A consanguinidade é necessária para ter sucesso na criação?

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D Genética Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal Fotos: Shutterstock

Mitos & realidades na criação (IV)

Consanguinidade II A consanguinidade é necessária

da população total quer dos animais nascidos nesse ano. É importante realçar que, em qualquer dos casos, para a análise dos níveis de consanguinidade apenas foram considerados os exemplares que tinham pelo menos uma geração de ascendentes registados, pois à data este era um requisito para que o animal se pudesse sagrar campeão. Isto significa que não foram considerados os exemplares registados sem ascendência conhecida; se estes tivessem sido considerados, o nível de consanguinidade média da população seria mais baixo, mas irrelevante no âmbito da análise devido a estar-se a considerar apenas os exemplares que cumpriam os parâmetros mínimos para se poderem habilitar a ser campeões. A figura 1 mostra o resultado que foi obtido, ordenando os campeões do mais antigo em cima para o mais recente em baixo. Para cada indivíduo, a barra de cima (laranja) e indica o seu valor de consanguinidade e a barra de baixo (verde) indica o valor da consanguinidade para os indivíduos com ascendência conhecida nascidos no mesmo ano – para aferir se o COI desse exemplar tenderia a ser superior ou inferior aos restantes exemplares nascidos no mesmo período. A linha vertical indica o coeficiente de consanguinidade médio da população total com ascendência conhecida, desde o reconhecimento da raça até ao final de 2005.

Dos 33 campeões, apenas dois exemplares (6%) têm um COI superior a 20%. Como vimos anteriormente (pode consultar a revista “Cães & Companhia” nº 168, de maio 2011), níveis de consanguinidade superiores a este nível tendem a estar associados com problemas reprodutivos. Apenas 48% dos exemplares apresentam um COI superior à média dos animais nascidos nesse ano. O seu valor médio é de apenas 5.79%, um valor relativamente reduzido.

No Cão da Serra da Estrela

Poder-se-ia pensar que o valor de consanguinidade relativamente baixo obtido nos campeões da raça Cão de Fila de S. Miguel se poderia dever ao seu reconhecimento relativamente tardio (1984), pelo que haverá ainda proporcionalmente poucas gerações registadas e como tal poucas gerações em que se pudesse ter praticado a consanguinidade.

Am, conse mincilissi tin henibh et luptat. Ratum dolore dolortin hendrercipit augiam zzriustrud esequis sequips uscilit, consed ea faccum

Conjuntamente com Alexandre Coxo, António Silvestre e Mário Ginja (da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), efetuei em 2011 um estudo (não publicado) algo similar na raça Cão da Serra da Estrela, reconhecida há bastante mais tempo (1934), portanto com bastantes mais exemplares e na qual houve ampla oportunidade de recorrer à consanguinidade se assim tivesse sido desejado pelos criadores. Recorrendo a uma base de dados com a informação genealógica dos indivíduos registados entre 1990 e 2009, determinou-se o nível de consanguinidade de 99 exemplares que se sagraram campeões entre 1999 e 2010. Este valor foi comparado

para ter sucesso nos objetivos A consanguinidade, o recurso ou não à sua utilização e as suas vantagens e desvantagens, é possivelmente um dos temas mais debatidos e discutidos na criação de animais, e está rodeado por uma certa “mitologia” tanto por parte de quem advoga a sua utilização como por quem a rejeita.

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epois de no mês passado termos visto que o argumento de que se deve recorrer à consanguinidade porque é assim que os lobos se reproduzem não é válido, vamos este mês explorar um dos argumentos mais advogados pelos partidários deste método – o de que é necessário utilizá-la para alcançar o objetivo pretendido. O objetivo é, tipicamente, o obter exemplares capazes de 50 Cães&Companhia

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ter sucesso em eventos de morfologia; em menor escala, o ter sucesso em provas de trabalho. A mente humana tem tendência a lembrar-se prioritariamente de certos eventos marcantes em detrimento de outros mais “comuns”. Assim, por exemplo, se ocorrer um cruzamento acidental entre um progenitor e um filho seu, ou entre irmãos, e algum desses exemplares se destacar na sua carreira como animal de

Exposição, as pessoas terão tendência a lembrar-se mais desse animal, pelas circunstâncias que o rodeiam (o ter nascido por acidente, o nem “ser suposto” existir, o ser muito consanguíneo) do que de outros que tenham tido um sucesso equivalente ou superior mas sem nenhum incidente que ajude a retê-lo na memória. A prazo, esta carga emocional poderá modificar a nossa perceção dos factos.

