesco entre si (possuem um ou mais antepassados comuns), superior ao que parentesco médio entre os indivíduos da sua raça. Quando se cruzam progenitores aparentados entre si, alguns dos alelos 44 Cães&Companhia

transmitidos à descendência por cada parente serão cópias dos mesmos alelos encontrados nos ancestrais comuns que levaram a que os progenitores fossem aparentados. À medida que a relação genética entre os progenitores aumenta, aumenta a probabilidade que pares de alelos na descendência sejam cópias de um único alelo num ancestral há várias gerações; diz-se de tais alelos que são “idênticos por descendência”. Assim, a nível genético, a consequência da consanguinidade é o aumento da homozigotia, ou seja, o aumento da probabilidade de, em cada gene, os

dois alelos que o indivíduo possui serem iguais (e transmitidos pelo mesmo ancestral), independentemente do seu efeito fenotípico. É importante realçar que a consanguinidade, por si, não vai alterar a frequência de ocorrência de cada alelo. O que ocorre é que, ao aumentar-se a frequência de ocorrência de indivíduos homozigóticos, diminui-se a frequência dos heterozigóticos, mas a frequência global de ocorrência de cada alelo mantém-se. Apenas no caso de ocorrer selecção (por exemplo, reprodução preferencial ou mortalidade preferencial de indivíduos

com um determinado genótipo) é que as frequências dos alelos se alteram. Pelo facto de a frequência de ocorrência dos alelos não ser alterada, a consanguinidade não vai aumentar o número de alelos recessivos, como por vezes se pensa. Porém, ao aumentar a homozigotia, eles deixam de estar “ocultos” nos indivíduos heterozigóticos, pelo que os seus efeitos se tornam mais visíveis. Da mesma forma, a consanguinidade não vai aumentar os alelos dominantes. Quer os indivíduos homozigóticos como os heterozigóticos expressam o efeito desse alelo. Neste caso o que irá ocorrer


Através do aumento da homozigotia, a consanguinidade irá ajudar a fixar mais rapidamente os caracteres numa população, quer eles sejam benéficos ou não um efeito não favorável, a remoção da criação dos animais que apresentem características indesejáveis irá levar ao aumento da frequência dos alelos dominantes. No entanto, para tal, o criador que recorra a este método deve estar preparado para remover da reprodução uma grande quantidade de animais. Adicionalmente, para alguns alelos dominantes, independentemente do nível de consanguinidade praticado, não será possível obter animais homozigóticos. Por exemplo, nos Cães Sem Pêlo Chinês, Mexicano e Peruano, a ausência de pêlo é codificada por um gene; o alelo dominante determina a ausência de pêlo, o recessivo permite que o cão tenha pêlo. No entanto, a homozigotia do alelo dominante é letal in utero, pelo que esses exemplares não chegam a nascer; todos os indivíduos sem pêlo são heterozi-

góticos. Assim, mesmo que se fizesse consanguinidade ao longo de várias gerações, não seria possível obter uma linha pura de cães sem pêlo (que apenas produza cães sem pêlo). Uma vez que a consanguinidade leva a um aumento da homozigotia, e que os progenitores consanguíneos têm uma maior probabilidade de ter os mesmos alelos que progenitores não consanguíneos, isto leva a que os seus descendentes tenham maior probabilidade de ter, em cada gene, a mesma combinação alélica que os seus pais (enquanto que nos indivíduos não consanguíneos poderá haver diferentes combinações, em virtude de os seus progenitores terem maior probabilidade de ter alelos diferentes de cada gene). Logo, os indivíduos provenientes de cruzamentos consanguíneos terão maior probabilidade de se assemelharem aos seus pro-

genitores, nomeadamente no caso dos alelos dominantes. Assim, os reprodutores consanguíneos tendem a ser mais prepotentes que os não consanguíneos, em virtude de as linhas consanguíneas terem um maior número de genes em homozigotia.

