Reprodução em lobos e cães assilvestrados

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D Genética

Mitos & realidades na criação (III)

Consaguinidade

Reprodução no lobo e em cães assilvestrados A consanguinidade, o recurso ou não à sua utilização e as suas vantagens e desvantagens, é possivelmente um dos temas mais debatidos e discutidos na criação de animais, e está rodeado por uma certa “mitologia” tanto por parte de quem advoga a sua utilização como por quem a rejeita. Espero que este artigo e o próximo sirvam para analisar a veracidade de algumas dessas ideias.

H

á algum tempo atrás, estava eu a assistir a um seminário sobre canicultura quando um dos oradores refere que se devem fazer cruzamentos consanguíneos porque é assim que os lobos se reproduzem. Como bióloga, e como alguém que sempre trabalhou com canídeos, confesso que o comentário me “arrepiou os cabelos”. Apercebi-me que há ainda muito a fazer para desmistificar certas ideias adquiridas, e que aquilo que antigamente era tido como um dado adquirido por vezes nada tem a ver com o que se sabe atualmente, depois de terem sido efetuados numerosos estudos. Assim, vejamos se esse comentário se justifica à luz dos conhecimentos atuais.

A consanguinidade

Mas comecemos pelo princípio... Os princípios básicos da consanguinidade, as suas vantagens e desvantagens foram já abordados de forma mais completa há alguns meses (consulte a revista “Cães & Companhia” nº 168, Maio de 2011), pelo que não irão aqui ser abordados extensivamente. De forma resumida, a consanguinidade é um sistema de acasalamento no qual os progenitores estão mais intimamente aparentados do que a média da população da qual provêm. Ou seja, os indivíduos usados num dado acasalamento possuem algum parentesco entre si (têm um ou mais antepassados comuns), superior ao grau de parentesco médio entre os indivíduos da sua raça. Assim, quando se cruzam progenitores aparentados entre si, alguns dos alelos transmitidos à descendência por cada parente serão cópias dos mesmos alelos encontrados nos ancestrais comuns entre ambos (os que levam a que os progenitores sejam aparentados). Logo, a nível genético, a consequência da consanguinidade é o aumento da homozigotia, ou 44 Cães&Companhia

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Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal Fotos: Shutterstock

seja, o aumento da probabilidade de, em cada gene, os dois alelos que o indivíduo possui serem iguais (e transmitidos pelo mesmo ancestral), independentemente do seu efeito fenotípico. Através do aumento da homozigotia, a consanguinidade irá ajudar a fixar mais rapidamente os caracteres numa população, quer eles sejam benéficos ou não. A consanguinidade em si não vai “criar” problemas genéticos, como por vezes se pensa. O que vai ocorrer é simplesmente um aumento da homozigotia, que irá permitir ressaltar tanto os pontos fortes como os problemas já existentes na população original sob a forma heterozigótica. Naturalmente, a consanguinidade é um sistema de acasalamento a que o criador pode recorrer. Será que é o tipicamente usado na natureza? Vejamos o que ocorre no lobo e nos cães assilvestrados (os que vivem sem contacto humano).

A estrutura dos lobos

A unidade básica da vida social dos lobos é a alcateia. A imaginação popular transformou a alcateia num grupo composto por numerosos indivíduos adultos, no qual a reprodução é assegurada pelo macho e fêmea alfa, que ativa e agressivamente impedem os membros subordinados de se reproduzirem. Segundo o mesmo pensamento, quando os lobachos alcançam a maturidade, os machos abandonariam a alcateia (ou seriam escorraçados pelo macho dominante), enquanto as fêmeas permaneceriam, eventualmente acasalando com o macho dominante, ou seja, com o seu pai. Isto era o que se pensava antigamente, numa altura em que o conhecimento sobre o comportamento dos lobos em estado silvestre era escasso e quase tudo o que se sabia provinha de estudos de animais em cativeiro. Ora, em cativeiro, os animais não têm possibilidade de expressar todo o comportamento natural de sua espécie, nem têm hipótese de procurar parceiros noutros locais. É um pouco como usar estudos em

populações humanas isoladas (por exemplo, em prisões ou em certos grupos que por manterem certas crenças vivem à margem do resto da comunidade) e extrapolá-los para a totalidade da espécie. Felizmente, desde há várias décadas que vêm a ser desenvolvidos estudos em populações de lobos em liberdade, que permitiram esclarecer muitas ideias que se vieram a revelar incorretas. Assim, a unidade básica da alcateia é o macho e a fêmea reprodutores. Durante o período de reprodução, acrescem os lobachos nascidos e criados. Quando alcançam a maturidade, os jovens – tanto machos, como fêmeas – dispersam, à procura de um território para si próprios e de um(a) parceiro(a) com o(a) qual possam iniciar a sua própria alcateia. Um lobo com Cães&Companhia 45

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Sabe-se também que as má-formações das VTLS são mais comuns em populações de cães domésticos particularmente consanguíneas. Cães com este problema tendem a sofrer da síndrome de cauda equina, com danos no fim da coluna vertebral e nervos associados; as consequências são variáveis e incluem paralisia parcial, problemas na colocação dos membros ao andar, problemas no movimento voluntário da cauda, perda de tónus muscular levando a fraqueza nos membros posteriores e flacidez da cauda, dores no fundo lombares e incontinência.