No Cão de Fila de S. Miguel

Não existem muitos estudos relacionando o sucesso de animais em Exposições com o seu nível de consanguinidade. Em 2006, no âmbito do trabalho de preparação do processo de reconhecimento definitivo do Cão de Fila de S. Miguel pela Federação Cinológica Internacional, que me foi encomendado pelo Clube Português de Canicultura, procurei averiguar isto. Uma das análises foi olhar para os níveis de consanguinidade dos exemplares que se tinham sagrado Campeões de Portugal até 2005 e compará-lo com o coeficiente de consanguinidade (COI, Coefficient of Inbreeding) quer Cães&Companhia 51

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consanguinidade é nula, mesmo que na realidade ela exista. Assim, para um animal que tenha na sua ascendência indivíduos desconhecidos será obtido um valor de consanguinidade inferior a outro que tenha o pedigree completamente preenchido (a menos que este não repita qualquer ascendente na sua genealogia). No entanto, os valores obtidos para estas raças enquadram-se no que se verifica nos campeões de outras raças estabelecidas há mais tempo e em países com livros de origens fechados, ou seja, com pedigrees completos. É o caso do Dálmata nos Estados Unidos da América (em que J. Seltzer obteve um COI de 6.01% em 1999) ou o Boxer e o Pastor Alemão no Reino Unido (nos quais M. Willis obteve os valores de 4.2% em 1989 e de 9.8% em 1976, respetivamente).

O Dálmata na América com a consanguinidade média no ano em que cada exemplar foi registado e com a consanguinidade média dos indivíduos eles próprios consanguíneos no ano de registo (figura 2). Com uma consanguinidade média de 8.58%, os campeões Cão da Serra da Estrela apresentam efetivamente um valor um pouco superior ao Cão de Fila de S. Miguel, bastante por influência dos indivíduos que completaram o seu campeonato há mais tempo. Apesar de uma maior proporção de indivíduos ter um COI acima dos 20% - 9% dos campeões, principalmente os mais antigos -, é menor a proporção de indivíduos com um nível de consanguinidade superior à média da população – apenas 21.2%, contra 48% no Fila.

Pedigrees incompletos e completos

Poder-se-ia argumentar que uma das razões para os exemplares destas duas raças portuguesas apresentarem valores tão baixos de consanguinidade e mesmo assim terem sucesso em eventos de morfologia tem a ver com os pedigrees estarem incompletos. Efetivamente, nas raças portuguesas o acesso ao Livro de Origem Português (LOP) tem permanecido aberto, pelo que animais de ascendência desconhecida têm podido ser registados mediante um exame de admissão ao Registo Inicial, sendo os seus ascendentes assinalados como desconhecidos. A implicação que isso tem a nível da análise de consanguinidade com base em pedigrees é que, quando se desconhece a ascendência de um animal, é assumido que a sua 52 Cães&Companhia

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Figura 1 – Coeficiente de consanguinidade dos Campeões de Portugal da raça Cão de Fila de S. Miguel homologados até ao fim de 2005, relacionado com o nível de consanguinidade médio dos exemplares com ascendência conhecida no ano em que esses indivíduos nasceram. A linha vertical indica o nível de consanguinidade médio da população total com ascendência conhecida, desde o reconhecimento da raça (4.78%).