Consequências fenotípicas

Frequentemente diz-se que a consanguinidade cria uniformidade fenotípica, mas não é bem assim. Ao aumentar-se a homozigotia, criam-se tipos distintos, mas na globalidade a população é menos uniforme que a população original. É quando se associa a consanguinidade e a selecção (eliminando os animais com o tipo que não se deseja) que se pode obter um rápido progresso relativamente à uniformidade fenotípica dos animais, comparativamente a cruzamentos não consanguíneos, devido à maior uniformidade genética. Isto é verdade no caso de genes com efeitos monofactoriais, como seja,

é a probabilidade de os indivíduos portadores de alelos dominantes serem homozigóticos em vez de heterozigóticos.

Consequências genéticas

Através do aumento da homozigotia, a consanguinidade irá ajudar a fixar mais rapidamente os caracteres numa população, quer eles sejam benéficos ou não. A consanguinidade não vai “criar” problemas genéticos, como por vezes se pensa. O que vai ocorrer é simplesmente um aumento da homozigotia, que irá permitir ressaltar os pontos fortes e os problemas já existentes na população original sob a forma heterozigótica. Como os alelos dominantes têm, na maioria dos casos, um efeito favorável sob o ponto de vista fisiológico, enquanto os recessivos têm tipicamente Cães&Companhia 45


Um estudo incidindo sobre a relação entre a longevidade e o nível de consanguinidade no Caniche Standard revelou uma diminuição na duração de vida de aproximadamente 10 meses por cada aumento de 10% na consanguinidade. Um outro abordando o Leão da Rodésia (Rhodesian Ridgeback) evidenciou um aumento da taxa de mortalidade a meio da vida com o aumento da consanguinidade.

A consanguinidade é dos métodos tipicamente mais utilizados para a fixação das características que se pretende promover num animal.

Vantagens

por exemplo, a presença ou não de cornos em algumas espécies pecuárias ou cores da pelagem. No entanto, não é assim tão simples no caso de características quantitativas (ao invés de características discretas, que ou se expressam ou não), que são afectadas por vários genes, cada um contribuindo um pouco para a manifestação desse traço. Isto porque esses genes podem ter diferentes modos de expressão, uns contribuírem de forma dominante e outros de forma recessiva, ocorrerem efeitos epistáticos, etc., pelo que se torna mais lento encontrar a combinação homozigótica certa através da consanguinidade (quando tal é possível).

Problemas

A consanguinidade é dos métodos tipicamente mais utilizados para a fixação das características que se pretende promover num animal, como sejam o tipo, capacidade de produção, etc., por ser um dos métodos que permite obter os resultados desejados mais rapidamente. No entanto, tem também desvantagens, que devem ser conhecidas, associadas à perda de variabilidade genética. A variabilidade genética é importante porque é a “habilidade genética para variar” que permite a resposta a variações ambientais ou a alterações nos objectivos de selecção, sendo ainda a base para o progresso genético. Se não houver variabilidade genética, não há potencial para melhoramento, para lá das permitidas pelo melhoramento das condições ambientais. Adicionalmente, um factor frequentemente pouco considerado é que a perda de variabilidade genética a nível do sistema imunitário vai comprometer seriamente a capacidade do indivíduo em lidar com novas agressões ao seu organismo. 46 Cães&Companhia

A utilização da consanguinidade deve ser muito bem ponderada, os prós e contras devidamente analisados e os riscos assumidos Estudos efectuados em espécies pecuárias têm demonstrado que o aumento da homozigotia por consanguinidade está associado a diversos problemas a nível da produtividade e aptidão física (o que poderá mesmo parecer paradoxal, uma vez que melhorar esses traços é normalmente o objectivo inicial), saúde, longevidade, maior incidência de defeitos e menor vigor nos animais consanguíneos relativamente aos não consanguíneos. Os indivíduos consanguíneos têm frequentemente menor capacidade de adaptação ao ambiente, como resultado de uma menor variabilidade genética. Este fenómeno é denominado por depressão consanguínea, estando descrito e relatado em diversas espécies silvestres e domésticas. Por exemplo, têm sido descritos os efeitos negativos do aumento da consanguinidade em diversas espécies pecuárias (bovinos, suínos e ovinos), levando à diminuição da produção leiteira, da fertilidade, do peso, número de crias, etc. Os efeitos da consanguinidade dependem da espécie e população considerada. Tem sido demonstrado que até cerca de 20% de consanguinidade apenas ocorrem efeitos mínimos em bovinos leiteiros, enquanto que em suínos ocorrem dificuldades bem abaixo deste nível. O cavalo Sorraia é notável devido ao facto de apesar de ter um elevado nível de consanguinidade média (acima dos 30%), sendo uma população fechada e baseada em poucos animais fundadores, não aparentar ter problemas significativos. Algumas linhas de ratos criadas