As má-formações detetadas nos lobos de Isle Royale provavelmente também enfraquecem a articulação sacroilíaca, aceleram a degeneração dos discos intervertebrais e aceleram a sua protusão (que nos cães está associada a dores no fundo das costas e claudicação), além de poderem ser associadas a irregularidades no movimento e a desenvolvimento deficiente das articulações coxofemorais. Ou seja, o estudo evidencia uma associação entre o aumento da consanguinidade e a ocorrência de problemas esqueléticos que comprometem a sobrevivência dos indivíduos afectados.

Evitar a consanguinidade

A maioria das espécies tem mecanismos intrínsecos que limitam grandemente a ocorrência de acasalamentos consanguíneos. Estes processos não são ainda bem conhecidos, mas aparentemente aspetos genéticos e bioquímicos vão influenciar o comportamento dos animais, levando-os a rejeitar parceiros sexuais estreitamente aparentados, sobretudo quando há a possibilidade de optar por indivíduos geneticamente mais afastados. Afinal, considerando que os efeitos negativos da consanguinidade (diminuição da variabilidade genética e do sistema imunitário, logo da capacidade de adaptação a agressões do ambiente, ocorrência de deformidades físicas, indivíduos mais fracos e menos resistentes, diminuição da fertilidade e viabilidade dos indivíduos, etc.) têm efeitos mais severos em animais que têm de ser capazes de sobreviver por si próprios, não dependendo do homem, há todo o interesse evolutivo em limitar ao máximo a ocorrência de cruzamentos consanguíneos.

Influência da domesticação

Em vez de se estudar o comportamento reprodutivo de lobos atuais para saber como os cães originalmente se reproduziriam, fará talvez mais sentido ver como os cães assilvestrados e ferais o fazem alguns meses de idade tem já o tamanho aproximado de um adulto, pelo que a ideia que uma alcateia é constituída por numerosos indivíduos poderá frequentemente ser devida a observações dos adultos com as suas crias crescidas. Dependendo das condições ambientais, alguns dos jovens poderão demorar a abandonar o seu grupo familiar, permanecendo com os seus progenitores durante mais tempo. Nesta situação, tipicamente irão adiar o início da sua própria atividade reprodutora, e irão ao invés ajudar a criar os seus irmãos de ninhadas posteriores.

Quando saem da alcateia

Quanto aos que partiram em busca de novos territórios e parceiros, das duas uma… Assumindo que sobrevivem (e a taxa de mortalidade durante a dispersão é muito elevada), poderão ter sucesso em encontrar e estabelecer um território próprio e unir-se a elemento do sexo oposto com quem estabeleçam uma família (um processo que pode demorar anos) ou poderão tentar juntar-se a uma alcateia já existente. Esta segunda estratégia é arriscada, pois frequentemente as alcateias irão escorraçar ou mesmo matar 46 Cães&Companhia

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um estranho que se tente aproximar. Mas alguns lobos, tipicamente machos, conseguem ir-se mantendo pela periferia do território da nova alcateia, procurando oportunidades, ou mesmo eventualmente acabando por se integrar na sua estrutura social. Nesta situação, poderão conseguir acasalar com algum dos membros subordinados da alcateia, os tais jovens que não deixaram ainda o seu grupo mas que normalmente iriam deferir a sua própria oportunidade de reprodução em favor dos seus progenitores. Eventualmente, algum destes indivíduos poderá chegar a lobo alfa, se dispersar com a parceira para constituir a sua própria família ou se for completamente integrado na alcateia, sobretudo quando o principal reprodutor morrer. Antes pensava-se que quando havia mais que uma fêmea a reproduzir-se numa alcateia, seria o macho dominante (que, pelo menos para algumas delas, seria o seu pai) quem teria acasalado com elas. No entanto, estudos genéticos têm evidenciado que normalmente não é esse o caso, mas sim que o progenitor é normalmente um macho não aparentado, um dos tais que são “adoptados” de fora. O acasalamento entre indivíduos aparentados parece ser um fenómeno raro em liberdade, apesar de ser comum em cativeiro.