Outro argumento que poderia ser usado é que por cá é relativamente fácil terminar o Campeonato a um cão, pelo que não seria preciso uma grande pressão a nível de sistemas de cruzamentos e de seleção para obter um campeão. Bem, por um lado, obter o título de campeão de beleza em Portugal é relativamente difícil, sendo necessários determinados resultados num certo número de Exposições, em algumas das quais a participação e obtenção de resultados mínimos é obrigatória (e, como tal, são as mais concorridas); há países em que não há resultados mínimos obrigatórios em determinadas exposições, pelo que por vezes é “apenas” uma questão de ir “insistindo”. Mas tudo bem, partindo deste argumento, vamos ver o que se passa nos Estados Unidos da América, onde, quanto mais não seja pela mera dimensão do país e número de exemplares presentes nas Exposições, na maioria das raças é muito difícil conseguir classificar um exemplar nos lugares cimeiros dos rankings. É o caso, por exemplo, do Dálmata, uma raça bastante popular. Em 1999, Jim Seltzer analisou o nível de consanguinidade dos Dálmatas que se classificaram nos 20 primeiros lugares do ranking de 1997, com base no número de prémios de raça obtidos, considerando 10 gerações de ascendentes. Os resultados não foram muito diferentes dos obtidos nas raças portuguesas, com menos gerações de genealogia disponíveis (figura 3) – apenas 40% dos exemplares apresentaram um nível de consanguinidade superior à média da população, sendo que apenas 1 exemplar (5%) tinha mais que 20% de coeficiente de consanguinidade.

Figura 2 – Coeficiente de consanguinidade dos Campeões de Portugal da raça Cão da Serra da Estrela homologados entre 1999 e 2010, (do mais antigo em cima para o mais recente em baixo), relacionado com o nível de consanguinidade médio dos animais registados no mesmo ano e dos exemplares já de si consanguíneos registados nesse ano.

E nos cães de trabalho?

Figura 3 – Coeficiente de consanguinidade dos 20 Dálmatas melhor classificados nos Estados Unidos da América em 1997, com base no número de prémios obtido. A linha vertical indica o nível médio da população. (Seltzer, J. (1999) Inbreeding in Dalmatians. The Dalmatian Quarterly, Spring: 24-29. [On-line] http://www.geocities.com/willowind_dals/inbreeding1.pdf)

Figura 4 – Evolução do coeficiente de consanguinidade dos exemplares registados na International Sheep Dog Society, com base na análise de 6 gerações de ascendentes e do pedigree completo. (van den Dool, T. (2010) Statistics from the stud books [On-line] http://www.palado.demon.nl/bcdb/ article1/WSN1c4.htm)

E o que se passa no caso de cães selecionados para efetuar algum tipo de trabalho? Nestes meios não parece haver tanto o mito do recurso à consanguinidade para obter bons resultados. Apesar de não ter dados concretos relacionando o sucesso no desempenho de determinada função com o nível de consanguinidade, existe informação que sugere que nestas populações os coeficientes de consanguinidade tendem a ser baixos. Assim, um estudo de 1972 examinando os pedigrees de 21 animais escolhidos ao acaso de entre os registos da Irish Greyhound Association revelou um coeficiente de consanguinidade na ordem dos 5.7%. Um estudo não publicado indica que nos Estados Unidos da América, o Pastor Alemão de linhas de trabalho apresenta um COI, com base em 10 gerações, variando entre os 2 e os 5%. Um estudo incidindo na base de dados da International Sheep Dog Society, que se dedica à promoção e registo de cães de pastoreio, indica, nos últimos 10 anos, um coeficiente de consanguinidade de cerca de 7%, com base em 6 gerações. Para esse número de gerações, os dados indicam uma diminuição no nível de

consanguinidade desde os anos 1960s (figura 4), apesar de quando se considera o pedigree total o valor ser superior, refletindo a influência das gerações anteriores no valor de consanguinidade total dos descendentes.

Em suma...

Os níveis de consanguinidade dos animais de trabalho aqui analisados tendem a ser similares ou ligeiramente inferiores ao dos animais que se destinam a exposições de beleza e companhia. Apesar de no meio da canicultura organizada parecer haver bastantes apoiantes do recurso ao inbreeding como o melhor método para obter bons exemplares, não só os valores de consanguinidade obtidos a nível populacional tendem a não ser muito elevados mas também, com base nos dados disponíveis, não parece haver razão objetiva para que seja necessário recorrer a consanguinidades apertadas para se obter exemplares capazes de triunfar em eventos de morfologia. O recurso à consanguinidade tem as suas vantagens e os seus problemas, que devem ser analisados e considerados, mas não é certamente o único método à disposição do criador para conseguir alcançar os seus objetivos..D Cães&Companhia 53

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