em laboratório apresentam também elevados níveis de consanguinidade sem problemas aparentes; porém para se obterem essas linhas viáveis, numerosas outras linhas foram eliminadas no processo.

Estudos em cães

Em cães, um estudo incidindo sobre uma colónia de Beagles revelou um grande aumento na taxa de mortalidade neonatal quando o nível de consanguinidade sobe acima dos 25%. No desenvolvimento da linha Boveagh de Border Collies de trabalho, notou-se que cruzamentos que resultariam num nível de consanguinidade superior a 25% eram inférteis ou produziam cachorros fracos, enquanto que animais com níveis de consanguinidade até 20% eram altamente satisfatórios, não se notando efeitos deletérios.

Como se percebe, a consanguinidade deve ser utilizada com muita precaução num plano de criação. Uma das suas utilidades é permitir fazer selecção contra características transmitidas de forma recessiva (e para as quais não há testes genéticos disponíveis). Recorrendo à consanguinidade, poderão ser detectados os indivíduos afectados e portadores, eliminando-os da reprodução. Porém, uma das principais utilizações é a criação de famílias dentro de uma raça, sobretudo quando se recorre simultaneamente à selecção. A selecção efectuada nas famílias em características de baixa heritabilidade será mais eficaz que a baseada num só indivíduo, até porque tende a reduzir algumas das variações devidas ao ambiente, que poderiam ser confundidas com as de natureza genética. A consanguinidade é utilizada principalmente na produção de reprodutores, pois a sua maior homozigotia confere-lhes uma maior prepotência. No entanto, há que não esquecer que com isto advém um “custo”, a nível da fertilidade, viabilidade e vitalidade dos indivíduos consanguíneos. Porém, quando se utili-


zam esses reprodutores em cruzamentos com outras linhas não relacionadas, pode beneficiar-se da heterose (também chamada de vigor híbrido). Apesar de este termo ser normalmente aplicado para o cruzamento entre espécies diferentes, ou mesmo raças diferentes, também pode ser observado entre linhas diferentes, ainda que em menor grau. Designa o aumento de vigor da descendência relativamente ao dos pais. É devida à heterozigotia em genes de efeitos não aditivos – ou seja, em genes com acção de dominância, sobredominância e epistasia. Não se observa em todos os caracteres, e não afecta do mesmo modo os diferentes caracteres. Os que parecem ser mais afectados são os que se manifestam logo após o nascimento, como a sobrevivência e o ritmo de crescimento até ao desmame. Influi pouco nos caracteres com alta heritabilidade, tendo maior efeito nos que a têm baixa. A heterose depende do grau de diversidade genética dos progenitores que são cruzados – é maior no cruzamento de raças do que no cruzamento de linhas dentro da mesma raça; é maior entre raças de constituição genética diferente do que entre raças geneticamente similares.

Por vezes aparece um indivíduo de características excepcionais que é utilizado intensamente na reprodução.

Reprodutores populares

Ocasionalmente, numa raça aparece algum indivíduo que por ter características excepcionais, é utilizado intensamente na reprodução, em particular se for capaz de transmitir uma boa parte dos seus traços. Trata-se tipicamente de um macho, pois os machos são capazes de produzir mais ninhadas que as fêmeas. Esse exemplar é acasalado com animais das mais diversas origens, todos procurando capitalizar o seu potencial. Qual a consequência disso?