Os lobos de Isle Royale

É curioso notar que, apesar de os canídeos parecerem ter uma certa tolerância quanto aos efeitos negativos da consanguinidade, estudos recentes em populações de lobos têm evidenciado que estão efetivamente sujeitos a efeitos prejudiciais, e não apenas no que se refere à fertilidade e fecundidade. Isle Royale, no Michigan (Estados Unidos da América) constitui um caso-estudo particular no que a lobos diz respeito, pois desde que a espécie colonizou a ilha, aproximadamente em 1950, quando alguns exemplares acederam à ilha a partir do Canadá através de uma ponte de gelo, a sua população tem vindo a ser estudada em contínuo. Estes animais estão isolados dos do continente, pelo que têm inevitavelmente que recorrer a acasalamentos consanguíneos. Um estudo publicado em 2009 evidenciou que nesta população uma elevada proporção de indivíduos apresentam anomalias ósseas, e que a incidência das malformações tem vindo a aumentar com o tempo. Uma das anomalias bastante estudadas foi a ocorrência de vértebras transicionais lombosacradas (VTLS). Uma VTLS é uma vértebra única que apresenta propriedades anatómicas tanto das vértebras lombares como das vértebras sagradas, e são interessantes porque estão bem estudadas tanto em cães como em lobos. Foi detetado que 33% dos lobos de Isle Royale apresentam esta anomalia, contra menos de 1% em populações que não sofrem de consanguinidade; mesmo na população atual de lobos escandinavos, altamente consanguínea e que sofre de problemas de depressão consanguínea, apenas 10% dos lobos estão afetados.

Sabe-se que o próprio processo de domesticação altera determinados comportamentos nas espécies envolvidos, incluindo vários a nível reprodutor. Um deles é uma quebra na inibição de cruzamentos consanguíneos. É mais comum que animais domésticos voluntariamente efetuem cruzamentos consanguíneos que animais de espécies silvestres. Apesar de o ancestral do cão ser o lobo, há que não esquecer que se passaram mais de 15.000 anos (possi-

Nos lobos de Isle Royale o estudo evidencia uma associação entre o aumento da consanguinidade e a ocorrência de problemas esqueléticos que comprometem a sobrevivência dos indivíduos afectados

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A maioria das espécies tem mecanismos intrínsecos que limitam grandemente a ocorrência de acasalamentos consanguíneos velmente muito mais) desde o início da domesticação. Se o comportamento e as sociedades humanas evoluíram tremendamente neste período de tempo, certamente que o comportamento de diferentes animais terá também evoluído, sobretudo quando ocorreu uma divergência originando uma espécie que permaneceu silvestre e uma que foi domesticada. Assim, em vez de se estudar o comportamento reprodutivo de lobos atuais para saber como os cães originalmente se reproduziriam, fará talvez mais sentido ver como os cães assilvestrados e ferais (ou seja, os que vivem à margem da sociedade humana, não dependendo diretamente dela) o fazem.

Nos cães assilvestrados

Se a organização social dos lobos não é tão simples como se pensava antigamente, a dos cães que vivem em liberdade, sem controlo humano, é ainda mais complicada. Por um lado, este tipo de cães apenas começou a ser objeto de interesse pela comunidade científica há relativamente pouco tempo, comparativamente aos lobos, pelo que há menos estudos disponíveis, logo menos informação. Por outro lado, a estrutura social destes cães é muito diversa, consoante a disponibilidade de recursos. Quando há muito alimento disponível, os cães poderão formar grupos maiores, quando há pouco poderão formar grupos reduzidos ou ser solitários.

não são períodos tão bem definidos como no caso dos lobos. Existe uma elevada taxa de mortalidade das crias produzidas – um estudo desenvolvido em Itália reporta que das 40 crias observadas, apenas duas sobreviveram até à idade adulta – e mesmo dos adultos. O estabelecimento de pares reprodutores duradouros pode ou não ocorrer, havendo estudos que sugerem a sua ocorrência e outros que sugerem que na época reprodutiva outros cães que não o parceiro habitual podem acasalar com as fêmeas. A elevada mortalidade (ou desaparecimento) dos indivíduos das matilhas leva a uma flutuação do seu efetivo ao longo do ano e ao longo de anos diferentes e a uma elevada taxa de recrutamento de novos indivíduos. Ao longo do tempo a constituição das matilhas varia bastante, e ao fim de alguns anos podem permanecer no grupo poucos dos animais que o formaram. Ou seja, mesmo na ausência de estudos genéticos, considerando a elevada mortalidade e elevada taxa de recrutamento de cães de outras fontes para os grupos sociais, não há razão para considerar que nos cães que vivem sem controlo humano (o mais parecido que há atualmente com o real ancestral) haja a ocorrência de consanguinidade nos grupos reprodutores.

Em suma... No entanto, os grupos formados são transientes, não parecem ter a estabilidade temporal dos lobos. Também parece não existir um par reprodutor definido, diferentes animais no grupo podem reproduzir-se, na mesma ou em diferentes épocas reprodutoras, que

A escolha da consanguinidade como método a utilizar num plano de criação deve ser bem ponderada. Tem vantagens e desvantagens significativas, que deverão ser analisadas e assumidas. No entanto, à luz do conhecimento atual, o argumento de que deve ser utilizada porque é o que sucede na natureza é incorreto, pelo que não deve ser a razão para a sua utilização.D

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