A curto prazo, o objectivo é a uniformização do aspecto da raça, beneficiando do seu potencial reprodutivo. Mas a médio/longo prazo (ou mesmo a curto prazo em raças com efectivo reduzido) as consequências são potencialmente imprevisíveis. Com a utilização massiva de um reprodutor, ir-se-á aumentar o nível de consanguinidade da população, pelo que uma boa parte da população tornar-se-á aparentada, com vários animais partilhando esse ancestral. O que significa que, mais cedo ou mais tarde, deixará de haver alternativas quando começarem a aparecer os sintomas de depressão consanguínea, quando começarem a aparecer problemas genéticos, morf o l ó g i c o s, comportamentais e/ou de saúde que poderão ser rastreados até esse reprodutor popular. Se efectivamente a utilização em massa de um ou poucos

reprodutores for assim tão fundamental (algo que, por si só é digno de ponderação cuidada), será preferível criar linhas separadas, cada uma consanguínea num deles mas não partilhando ancestrais entre as linhas, de forma a haver alternativas de cruzamentos quando começarem a aparecer problemas.

Cálculo da consanguinidade

O nível de consanguinidade é tipicamente indicado através do coeficiente de consanguinidade, que indica a proporção de genes para os quais é provável que o animal consanguíneo seja homozigótico para os genes idênticos por descendência, ou seja, indica a probabilidade de um indivíduo ser homozigótico para alelos originados pela replicação de um mesmo alelo numa geração anterior. O que significa que o coeficiente de consanguinidade é uma medida do decréscimo na proporção de genes heterozigóticos relativamente à que se tinha quando se começou a praticar a consanguinidade. Existem vários métodos para avaliar a variabilidade genética numa população, baseados em informação genealógica, análises demográficas, polimorfismos

genéticos, genética quantitativa, etc. O cálculo do coeficiente de consanguinidade de um indivíduo com base em informação genealógica (pedigrees) é um método preciso, relativamente expedito graças à informática e de fácil utilização pelos criadores. No entanto, é altamente sensível à qualidade e quantidade da informação genealógica disponível e é afectado pelo facto de as populações de animais domésticos não estarem fechadas por períodos de tempo consideráveis. Estes factores tornam as estimativas de consanguinidade difíceis de interpretar, uma vez que pedigrees incompletos levam a uma subestimação da consanguinidade e a introdução de animais numa população imediatamente reduz a consanguinidade. No entanto, esta análise tem a vantagem de não requerer pressupostos relativamente ao método de acasalamento utilizado, ao contrário de outros baseados em dados genéticos. É muito difícil, ou mesmo impossível, determinar o valor exacto do nível de consanguinidade de uma população. Normalmente, esse valor é indicado comparativamente ao que existe numa população inicial. Essa população base é normalmente um conjunto de indivíduos que se assume não estarem relacionados entre si (ou seja, que se assume não apresentarem qualquer consanguinidade); quando se faz análise de pedigrees, serão os indivíduos para os quais não se dispõe de mais informação genealógica. Assim, o valor do coeficiente de consanguinidade não é um valor absoluto, mas sim relativo.

Utilização a ponderar seriamente...

A utilização da consanguinidade é um método comum para a produção de reprodutores em espécies pecuárias. No entanto, o sistema de criação destes animais é significativamente diferente do dos animais de companhia. Em pecuária, uma grande parte dos animais criados são refugados. Nos animais de companhia, todos os animais criados são mantidos, implicando o seu cuidado e manutenção adequadas durante 10 ou mais anos. Logo, a opção de “descartar” os animais que não cumpram os objectivos pretendidos ou que apresentem problemas de índole diversa não é normalmente considerada, excepto no caso de problemas sérios que afectem a própria sobrevivência e qualidade de vida do indivíduo. Assim, a utilização da consanguinidade deve ser muito bem ponderada, os prós e contras devidamente analisados e os riscos assumidos. D Cães&Companhia 47


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